Professional Documents
Culture Documents
autoras do original
MARIA TEREZA DE MOURA LEITE
VALQUÍRIA DA CUNHA PALADINO
1ª edição
SESES
rio de janeiro 2016
Conselho editorial rafael m.iório filho, camille guimarães, roberto paes, gladis
linhares
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.
isbn: 978-85-5548-260-1
Prefácio 5
1. Narrativa Jurídica 7
1.1 Narração 10
1.1.1 Narrativa Jurídica e seus Elementos Constitutivos:
O Quê? Quem? Como? Onde? Quando? Por quê? 15
1.1.2 Narrativa Jurídica: Raciocínio lógico na seleção e
organização dos fatos. 21
1.1.3 Narrativa Jurídica: Ordem Linear ou Cronológica 22
1.2 Aspectos Linguísticos: Narrativa Jurídica 24
1.2.1 Modos de Narrar o Texto Jurídico: Discurso Direto e Indireto 25
1.2.2 Passagem do Discurso Direto para Discurso Indireto 27
1.2.3 Função dos Tempos Verbais: Narrativa Jurídica 29
1.2.4 Paráfrase: Discurso Indireto 35
1.2.5 Polifonia: Discurso Jurídico 37
3. Argumentação Jurídica 3 81
Prezados(as) alunos(as),
5
O conceito perelmaniano de auditório universal é imprescindível para o de-
senvolvimento da argumentação, bem como para a definição das estratégias
argumentativas pautadas na persuasão.
Essas estratégias, em razão de sua importância, serão objeto de uma discus-
são, tendo em vista a ligação intrínseca que possuem com os auditórios a que
são direcionadas.
E esses, portanto, serão os temas principais deste livro Redação
Instrumental: Narrativa Jurídica e Argumentação Jurídica: o narrar para expor
os fatos e o narrar para argumentar, de modo a fornecer o conhecimento básico
sobre a argumentação jurídica, permitindo aumentar a capacidade de persua-
são do aluno, futuro advogado.
Por fim, o livro Redação Instrumental oferece as ferramentas necessárias
para quem está ingressando no mundo forense e quer entender a narrativa jurí-
dica, a argumentação jurídica e a produzir textos jurídicos mais claros, coeren-
tes e persuasivos, porque trata desses assuntos de maneira segura, clara, coesa
e extremamente didática, tornando os temas bem prazerosos e acessíveis ao
aluno do Direito.
Bons estudos!
1
Narrativa Jurídica
O capítulo 1 procura fazer uma abordagem teórica da narrativa jurídica, com o
objetivo de ressaltar a importância que a seleção dos fatos ostenta tanto para
uma boa produção da narrativa jurídica como para uma melhor argumentação,
além de trabalhar com os aspectos linguísticos fundamentais para a produção
de uma narrativa jurídica com qualidade e consistência.
Mostrar que até um texto produzido com o objetivo informativo, como
exemplo, a narrativa jurídica, revela intencionalidades discursivas por parte do
advogado quando escolhe certa maneira de relatar fatos, certos usos de estrutu-
ras sintáticas, ou seleção de palavras que revelam o seu posicionamento e que
dá uma feição ao que é dito diferentemente do que se outra pessoa o fizesse.
Tal fato não pode, em momento algum, ser desconsiderado e, por isso, Ducrot
(1987), em vários de seus textos, aborda a ideia de que argumentar seria a essên-
cia de todos os tipos de discursos produzidos.
Enfatiza-se neste capítulo, no entanto, que as partes (acusação e defesa)
têm inteira liberdade de interpretar fatos e provas e de tirar as conclusões que
entenderem; o que não podem é falsear a “verdade”, narrando o que não acon-
teceu ou o que não foi dito ou relatado pelas partes, respeitando-se sempre a
lealdade processual.
Neste capítulo são citados também alguns casos concretos, cujo objetivo é
demonstrar que a ideia aqui defendida é de enorme importância não só teórica,
mas também para a prática jurídica futuramente.
