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“PARIS É UMA FARRA”

( prologómenos p/ A ÚLTIMA VIAGEM )

by B.M.

Já viajei pra caralho. Sobretudo na juventude. Há uma altura em que aquilo bate na cabeça
da gente. Um gajo quer é curtir. Conhecer novas gentes, novos lugares, outras ondas. É preciso
passar um bué de tempo, bater com os cornos na parede um bué de vezes, até um gajo chegar à
conclusão que esta merda é toda igual em todo o lado. E que até se pode dar uma volta ao mundo,
duas vezes, sem levantar o cú da cadeira, como afiançava o Josel Hespano naquele seu poema
enorme, “A MINHA JANELA”. O que eu curti, ao ler aquela merda. E realmente, se formos a ver
bem, isto no mundo é só pessoas, árvores, casas e veículos. Cimento, alcatrão e pessoas. Televisão e
electricidade. E lata também. Montes de lata. Ferro velho entre as árvores, carros velhos ao
abandono pelos campos. Um ou outro passarinho. Que ainda se vão vendo, piando tristemente aqui
e acolá, sobretudo dentro de gaiolas. Mas quanto ao resto, é tudo igual, seja aqui, na China, no Peru,
na Albânia, no Canadá, ou na Nova Zelândia, eu sei lá. Pode haver umas diferenças de regime, é
evidente. Mas não passam disso. E no entretanto a televisão e Net hão de globalizar tudo. Não tarda
muito.
Nesse tempo, contudo eu ainda não chegara a este tipo de conclusões, por isso entusiasmava-
me todo com qualquer perspectiva de viagem, de curtição, de mudança de ares e de gentes. Fosse à
boleia, no Inter rail, ou à burguesa, no bojo dos aviões. O que eu queria era curtir, vadiar à solta por
aí. Vai daí quando aquele amigo me convidou para ir com ele para a França, fazer as vindimas,
durante cerca de um mês, eu nem hesitei. Além disso o gajo já tinha tudo arrumado. Contactos,
contratos, locais para dormir, etc. Tudo liso. De modos que foi um pagode. Enfim uma espécie...
Logo à partida aquela viagem parecia que tinha qualquer coisa encima, tipo mau olhado,
uma espécie de má onda, qualquer merda que não batia bem. Para começar, desde que o outro gajo
me convidara para as vindimas, que uma puta de dor de dentes, mas daquelas valentes, como eu
desde puto me não lembrava e olha que em puto eu sofri pra caralho dessa merda, não me largava os
cornos. Depois, quando fui tratar de me despedir da minha namoradinha, à Funzêta, enquanto
esperava o barco que fazia a ligação à ilha no barzinho do embarcadouro, houve logo um cabrão de
um velhadas, coitado que escolheu aquele momento para esticar o pernil. Uma má onda de caralho,
com o sacana do velho a espichar, todo roxo, aos gritos e gemidos, entre outros gritos histéricos e
desmaios das velhas turistas e dos outros kotas e pescadores que para ali matavam o tempo enquanto
o batelão não vinha. Uma paranóia pegada, vou-te contar. Além disso, como não podia deixar de ser
com aqueles indícios negativos todos, é claro que a nossa despedida não passou de uma separação
litigiosa e definitiva. Uma bela merda. E depois a puta da dor de dentes não me largava. Eu devia
era ficado na cama toda aquela semana. Mas um gajo não é bruxo, de modos que não adivinha o
futuro. A única compensação para aqueles bring downs todos, foi um sócio que me arranjou um tubo
daqueles dos rolos fotográficos cheio de óleo de hax, que era uma beleza.
Nesse tempo eu tinha-me convertido recentemente ao vegetarianismo, de armas e bagagens,
fruto de uma campanha, muito bem sucedida, de lavagem ao cérebro, da parte de um velho amigo
de infância, que metera na cabeça, salvar-me a mim e a outros, para o que nos arrastou para uma
espécie de seita esotérica, onde de resto, não permaneci longo tempo, mas, como todo aquele que
aprende de cor uma lição, sem bem medir o seu alcance e profundidade, tinha adoptado por inteiro
os seus preceituários, repetindo constantemente slogans bombásticos, sem levar em conta o quanto
podiam ser agressivos para as pessoas, de maneiras que a minha companhia era um bocado para o
desagradável, estou em crer. Isso começou logo a verificar-se desde os primeiros dias, ao longo da
viagem e sobretudo desde que assentámos arraiais em Paris, na casa da namorada do meu amigo.
Porque, como eu tinha a mania que era o maior e isso já vinha de longe, de muito antes, passava a
vida a partir a cabeça às pessoas, a respeito dos seus nefandos hábitos necrófilos, de se alimentarem
à base de cadáveres e converterem-se em vida, em verdadeiros sepulcros caiados. Isto quando não
lhes dizia mesmo de caras, em plena refeição, que não passavam de cemitérios ambulantes. De
maneiras que aquela malta, ao fim de poucos dias já não podia nem ver-me pela frente. Eu estava-
me bem cagando para isso, não só porque sabia que estava dentro da razão, como partir-lhes a
cabeça e pô-los numa má era a única coisa que me aliviava a puta da dor de dentes. Foda-se!
Foi à pala deste tipo de humor que acabei por deixar escorregar entre os dedos uma pita
altamente, loirinha, de olhos azuis, que até ia bastante à minha bola, desde o inicio. Mas com o
avançar da caravana e porque eu não me conseguia conter com aquele género de bocas fatelas,
sobretudo às horas das refeições, acabei por afugentá-la, a pontos de a gaja me ter tomado mesmo
de ponta. Deu-me com os pés com uma pinta desmarcada. Não consentia qualquer tipo de
aproximação. Nem me deu hipótese. De resto, sempre que surgia oportunidade, ela deixava bem
claro e manifesto, que não podia comigo. Dava-me completamente ao desprezo. À frente de toda a
gente. No trabalho, passava as tardes a deixar-se cortejar por uma banda de egípcios que levavam o
dia a cantar uma lenga lenga insuportável, a que ela fingia achar uma piada do caraças, sempre a rir-
se para eles, a mostrar a cremalheira toda e acabou deixando-se papar por um gajo da minha
camarata, um tosco qualquer, que dormia mesmo ao pé do meu beliche. Só para me foder os cornos,
tenho a certeza. Aquilo deixou-me raivoso pra caralho, porque eu não estava habituado a perder e
por esta época, tinha mesmo a mania que era o maior. Só não andei à porrada com os sacanas dos
mouros, por um triz, quando o porta voz dos gajos veio de lá dar-me lições de moral, que: – C’est
pas poli! C’est pas poli! – a respeito dos modos como eu tratava a gaja. Puta que os pariu! Aquilo só
não deu em merda e da grossa, porque os gajos até me tinham respeito e do bastante, dada a
circunstância de eu ser vegetariano e não tocar em carne de espécie nenhuma, em circunstância
alguma, enquanto eles apenas se recusavam a comer carne de porco, por causa lá do profeta deles.
Como se eu ligasse a essas merdas. Mas enfim, à pala disso, começaram a apaparicar-me todo e a
tratar-me com pésinhos de lã e tal e eu acabei por cagar naquela merda toda.
Ainda pensei em dar-lhes uma marretada nos cornos, à cabrona mais ao namorado, pela
noitinha e pregar fogo depois à camarata, enquanto eles dormiam todos e raspar-me na maior para a
capital, mas pensando melhor, preferi relevar aquela porra e cagar na cambada toda de filhos da
puta, até porque a gaja não passava mesmo de uma loirinha estúpida, que pouco mais tinha além
dum palminho de cara giro e um super body. Não merecia a chatice toda que um fogo posto e uma
eventual dezena de cadáveres, me iriam acarretar. Além disso as prisões, em França são uma boa
merda, ao que já ouvi dizer.
Acabei por afogar a frustração numa ida às putas, depois de uma bebedeira de arromba, que
aquela terra de cacete, mesmo não tendo um pub de jeito, nem a merda de um cinema, pelo menos
tinha meia dúzia de putas itenerantes, que durante a época das vindimas operavam naquela zona. E
tinham realmente clientela pra caralho. Mal acabava a função nos campos, começava logo uma
bicha de gajos apressados a formar-se à porta do barracão onde elas aviavam a malta toda. A maior
parte daqueles matumbos nem se preocupava com a janta. Era só o tempo de tomar uma ducha
rápida, mesmo fria, de mangueirada e toca a abalar prá fila, para não ficarem muito atrás e
apanharem as mulheres já cansadas e todas rotas, sem vontade nenhuma de se prestarem àquele
frete. A maior parte dos gajos estava-se a cagar para isso. Só queriam mesmo era vazar os tomates.
Foi também a minha preocupação básica, quando lá fui, uma única vez. Mas com tanta malapata,
que apanhei uma carga de chatos.
Só dei por isso dias depois, aquando do banho semanal. É que ali só havia água quente uma
vez por semana, ao domingo. Era a altura em que toda a gente se banhava, pelo menos com tempo e
decentemente, com shampô, sabonete e todos os matadores. Havia uns dias já, que eu me sentia
atacado por umas comichões intensas, pelo corpo todo, mas nunca pensara seriamente nas suas
causas. Coçava-me e pronto. Naquele dia contudo, debaixo do chuveiro, deu para ver que tinha
bicharada daquela em tudo o que era pêlo, no corpo. Até já me tinham atacado os sovacos. Uma
nojeira. Foda-se! Graças a Deus que aquela aldeia de merda, embora tivesse falta de tudo, estava
provida de uma boa farmácia e de uma simpática farmacêutica. Quando eu, cheio de hesitações e
desvios, finalmente me descosi quanto ao mal que padecia, ela recomendou-me uma puta de uma
pomada maravilha, além de um shampô próprio para lêndeas daquelas. Foi tiro e queda. Bastou uma
aplicação e morreu a bicharada toda. Andei todo pegajoso e pintalgado de verde, durante uma
semana, mas foi remédio santo.

Pouco depois, mandei-me para Paris, com o bolso cheio de papel, no fim da época, mesmo
na véspera da grande festa das vindimas, tradição inevitável naquelas paragens, só para lhes fazer a
desfeita de não participar no forrobodó e até porque aquilo, de facto não me interessava para nada.
O cardápio era mesmo só à base de cadáveres e a mim já me bastavam as paranóias todas que tive
com a cozinheira e os patrões durante o tempo todo que lá passei, para conseguir que me fizessem
um prato especial a todas as refeições. Fosse à base de ovos, legumes e fruta, sumos ou produtos
lácteos. Foda-se! Nem que fosse peixe. Um trabalhão do cacete. Além disso não estava pra levar em
plena fronha com a alegria postiça do tal casalinho, a fazer-me fosquinhas e ciúmes, na marmelada
bem à minha frente. Estava bem de ver que eles não iriam resistir à tentação de escarranchar-me a
sua vitória de amásios necrófilos, bem entre meio dos olhos.
