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Carnofalogocen-

trismo
Patrick Llored1

A
ética animal de
Jacques Derrida
é fundamental-
mente uma des-
construção do
sacrifício carnívoro como fun-
damento das relações entre os
humanos e os animais. Mas tra-
ta-se de um fundamento des-
1 Patrick Llored é professor de Fi-
construtível, pois para Derrida
losofia na Université Jean Moulin Lion III ele produz uma imensa violên-
(França) , especializado em Filosofia Ani- cia chamada carnofalogocen-
mal. Tradução de Vânia Rall, pesquisadora
trismo, violência que se exerce
do Núcleo de Direito e Ética Animal do Di-
versitas-USP. tanto sobre os animais quanto
E-mail: lloredpatrick@neuf.fr
sobre as mulheres. Desta forma, tal filosofia animal nunca separa Carnofalogocentrismo e
animalismo e feminismo.
Sacrifício Carnívoro
Introdução A desconstrução derridiana é, em primeiro lugar, a desconstru-
ção de uma pretensão própria do ser humano, que só conseguiu se
A filosofia animal de Jacques Derrida produziu um conceito que formular, na tradição filosófica ocidental, a partir de uma estreita
nunca foi estudado deveras: o carnofalogocentrismo. Quem já ou- relação com a questão do animal. Entretanto, é surpreendente cons-
viu falar desse conceito? Quem escreveu sobre tal noção um tanto tatar que o pensamento de Derrida quase nunca foi analisado como
estranha? Por que tal ideia nunca foi objeto de uma atenção crítica pensamento do vivente, incluindo humano e não humano, ou seja,
amplamente merecida? Quais são as provocações inseparavelmente como uma reflexão preocupada com o porvir do vivente animal em
éticas e políticas para nós, hoje, de tal ferramenta crítica de pensa- conexão com um poder soberano, quer este se manifeste no indiví-
mento que poderia constituir a marca mais radical e subversiva da
Carnofalogocentrismo

duo ou quer se manifeste na soberania política, tal como se configu-


desconstrução derridiana como filosofia da libertação animal? In- rou ultimamente no Estado moderno. A filosofia derridiana do viven-

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contestavelmente, há uma dificuldade inerente ao âmago desse con- te é mais precisamente uma desconstrução não somente do que o
ceito pelo fato de buscar ligar três ideias complexas ao mesmo tem- homem faz com o animal, mas, talvez de maneira mais exata, do que
po, assim definindo o que terá sido essa filosofia animal derridiana: o animal e daquilo que conviria nomear de besta para distingui-lo
logocentrismo, falogocentrismo e, portanto, carnofalogocentrismo. deste fazem com o homem. Tal filosofia somente pode ser realmente
Mas a força deste conceito não se apoiaria principalmente na ideia compreendida ao ser diretamente ligada ao que nos parece ser sua
de que as formas de dominação não são separáveis, quer estas vis- inovação, a saber, a questão do sacrifício, inseparável, à vista disso,
tam os nomes de violência política, sexismo ou ainda especismo? É da questão animal. Com efeito, é com o animal, sugere Derrida, que o
justamente essa interseccionalidade que nos permite compreender a sacrifício toma formas inéditas, originais e trágicas de suma impor-
filosofia animal de Derrida, para desconstruir todas as manifestações tância na invenção do Ocidente e dos valores nos quais se assenta:
de violência política e simbólica que se exercem sobre os animais,
uma vez que o carnofalogocentrismo é a própria violência política É para nomear essa cena sacrificial que mencionei, em

gerada pelas principais instituições políticas atuais, também a serem outro momento, como sendo único fenômeno e única lei, de

desconstruídas. uma única prevalência, de um carnofalogocentrismo; ano-


to rapidamente, a título de autobiografia intelectual, que se
a desconstrução do logocentrismo teve, necessariamente, de
se desenvolver ao longo dos anos em desconstrução do falo-
centrismo e, depois, do carnofalogocentrismo, a substituição

