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Material Teórico
Dever e Consequências
Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Dever e Consequências
·· Dever e Consequências
·· Immanuel Kant e a Ética do Dever
·· Utilitarismo e a Ética das Consequências
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Unidade: Dever e Consequências
Contextualização
“Podemos – devido a uma grande necessidade – fazer uma promessa sabendo que
não iremos cumpri-la?” (Adaptado – Fundamentação de Metafísica dos Costumes. KANT,
2007, p. 31.)
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Pense
• Quais as consequências desse tipo de conduta?
• Ela seria moralmente aceitável?
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Dever e Consequências
Nosso itinerário nesta disciplina percorreu diferentes temas relevantes para discussão em
torno dos temas que conectam cidadania e ética.
Aprofundando-nos um pouco mais no pensamento filosófico, no que trata da moral,
podemos recortar duas linhas de força que foram e ainda são muito importantes para a
discussão sobre ética.
De um lado a questão do dever, entendendo que nesse aspecto, uma ação, por exemplo,
pode ser realizada de diferentes maneiras, mas ela deve ser executada de determinada maneira,
o que deixa de lado todas as outras. Por que esse determinado caminho (linha de ação) é
melhor do que os outros? Qual o critério? Quando tratamos de uma deontologia (ciência dos
deveres), temos princípios, e é somente sob esses princípios que uma ação pode ser julgada
como boa ou ruim. Portanto, uma ética que se atenha a um princípio previamente estabelecido
pode não se curvar diante de uma situação inesperada, mesmo que os resultados não sejam
favoráveis ao agente. Esse tipo de ética em que o princípio vem em primeiro lugar é fortemente
identificada com o pensamento kantiano – do qual falaremos mais adiante.
Outra linha de força pode ser vista ora como antagônica, ora como complementar – deixaremos
para a sua própria reflexão assumir se ambas são ou não totalmente incompatíveis entre si
quando se tratam das práticas cotidianas. Essa linha de força não teria um único autor, sendo
mais como uma escola de pensamento, que tem o inglês Jeremy Bentham como seu fundador,
mas que contou fortemente com a contribuição de outros pensadores, como o também inglês
John Stuart Mill – sobre o qual falaremos adiante. Essencialmente, essa linha de pensamento
avalia se uma ação é boa ou ruim com base nos resultados que essa possa produzir, ou seja,
o critério, apesar de ser o de se buscar uma melhor ação possível, pode variar mais facilmente
conforme a circunstância, tendo em vista os possíveis efeitos dessa ação. Como veremos, ambas
as correntes têm seus méritos e seus aspectos problemáticos. Então comecemos!
O filósofo Kant (1724-1804) é, sem dúvida, um dos pensadores mais importantes do século
XVIII; talvez o mais importante. Em qualquer cenário, é um dos autores protagonistas nos curso
de filosofia, visitado em diferentes disciplinas.
No campo da ética, articula de forma interessante a teoria em torno da questão do dever.
Para esse filósofo, nascido em Königsberg (antigo território prussiano), toda ação que se
pretenda pautada pela ética, toda ação que seja legitimamente moral, é uma ação segundo o
dever. Para começar a entender a ideia kantiana de dever, podemos começar pelo que ele não
é, nesse caso, ação por interesse. Aqui não se trata de ideia de interesse no sentido “de estar
voltado para algo”, mas a discussão é sobre a motivação da ação. Como nos lembram diferentes
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Unidade: Dever e Consequências
autores (Conf. CHAUÍ, 2003), tomar determinada linha de ação para obter algum benefício
(atender ao nosso interesse) pode ser visto como uma doutrina egoísta, ou melhor, uma linha
de pensamento em que o critério para as minhas ações é o que essa ação pode resultar de bom
para mim. Por exemplo, se auxilio um conhecido considerando que ele ficará “me devendo um
favor”, estou guiando minha ação como uma espécie de investimento futuro; na verdade um
“empréstimo de solidariedade” (não estamos nos referindo propriamente a dinheiro), o qual
eu posso “resgatar” quando me for conveniente. Em alguns casos, o egoísta espera receber o
“empréstimo da boa ação” acrescido de “juros”.