Vai daí fartei-me de passear e curtir a noite parisiense, até porque havia já dias que não sofria
dos dentes e o tempo ainda estava excelente, as esplanadas cheias e as turistas em cagulho. Como
não consegui engatar nenhuma, só pelo meu charme e me sentia desaustinado depois daquela
derrota intragável, lá nas brenhas, acabei por ir às putas. Como não estava numa de estafar muito
papel, fui aos bailes de S. Germain, num velho salão clássico, nas traseiras da igreja matriz, assunto
sobre o qual um camarada já me tinha instruído a respeito. Eram uns bailaricos à antiga, de danças
aos pares, pelo velho sistema de senhas furadas por cada convite às moças, um bocado já passadas
da idade da frescura, viúvas, divorciadas e solteironas, mas ainda cheias de genica e sobretudo, na
disposição de arrotarem uns cobres, se necessário, para apanharem um rapazote de sangue na guelra,
ali no quentinho de suas carnes e alvura de suas camas. De maneiras que terminei a noite ainda com
sobejado lucro. Maravilha! E até que a dama não era nada de se desperdiçar. Uma quarentona de
estalo, cheia de ciência na matéria e de trunfos na manga. Vou-te contar...
No dia seguinte, bem de madrugada, porque eu ainda estava afeito ao regime do trabalho e
não consegui pregar olho depois das seis e meia da manhã, após um pequeno almoço bem
reconfortante que a marquesa toda acesa por um fodão matinal de despedidas, pagou, peguei na
mochila e fiz-me à estrada. Ainda não tinha atinado bem com o que iria fazer, se voltar prá minha
terrinha, aproveitar o fim do verão com a algibeira bem recheada, se seguir até à Suíça a fazer a
apanha das maçãs, valendo-me de uns contactos tótil, que o meu velho sócio das vindimas me tinha
em tempo, facultado, se o quê. Ia assim um bocado à toa por ruelas estreitas e quase vazias no alvor
da manhã, rumo a S. Germain de Prés, no intuito de tomar um cafézinho na primeira esplanada que
encontrasse aberta, quando ao virar de uma esquina, mesmo ao entrar do boulevard, com quem é
que me cruzo? Isto pode parecer mentira, mas estas merdas acontecem mesmo e não é só nas
histórias da Carochinha. Então não é que ao meter o pé na avenida eu dou de caras, a menos de dois
metros da minha pessoa, com o Chico Buarque da Holanda, o próprio, um dos meus músicos
preferido e sobretudo, um dos grandes poetas de língua portuguesa. Logo eu, que na altura andava
meio passado com a MPB. Aquilo foi um flash, género martelada na carola. Ainda mal refeito da
surpresa, devo ter abanado a cabeça, tipo – estou a sonhar. Esta merda não é possível – mas era, olá
se era, de modos que assim no improviso, sem pensar duas vezes, num tom de alegria extrema e
simpatia bué, mandei um berro capaz de assustar outro mais valente – Seu Chico! Meu irmão, qual
é? Vamo tomar um cafézinho aí? Morou? – todo entusiasmado, aos saltos no meio da rua, parecia
parvo.
Ele olhou pra mim desconfiado bué e foi andando pianinho, sem dizer nada, mas de cenho
carregado e cara de poucos amigos, como quem diz – Caralho, venho eu de férias prá estranja, bem
longe de casa e o primeiro cara com quem eu topo é brasileiro? Qual é?
Deve ter pensado que aquilo era perseguição, mandinga, golpe da mafia. Bem que ele
andava desconfiado que os cara estavam lhe querendo a pele, ou pelo menos uma grana preta desde
que vinha recebendo aqueles panfleto com ameaças, mas sempre pensara que era brincadeira de
marmanjo mal fodido, ou truque de marketing práfrentex, mas pelo que estava vendo os cara até que
estavam bem organizado demais, a ponto de lhe descobrirem assim nas Europa, mal acabado de
chegar. É foda, viu?...
Não quis nem dar bola nenhuma, de modos que me deixou para ali plantado sem mais aquela
e mergulhou rapidinho na primeira boca de metro, sempre com aquela fronha de poucos amigos,
cara de enjoado, temeroso mesmo.
Não liguei demais praquilo, fiquei triste que o gajo não quisesse curtir comigo, nem o tempo
de beber um copo e trocar umas impressões, no relax, mas o gajo realmente não me conhecia de
lado nenhum e nada lhe garantia que eu não fosse um filha da puta qualquer, numa de lhe dar a
banhada, raptá-lo e exigir um resgate paca ou simplesmente liquidá-lo sem mais aquela. Para quem
chegava do Rio ou pior ainda, de S. Paulo, onde o crime flanava à toa pelas ruas e gente como ele já
nem se arriscava a cruzar as artérias da cidade dentro de automóveis, valendo-se antes de
helicópteros, pois as quadrilhas deslocavam-se lá por baixo, em potentes jipões armadas de uzis e
kalashnikoves, procedendo a assaltos e raptos indiscriminadamente e a vida humana não tinha já
qualquer significado, não era nada demais. E depois, nestas merdas nunca se sabe, sobretudo quando
mete superstars pelo meio e ele até que era um cara discreto, sem guarda costas nem nada, mas
achei piada, que a primeira pessoa com quem me cruzo na rua, mal chegado a Paris, fosse o mano
Chico. Talvez aquilo tivesse algum significado oculto, fosse mesmo algum tipo de premonição, mas
eu não tinha preparação nem conhecimento alquimico suficientes para decifrar tal tipo de charada,
pelo que segui adiante e resolvi tomar na brasa o tal cafézinho, que estava mesmo apetecendo
demais.
Em seguida, resolvi flanar um bocado pelo boulevard, uma vez que estava praticamente de
férias e embora já conhecesse a cidade de outros carnavais, esta era tão extensa, tão bela e cheia de
assunto, que era sempre um prazer passear pelas suas áleas assim mesmo, à toa.
De maneiras que me encontrei quase sem dar por ela, mesmo de frente para a entrada da
FNAC, um dos grandes magazines de Paris de França, universalmente afamados pela qualidade e
quantidade de itens. Resolvi entrar, só para dar uma vista de olhos, porque material daquele ainda
não chegara lá à minha terrinha. Nem sequer as instalações d’EL CORTE INGLÉS, quanto mais
fruta daquela. Fui andando tipo parolo, a mirar montras e preços, a boca aberta em “O” de
admiração e os olhos em bico, fixados em altos cus e mamas que por ali andavam à toa, tão cedo,
logo pela manhã. Aquelas franciús eram demais, todas altas, elegantes, curvilíneas, cheias de
charme e savoir faire, supunha eu. Às tantas dei comigo na secção de discos e audio visuais. Fiquei
banzado. Ali havia de tudo, em termos de musica. Álbuns raros, de colecção, muitos deles já
desaparecidos do mercado, ali assim, ao alcance da mão. Sem bem me aperceber fui jogando a mão
a este e aquele, os álbuns a solo do Fripp, a própria The League of Gentlemen, retirado do mercado
por ele mesmo, os Talking Heads que me faltavam, o álbum único dos Young Marble Giants, eu sei
lá que mais. Então, quando cheguei ao sector da musica étnica, é que me passei mesmo. A nível de
musica brasileira tinham tudo, TUDO! Tom Jobim, João Gilberto, Caetano, Gil, Edu Lobo, Milton
Nascimento, o “Clube da Esquina 2”, que eu andava à procura havia anos, Ney, Gal, Bethania, Elis
Regina, Baby Consuelo, Rita Lee, Lô Borges, Hermeto Pascual, Egberto Gismonti, Quarteto em Si,
MPB 4 e tantos outros, todos, todos, todos, uma coisa fabulosa e nunca vista, gente que eu só
conhecia de nome, alguns e nunca tinha ouvido, nem disso tinha esperanças lá na terrinha, uma
autêntica mina. Fiquei banzado, passado dos carretos, em órbita. Só saí de lá ao fim do dia e porque
as portas iam fechar. Comprei 46 discos e os que não pude trazer, porque o dinheiro não chegava,
ouvi-os todos, para decidir quais seria obrigado a sacrificar. Vim a saber mais tarde que aquela
abundância toda se devia a um acordo cultural bipartido, que fazia com que, nem 24 horas depois
dos discos saírem no Brasil, estavam logo nas prateleiras das lojas, em Paris. E o contrario também,
respectivamente. Aquilo sim, era cultura. Não como nós, lá na terrinha, que embora falássemos
português e tivéssemos havia longos anos um acordo cultural Luso Brasileiro, nem nos dava o
cheiro da maioria das coisas que os gajos produziam, lá na terra abençoada deles. E não esqueçamos
que embora aqueles ainda fossem os longínquos tempos dos discos em vinil, já há muito no Brasil
se fazia a melhor musica do mundo. Pelo menos na minha modesta opinião.
Em todo o caso, fiquei completamente teso, dado que os discos tinham uma taxa
excedentária, por serem todos de importação e com uma data de peso e um volume enorme, debaixo
dos braços. Chegado à pensão, pousada a carga, impunha-se uma rápida visita à Desirée, a kota do
baile e da noite anterior, porque com a febre de musica e a psicose de possessão, em relação ao vinil,
que me atacou, nem sequer guardara o mínimo de guito, ao menos para comer, ou fumar, o que
ainda era pior e mais urgente. Felizmente a gaja tinha ficado tão contente com a minha performance,
que me tinha dado o seu contacto, pois a noite tínhamo-la passado num hotel, precaução
fundamental para quem, como ela se via na obrigação de recorrer àquele tipo de serviços, pois sendo
ninfomaníaca e tendo já perdido o viço da mocidade, não lhe restavam grandes alternativas a não ser
os meninos de aluguer, o que era de facto um pau de dois bicos, pois tanto lhe podia sair na rifa um
chaval tropical, cheio de carinho e solicitude, feito eu, como qualquer pirata sem escrúpulos nem
piedade, como já lhe tinha acontecido. Contara-me que, não muitas semanas antes do nosso
encontro, tinha passado quase duas semanas no hospital, a convalescer de uma sova que um desses
energúmenos lhe tinha arriado selvaticamente, só para lhe gamar a ínfima quantia de uns escassos
milhares de francos, que, afiançava ela, se lhos tem pedido a bem, teria tido todo o gosto em
oferecer-lhos, porque os seus serviços bem o tinham valido. Mas aquela cáfila anda sempre de
cabeça perdida nos seus sonhos mafiosos e nos pobres artifícios da banhada e se calhar nem a massa
lhe tinha dado gosto nenhum de possuir, se não tem sido gamada.
Aqueles desabafos ternurentos, na altura, enquanto eu lhe ia deslizando os dedos suavemente
pelo lombo, num arremedo de massagem thailandesa, enquanto fazia tempo para mais um assalto à
sua mais que repassada fortaleza e ela ronronava de preguiça e deleite, aguçou-me o apetite e as
putas das antenas todas. Porque se aquela zina considerava alguns milhares de francos como uma
ínfima e desprezível quantia, então - Atenção! - Aquele negócio estava me interessando,
BUÉRERÉ! Eu gosto é de gente assim, que não liga peva para a matéria. Gente que paira acima das
contingências banais do quotidiano, que vivem numa zen...
Pelo que, telefonei-lhe de imediato e alegando uma puta duma urgência sem paralelo nem
possibilidade de adiamento, combinámos um encontro para daí a hora e meia, no La Coupule, em
Montmartre, dado que antes disso ela - infelizmente não podia mesmo cheri, tens de compreender,
eu também tenho a minha vida, tà sabendo?