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inicial do conceito de traço ou de marca para os conceitos de bicioso que o pensamento derridiano – e, portanto, a desconstrução
palavra, de signo ou de significante era destinada, antecipada e no seu conjunto – deve ser interpretado, sendo o sacrifício carnívo-
deliberadamente, a ultrapassar a fronteira de um antropocen- ro uma das estruturas simbólicas fundamentais que se configuram
trismo, o limite de uma linguagem confinada no discurso e nas como uma das raras a possuir, em si, elementos que participam ao
palavras humanas. A marca, o grama, o traço, a différance, diz mesmo tempo do político, do filosófico e do antropológico, consti-
respeito a todos os seres vivos de maneira diferencial, a todas tuindo uma estrutura total. Três elementos inseparáveis parecem ter
as relações do vivente com o não vivente2. interessado Derrida na sua desconstrução do sacrifício.
Em primeiro lugar, o mecanismo sacrificial em si, que concentra
O carnofalogocentrismo é esse conceito que nomeia o sacrifí-
todos os elementos que uma determinada sociedade estabelece como
cio animal pelo qual o homem é responsável quando ele dá cabo da
fazendo parte do seu interior ou do seu exterior; o sacrifício, tanto
vida dos animais por meio de uma profusão de práticas culturais tri-
ontem como hoje, vindo a delimitar de maneira estrita as fronteiras
viais visando apropriar-se de suas vidas e ingeri-los. Esse conceito
entre a humanidade e a animalidade, uma vez que, embora houvesse
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fundamenta-se, tal como observado pelo próprio Derrida, em outras


situações de sacrifício humano, sempre foi a partir de, e em direção
duas noções que nele se encaixam: o logocentrismo e o falocentris-

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a, uma intenção antropocêntrica, especialmente de forma humanis-
mo. Ambas designam o fato de que o Ocidente concede um privilégio
ta, que este operou e segue operando. Em consequência, o sacrifício
absoluto à palavra e à razão, sem as quais não é possível fazer parte
permanece uma operação que age sobre o vivente animal com vis-
da comunidade dos viventes, a qual sempre foi, e permanece, uma
ta a submetê-lo à soberania humana. Logo, se o sacrifício tal como
invenção do poder masculino. O poder político no Ocidente é encam-
pensado por Derrida é principalmente carnívoro, ele permite, igual-
pado pelo ser humano do sexo masculino, que se considera racional
mente, e oferece a possibilidade de compreender não somente esse
e que expressa tal racionalidade por meio da palavra considerada
poder soberano exercido violentamente sobre o animal, mas também
como própria do homem por consequência. Porém, esse poder so-
o que participa do real e do simbólico. Em outras palavras, se o sa-
mente pode ser exercido por meio do sacrifício carnívoro que enxer-
crifício não pode ser apenas reduzido a sua dimensão real, é porque
ga o animal como vivente a ser sacrificado. Dizer, consequentemente,
ele possui prioritariamente uma dimensão simbólica cuja constan-
que a desconstrução é uma filosofia da animalidade, é o mesmo que
te denegação constitui uma das chaves interpretativas principais do
dizer que é uma filosofia do sacrifício animal, ou seja, uma descons-
Ocidente. Finalmente, se ele é o fundamento onto-teológico-político
trução de todas as estruturas simbólicas ocidentais que se utilizam
onde nasceu e continua a se inventar a própria ideia de comunidade
dos animais para tomar forma e se desenvolver. Em outras palavras,
humana, o sacrifício é também uma chave interpretativa que permite
o Ocidente vive desse sacrifício animal que toma a forma dominante
entender que as estruturas políticas centrais do Ocidente, que são a
e complexa do sacrifício carnívoro: tal é a tese na qual se assenta a
soberania e o Estado moderno, somente fazem sentido ao se separar
filosofia de Derrida. Parece-nos que é na medida desse projeto am-
do animal sacrificado no altar da política como painel de fundo.
2 DERRIDA J.,L’animal que donc je suis, Paris, Ed. Galilée, 2006, p. 144.
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Sentido e Função do Sacrifício de destruição violenta de qualquer vida animal. Jacques Derrida in-
dica, nesta operação, mesmo no que concerne ao nível individual do
Carnívoro ou a Desconstrução do
sujeito, o privilégio absoluto do poder soberano sobre a vida e a mor-
Carnofalogocentrismo te do animal. Esse poder distribui, à sua maneira, as cartas do real e
do simbólico, retirando a vida sem reconhecer a violência pela qual
A desconstrução derridiana nos ensina permanentemente que,
tal ato se efetua:
para o ser humano, qualquer animal possui dois corpos, a exemplo
dos dois corpos do rei estudados antigamente pelo historiador ale- Gostaria principalmente de esclarecer, acompanhando
mão Ernst Kantorowicz na sua famosa obra Os Dois Corpos do Rei. En- essa necessidade, a estrutura sacrificial dos discursos aos quais
saio sobre a Teologia Política da Idade Média: por um lado, um corpo estou fazendo referência [trata-se principalmente dos discursos
biológico e comestível, submetido permanentemente à lógica sobe- de Heidegger e Levinas sobre a questão animal, mas podemos es-
rana do sacrifício carnívoro, que é sacrificial no seu próprio incons- tabelecer que refletem em grande parte o senso comum cultural
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ciente; e, por outro lado, um corpo simbólico e político que sobrevive sobre o assunto]. Não sei se “estrutura sacrificial” seria a ex-