Para o pensamento kantiano, esse tipo de conduta não tem nada de ético, pois, afinal, o que
deveria ser o motivo da ação é uma causa, a priori, puramente racional, nada que seja derivado
dos desejos, cobiça, lucro, fama ou quaisquer outras motivações externas à razão.
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Não se trata apenas das necessidades internas; também recebemos toda uma série de
estímulos externos, sociais, que podem induzir nossa vontade. Imagine, estudante, agir de
uma maneira que faça com que as outras pessoas gostem de você. No entanto, você faria
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as mesmas coisas se soubesse de antemão que elas não lhe proporcionariam nenhuma
popularidade? É essa a direção seguida por Kant no exame da moral. Para o filósofo de
Königsberg, nossa vontade – que guia nossas ações - deve se identificar com aquilo que ele
próprio definiu como boa vontade.
“A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer
finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em sim
mesma, deve ser avaliada em um grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa
ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as
inclinações.” (KANT, 2007, p. 23.)
Eis um ponto que merece bastante atenção: uma boa vontade só é boa pela sua forma de
querer, um querer em si mesma. O que o filósofo estava tentando nos passar? Que esse
“querer” deve seguir a si próprio e não influências, motivos, desejos ou outros estímulos externos.
De onde vem um “querer em si mesmo”? Para Kant, o ser humano é dotado de vontade,
mas atenção! Aqui é uma concepção da vontade que não corresponde à do senso comum,
que muitas vezes equivale vontade com desejo, por exemplo: “o menino está com vontade
(quer) de mais sorvete de chocolate” ou “a menina tem vontade (gostaria ou deseja) de uma
boneca nova”.
Segundo Kant, a “vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto seres
racionais” (KANT, 2007, p. 93). Em outras palavras, uma motivação derivada da razão, cuja
liberdade seria uma propriedade da mesma (Idem).
Assim sendo, a fonte de uma boa vontade estaria em nossa vontade racional, que segundo
Kant é universal. Essa universalidade diz respeito a todos os seres racionais. Agir por boa vontade
também é agir segundo o dever (lei moral) formado pela nossa razão.
Um ponto fundamental da ética kantiana é que ela não impõe conteúdos, não cria uma lista
de coisas que são boas segundo a razão ou uma lista de coisas que não são. A estratégia de Kant
está em permanecer na forma da razão, ou melhor, a racionalidade produz por coerência consigo
mesma certo parâmetro, que por ser produzido racionalmente, é compatível com qualquer ser
racional e, portanto, independente de cultura, época ou lugar - daí a universalidade do princípio.
Mas, afinal, qual o parâmetro? Qual a regra? Considerando-se que seria uma regra sem
conteúdo!
Quando Aristóteles buscou o seu critério para uma ação boa, seguiu com a ideia de um
“meio termo” entre os extremos; a virtude (ação boa) está longe do vício por excesso e longe
do vício por ausência.
A solução kantiana pode ser considerada até mais simples. O critério é a própria universalidade,
via razão.
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Unidade: Dever e Consequências
Para uma ação ser moralmente válida, ela deve ser racional. E se ela (ação que se pretende
moralmente válida) for realmente uma ação racional, será coerente com a atitude de qualquer
ser racional; portanto será válida moralmente para todos os seres racionais. Mas esse, estudante,
é o aspecto sutil da questão; a ação teria que ser possível de ser executada por todos não
quando convém a cada um, mas por todos o tempo todo!
Esse é o critério! Confuso? Imagine a mentira. Podemos imaginá-la como uma ação que seja
universal? Não se trata de tolerar este ou aquele mentiroso, que quando lhe convém mente para
seu próximo (seja para obter lucro, seja para se sobressair socialmente etc.). A pergunta seria:
poderíamos viver em uma sociedade em que todos mintam? O médico mente ao paciente,
que mente ao advogado, que mente ao juiz, que mente ao réu, que mente à família, e assim
infinitamente. A própria comunicação mínima necessária para o convívio e organização da
sociedade se tornaria inviável.