OK! Pois se não podia ser de outro modo. Aquele meio tempo deu-me ocasião de alinhavar
uma história competente, suficientemente dramática e verosímil, para o tipo de saque que eu tinha
engendrado. É que na minha cabeça o filme já estava claro como àgua. Só faltava mesmo era
ocupar-me da realização. O que eu ia fazer era mandar-me caminho de Amsterdão, cidade onde o
meu amigo Zé Salvação residia havia já uma data de tempo e aproveitar o seu reiterado convite de
visitá-lo, pelo que tinha casa e comida às ordens, garantidamente. Depois era só fazer a ronda dos
velhos contactos de antanho e comprar umas gramas razoáveis de cavalo e de neve, dissimulá-los
convenientemente entre a bagagem, o que no meio de tantos discos não seria difícil e chegado à
terrinha podia passar umas férias regaladas à conta daquilo, até decidir que mais fazer com a puta da
vida. É que eu nunca fui muito de planos a longo prazo. Gostava era de viver o dia a dia. Já me
tinham morrido muitos amigos de surpresa, assim dum dia pró outro, para me iludir a respeito dos
grandes planos de futuro.
De modos que quando ela chegou, toda vaporosa, envolta em sedas e plumas e recendendo
odores eróticos e almiscarados, mal tive tempo de lhe gabar a beleza perene e ofuscante, enquanto a
ia conduzindo com jeitinho rumo ao petit Hotel mais próximo. Que aquilo tinha que ser pegar e
aviar, antes de cair bem na real e verificar a frio o que estava fazendo e com quem, dado que à gaja a
luz do dia e sob as três camadas sucessivas de maquilhagem, era um horror, cheia de pregas, rugas e
vincos, sobretudo no pescoço, que nem os quilos de talco e pó de arroz conseguiam disfarçar. Mas,
noblesse oblige, como dizia o outro...
Vai daí, já cá vou no avião, satisfeito da vida com o pilim a tilintar-me no bolso. Cantei a
canção do bandido à dona da pensão e ela consentiu, cheia de pena que eu deixasse a bagagem toda,
lá na despensa dela, de maneiras que só vim com um pequeno saco de mão e uma muda de roupa,
dado que quero resolver esta merda rápido e não estou para ficar em Amsterdão mais que o tempo
necessário. À volta hei de vir no combóio, que é mais seguro, mas agora estava numa mesmo de
pressa. Já telefonei ao Zé Salvação a avisar da minha chegada e ele garantiu-me que ia deixar tudo
preparado, à maneira para quando eu aterrasse. Disse-me que ia estar ocupado nessa hora mas não
havia espiga, que a cunhada dele iria esperar-me ao aeroporto para me conduzir a casa e fazer-me as
honras devidas a qualquer hóspede. Aquilo eram altas notícias, porque nenhum deles sabia, nem ele
nem o irmão, mas eu já tinha curtido altamente com a pitinha, anos antes quando eles ainda viviam
lá na terrinha e a moça era de facto um pitorro de 5 estrelas. Estou em crer que ela tinha feito uma
forcinha no sentido de ser ela a ir-me esperar no aeroporto, ao saber quem é que chegava no avião. E
daí, talvez nem ela já se lembrasse de mim, porque de certeza não era já a mesma pitinha muito gira
e tesuda, mas um bocado parola e provinciana, depois de três ou quatro anos de Amsterdão, a toda a
guita. Que aquele gajo, o marido dela, nunca teve andamento para manter a febra nos conformes.
Pois se já naquele tempo ela lhos punha sempre que se proporcionava a oportunidade, imagino hoje,
com a escola toda. E afinal, talvez não fosse nada disso e eu não passasse de um cabrão de má
língua, sempre pronto a ver o mal em tudo e a puxar ao de cima o pior de cada pessoa. A ver vamos,
como dizia o cego...
De facto assim que aterrei em Schipool, ela lá estava toda corada e ligeira, aos saltinhos de
impaciência, com a demora das formalidades alfandegárias, que até nem foram por aí além dada a
escassez da minha bagagem de mão. Pelo abraço e o linguado todo sôfrego que me pespegou vi logo
que não só não se tinha esquecido das nossas cabriolices na praia, como a coisa estava altamente
encaminhada para renovarmos os nossos votos. Enfiou-me num VW Golf Cabriolet, de cor amarela
e de caminho tratou logo de informar-me que estava divorciada do Salvação mais novo, mas
continuava a manter relações excelentes com o outro, o mais velho que além do mais era o seu
agente, produtor e líder da banda punk onde ela cantava, para lá de assisti-lo como relações públicas
nos múltiplos contactos profissionais, a nível de musica, publicidade e audio visuais, a que se
dedicavam. Aqueles dois, pelos vistos estavam muito bem na vida. Vim a confirmá-lo assim que
chegamos a casa.
O Salvação sempre fora um gajo de gosto apurado e bem prá frentex. Isso estava bem
patente no tipo de decoração do apartamento. Tudo minimalista, numa óptica japonesa. Muito
espaço livre e poucos objectos, todos em grande realce. Ela arrastou-me toda excitada àquele que
seria o meu quarto e enquanto me ia despindo explicou-me que era também um quarto que mantinha
só para ela lá em casa, embora só raramente pernoitasse lá, hoje em dia. Pelo que eu podia estar
completamente à vontade, sem preocupações e pelo tempo que bem entendesse. Altamente, ouro
sobre azul. Nem mais. Pôs a tocar o “Einstein on the Beach” do Philip Glass, que eu ainda não
conhecia e era o tipo de ambiente ideal para uma boa queca. Tudo nas calmas e com bastante
ternura, como ela às vezes gostava, se eu bem estava lembrado. A seguir queimámos um bocado de
tempo e mais uns charros até o Zé Salvação chegar. Foi uma festa quando ele chegou, claro. Havia
anos já que não estávamos juntos, de modos que havia bué de assunto para pôr em dia. Às tantas
apareceu outro gajo, que eu não conhecia. Era um meco alto, elegante, de cor mas bastante a dar
para o claro, com umas tranças enormes, tipo rasta. Era o Nick, o actual namorado da ex cunhada
dele. Ora aí está, porque é que a gaja mantinha o quarto lá em casa, se bem que raramente o
utilizasse, segundo me tinha dito, assim de passagem.
Às tantas, depois de mais uns charros, lá decidimos ir jantar a um restaurante mexicano na
KalvaStraat, que era o ultimo grito em gastronomia, lá do burgo. Mais tarde, depois de bem comidos
e bebidos, o Zé levou-nos a visitar o seu estúdio de gravação, escritório e sala de ensaios que ficava
situado nas antigas instalações da cadeia central de Amsterdão, que a câmara tinha convertido em
estúdios de arte e performances, para alugar e ceder aos artistas de todas as tendências, quando
chegaram à conclusão que o edifício já não oferecia suficientes condições de segurança, higiene e
manutenção para o fim a que inicialmente fôra proposto. Assim construíram de raiz uma cana nova
e ofereceram aquelas instalações aos artistas da cidade e não só, depois de as equiparem
decentemente e converterem para o novo fim em vista. Viva a Europa! Viva a Civilização! Bem que
a gente lá na terrinha também tínhamos umas instalações no género, excelentes para um tipo de
coisa parecida, na antiga Fábrica de Cerveja, mas eu duvidava muito que a nossa câmara tomasse
alguma vez disposições semelhantes. É a diferença entre viver num país civilizado e num do 3º
mundo, ainda que a relativamente a pouca distancia, geográfica mas como que do outro lado do
mundo, em termos de mentalidade e abertura. Em minha homenagem decidiram presentear-me com
o seu ultimo original. Estava a banda completa, um trio. O Zé nas teclas, o Nick no baixo e a zina na
viola e voz. Era uma música fixe, se bem que nada no género do que eu gostava de ouvir em casa,
mas isso também eles não precisavam de saber. O Zé estava todo entusiasmado com as
possibilidades de editarem um LP, em breve. Acho que estava em conversações com um produtor
independente que tinha engraçado com o som deles. A nível estético eram bastante berrantes e
originais. Pareciam uns zombies vestidos para o carnaval. Nem a indústria nem o público teen
exigem mais. E a música era suficientemente histérica para agradar àquela malta. Com um
bocadinho de sorte, estavam lançados.
Eu é que tinha mais com que me preocupar, pelo que enquanto eles rebentavam com os
fusíveis fui até ao telefone público no meio do corredor e fiz umas quantas chamadas para a malta
que me interessava. Nada de concreto ficou decidido na hora, mas combinei uns encontros para a
tarde seguinte, no sentido de analisar a qualidade de uns produtos que os meus amigos tinham em
mão, ou acesso fácil. Tudo jóia! Estava era na hora de ir prá cama que o dia tinha sido bué de
cansativo, com viagens, fodas e rock’roll tudo na mesma virada.
No dia seguinte, acordei com a gaja em cima de mim, aos beijos e lambidelas, toda
encaramelada. Não havia dúvida que era a mesma criatura de sempre. Enquanto me puxava as
cuecas pra baixo e me excitava com a ponta das unhas, explicou-me que tinha as tardes sempre
livres porque o namorado trabalhava numa firma de limpezas adstrita ao aeroporto, de modos que
não havia crise. Além disso tinham um pacto de liberdade amorosa. Ela não se metia na vida dele e
ele não se metia na vida dela. Quando queriam estar juntos, estavam. Quando não, cada um curtia
pra seu lado e tudo na maior.
- Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas na realidade eu preferia que você estivesse
NUA! - Ha ha ha! – Ha ha ha! – ambos demos umas gargalhadas e pronto. Depois de mais umas
pinotadas e uns charros, aquela cróia parecia que não pensava noutra coisa, decidimos comer
qualquer coisa, para matar o bicho. Ali mesmo em casa. Ela preparou uns ovos com bacon. Pelo
menos sabia cozinhar. Após o que, despedi-me dela com muito tacto, alegando afazeres inadiáveis, o
que era verdade e ela tinha mais era que compreender que eu não tinha ido a Amsterdão só para
matar saudades dela e dos amigos e sim em bizenésses, pelo que tinha que me pôr a mexer dado que
tinha compromissos já apalavrados e mais logo à noite a gente logo se via, para petiscar qualquer
coisa e quem sabe pegar um cineminha, ou algo mais íntimo aí.
Em seguida fui tratar de negócios, que era mesmo o fim com que eu me tinha ali dirigido.
Porque vendo bem, a minha vida não andava beleza nenhuma. Tinha mesmo era de arranjar
condições de passar uma temporada como deve ser e sem grandes preocupações, a breve prazo. E
isso só seria possível através de traficâncias. Que eu não estava para me matar a trabalhar, muito
mais tempo de seguida. Já bem me tinha bastado aquela experiência fodida das vindimas.
Levantava-se um gajo às seis da matina, para começar a trabalhar após um mata-bicho rápido, até à
hora de almoço sob um frio de rachar, de tal maneira que a meio da manhã os gajos tinham de
acender umas fogueiras enormes dentro de uns bidões vazios e encher-nos de cidra, para um gajo
conseguir continuar a trabalhar. À tarde era sempre a aviar até ao sol posto, com um pequeno
intervalo para emborcarmos mais cidra e um bocado de pão com queijo. A maior parte das vezes a
malta estava tão arrumada a seguir ao jantar que nem nos apetecia ir até ao café lá da terra, que nem
a merda de uma discoteca tinha. O que vale é que havia copos à discrição.