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da sua morte violenta sob a forma de espectros, a saber, de crenças pressão mais correta. Trata-se, em todo caso, de reconhecer um
que fundamentam o político. Em ambos os casos, é o corpo do animal lugar deixado livre, na própria estrutura desses discursos que
que é sacrificado em único benefício do homem. também são “culturas”, para um abate não criminoso: com in-
A primeira característica do abate de um animal é justamente gestão, incorporação ou introjeção do cadáver. Operação real,
de não se apresentar como uma morte no sentido antropomórfico da mas também simbólica, quando o cadáver é “animal”; opera-
palavra, e, mais além, de exibir todos os sinais da legalidade humana. ção simbólica quando o cadáver é “humano”. Mas neste caso,
A desconstrução derridiana busca focalizar a “estrutura sacrificial” o “simbólico” é muito difícil, e na realidade impossível, de ser
dos discursos autorizadores de tal morte, considerando que tal es- delimitado, daí a imensidão da tarefa, sua desmedida essen-
trutura garante uma dupla função vital para nossas sociedades car- cial, uma certa anomia ou monstruosidade daquilo que se deve
nívoras: por um lado, a de autorizar a morte do animal de maneira prestar contas ou frente a que (quem? o quê?) é preciso prestar
soberana, inscrevendo-a obrigatoriamente em uma lei moral e jurí- contas3.
dica antropocêntricas, e, por outro lado, a de tornar possível uma de-
Desconstruir o sacrifício animal e carnívoro: tal é, portanto, o
negação da natureza violenta do ato sacrifical em si. Tais discursos,
desafio da filosofia de Derrida que pode assim ser interpretada como
ao mesmo tempo comuns, filosóficos, morais, científicos e jurídicos,
uma ética animal, pois seu objetivo é de pôr um fim à violência sa-
propõem, sem exceção, uma justificativa do sacrifício marcada por
crificial da qual os animais são o alvo. Desconstrução passando pela
uma profunda ambivalência, pois se trata ao mesmo tempo de “dar
a morte” e, concomitantemente, não reconhecer tal ato como gesto 3 DERRIDA J., « ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet. Entretien avec J.L. Nancy », (1989),
retomado em Points de suspension. Entretiens, Paris, Ed. Galilée, 1992, p. 228.
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decomposição dessa estrutura sacrificial que caracteriza os discursos rania humana.
e os atos quando tratam dos animais e que os reduzem a corpos de Contudo, Derrida se dedica a demonstrar, e tal é a finalidade da
carne comestível. O que dizem e o que revelam, afinal, tais manifes- sua ética animal, que a distinção entre o real e o simbólico não é sus-
tações sacrificiais que retiram qualquer sentido à sua morte e que, tentável, nem defensável por nenhum vivente, seja ele humano ou
assim, os privam de seu próprio desaparecimento? O que diz, afinal, não humano, e que, na realidade, o simbólico é um ato performativo
nossa cultura ocidental que continua autorizando essas práticas sa- a partir do qual a diferenciação moral opera e toma uma determinada
crificiais, que, na realidade, são práticas rituais construindo perma- forma social em concordância com o interesse de quem a institui pela
nentemente o espaço do real e do simbólico e determinando os di- força, a qual sempre antecede a lei. Em outras palavras, o simbólico
reitos de entrada dos viventes nessas experiências extremas? “Esses pode ser desconstruído a partir de duas vias paralelas e convergen-
discursos sacrificiais negam o status de atos criminosos às práticas de tes: por um lado, mostrando que não é apanágio do homem, que toma
abate”. Com efeito, todo abate de animal se apresenta sob a forma de formas diferenciadas que não existem em sua pureza ou em seu rigor
um ato técnico, e até tecnológico, material, empírico, desprovido de no ser humano, inscritas em uma pretensa lei moral transcendental;
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qualquer dimensão moral. Todo abate de animal apresenta-se intei- e, por outro lado, que o simbólico comporta, também, manifestações