Mas antes do passo seguinte, ainda um ponto que deve incomodar o estudante atento: como
uma regra pode não ter conteúdo? Como ela pode ter apenas forma? Ajuda se raciocinarmos
forma enquanto fórmula, e nesse caso chegamos ao célebre imperativo categórico.
“O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59.)
Partindo, então, da fórmula kantiana, o que temos é uma espécie de “teste de universalidade”,
em que não está previamente estabelecido que esta ação em particular é boa ou ruim, mas
devemos refletir sobre sua coerência racional, seguindo a ideia da universalidade. Se posso
fazer com os outros e os outros também podem fazer comigo e entre eles, independentemente
de circunstâncias que beneficiassem essa ou aquela pessoa, então essa é uma ação de
acordo com a vontade racional, ou seja, atende a um imperativo da razão – portanto, um
imperativo categórico, porque busca uma coerência universal e assume a forma de um dever.
(Lembre que, como acabamos de mencionar, a mentira não atende a esse critério, porque
não poderia ser elevada a um padrão de conduta corriqueiro, não poderia ser aceita como lei
universal da razão).
A ideia de uma lei universal, aplicada como sugere Kant, tem derivações interessantes
apontadas pelo próprio filósofo, quando atentamos para a maneira como devemos tratar com os
outros. Em palavras kantianas: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente
como meio.” (KANT, 2007, p. 69).
Ora, estudante, como a ideia é fazer ações que se tornem leis universais, sem dúvida utilizar as
pessoas como meios para atingir outros fins não pode ser considerado um princípio eticamente
válido. Você já deve ter ouvido a expressão “Aquela pessoa tem segundas intenções”. Esse é
o caso que estamos examinando. Considerar “as outras pessoas como meios” significa tratá-
las como “pontes” para alcançar outros interesses, seja como o bajulador que elogia ou se
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mostra simpático a alguém em posição de poder (para obter vantagem futura), seja, como foi
mencionado antes, como aquele que, em falsa solidariedade, auxilia o próximo com vistas a
obter também alguma vantagem no futuro.
Tanto em um caso como no outro não há um verdadeiro respeito pela dignidade da humanidade
do outro indivíduo e, portanto, não poderiam ser elevados à condição de lei universal.
Por fim, chamamos atenção novamente para o tema da liberdade. Kant defende que para
chegarmos ao imperativo categórico, a autonomia da vontade está pressuposta. O indivíduo
apenas pode agir moralmente se sua vontade visar apenas à boa vontade. Se essa ação decorre
de influências ou pressões externas, então ela não se portou autonomamente. Isso levanta uma
questão interessante no pensamento kantiano, que o faz distinguir a ação segundo a lei moral e
a ação segundo a lei do Estado (no sentido jurídico).
Por se tratar de um princípio que depende rigorosamente da racionalidade, quando o
indivíduo age conforme a lei, ele está sendo moralmente correto?
Para o filósofo de Königsberg, não necessariamente!
Um indivíduo pode agir de acordo com as leis de seu país e estar sendo moralmente correto,
pois as leis do Estado convergem para os ditames da vontade racional do mesmo indivíduo, ou
seja, ele na verdade está obedecendo a suas convicções racionais em primeiro lugar (autonomia).
Já em outro caso, o sujeito obedece às leis do Estado sem se preocupar se está ou não atendendo
a um parâmetro universal da razão; a preocupação com a conformidade legal acontece por receio
das sanções que receberia caso não atue de acordo. Nessa situação, embora o cidadão não tenha
cometido nenhuma ilegalidade (respeitou as leis de trânsito, pagou seus impostos, etc.), segundo
o critério kantiano ele não foi ainda verdadeiramente ético, uma vez que só agiu corretamente por
pressão da punição que poderia receber (ser multado ou preso, dependendo da violação). Nesse
caso, diria Kant, prevaleceu o imperativo hipotético, em que o sujeito age de determinada maneira
pensando em conseguir (ou evitar) determinada consequência.