Ao final, tem-se a parte prática com o objetivo de fixar os conteúdos traba-
lhados e para melhor aprimoramento da produção escrita da narrativa jurídica.
OBJETIVOS
• Compreender o conceito de narrativa jurídica.
• Identificar os elementos que compõem a narrativa jurídica.
• Reconhecer as etapas/estágios do processo narrativo.
• Selecionar os fatos relevantes e os juridicamente relevantes em busca de clareza textual.
• Ordenar os fatos cronologicamente, segundo a sua ocorrência na linha do tempo.
• Compreender a importância da seleção vocabular e da sua intencionalidade na elaboração
da narrativa.
• Diferenciar discurso direto e discurso indireto.
• Estabelecer relações temporais entre os fatos narrados, situando-os na linha do tempo
(antes, durante e depois).
8• capítulo 1
• Compreender que o tempo verbal informa, de uma maneira geral, se o verbo expressa algo
que já aconteceu, que acontece no momento da fala ou que ainda irá acontecer.
• Reconhecer a importância das formas verbais pretéritas na narrativa jurídica.
capítulo 1 •9
1.1 Narração
Othon Garcia (2012) define narrativa como o relato de um episódio real ou fic-
tício que implica interferência de elementos, como: fato ou ação [o quê]; perso-
nagens [quem]; o modo como a ação/fato é desenvolvido [como]; o momento
em que o fato ocorreu [quando]; o lugar do ocorrido [onde]; o motivo do acon-
tecimento [por quê]; e o resultado da ação [por isso].
No entanto, de acordo com Garcia (2012), nem sempre todos esses elemen-
tos estão presentes na narrativa, mas, segundo ele, os elementos indispensá-
veis para que haja narração são quem e o quê. O autor informa, ainda, que a
narração gira em torno do fato, isto é, de “qualquer acontecimento de que o
homem participe direta ou indiretamente” (GARCIA, 2012, p. 254).
Garcia (2012, p.254) explica ainda que há três ou quatro estágios progressi-
vos no enredo. O primeiro é a exposição, na qual o narrador explica certas cir-
cunstâncias da história, situando o fato em época e ambiência, e onde se faz a
apresentação/introdução de algumas personagens. O segundo estágio é a com-
plicação – fase em que o conflito é iniciado. Logo após aponta o clímax (ápice
da história) como fator progressivo da narração. Finalmente, o quarto estágio é
o desfecho/desenlace, no qual se dá a solução do conflito.
Leia, agora, o conto “A moça Tecelã”, de Marina Colasanti e perceba como
a narrativa literária é construída, apresentando os quatro estágios ensinados
por Garcia (2003), para depois dessa análise, ser iniciado o estudo da narrativa
jurídica, que muito se assemelha àquela:
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da
noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre
os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, um longo tapete que
nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadei-
ra grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas
nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.
Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
10 • capítulo 1
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse
a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do
tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E
eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã
cor deleite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão,
dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhe-
cida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia.
E aos pouco seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo
aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio
da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi
entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para
aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser
nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que
eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os
batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta,
imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o
sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia,
enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
capítulo 1 • 11
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e
seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à cha-
ve, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos,
os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o
que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom
estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-
se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário,
e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu
os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o
palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena
e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e, espantado,
olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos
sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-
lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha
do horizonte.
COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Ilustração, Ana
Peluso. Global: Rio de Janeiro, 2000.
12 • capítulo 1
“Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em
que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em
COMPLICAÇÃO como seria bom ter um marido ao lado. ” até “Tecer era
tudo o que queria fazer.”
Leia, agora, o poema narrativo de Manuel Bandeira e perceba mais uma vez
como a Literatura pode auxiliar na compreensão do Direito, proporcionando
resultados mais satisfatórios na compreensão do fenômeno jurídico.