Felizmente Amsterdão continuava a ser o paraíso na terra, pelo menos em termos europeus,
no que dizia respeito às drogas. Ali havia de tudo para todos os gostos. O meu amigo levou-me a um
café de turcos em que não havia clientes nenhuns e depois de trocar com eles algumas impressões
em holandês, que era a única língua que os gajos falavam, além de turco, evidentemente,
mandaram-nos sentar a uma mesa e aguardar enquanto um dos gajos saía para tratar do assunto. Não
sei o que é que o meu amigo lhes disse, mas eu tinha-o esclarecido que não queria mais que umas
vinte gramas, até porque não tinha dinheiro para mais. Após uma data de tempo em que nos
serviram uma data de taças minúsculas de café muito forte, o gajo lá retornou todo sorridente e
depois de informar os cúmplices lá na língua deles, fizeram-nos sinal para nos aproximarmos da
mesa dos fundos, onde se amontoava a família. O artigo estava à vista, dentro de uma prata de
alumínio, dessas que se utilizam nas cozinhas. Deram-me autorização para proceder ao teste de
qualidade, pelo que eu rasgando um pedaço da prata enrolei um canudo e servindo-me de outro
pedaço que tratei de alisar convenientemente, coloquei sobre ele uma nesga de heroína, em pedra e
de uma cor castanha escura, tipo merda. Dei lume por baixo da prata e aspirei com força. Senti logo
um arrepio característico e um calor intenso e artificial a espalhar-se por sob a pele. Era alta
qualidade. Mesmo o que eu andava à procura. Sem mais delongas chegamos a acordo quanto ao
preço, eles pesaram as minhas vinte gramas e andor, que se faz tarde. De caminho para casa do meu
amigo, comprámos ainda umas gramuchas de crack, só pra curtir e passámos o resto da tarde a dar-
lhe e a curtir musica altamente.
Ao cair da noite voltei para casa do Zé e tudo se passou mais ou menos como na véspera.
Restaurante chinês desta vez e depois fomos ver um filme para descomprimir, ali na Leidzplein. Era
a estreia do tão esperado Excalibur. O filme até era nice, cheio de efeitos especiais, mas como era
em holandês, acabei por chatear-me e saí da sala a meio do filme, no intuito de beber um copo e dar
um cheiro, fazendo um bocado de tempo até o filme acabar e voltar a reunir-me com a malta. Decidi
dar uma volta cá por fora, para apanhar a fresca. Acendi um charro e fui passeando assim à toa,
durante um bocado, pela praça. À porta do Marriott hotel estavam dois vultos, um gajo e uma gaja,
conversando. Quando me aproximei, reparei que o velho, era nem mais nem menos que o sacana do
Marco Ferrer, o célebre e bizarro realizador de cinema, italiano. Respondia preguiçosamente a uma
entrevista, indolentemente encostado à ombreira do grande portal de entrada. Falava em inglês com
a repórter que, nervosamente lhe espetava o microfone mesmo debaixo da queixada barbuda, mas
conquanto fosse mais uma circunstância de certo modo insólita, na linha do outro encontro meio
absurdo com o Chico Buarque em Paris, não me preocupei grandemente, nem me interroguei sobre
a situação. Passei por eles e continuei o meu caminho. Havia pouquíssima gente nas ruas. Também,
fazia um briol do caraças. Não deixou contudo de me cruzar pela mona o curioso de tudo aquilo.
Estava farto de viajar por esse mundo e nunca, mas nunca, tinha visto assim de perto ninguém
famoso e agora, de repente, sem mais nem menos levava logo com dois de seguida. Aquela merda
tinha que ter algum significado oculto, eu é que não tinha crânio para destrinçar qual ele fosse. E
depois, não há duas sem três, lá diz o povo. Não me admirava nada que o meu caminho estivesse em
vias de se cruzar com alguém susceptível de alterar radicalmente a minha vida, o meu futuro, eu sei
lá...
Como era a minha ultima noite em Amsterdão, logo que nos reencontramos à saída do
nimas, eles insistiram em irmos a uma discoteca da moda, a seguir, assim a modos de despedida.
Não era que me apetecesse por aí além, mas só para não fazer a desfeita, acabei por anuir. Era uma
dos primeiros clubes sado masoquistas, da Europa. Nada de especial, se comparado com o que se
veria por todo o lado, dez ou quinze anos depois. Mas na altura era suficientemente exótico para
deixar um gajo de boca à banda. Uma série de dominadoras em fatos de cabedal e polyester, cheias
de pulseiras e correntes, algumas com máscaras cobrindo o rosto, botas altas até às coxas, chicote na
mão, entretinham-se a humilhar uns quantos gajos despidos, algemados, ajoelhados ou de rojo sob
os seus pés. A musica era lemúrica, Bum Bum Bum Budum Bum, altíssima, insuportável e a pontos
de alterar o ritmo cardíaco dum gajo. Aquela malta parecia era uma tribo de selvagens. Uma
pedalada demasiado bizarra para o meu gosto. Ainda não estava lá havia meia hora quando me
lembrei de telefonar para a Central Station a indagar dos horários dos comboios para França. Nem
de propósito. Havia uma composição directa, só com paragem nas principais estações, daí a poucos
minutos. Foi só mesmo o tempo de despedir-me da malta, pegar um táxi para apanhar a mochila lá
em casa e abalar às pressas para a estação. Tinha combinado com o Zé deixar-lhe a chave de casa
debaixo do tapete da entrada e assim fiz. Ainda hesitei em meter ou não dentro do saco, o disco
triplo do “Einstein on the Beach”, mas era uma sacanagem que o gajo não merecia. Além disso era
uma das merdas que sempre me tinha deixado fodido entre os freacks, era a puta da mania que eles
tinham de agradecer as boas atitudes dos amigos, em casa de quem normalmente ficavam nos seus
périplos, roubando-lhes sempre qualquer coisa que estes muito apreciavam, quando se iam embora.
Era sistemático e quase institucional este tipo de procedimento. Eu próprio já fora vítima disso “n”
vezes, por isso mesmo, me recusei a fazê-lo ao pobre do moço.

A viagem decorreu sem incidentes, tal como seria de esperar. Não fosse o diabo tecê-las,
tomei contudo a precaução de esconder o vulo do artigo, dentro de um buraco que abri a canivete na
esponja de um dos bancos, ao fundo da carruagem. Felizmente o combóio ia quase vazio e como eu
fiz o corte ao longo da linha da costura, ninguém reparou em nada. De modos que passei a viagem
quase toda a dormir, embalado pelo rodar monótono das rodas sobre os carris e o ronronar quase
agradável a que estes modernos viadutos e composições europeias tinham conseguido reduzir o
barulho metálico da fricção. Acordaram-me duas ou três vezes, aquando da verificação dos bilhetes
pelo revisor e do controle dos passaportes ao passar da fronteira, mas no resto foi um bochecho.
Alguns passageiros da minha carruagem mudaram ao longo do trajecto, mas não apareceu ninguém
suspeito, de modos que às tantas resolvi fazer uma perninha no bar, quando me assegurei junto do
revisor não haver mais paragens até Paris. Chegámos à Gare du Nord já o dia despontara há algum
tempo. Estava uma manhã fria e límpida, com o céu muito azul e um sol tímido e descorado. Ao
passarmos pelos arredores, enquanto a neblina matinal levantava, vira inúmeros corvos esvoaçando
e crocitando enervadamente sobre os campos muito verdes e extensos, ainda húmidos da cacimba
matinal. Era uma das coisas que sempre me tinha surpreendido, de certo modo, na França. Aquela
abundância inusitada de corvos, negros, enormes, à solta pelos céus e pelos campos. Enfim, era
característico.
Depois de me espreguiçar e discretamente tratar de recolher o material e acomodá-lo junto
aos tomates, dirigi-me para a porta de saída, bem misturado na multidão de franciús, que palravam
que se fartavam, lá no linguajar deles, dando gritinhos histéricos e quatro beijinhos nas faces,
sempre que se encontravam. Apeei-me depois da composição parar completamente e relanceando as
vistas em redor, assegurei-me de que não havia mouro na costa. À primeira vista ninguém suspeito,
nem das bandas da bófia nem das mafias, de modos que me deixei ir na corrente, bem dentro da
multidão, que mau grado a hora matinal já enchia por completo as dependências da enorme gare,
toda em ferro forjado, estilo belle époque. Acho que também foi construída pelo mister Eiffel. Há de
resto um quadro fantástico no Louvre, retratando-a em plena actividade, em que se vê uma
locomotiva a chegar, completamente submersa em vapores e os vultos das pessoas, como formigas
pretas, enxameando os passeios laterais e a mole imensa de metal, tudo englobando no meio dos
seus reflexos azulados e o jogo de luzes fantástico, tão característico de Monet ou Manet e dos
impressionistas em geral. Tal e qual como hoje em dia, se exceptuarmos a ausência dos vapores,
dado que as máquinas agora são movidas a electricidade, bem como as luzes da gare, que no outro
tempo eram a azeite ou petróleo e sei lá que outros óleos.
Ia precisamente começar a descer os degraus da enorme escadaria que dá acesso ao túnel que
liga os passadiços laterais, ao grande hall central, quando vejo à minha frente uma figura sorridente
dirigindo-se a mim de braços abertos e soltando uma grande gargalhada.
- Não posso crer Pepito! Tu aqui? – exclamou ela, toda sorridente enquanto me abraçava
com força.
Eu também, passada a surpresa inicial, desatei a rir e afastando-a à distancia dos braços
estendidos, para a mirar bem, exclamei contentíssimo: - Rosita, meu amor, mas que surpresa...
É claro que fomos logo dali, entre abraços e beijos e gargalhadas, felicíssimos da vida, beber
um copo ao bistrôt mais próximo, que era pertinho, mesmo ao fim do corredor. Era nada mais nada
menos que a minha grande amiga Rosalôca, com quem eu já tinha curtido mil aventuras, depois de
um longínquo namoro de juventude, que nos deixara ligados para todo o sempre. Isto pode parecer
um bocado forçado, que nem uma novela, mas juro que é a puta da verdade. A vida tem destas
coisas, que eu não sei bem como explicar, uma vez que não acredito em acasos nem em
coincidências, mas eu seja ceguinho, se não foi mesmo assim que as coisas se passaram.