Esse último ponto nos leva a uma reflexão. A proposta kantiana é um desafio pelo seu rigor
racional, ao ponto de não autorizar que a simples conformidade legal (em relação às leis do
Estado) assegure se tratar de um ato de moralidade, e de exigir, para tanto, a conformidade com a
lei moral em nós (que é agir segundo a vontade racional). Podemos imaginar que uma sociedade
que de fato alcançasse o nível de exigência da ética kantiana seria muito menos problemática
do que uma sociedade em que seus cidadãos somente cumprem suas leis mediante intensa
fiscalização e vigilância do poder público. A ausência de uma solidariedade social verdadeira, a
existência apenas de uma colaboração forçada, não levaria a um cenário por demais opressivo?
As leis sociais só seriam obedecidas pela deformação da vontade mediante pressão do Estado.
Nesse clima opressivo, a manutenção da ordem e os próprios vínculos sociais ficariam à mercê
do uso de força. Mas o que aconteceria quando todo esse aparato de vigilância falhasse? Em
um exemplo mais simples: e se o guarda de trânsito não estiver presente (e não houver câmeras
filmando), a sinalização de trânsito seria obedecida?
Se uma sociedade assumisse mais coletivamente (é provável que houvesse exceções e com elas
crimes) os parâmetros da vontade racional, por acaso não tenderia que seus cidadãos cumprissem
suas leis, por exemplo, de maneira mais espontânea? Com menor incidência de vigilância, não
sobrariam mais recursos para aplicar em outros serviços públicos mais interessantes? Não seriam
menores os casos de corrupção? Certamente é algo que merece reflexão.
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Unidade: Dever e Consequências
“O credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade,
defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na
medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a
ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação do prazer.” (MILL, 2005, p. 48.)
Fique atento, estudante! Novamente nos deparamos com termos cujo significado filosófico
vai além do uso no senso comum!
Observemos o próprio termo “utilitarismo”. A palavra pode induzir erroneamente à ideia
de utilidade simplória, quase mecânica, tal como são úteis uma ferramenta, um sapato, etc., e
parecer descolada da ideia de útil para questões mais intangíveis, como a felicidade. Por outro
lado, termos como “prazer” e “dor” no senso comum podem ter um uso por demais restrito: o
prazer como associado ao prazer sensual (oriundo dos sentidos), sendo ainda, em muitos casos,
algo passageiro e muito facilmente condenado por moralismos tradicionais; já a dor, associada
apenas com sofrimento físico mais imediato (dor de dente, dor devida a uma pancada sofrida,
dor de barriga etc.).
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Stuart Mill, em seu texto Utilitarismo, passa algumas linhas desfazendo esse tipo de confusão,
a qual atrai críticas indevidas ao utilitarismo enquanto doutrina ética.
Um caminho que contribui para o entendimento da linha de pensamento do autor é
considerar “prazer” e “dor” como termos que incluam “bem-estar” e “mal-estar” de uma forma
mais ampla. Satisfação em alcançar uma meta profissional, por exemplo, entraria na categoria
de “prazer”. Tristeza ou decepção podem ser incluídas na categoria utilitarista de “dor”.
O estudante atento já desconfia que o utilitarismo pode muito bem criar uma hierarquia de
prazeres, em que uns são mais elevados do que outros. A desconfiança procede. Stuart Mill
reconhece que o princípio de utilidade é compatível com a distinção entre tipos de prazeres.
“Seria absurdo supor que, enquanto que na avaliação de todas as outras coisas se considera tanto
a qualidade como a quantidade, a avaliação dos prazeres dependesse apenas da quantidade.”
(MILL, 2005, p. 49.)