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ramente fundamentado na razão pela sua função carnívora, a saber, variadas no reino do vivente não humano.
alimentícia, de modo que tudo é organizado para que nunca possa Desse ponto de vista, a filosofia animal derridiana pode ser
ser visto pelo que é: um crime. Reduzir tal ato a uma manifestação compreendida, em primeiro lugar, como uma operação arriscada de
meramente empírica leva, na realidade, a negar ao animal qualquer desconstrução das fronteiras do real e do simbólico tais como foram
participação em um campo simbólico suscetível de torná-lo um ser inventadas pelo ser humano por meio do seu poder sobre os animais.
cuja vida não seria exclusivamente reduzida a sua dimensão biológi- Tal apropriação humana do simbólico lhe permite, na realidade, de
ca. Derrida nos ensina, portanto, que o gesto que põe um fim à exis- inventar uma qualidade distintiva e, destarte, uma subjetividade que
tência, sempre única e singular, de um vivente não humano, escapa passa pela obrigação de pôr um fim à vida do vivente não humano,
a qualquer avaliação em termos jurídicos e morais: o que chega a quais sejam todos os animais, apropriação que é, ao mesmo tempo,
confirmar redondamente a tese comum de que o animal permanece uma desapropriação, que, no fundo, só faz sentido com referência a
um ser que não pode (e não deve) integrar a ordem simbólica, já que esse outro, o animal, que se recusa a reconhecer como tal.
esta é o privilégio dos humanos, quer dizer, constitui sua qualidade
distintiva. O carnofalogocentrismo é, portanto, esse processo perma- Sacrifício Animal e Criação de
nente pelo qual se nega ao animal o direito ao simbólico, proprie-
dade do sujeito soberano cujo poder alimenta seu poderio por meio
Subjetividade Humana
do sacrifício. Assim sendo, o animal não tem direito ao simbólico na Assim sendo, o sacrifício como manifestação do carnofalogo-
ocasião do seu abate em nome da superioridade ontológica da sobe- centrismo é uma instituição ritual e fundadora, no sentido forte da
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palavra, pela qual o homem concede a si, por meio da violência, uma incluo, em nome da desconstrução, um conjunto de perguntas

subjetividade que lhe permite instalar um limite intransponível en- sobre o carnofalogocentrismo), é preciso reconsiderar a totali-

tre ele e o animal, por uma operação de negação do próprio ato de dade da axiomática metafisico-antropocêntrica que domina, no

matar: Ocidente, o pensamento do justo e do injusto5.