De facto, haveria mais de um ano ou dois que os nossos caminhos se não cruzavam, mas
entre nós a relação era tão intensa e verdadeira e honesta, que era sempre como se nos tivéssemos
separado apenas na véspera. Ambos sentíamos uma alegria genuína e franca por este reencontro tão
insólito e tão longe dos nossos percursos habituais, mas como tínhamos uma mente aberta e já
havíamos passado por “n” histórias levadas da breca, nada daquilo nos surpreendeu um pouquinho
que fosse. Já sabíamos que a vida se encarrega de conduzir as pessoas pelos trilhos que bem entende
e necessita, para a persecução dos seus desígnios e era bem sabido que os deuses escrevem direito
por linhas tortas, de modos que nada mais havia a fazer que alegrarmo-nos das nossas vidas, porque
vendo bem, já passara muito mais tempo do que aquele que nos déramos conta, como bem afirma o
axioma zen. Havia uma data de coisas para por em dia, mas ela, que sempre fora uma moça
despachada e bestialmente objectiva, tratou logo de por os pontos nos iis e sem mais delongas
atacou a fundo:
- Pepe, coração, ainda bem que te encontro. Cais que nem sopa no mel. É que eu acabo de
chegar do Brasil, carregada de branca e não interessa agora porquê, tenho que arrancar ainda hoje
pra Marrocos. Vinha aqui mesmo à gare pra deixar o produto dentro de um desses cofres de moedas.
Mas é sempre arriscado. Além disso não sei ao certo quantos dias vou lá ficar e não estou pra perder
tudo se me acabar a merda do crédito e os gajos me abrirem o cabrão do cofre. De modos que vou
passar-te o duto todo prá mão, tu levas a merda lá prá terrinha, podes-te abotoar a 100 gramas prá
tua cona a modos de comissão e quando eu chegar, entro em contacto contigo e fazemos contas
quanto ao restante, OK? Agora vê lá cabrão, porta-te bem comigo e não me aldrabes, óviste?
- Calma lá amor! Aguenta aí os cavalos, porra! - implorei eu, agarrando-lhe as mãos ambas,
com ternura mas não sem determinação - Conta-me lá melhor essa história, mê amor.
É que com aquela zina, se a gente não se põe a pau desde o principio, às tantas dá por si
numa complicação de todo o tamanho, da qual nem mesmo tem garantias de sair vivo.
Eu conhecia histórias daquela gaja, levadas da breca. Ainda me lembrava de um primo dela,
que a gaja tinha levado para Paris, meses antes, no intuito de ajudá-lo. Tinha-lhe prometido mundos
e fundos. Que estava casada com um chaval altamente, que era fotógrafo de moda e produtor de
vinhos. Que tinha uma farm altamente no sul de França e que ia arranjar-lhe um emprego fixe e uma
situação à maneira, pró gajo ganhar umas massas e arranjar condições de trazer a família, junto.
O certo é que não demorara nem três semanas até o gajo aparecer de volta, aterrorizado com
os muadiés da prima, que estavam mas era a preparar-se para lhe limparem o sebo, dado que ela lhes
tinha dado uma banhada enorme havia pouco tempo e agora voltava cheia de paninhos quentes e
pésinhos de lã e que ia repor tudo e tal, até tinha trazido o primo com ela pra lhe dar umas ajudas,
mas os gajos é que não foram na tanga, tomaram-no por guarda costas dela, eventual cúmplice ou
até mandante, responsável pela tramóia toda e só não lhe limparam logo ali o sebo, porque estavam
com receio que ele tivesse uma arma de fogo na sua posse. De qualquer maneira não se inibiram de
planear a maneira como iriam ver-se livres dele, ali mesmo, nas suas barbas, convencidos que o tipo
não pescava pêva de francês, segundo a versão que a prima lhes tinha impingido. Decidiram dar
umas voltas de carro com ele, mostrar-lhe as vistas da cidade, muito bela e feericamente iluminada à
noite, entretê-lo um bocado pelas discotecas e quando o gajo já estivesse meio aviado de bêbedo e
dos comprimidos que entretanto lhe iriam despejando na bebida, levavam-no para o bidonville e
liquidavam-no, com uma pinta desmarcada. Tinha sido a sua salvação, que felizmente até não era
nenhum menino de coro, e assim que se viu sozinho com os outros dois, no banco detrás do carro,
nos arredores da cidade, aviou ambos num virote, graças à sua fiel navalha que nunca o abandonava,
deixando-os de garganta aberta, como quem passa pelas brasas, no primeiro sinal vermelho que
encontrou e raspando-se até casa de taxi, arrebanhou toda a droga e o papel que a prima lá tinha e
desandou nessa mesma noite para Portugal, no primeiro avião.

Rosalôca era uma chavala fabulosa, que se revelou demasiado grande como personalidade e
como mulher, para os acanhados limites daquela cidade. Os seus antecedentes familiares eram
bastante obscuros, pelo que ela, logo em criança, muito miúda mesmo, fôra dada como órfã e
colocada à guarda de uma instituição de beneficência social, onde os respectivos vigilantes se
encarregaram de a violar repetidas e sucessivas vezes, anos a fio. Assim crescera, acumulando uma
raiva fria e calcando uma intensa mas forçosamente silenciada revolta, a par de uma fantástica e
estranha beleza. Pelos doze anos era uma mulher feita, de felinos olhos verdes, um cabelo louro e
liso como estopa e um corpo de miss universo, que ela treinava incansavelmente nas mais rigorosas
técnicas orientais de auto defesa e contra ataque. Aos quatorze era cinturão negro de karaté e poucos
colegas se atreviam a defrontá-la no dojo, porque ela aliava a uma técnica perfeita, uma natural
selvajaria, que por momentos a cegava a pontos de ninguém sair incólume das suas mãos, ou garras
de gata dos matos. Nem sequer homens, os mais machos de todos, alguns com mais vinte e trinta
quilos de peso que ela. Somente o mestre, o maciço Sensei, se dava ainda ao luxo de desafiá-la, não
sem antes se proteger devidamente, com uns chumaços inflados por todo o corpo, como os que
utilizam os treinadores de cães de luta, ou policiais. Era também uma ninfomaníaca desatada, como
puderam testemunhar alguns dos machos mais convencidos da cidade, que não aguentaram entre as
suas fogosas pernas, mais que os vencidos e entristecidos adversários nas artes marciais. Também
uma revoltada inspirada e insuperável, pois acabou sendo expulsa de todas as agremiações político
revolucionárias em que se introduziu, o que estava muito em moda na época, por excesso de
entusiasmo ideológico, raiando a raiva fanática, mas sobretudo por dividir infalivelmente as fileiras,
indispondo os homens todos uns contra os outros, em quezílias estúpidas e ciumeiras infantis.
Andava sempre acompanhada por uma cadela setter, de longo pêlo fulvo, que obedecia
cegamente às suas ordens, nem sempre as mais atinadas. Já tivera vários problemas judiciais por
atiçar o bicho, meio selvagem contra as pessoas, sempre homens, que segundo o seu testemunho se
metiam consigo, insultavam-na e tentavam chegar a vias de facto. Não era de admirar porque ela
passeava-se pela cidade, apertada numas jeans justíssimas, que realçavam as suas curvas divinais e o
seu cú fabuloso, mal ocultos por um velho casaco de cabedal em cujas costas ela fizera inscrever a
palavra MERDA!
Foi por essa data que os nossos caminhos se cruzaram pela primeira vez. Eu frequentava
muito o teatro Lethes, à noite, durante os ensaios. Era neste edifício que se desenrolavam os únicos
sintomas de cultura naquela sinistra cidade, quase sem vida nocturna, à época, sobretudo nas longas
e frias noites de inverno. Ali se situavam as instalações do Conservatório Regional, do Orfeão
académico, dos grupos de Dança e Teatro. Era portanto o único local, tirante o Cine Clube, onde era
possível encontrar algumas garotas giras, fora de casa e do controle familiar. Mas este, além de ser
francamente elitista era também escasso. Só exibiam duas sessões por mês. De maneiras que os
ensaios do grupo de teatro, à noite e ocasionalmente os do de dança, ao fim da tarde, eram os únicos
locais passíveis de encetar algum contacto, conversação ou hipótese de chegar à fala, ou pelo menos
perto de alguma daquelas meninas família, ou mesmo qualquer das outras. Felizmente a democracia,
conquanto um fenómeno recente, estava já definitivamente implantado nas mentes das gentes, mas
sobretudo nos elementos constituintes da sociedade e isso era irreversível, porque até há poucos
anos atrás seria impossível encontrar no mesmo grupo, a mescla de pessoas que agora se viam
naqueles corredores, fosse à noite durante os ensaios ou durante o dia, nas aulas normais. É que
dantes só aprendiam piano, flauta ou dança, as meninas bem, cujos papás jamais permitiriam que as
suas vergônteas se misturassem com as filhas do povo.
Nem essas no outro tempo, teriam jamais tempo ou acesso para praticar dança moderna, quanto
mais ballet clássico ou teatro. Tinham mais era que trabalhar como sopeiras, costureiras,
governantas e outros lugares menores na base da pirâmide social, até terem algum descuido ou
gravidez indesejada e se verem projectadas na prostituição, que era mesmo onde a maioria delas
pertencia. isto é claro, segundo a óptica daqueles que detinham o poder.
Rosalôca portanto frequentava o teatro. Segundo o encenador, Dr. Ceptro, era até bastante
talentosa. Mas sobretudo era bastante vistosa. E a mais indicada para certo tipo de papéis,
precisamente os de sopeira, governanta, aia e outros afins, bem como os de prostituta, cortesã ou
aristocrata decadente, atendendo ao seu perfil género eslavo de altas e salientes maçãs do rosto,
lábios cheios, olhos claros e rasgados e cabelo louro, liso e escorrido. Havia muitas outras moças no
elenco, mais bem nascidas na maioria, mas nenhuma com o seu porte, beleza ou graça natural. Não
admira portanto que me caísse no goto e atendendo aos seus gostos e idiossincrasias particulares, ela
correspondesse entusiasticamente às minhas tímidas aproximações. É que, ao tempo eu tinha já uma
reputação terrível, lá na terrinha, de drogado, traficante e chefe de quadrilha. É evidente que aquilo
não passava, na sua maioria de grandes fantasias e especulações na cabeça dos meus concidadãos.
Tinham alguma base real, partindo sobretudo de informações truncadas e boatos diversos, dos
tempos das minhas aventuras africanas, mas eram de facto, grandes exageros. Devem ter servido
contudo, para despertar nela o seu espirito inconformista, porque não estou a ver que outros motivos
poderiam existir na minha pessoa para atrair uma moça tão requisitada por tudo o que era macho,
naquele burgo. É certo que eu era um chaval tropical, relativamente bem parecido e com algumas
posses e meios de fortuna. Era também um bocado excêntrico, atendendo aos padrões
excessivamente caretas e conservadores, por ali vigentes, concretamente na maneira de vestir, quase
sempre de negro, muitos anos antes das modas gótica e retro; sempre fui um bocado Pinóquio e
podia-me dar a esse luxo, de modos que era para todos os efeitos, uma conquista de certo mérito,
um moço jeitoso, bem vestido de cara e de corpo, com bastante papel na algibeira e automóvel
próprio. Um engate que nenhuma garota lá da terra desdenharia de exibir, enlaçada a si, nas noites
de sábado, passeando na avenida ou saindo da sessão nobre do cinema.
Iniciamos um relacionamento bastante íntimo, conquanto irregular e assaz liberal, porque ela
não era do tipo de gaja de se deixar prender a um só homem. Nem eu tinha cabeça ou pedalada para
dominar por inteiro uma fêmea daquele calibre. Era novo, não sabia, todo o trabalho foi dela. Além
disso era freak, um adepto do amor livre, das amizades coloridas. Mas sobretudo era um gajo
irresponsável, que não estava numa de assumir responsabilidades, nem relacionamentos fixos ou
sérios. Era portanto ouro sobre azul, para nós ambos. Pouco tempo depois fui incorporado para a
tropa. Foi uma chatice, dado que era em pleno verão e eu não me estava a ver a marcar passo em
Mafra, enquanto os meus amigos todos estavam na praia a curtir altamente com as bifas. Foda-se!