Quando se fala de uma teoria das consequências que privilegia a ação que produza o maior
prazer possível não apenas para o agente, mas para a comunidade como um todo, um problema
a ser considerado é: “como posso atingir esse máximo de prazer ou de felicidade?”. “Isso
realmente é possível?”. No que se refere à possibilidade da felicidade, a réplica utilitarista é de
que quando não for possível ampliar a felicidade, deve-se buscar evitar ou mitigar a infelicidade
existente. Certamente um donativo dado em uma campanha de caridade não resolve de forma
definitiva toda uma série de problemas sociais ligados à pobreza, porém seguindo o raciocínio
dos utilitaristas, a ação auxilia ao menos a mitigar – ao mesmo que momentaneamente – a dor
(situação de privação) na qual se encontra aquela pessoa ou grupo de pessoas, ou seja, para o
utilitarismo a ação é moralmente válida.
Há outro problema que costuma ser apresentado ao utilitarismo: o do cálculo das
consequências. Jeremy Bentham falava mesmo em “cálculo para a felicidade”. O entendimento
sóbrio e prático de Stuart Mill ironiza ao afirmar que um moralista cristão não precisa ler (ou
reler) todo o antigo e o novo testamento a cada decisão que vá tomar (Conf. MILL, 2005).
Para Stuart Mill, a cultura humana acumula uma longa sabedoria moral, a qual pode já servir
de ponto de partida para qualquer um que queira agir corretamente em sociedade, não sendo
necessário para cada caso do convívio em sociedade fazer uma “terra arrasada” e começar a
questionar tudo do zero.
Um exemplo lembrado pelo autor inglês é o princípio de “se cumprir aquilo que for
prometido”. A sabedoria popular e o acúmulo de bons resultados com esse tipo de prática
(resultados empíricos) ajudaram a construir a ideia de que cumprir as promessas seja algo sábio,
bom, justo ou simplesmente o “certo a se fazer”. Ora, por que um utilitarista não faria uso dessa
“sabedoria acumulada”? O espírito empírico de Stuart Mill leva a responder que sim, que essa
é uma linha de ação moralmente correta, e quando analisada à luz dos parâmetros utilitaristas
isso se confirma, pois pode-se imaginar o quão danoso seria para a sociedade instituir a prática
contrária, ou seja, se as promessas jamais fossem cumpridas.
O argumento de Mill é que não se faz necessário um imenso cálculo de consequências para cada
decisão do cotidiano. Muitas vezes, seguir as leis e os costumes já parece atender às demandas
éticas do homem comum. Na maioria dos casos, o alcance das ações de uma pessoa impacta
mais fortemente sobre ela mesma e em seus entes queridos, e esse “cálculo” intuitivo não seria tão
difícil de fazer. Mas, estejamos atentos, isso não priva o cidadão comum de ter responsabilidades
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Unidade: Dever e Consequências
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Agora, estudante, imaginemos o seguinte cenário: um líder de um país fez uma promessa,
mas, devido à conjuntura, manter essa promessa desencadearia uma guerra sangrenta com a
possibilidade da morte de milhares de pessoas. Ele deveria honrar a promessa, pelo simples
princípio de que “o prometido deve ser cumprido” ou ele quebraria o prometido, tendo em vista
as consequências da sua ação (evitar um aumento imenso na dor da comunidade)? Não é uma
situação simples, mas a saída, se pensada a partir de parâmetros utilitaristas, é quase imediata:
evita-se a guerra. O entendimento da maioria dos utilitaristas é que a situação justifica a ação;
assim, a liderança em questão teria agido de forma correta. Mas se tomarmos parâmetros
kantianos, a questão se complica. Talvez a liderança em questão tivesse que renunciar diante do
paradoxo ao qual estaria presa (teria perdido a legitimidade moral por não cumprir o prometido),
mesmo tendo realizado uma ação que salvasse muitas vidas.
O paradoxo não atinge apenas o modelo de Kant, atinge também o utilitarismo.