Eu não sei, chegado a esse ponto, quem é “quem” nem Consequentemente, em qualquer sacrifício carnívoro somente
mesmo o que quer dizer “sacrifício”; para determinar esta pode produzir-se uma denegação que se utiliza de pretextos externos
última palavra, conservo apenas este indício: a necessidade, à função essencial do mecanismo sacrificial para negar que se trate,
o desejo, a autorização, a justificativa do abate, a morte dada de fato, de um sacrifício. Essa denegação toma forma de discursos
como denegação do assassínio. O abate do animal, diz essa de- múltiplos justificando e legitimando, em nome dos interesses do ho-
negação, não seria um assassinato. E eu ligaria tal “denegação” mem descritos como necessários à sua humanização, o abate do ani-
à instituição violenta do “quem” como sujeito4. mal. Todavia, com essa mentira para consigo mesmo, o ser humano
Carnofalogocentrismo

se proíbe enxergar que a violência do sacrifício é, na realidade, a con-


O sujeito se autoinstitui ao tirar a vida do animal por meio de dição transcendental da instituição do sujeito humano e, portanto,

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um ato que se reivindica como meramente técnico e material, mas de qualquer subjetividade. A violência do sacrifício está na medida da
cujas consequências são incomensuráveis com relação a sua efeti- instituição violenta do sujeito humano: tal é a definição mais explí-
vidade aparente. Tal invenção de si é um processo inconsciente e ao cita do carnofalogocentrismo, que somente existe pela configuração
mesmo tempo fonte de negação, mas também princípio de propaga- de tal violência que não apenas visa ao animal, mas também a sua
ção para toda a sociedade nas suas múltiplas dimensões: relação com os viventes humanos. Como explicar esse mecanismo
Em nossa cultura, o sacrifício carnívoro é fundamental, por meio do qual tal operação sacrificial se torna eficiente? O que
dominante, regrado na mais alta tecnologia industrial, como tem ela a ver com o que Derrida chama de “místico”? A tese derridia-
também é a experimentação biológica com o animal – tão vital na relativa à relação causal entre sacrifício e subjetividade se assenta
para nossa modernidade. (...) O sacrifício carnívoro é essencial em uma concepção da lei e do Direito marcada pela ideia de que o
à estrutura da subjetividade, ou seja, ao fundamento do sujei- Direito é, primeiramente, uma força, ou mesmo uma força pura tendo
to intencional e, se não da lei, ao menos do Direito, perma- sua fonte originária em nenhum princípio moral. Na realidade, o Di-
necendo as diferenças entre a lei e o Direito, a justiça e a lei, reito, qualquer Direito, se desenvolve de acordo com um processo de
aqui, abertas para um abismo. Se quisermos falar de injustiça, auto-fundação tautológica que, arbitrariamente, lhe permite disjun-
de violência ou de desrespeito para com o que, confusamente, gir violência legal e violência ilegal com o único propósito de separar
chamamos o animal – a questão é ainda mais aberta (e nela vida humana e vida animal.
4 DERRIDA J., « ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet. Entretien avec J.L. Nancy », op. cit., 5 DERRIDA J.,Force de loi.Le “fondement mystique de l’autorité”, Paris, Ed. Galilée, 1994,
p. 229. p. 4243.
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A filosofia animal derridiana é, portanto, inseparável de uma e de acordo com seu bem-querer. Fazer do corpo do animal uma coisa
filosofia da lei e do Direito que leva a reconhecer que, como tais, o puramente material é a própria finalidade desta operação “mística”
Direito e, mais amplamente, o fundamento de qualquer comunidade instituidora do humano no Ocidente.
política não são em nada “naturais” nem “contratuais”, mas arbitrá- Assim sendo, haveria por um lado o corpo do animal e, por ou-
rios de acordo com o significado que Montaigne dá a essa palavra nos tro lado, o espírito do sujeito, dualismo característico da oposição
Essais, no capítulo “Da Experiência”: metafísica fundamental entre o corpo e a alma, a qual é diretamente
oriunda do carnofalogocentrismo. O que Derrida busca pôr em foco é
Ora, as leis se mantêm com crédito, não porque são jus-
que o espírito do sujeito intencional não tem origem autônoma, mas,
tas, mas porque são leis. É o fundamento místico da sua auto-
melhor dito, imunitária, porque se trata, primeiramente, de um meio
ridade, elas não têm outro (...). Qualquer um que lhes obedece
de proteção de si que depende diretamente da redução corporal, bio-
porque são justas, justamente não lhes obedece por onde deve6.
lógica e carnívora, à qual o animal é submetido por esse mesmo su-
Para Derrida, o sacrifício carnívoro postula arbitrariamente a jeito soberano. Dito de outra forma, o sujeito tal como o conhecemos
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existência de dois mundos por tudo separados, crença que se acom- no Ocidente somente pode se pensar e viver como sujeito se ele fizer