Ainda por cima, atendendo a que, aquando da inspecção, no ano transacto, tínhamos ficado
apurados para cima de duzentos mancebos. E agora, feitas as contas ao sorteio, só três é que fomos
incorporados e nesses três infelizes ia eu incluído. Aquela merda caiu-me mesmo muito mal. De
modos que fiz logo merda. Nada de exagerado, apenas o suficiente para eles verificarem que eu não
estava a bater lá muito bem da bola e tomarem as previdências necessárias. O que de facto não
tardou, dado que no dia seguinte, logo após a primeira consulta, fui internado de urgência no serviço
7, de neuropsiquiatria. Não demorou muito mais tempo a ver-me livre daquela merda e daqueles
gajos todos. Acabou por ser ligeiramente mais complicado do que eu previra inicialmente. Porque os
gajos até parece que tomaram gosto à minha pessoa. Tinha alguns cinco psiquiatras à minha volta,
sem conseguirem atinar com a psicose de que eu padecia. Mas finalmente lá se resolveram.
Consideram que eu era um psicopata constitucional com tendências toxifílicas, enviaram-me a uma
junta médica para inquirirem se eu concordava com o veredicto, o que não me custou por aí além,
ao fim ao cabo eles é que eram os doutores, eram eles que tinham os livros, não? e finalmente
recambiaram-me para casa, dois ou três meses depois de me terem jogado a luva naquele malfadado
sorteio que eles inventaram, para substituir o serviço militar obrigatório. Custou mas foi. Finalmente
pude voltar a abraçar a minha namorada, matar saudades e pedir-lhe de volta o grosso anel de ouro,
herança de família, que tinha deixado na sua posse como símbolo da nossa união. Nesse tempo eu
ainda era um bocado pró romântico.
Nos anos que se seguiram os nossos caminhos divergiram bastante, mas sempre mantivemos
acesa aquela espécie de chama, de que os nossos corpos se alimentavam sempre que tínhamos a
oportunidade de algum novo reencontro. Ambos viajámos bastante e com frequência. Como mais
tarde vim a comprovar, os nossos destinos andaram, senão paralelos pelo menos tangencialmente
perto, nas mesmas zonas ou bastante próximas, pelas mesmas épocas, contudo não nos voltamos a
cruzar, pelo menos ao longo dos seguintes cinco ou seis anos. Eu corri toda a Europa ocidental e
alguma parte do norte de África, com uma saltada ocasional aos States, enquanto ela salteou
indiscriminadamente ao longo de ambas as margens do Mediterrâneo, ilhas Britânicas, Holanda e
mais frequentemente a América do Sul, Brasil sobretudo e México.
Quanto a mim, tudo bem. Desde bem cedo na vida, eu tinha tomado as minhas opções, quer
filosóficas quer de carácter prático. É sabido que eu nunca sofri de grandes escrúpulos, nem me
ensaiava demoradamente quando tinha que ultrapassar a ténue linha que separam a norma, a justiça
pura e dura, do que a sociedade apelida de actos fora da lei. Sempre optei pelo dinheiro fácil e
estava perfeitamente esclarecido que ao transaccionar algumas pedras preciosas às ocultas, através
de uma fronteira de risco ou alguns volumes de ervas secas ou seus reduzidos derivados químicos,
não estava de facto a cometer nenhum crime, segundo as verdadeiras leis da Vida e do Cosmos e
sim a contrariar uma série de interesses económicos egoísticamente reprimidos por uma clique, que
ocasionalmente detinha o poder. Não admiram portanto os riscos que assumi, nem as consequências
a que me sujeitei.
No que a ela dizia respeito contudo, não deixaram de surpreender-me e de certo modo
chocar-me até, as nuances e mudanças de rumo do seu percurso, ao longo desse tempo. É que ela,
desde miúda sempre se manifestara bastante firme nas suas convicções, sobretudo no que dizia
respeito à saúde, sendo uma atlética desportista em geral e uma karateca de elevado gabarito, que
não fumava nem bebia álcool e concretamente muito careta no que dizia respeito aos elevados
padrões éticos que deviam governar a vida e a sociedade. Era uma chavala práfrentex, mas muito
careta. Qual não foi portanto a minha surpresa, meu choque até, ao tomar conhecimento de que a
tinham detido, acusada de cumplicidade com uma quadrilha fortemente comprometida em assaltos a
bancos, correios, finanças e outras dependências económicas e não só, pois não desdenhavam
hotéis, supermercados nem bombas de gasolina, com alguns crimes de sangue pelo meio. Eram
quase todos malta minha conhecida, rapaziada fixe que à pala do vício das drogas, muitas ressacas e
excesso de filmes na TV, acabaram por se passar dos carretos e depois de um assalto bem sucedido a
uma espingardaria no meio do campo, para se aviarem de armamento e munições, decidiram formar
aquela quadrilha e partir à aventura. Eram todos moços decididos, sobretudo o chefe, o único que eu
não conhecia e que não tocava em drogas. Um matulão enorme tipo gorila, cuja pedrada era o
halterofilismo e completamente passado, ao que parece. O género de gajo que não recuava nunca,
do tipo que para o pararem, tinham que abatê-lo e que era simultaneamente o seu amante e pai do
seu futuro filho, que viria a nascer na cadeia, durante a prisão preventiva, enquanto aguardavam a
conclusão do processo e a marcação da data do julgamento. Viria a lerpar muitos anos depois, já o
filho era adolescente e a mãe superstar, queimado dentro da própria cela, num incêndio que ele
mesmo tinha ateado, numa qualquer forma de protesto. Como ninguém podia com ele dentro da
cana, os guardas marimbaram-se positivamente para seus gritos de terror e
pânico, ao longo da noite e só na manhã seguinte, depois da mudança de turno, quando abriram as
celas para a distribuição dos pequenos almoços é que deram pela calamidade. Estava tudo
completamente queimado. O corpo, irreconhecível, horridamente esturricado, ficara reduzido a um
torresmo ínfimo. Menos de 1/3 do seu tamanho. Parece que havia um pivete insuportável, no
corredor. Mas ninguém tinha dado por nada. O certo é que o caso foi abafado, após um ligeiro
inquérito, que não deu direito a punições nem transferências de posto. Ninguém se importou. Dá
para ver o carinho que todos lhe tinham.
A gaja até teve sorte, pois levou somente dois anos de cana e como já cumprira mais de
metade do tempo enquanto aguardava a pena, saiu praticamente na hora. Agora o resto da malta foi
tudo corrido a cinco, sete, dez e doze anos de cana. Estavam incriminados, ou pelo menos indiciados
numa série enorme de processos diferentes, desde furto qualificado, assaltos à mão armada, posse de
armas de guerra proibidas, associação criminosa e mais uma série de merdas menores, de maneiras
que, não obstante um trabalho deveras judicioso, atento e profissional dos seus advogados de defesa,
não conseguiram evitar aquando do cúmulo jurídico aquelas elevadas penas. Ela, como disse, teve
sorte e uma vez na rua, não se deteve a ponderar sobre as agruras da sua vida, nem perdeu tempo a
chorar sobre o molhado, pondo-se quase de imediato nas putas, para a França, ao que parece, onde
não tardou a reiniciar uma nova vida, uma nova personalidade e profissão, um novo casamento,
filho e família, enfim, um novo futuro, tendo-lhe eu quase de imediato voltado a perder o rasto.
Sempre fora uma gaja bestialmente objectiva e essa era uma das suas qualidades que eu mais
apreciava.
Eu entretanto também tinha mais com que me preocupar. Casei e descasei no entretanto,
andei aos caídos por aqui e ali, voltei a levantar-me e a cair de novo uma série de vezes, até que
arranquei para os States, à procura de salvação, ou de uma vida melhor. Por esse tempo já estava
completamente queimado, quer entre a família, quer sobretudo na minha cidade e arredores.
Também já cumprira as minhas canas e estava completamente sem hipótese, lá pelas minhas bandas.
Ninguém me dava emprego nem queria saber de mim. De modos que pus-me nas putas também. A
coisa não demorou muito, porque também ali fui perseguido pela malapata que em mim era
costumeira e não tardei a meter-me em chatices, de tal ordem que poucos meses depois, fui
recambiado de volta com o carimbo vermelho de refused no passaporte, persona non grata,
indesejável para toda a vida, proibido de voltar a pisar o território.

Foi por essa altura, não muito depois de ter regressado à base, que voltei a ter noticias da
minha amiga. Estava ainda em Lispoa, um bocado envergonhado de regressar à terra natal tão pouco
tempo após a partida, quando absolutamente por acaso, como sempre acontecia entre nós, volto a
cruzar-me com ela, assim sem mais nem menos, na rua. Fizemos uma festa, como de costume.
Tínhamos sempre uma alegria sincera e genuína, quando nos reencontrávamos. Essa era uma
característica curiosa e original da nossa relação. Outra, bastante sintomática por sinal, era o facto
de sempre que isso acontecia, por uma razão ou outra qualquer, era sempre no momento e ocasião
propícia. Sempre numa altura em que eu ou ela e só mesmo um de nós, em relação ao outro,
podíamos ser de uma utilidade ímpar, para resolver qualquer situação, imbróglio ou impasse com
que o outro se debatia, nesse momento. E assim foi, mais uma vez, de facto.
Acontecia que ela tinha regressado a Portugal, cheia de tusa e entusiasmo para promover
uma exposição de fotografia. A sua primeira, em território nacional. Sendo já fotógrafa de moda e
repórter free lance de algum renome em França e até nos States, como pude comprovar pelos
recortes de jornais e outras referencias da imprensa especializada, bem como pelos dois álbuns de
luxo, a preto e branco (era uma das suas características profissionais), publicados por uma das
maiores editoras gaulesas, que ela de imediato me ofereceu. Durante a nossa conversa, enquanto
bebíamos um copo numa esplanada e eu, absolutamente pasmado com a qualidade gráfica e
psicológica do seu trabalho, ia folheando as páginas A3 de um dos álbuns, de facto muito bem
concebidos e realizados, num óptimo papel couché, com exploração de técnicas mistas muito
atrevidas e enquadramentos deveras ousados e mais tarde, ao longo dos dias febris de preparação
para o evento, entre contactos, assinaturas de contratos, loucas corridas de táxis fora de horas,
refeições em cima do joelho, entrevistas para a radio e a TV, esclareceu-me como, tipo Fénix
renascida das cinzas, se transformara de uma ex presidiária sem cheta, nem onde cair morta, numa
Paris completamente desconhecida para ela e dera a volta por cima, ao conhecer, deixar-se engatar e
discretamente começar a manipular os gajos certos para lhe irem aplainando o percurso e ensinando
as técnicas e os truques, da profissão e do jogo social e urbano, para levar com êxito e a bom porto,
o projecto quase colossal que tinha em mente. Dera-lhe muito trabalho. Custara-lhe tempo e
lágrimas e grandes sacrifícios. Tivera que engolir sapos e pichas, sorrir sem vontade nenhuma,
quando a sua vontade era chorar, mentir, fingir e agir com diplomacia, deslocando-se com pésinhos
de lã entre escolhos e armadilhas de uma selva pior do que na cana, fazendo das tripas coração e do
coração uma pedra fria, mas conseguira afirmar-se, criar um nome, uma carreira e uma reputação.