Imaginemos outra circunstância: um indivíduo cruel, que já foi condenado pela justiça com
todas as provas possíveis de seus crimes (assassinatos), contando inclusive com a confissão dos
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mesmos. Poderia a comunidade exigir um apressamento da sua execução (caso fosse essa a sua
penalidade) para que fosse aproveitado o máximo de órgãos para a doação? Com a variável
que o prisioneiro não autorizou tal procedimento? Mas não seria de interesse público essa coleta
de órgãos? Poderia se salvar e restituir a condição de membro produtivo da sociedade em pelo
menos seis outros indivíduos honestos, com entes queridos, etc. Tomado o critério kantiano, a
resposta seria negativa, seja por questões de dignidade humana, seja pelo respeito à autonomia
do prisioneiro (pelo menos na questão de aceitar ou não fazer doação de órgãos). Já para
o utilitarismo, se o princípio de máxima felicidade fosse aplicado de uma forma selvagem,
o raciocínio de que o interesse da coletividade merece o sacrifício do indivíduo, o resultado
poderia ser diferente.
O que queremos mostrar é que seja pela linha do dever, seja pela linha da utilidade, ambos
os modelos têm virtudes próprias e dificuldades quando submetidos a situações extremas.
O modelo das consequências pode sofrer com o excesso de flexibilidade. Em situações que
coloquem os interesses de uma maioria em contraposição aos interesses de uma minoria, quais
os limites éticos para a moralidade? Em alguns momentos a sociedade produz padrões que
tendem a servir como limite. Quando o utilitarista recorre a esses padrões e os aceita como
norma, está bem próximo de uma ética do dever.
A maioria das doutrinas éticas ligadas à filosofia coloca a razão como a ferramenta que
irá julgar as nossas ações. Em nenhum momento esses modelos racionalistas vão validar ou
condenar uma linha de ação unicamente com base numa tradição, ou em um critério religioso,
por exemplo. O corrupto não é imoral porque roubar é pecado; ele é imoral porque desviar
recursos públicos, subornar ou receber suborno é algo que não consegue ser elevado à condição
de lei universal (pois ele obtém vantagem prejudicando terceiros). Também pelo mesmo motivo
é imoral uma ação que diminui a felicidade geral e contribui para o aumento da infelicidade
(basta pensarmos em todos os não beneficiados daqueles serviços públicos que deixam de
existir por faltar dinheiro de impostos para implementá-los, exatamente porque o dinheiro fora
roubado) e, finalmente, almejar recursos que não são de sua propriedade e que ferem as leis
vigentes afastam o corrupto da conduta virtuosa e o afogam no vício da cobiça.
Dessa maneira, entendemos que a ética é uma disciplina viva. Muitas escolas de pensamento
se debruçam sobre o tema, obtendo resultados diversos em muitos pontos e semelhantes em
outros; o importante ao filósofo é estar sempre aberto à reflexão sobre o tema, de modo a
contribuir para um debate sobre as constantes melhorias das formas de se viver e, por que não,
quem sabe, abrir caminhos para a felicidade?
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Unidade: Dever e Consequências
Material Complementar
Importante
Importante também, estudante, é recorrer a um vocabulário filosófico. Essa abordagem facilita o
movimento de investigação partindo dos textos mais introdutórios em direção aos mais complexos, o
que permitirá ampliar a discussão principal da unidade, que envolve a temática em torno das ideias
de Dever e de Consequências.
Indicação de Filme:
Para pensar a questão de uma ética que se cumpre apenas por meio das sanções, o
dilema do “homem invisível”, sugerimos o filme:
O homem sem-sombra. Direção de Paul Verhoeven. Estados Unidos/Alemanha.
2000 (Duração: 112 min.).
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Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª edição. – São Paulo, SP: Editora Ática, 2003.
GALVÃO, Pedro. Introdução. In: MILL, John Stuart. Utilitarismo. – Porto: Porto Editora, 2005.
MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. – Porto:
Porto Editora, 2005.
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Unidade: Dever e Consequências
Anotações
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