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panha de uma descarga de violência física e simbólica considerável do animal uma realidade reduzida para sua função ou finalidade car-
cujo resultado pode ser qualificado de “místico” de tanto que par- nívora. O sujeito soberano somente pode se entender como sujeito
ticipa de uma certeza cuja força abrirá espaço para a existência do soberano com a condição de dispor, por meio do abate do animal, de
mundo do próprio sujeito intencional. Ao final, dois mundos se con- um poder de vida e morte, que é o poder absoluto e, portanto, a for-
frontarão nitidamente: por um lado, o mundo animal, supostamen- ma privilegiada e última da soberania humana. Mais precisamente,
te desprovido de qualquer lei moral suscetível de gerar um Direito é esse poder de vida e de morte que institui a soberania, justamente
qualquer, e, por outro lado, o mundo humano, modelado pela lei que porque ele é ilimitado com relação a esse vivente não humano que é
se encarna no Direito como característica de um privilégio próprio do o animal.
homem, aqui com o sentido literal de “propriedade”, já que o sujeito
humano carnofalogocêntrico se apropria do mundo da lei e da moral Conclusão
instituindo, por meio da violência, uma fronteira ontológica rígida
entre ele e o animal. A favor desta operação “mística”, que passa tan- Em política, a dominação se apoia essencialmente no sacrifício
to pelo inconsciente cultural como por crenças sociais naturalizadas carnívoro e, portanto, no consumo de carne animal. Mais precisa-
pelo costume, o corpo do animal se vê reduzido a um mero corpo mente, “tal esquema dominante” é o que constitui o “denominador
biológico e mortal do qual o ser humano pode dispor a seu bel-prazer comum” de qualquer dominação em política e, consequentemente,
encontra-se diretamente em conexão com a soberania exercida pe-
6 MONTAIGNE M., Essais, III, chap. XIII, “De l’expérience”, Paris, Ed. Gallimard, Bibliothèque
los humanos sobre a vida animal. Soberania carnívora que atravessa,
de la Pléiade, 2008, p. 1203.
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segundo as próprias palavras de Derrida, “a ordem do político ou do Bibliografia
Estado, do direito ou da moral”, a saber, o que Derrida chamou sempre
a “própria subjetividade”. Todas essas ordens têm fundamentado sua DERRIDA, J. L’animal que donc je suis. Paris. Ed. Galilée, 2006.
dominação no poder que exercem por meio da carne animal, sacri-
ficada e consumida sobre o altar político e de todas as instituições DERRIDA, J. ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet. Entretien
criadas pela humanidade contra os animais. O sacrifício carnívoro avec J.L. Nancy, (1989), retomado em Points de suspension. Entre-
ainda permanece a razão de ser do político, e leva consigo, com in- tiens. Paris:.Ed. Galilée, 1992.
tensa violência, qualquer subjetividade, fazendo com que, para Der-
rida, não haja subjetividade humana sem essa violência que também DERRIDA, J. Force de loi.Le “fondement mystique de l’autorité”.
produz a nossa soberania, seja individual, seja coletiva. O que signifi- Paris. Ed. Galilée, 1994.
ca, finalmente, que o Estado só pode ser canibal, canibal significando
que não somente vive desse sacrifício carnívoro, mas também que o MONTAIGNE, M. Essais, III, chap. XIII, “De l’expérience”. Paris. Ed.
Carnofalogocentrismo

produz em cada ato. O Estado é um canibal ou não é o Estado: tal é, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2008, p. 1203.

Patrick Llored
portanto, o maior ensinamento que se retira desse conceito subversi-
vo de carnofalogocentrismo, que também nos indica como descons-
truir a soberania rumo à não violência para a qual nos conduz a ética
animal derridiana.

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