Actualmente começava aventurosamente e sem timidez, como era seu apanágio, a estender os
tentáculos para o exterior procurando expandir-se para o resto da Europa. Já fizera umas exposições
no Leste e também nos States, que felizmente tinham corrido bem. Restava-lhe agora o Ocidente e
fazia questão de começar pelo solo pátrio, no afã de demonstrar que o velho ditado de que – santos
da casa não fazem milagres – não passava de um preconceito derrotista e ultrapassado.
Como era uma chavala séria e amiga do seu amigo, também não me ocultou que o papel
todo que estava por trás daquilo e tinha que ser bastante a julgar pelo aparato com que ela agora se
movimentava, não vinha nem da farm na França, nem dos vinhos do marido, nem da moda, nem o
caralho. Vinha tudo mas era da droga, tendo ela sido durante bastante tempo uma mula, operacional
de uma quadrilha que fazia uns transportes do Brasil para a Europa. A coisa tinha corrido sempre
bem, de maneiras que tinha convertido todos os seus lucros naquele investimento. O que, felizmente
dera resultado, pelo que actualmente já pouco se dedicava aos tráficos. Não podia abandonar aquela
merda de vez, porque ninguém podia. Aquele era um compromisso para a vida, mas como entretanto
começara a comer o chefão da quadrilha, estava mais ou menos segura. Era por isso que tinha toda
aquela amplitude de acção. Em todo o caso tinha que bater a bolinha baixo, como mandava a lei. Já
bastavam as banhadas que lhes tinha dado e não eram poucas, sempre disfarçadas de acidentes com
a bófia ou a concorrência, mas não podia abusar da sorte. Por isso preferira começar a defender-se e
investira tudo na sua carreira de artista fotógrafa. Era aquela a sua aposta e tinha que correr tudo nos
conformes. Contava comigo, como sempre, para ajudá-la.
Eu não podia dizer que não, evidentemente. De resto como nenhum homem, na vida dela,
jamais lhe dizia que não. Era uma daquelas gajas que não aceitava um não como resposta. Um caso
sério de morena, a Rosalôca. Mulher de armas.
Debatia-se agora com algumas duvidas quanto às questões de marketing e à maneira de
publicitar a sua campanha, mas como o destino nos tinha cruzado de novo e não desconhecia os
meus méritos profissionais no campo das artes gráficas e publicidade e a minha faceta criativa, pois
ainda tinha bem presente a minha surtida nesses moldes alguns anos antes, quando tinha erigido
praticamente do nada uma equipa de amadores talentosos e com escasso capital, muita tesão,
criatividade e férreas disciplina e boa vontade, tinha criado uma das melhores e mais rentáveis
firmas do ramo, no relativamente despovoado horizonte local, resolveu aproveitar a maré e
contratar-me de imediato, para ajudá-la e complementar a sua, por enquanto reduzida staff, como
adviser e art director, da sua campanha. Por mim tudo jóia, até porque se a outra cena, a tal firma de
publicidade não tinha dado certo na altura, fôra porque eu simplesmente tinha-me chateado depressa
demais do êxito e das facilidades, o que era um dos meus maiores defeitos. Sempre me dera mais
tusa a perseguição do que a conquista, a febre da construção, mais do que a administração do
processo, uma vez concluído. Até com as mulheres eu era assim. Esse facto aliado ao de ter acabado
por perder o meu sócio e melhor profissional, o meu principal designer e o verdadeiro pilar daquela
estrutura, dada a circunstância involuntária de, por motivos de casamento e outros problemas de
índole doméstica, como o facto da mulher ser holandesa, uma grande seca e completamente
psicótica e ao fim de um ano de permanência no país, ainda não ter conseguido sair de casa uma
única vez, aprender os rudimentos básicos da língua ou adaptar-se minimamente à vida local, o gajo
se ter visto forçado a emigrar para a estranja, para fazer a vontade à menina e adiar o inevitável
divorcio por mais uns tempos, eu, numa das minhas habituais guinadas a 180º, tinha-me desfeito de
tudo e abalara, em má hora, para a América, no intuito de vir a juntar-me a um velho amigo de
infância que conseguira fazer fortuna na Califórnia através de umas traficâncias bestialmente
esquisitas, que não dá para estar a contar agora e de onde vim a ser expulso poucas semanas depois,
ainda mal chegado à Florida, na outra ponta do continente, sem ter conseguido aproximar-me nem
de longe daquele estado.
Aquele projecto, um bocado megalómano da gaja e um bocado é favor, dado que além da
exposição de fotografia, pretendia lançar em simultâneo um CD com duas canções, que ela já trazia
previamente gravadas da França, bem como um filme em vídeo, documentário romanceado do seu
percurso, desde clochard ao abandono nas ruas, dos primeiros tempos, em que para se alimentar
com regularidade tinha que recorrer às poubelles, a serveuse de bistrot de esquina, em que tinha que
aturar as bebedeiras e os avanços abrutalhados dos operários do banlieu, sempre sorridente e de boa
cara, até terminar em cantora de sucesso e fotógrafa de moda, salto qualitativo que ela tinha
disfarçado de ocorrência casual, quando um metteur em céne da moda tinha reparado nela, enquanto
servia atarefada uma multidão de domingo e aproveitando uma pausa lhe propusera, sem
compromisso, fazer um teste, um casting para uma promoção publicitária a ter lugar dois dias
depois. Em seguida mostrava a sua ascensão meteórica ao mundo da moda, desde as passerelles ao
show biz, até se estabelecer por conta própria como fotógrafa, de créditos firmados, com exposições
regulares nos melhores estúdios da capital. Projecto esse, documentado a preto e branco, com
montagem deficiente e pouco profissional, que ela pretendia desenvolver até transformá-lo num
filme a sério e se possível num sucesso de bilheteira, tão logo encontrasse os patrocínios necessários
e convertesse o texto um bocado incipiente, em livro e este num story board apelativo (para o que
contava de novo com os meus préstimos), que acabou como não podia deixar de ser em águas de
bacalhau, porque ela também era de se fartar depressa e estava constantemente a partir para outra,
desatinando com os inevitáveis adiamentos, as rasteiras e os golpes baixos dos gajos do milieu, as
tentativas de sedução dos eventuais investidores.
De modos que me vi mais uma vez ao abandono, quando ela me telefonou já em pleno vôo a
informar-me que ia caminho do Rio de Janeiro tratar de assuntos urgentes, deixando-me com uma
mão cheia de dívidas e uma série de compromissos apalavrados, com uma data de gente
aparentemente séria, que até começava a entusiasmar-se e a fazer fé naquele projecto. Porém com a
Rosalôca as merdas eram assim e não havia nada a fazer. Só mesmo quem não a conhecesse.

E agora, assim de repant, inesperadamente, como que caída do céu, em pára-quedas, voltava
a encontrá-la de novo, na Gare du Nord, sem mais nem menos, tanto tempo passado sem novidade
nem notícias e vai a gaja, desabava-me em cima com meio quilo de coca e um plano mirabolante,
mesmo característica à Rosinha. Eu bem que andava com aquele palpite esquisito de que qualquer
coisa ou alguém, surgiria em breve na minha vida, com poder e determinação para virá-la do avesso,
modificá-la de raiz. Bem me parecia que aqueles encontros inusitados com figuras famosas, não
podiam deixar de trazer água no bico. Comigo era sempre assim. Não havia acaso nem coincidência.
Era tudo uma trama lixada no sentido de conduzir-me, a vida, onde ela bem entendia. Às vezes era
bom, outras vezes era mau, a merda é que um gajo só descobria no fim, quando já nada podia fazer
ou evitar. Mas eu não podia esquivar-me a prestar mais um serviço à minha boa amiga. Além disso
ela estava a prometer-me uma bolada bem jeitosa. Contudo aquela merda tinha que ser muito bem
ponderada. Com aquela zina era preciso cautela. Muita cautela...

- Olha lá meu bem, donde é que vem essa merda toda? – inquiri desconfiado.
- Que merda? Não tem merda nenhuma! O duto é meu. Só te estou pedindo que faças o
transporte para mim enquanto eu vou ao Marrocos e trates de despachá-lo, lá embaixo. Podes ficar
com 100 gramas para ti e ainda levas uma boa percentagem sobre as vendas. Qual é a espiga?
- Espiga nenhuma, em principio. Mas tou-te a achar demasiado generosa. Tens a certeza que
a meio do caminho não me aparecem dois ou três manfios a dizerem que o produto é deles e me
deixam para aí estendido, com meia dúzia de balas no bucho?
- Amor, o que tu andas é a ver demasiados filmes na televisão. Tá descansado que desta vez
não há problema nenhum. É tudo como te disse. Então, alinhas? – ronronou ela, cheia de malícia,
fazendo-me olhinhos, enquanto erguia o pé descalço por baixo da mesa e tentava introduzi-lo
delicadamente pela minha braguilha adentro.
Enfim, se realmente fosse tudo como ela afiançava, tudo bem. Mas qualquer coisa persistia
em sussurrar-me ao ouvido, que me pusesse a pau, sobretudo agora que eu tomava consciência
aguda dele, massajado daquela maneira. Aquela malta, belgas, flamengos, franceses, corsos, não
eram nenhuns meninos de escola. Ainda tinha bem presente a minha velha história com a Fabíola.
Enfim, a coisa não se passara directamente comigo, mas fora-o suficientemente próximo, para eu
me aperceber dos detalhes todos.
Esta moça, aparecera assim de repente lá na terra, filha de um casal de pesos pesados, que
tomara conta de um negócio, na praia. Uma espécie de discoteca mal parida, que estava sempre a
mudar de donos, todos os anos e não conseguia jamais levantar-se. O certo é que quando os velhos
da Fabíola lhe jogaram as mãos, aquilo não só se transformou numa mina, sempre casa cheia, como
em pouco tempo permitiu-lhes ampliarem os negócios, adquirindo uma velha pensão não muito
distante, que logo converteram em modernos estúdios para aluguer na estação forte, como
rapidamente se expandiram para a exploração de outras casas do ramo, na própria cidade. Dizia-se à
boca pequena que o velho dela era um capo da mafia flamenga, cujo ramo principal estava
estabelecido em Bruxelas, onde possuíam “n” bizenésses na hotelaria, clubes, restaurantes, casas de
fado e de diversões, bem como bordéis, casinos e fumeiros de ópio. Não passavam de rumores,
ditados naturalmente pela dor de corno, devido ao êxito retumbante dos recém chegados, o que era
frequente lá na terrinha, uma pequena cidade de província onde toda a gente se conhecia e a inveja
campeava à solta.
A moça às tantas engraçou comigo, como já tinha engraçado com muitos outros antes. Ela
era de facto um bocado promíscua, assaz peneirenta, mas não deixava de ter a sua piada. Tinha uma
carinha laroca, com grandes e belos olhos escuros, amendoados. O cabelo liso, usava-o curto. Era
um bocadito cheia de corpo, o que era traço característico na família, mas compensava com uma
energia esfuziante e um humor deveras curioso e continental. A pronúncia era cerrada, sobretudo
nos érres e essa foi uma das razões da nossa aproximação. É que a minha velha era professora de
português e eu, na altura convivia muito com um amigalhaço, verdadeiramente apolíneo e altamente
requisitado, o que permitia fazer altas razias entre as fêmeas. Como eu na altura, havia muito que
me encontrava celibatário, o meu amigo Bítaro apareceu-me um dia de surpresa, em casa,
arrastando pela asa aquela curiosa menininha, que não se calava com a sua vozinha doce e aquela
pronúncia gutural e engraçada, arrastando longamente os érres: – Ó Bítarro, onde é que você me
leva? Quem é esse seu amigo que você me querr apresentarr?
De modos que passou a ter aulas de português com a minha mãe, três vezes por semana, para
aperfeiçoar a sua pronúncia. Eu mordi logo qual era a jogada do meu comparsa, mas deixei correr o
marfim. Ao fim ao cabo a miúda até era engraçada, tinha uma discoteca só dela e uma data de
restaurantes. Era um engate de prestígio, para eu exibir na praia, entre os amigos. Na altura eu ainda
era um bocado otário nestas merdas. Era novo, não sabia.
Não tardou muito para começarem as chatices com os velhos dela. Com a velha sobretudo,
que era uma controladora do caraças. Primeiro sujeitaram-me a um interrogatório pior que o FBI,
sobre os meus antecedentes familiares, os meus estudos e os meus planos de futuro. Até parecia que
eu lhes tinha pedido a filha em casamento. Depois, a velha achou que eu estava demasiado
magrinho. Tinha que engordar, para não destoar do resto da família. Eles eram todos gordos, já o
disse. De modos que estavam sempre a insistir: - Coma mais Pepe. Só mais um bocadinho. Já viu
como estes camarões estão gostosos. E o doce, já provou? – uma seca. Tive que começar a esquivar-
me daqueles almoços familiares, que nunca mais acabavam e para os quais estavam
permanentemente a convidar-me.
A garota entretanto, estava bestialmente bem amestrada pela velha. Embora fosse uma louca
do caraças, sempre disposta a grandes marmeladas, a roçar-se por mim ou a bater-me umas pívias
discretas, não se perdia, sempre que eu lhe queria saltar prá cueca. Além disso, tinha que estar
permanentemente debaixo das vistas da mamã. A puta que as pariu. Nem um passeio pela praia,
ocultos pelas dunas, ela arriscava.
- Tenho que voltarr parra casa – dizia ela – O que é que a minha mãe não vai pensarr?
- Caga na velha! - dizia-lhe eu - E então a tua curte, não conta?
Mas ela era muito novinha. Estava completamente condicionada. Faltava-lhe a coragem e a
vontade também.
Como vingança acabei por convence-la que tinha de emagrecer. Que estava feia de gorda e
até me envergonhava de ser visto na companhia dela. Foi tiro e queda. Obriguei-a a tomar uma data
de Lipos por dia, até a cintura dela me caber entre ambas as mãos, polpa com polpa dos dedos. Ao
tempo ainda se encontravam todos esses speeds, livremente nas farmácias. Lipoperdur, Prelodine,
Friganor, Obolipe e outros produtos para combater a obesidade. Só a Metadrine já tinha sido retirada
do mercado, havia muito. Todos os outros lhes seguiram os passos, dentro em pouco. Tão logo os
gajos se aperceberam do consumo desenfreado que a malta freak fazia daquelas merdas. Primeiro,
só era possível levantá-los com receita médica. Mais tarde substituíram-nos mesmo, por outros
compostos semelhantes, mas com nomes completamente diferentes. Ambas as estratégias
resultaram. Quer a da bófia no sentido de restringir o consumo de drogas, quer a minha, muito mais
modesta de fazer a minha namorada emagrecer. Certo é que a garota ficou muito mais atraente e
logo aí, mais generosa e oferecida. Não sabia como havia de me agradecer. A mim bastava-me que
ela abrisse as pernas, mas a gaja estava bem amestrada pela velha e mesmo assim não ia no engodo.
Cacete...
A gota de água porém, foi quando meteram na cabeça, que haviam de me convencer a
trabalhar, nalgum dos investimentos da família. Trabalhar, eu? Jamais na puta da vida. Nem o meu
velho jamais me exigira que eu bulisse, quanto mais aquela gente, cambada de gordos metidos a
mafiosos. Foi mesmo a gota que fez transbordar a taça, para empregar uma imagem muito querida
ao sacana do meu velho. Associado ao facto, que entretanto me constara de um acto de justiça
interna, praticado pelo velho capo, na pessoa do seu próprio cunhado. Parece que o chaval, outro
gordo, irmão da mulher dele, ficara lá pelas Bélgicas no controle de um qualquer investimento da
pandilha. Uma casa de fados ou de putas ou restaurante, não me lembro já bem. Certo é, que o gajo
se entusiasmara – patrão fora, dia santo na loja – já se sabe e metera ao bolso mais do que era
suposto. Quando o estrilho rebentou, o kota, para que não o acusassem de nepotismo ou de
favorecer os da própria família, mandou proceder a um tribunal de guerra, que determinou a pena
usual para todos os ladrões, que se deixavam apanhar, dentro da organização. A amputação da mão
direita, ao uso dos manos do islão. Dito e feito! Se os gajos procediam assim, dentro da própria
família, o que não seria com os de fora.
De maneiras que comecei a dar com as contrárias à pitinha. Até porque ela nunca mais ia ao
castigo e eu não andava ali à pala de beijinhos, esfreganços e marmeladas, como os putos do liceu.
Já era um homenzinho crescido, porra! Além disso, ela começava a dar bola demais, para o meu
gosto, a um zeca que eu próprio lhe tinha apresentado e introduzira na organização, para trabalhar
como disc jockey, na discoteca, em meu lugar, aquando da época em que eles andavam com a
pancada de me pôr a bulir para eles. De modos que eles se acabaram por pegar de namoro firme,
deixando-me a costa livre, na superioridade moral, de não ter sido eu a acabar com o namoro, o que
com aquela gente teria sido difícil de impingir-lhes. Arriscava-me a ser capado, ou pior. Assim,
como foi a menina a prevaricar, ainda tive direito a uma indemnização moral e tudo. Não há nada
como a tradição e os valores familiares, da mafia.

Tudo estes pensamentos, cruzando-me desenfreadamente a mona, associados à convicção


muito intensa que me martelava os cornos, de que aquela coca toda só podia ser banhada a alguém,
nem eu estava a ver aquela generosidade toda, da gaja me oferecer 100 gramas, assim de mão
beijada, só pelos meus lindos olhos e pela passagem da fronteira, me faziam hesitar grandemente.
Parecia-me que ela queria era tirar o cavalinho da chuva e no momento da verdade, quando
chegassem as forças de choque, não se ensaiaria muito para despachar-me, como a um peão que se
sacrifica, numa jogada de xadrez.
Por outro lado, para quem tinha abalado para a França, completamente teso e sem grandes
perspectivas, poucas semanas antes, voltar para casa com quase 50 discos altamente, a maior parte
nunca editados sequer no país, uma data de roupas novas, pois não me inibi nas compras assim que
aceitei tomar os riscos da empresa, além de 0,5 quilo de coca de elevada qualidade, das quais 100
gramas me pertenciam por direito próprio, além do papo cheio de aventuras, viagens e boas
recordações, coisas que naquelas idades, têm o seu peso, não deixava de ser uma viagem memorável
e altamente lucrativa, a todos os níveis. Foi por isso que sem mais hesitações, disse – OK! Alinho na
tua onda, meu amor.
Rosalôca, aliviada e boa praça, não deixou de me recompensar pela minha cumplicidade e
participação, da melhor maneira que podia e sabia. Ou seja, com uma semana de férias no sul, em
Nice onde ela conservava ainda a tal farm, mesmo depois de divorciada havia muito, do otário a
quem a extorquira, uma quintarola soberba e rústica, toda em pedra e telha vã, rés vés ao mar, sobre
altas escarpas, onde fez jus à sua já provada ninfomania, em que praticamente não saímos da cama o
tempo todo, bem servidos de comes e bebes e carinho q. b. de uma velha serviçal que fôra aia do seu
antigo marido e se rendera definitivamente ao seu charme de princesa lusa...
Esta aventura terminou mais tarde, já na terrinha, um pouco mais drasticamente do que
aquilo que tínhamos previsto, mesmo nas nossas mais negras conjecturas, comigo de pantanas no
hospital, com uma puta de uma paragem cardíaca, que quase me foi fatal, depois de passar por “n”
taquicardias, devido ao excesso no consumo de cocaína. O que não é de admirar num chaval tão
exagerado por natureza quanto eu e com uma remessa de duto tão grande, entre as unhas. O meu
sangue parecia alcatrão, espesso e grosso e negro, devido à gordura da coca. É sabido que esse é um
sintoma de elevada qualidade.
Os médicos nem queriam acreditar no que tinham debaixo dos olhos. Acho que nenhum
deles tinha jamais visto nada de semelhante, em toda a sua vida profissional. É claro que uma merda
assim, acabou por dar brado, lá na terrinha. Nunca tinha havido uma abundância tal, de artigo e tão
bom, nos anais da escassa história da cidade. Foi uma razia. Houve uma data de gente hospitalizada
antes e além de mim. Bem como uns quantos mais descontrolados, que acabaram no hotel das
tabuletas. Isto originou uma série de prisões, como não podia deixar de ser e chibaria em monte. E
pânico e paranóias, perseguições de automóvel e fugas mirabolantes. Parecia um filme de gansters.
Só faltaram mesmo os tiroteios. É que nós somos mais pacatos que a máquina de Hollywood.
À pala daquela merda toda e para evitar a cana, vi-me obrigado a deitar a maior parte do
duto pela retrete abaixo, quando os filhas da puta da bófia me fizeram um cerco e atacaram de
surpresa, em plena madrugada, a cuba onde eu estava amalhado havia uma série de tempo, desde
que a onda começara a espigar e as detenções a sucederem-se. Só pôde ser chibaria, mas no estado
em que eu andava, acabou por ser uma espécie de benção, um daqueles males que vêm por bem, de
contrário, quer-me bem parecer que não tinha cá ficado para contar a história. Estava era no Jardim
das Tabuletas, como os tais muadiés.
Quanto à Rosinha, não voltei a saber dela. Constou-me que depois de Marrocos, tinha
embarcado às pressas, para o Brasil e quanto a mim, ao saber das novidades cá no burgo, o melhor
que ela tem a fazer, é não pôr cá os butes tão cedo. Até porque eu não tenho maneira de lhe pagar o
devido. Nem pó. Só espero que a gaja não me apareça por aí, à frente de uma cambada de mafiosos
desejosos de me fazerem a folha, ou arrancar-me a puta da pele... Bem capaz disso é ela, se tiver que
sacrificar-me, para salvar a própria.

BELTRANO MANINGUE / FARO / 2003

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