Tragédia Brasileira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,
conheceu Maria Elvira na Lapa, - prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma alian-
ça empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,
dentista, manicura... dava tudo quanto ela queria.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada
disso: mudou de casa.
capítulo 1 • 13
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
14 • capítulo 1
MULTIMÍDIA
Filme: Narradores de Javé
O filme brasileiro intitulado “Narradores de Javé” foi produzido em 2001 e foi dirigido por
Eliane Caffé. Rodado no interior baiano, na cidade de Gameleiro da Lapa, o longa-metragem
narra a história de um distante vilarejo chamado Javé que estava prestes a ser destruído por
causa da construção de uma Usina Hidrelétrica. Seus habitantes, ao saberem da notícia, logo
procuraram uma alternativa para que a pequena vila não fosse destruída.
LEITURA
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Ronald Dworkin em um os capítulos do seu livro intitulado “De que maneira o Direito se
assemelha à Literatura (2005)” desenvolve a sua metáfora do romance em cadeia como
uma forma de se analisar o Direito. Imagina que um número de romancistas ficaria incumbido
de escrever um livro. Mediante um jogo de dados, estabelecer-se-ia a ordem de cada um. O
primeiro começa o romance com as informações que possui, quais sejam, a tarefa de iniciar
uma obra e que, posteriormente, será entregue a outro para que este a continue. A partir do
segundo, cada romancista, além de se responsabilizar pela criação de seu capítulo, precisará
interpretar o anterior para que o romance tenha certa integridade. Ou melhor, para que cada
capítulo esteja integrado aos demais e a obra não se torne, por exemplo, um livro de contos
(DWORKIN, 2005, p. 237).
Toda narrativa refaz os fatos a partir do ponto de vista do autor. Uma das carac-
terísticas da “verdade” jurídica é construir uma narrativa dos fatos, que podem
ser descritos, por exemplo, por um tipo penal – da infração penal – que nada
mais é do que a descrição do crime. Para construir a verdade de que determina-
do fato é crime, o caso passa por uma transformação progressiva, daquilo que
no início era uma "trama de vida" para um "fato jurídico".
capítulo 1 • 15
O tempo e narrativa encontram-se imbricados, pois tudo aquilo que pode
ser contado em forma de histórias sucede-se no tempo, arraiga-se no próprio
tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve temporalmente
pode ser narrado.
Assim, ao se contar uma história, reordena-se o tempo, articulam-se os
eventos em uma sucessão, dando contorno ao vivido de forma a garantir que o
narrador se identifique ao contá-la e que o leitor se reconheça ao interpretá-la.
Não é sem propósito que a narrativa rearticula, no presente, as imagens do
passado de modo que possam impulsionar e guiar nossa ação na construção
do futuro.
Nesse contexto, a narrativa só poderá ser entendida como a arte de tecer in-
trigas (enredo), o que significa dizer que contar uma história é “agenciar fatos”,
compondo junto o que está separado. “Agenciar fatos” é organizar sucessiva-
mente os eventos da experiência temporal humana de forma a dar sequência à
história e, por isso, fazer surgir o tempo.
Pois bem, na Petição Inicial, por exemplo, a narrativa jurídica não poderia
fugir ao que já foi posto, e é produzida no elemento denominado DOS FATOS,
iniciando-se sempre pelo autor dessa peça processual, fazendo-se uso do pa-
drão culto da língua portuguesa.
A narrativa jurídica tem como ponto de partida a narração dos fatos que ge-
raram a situação fática, começando sempre pela causa de pedir mais remota
(origem do negócio jurídico/relação com Direito material) e terminando com a
causa de pedir próxima (descumprimento da obrigação pelo réu), indicando o
porquê de seu pedido.
Sendo assim, o advogado do autor deverá narrar e descrever, primeiramen-
te, os fatos que originaram o seu direito (causa de pedir remota/ nascimento do
Direito material). Exemplo:
16 • capítulo 1
Em seguida, o advogado deverá narrar que houve violação ou ameaça de
violação ao direito do autor (causa de pedir próxima), descrevendo os fatos e
encerrando a sua narrativa jurídica. Exemplo:
“O réu deixou de pagar os aluguéis dos meses de abril, maio e junho de 2015, perfazen-
do o total de R$ 6.000,00 (seis mil reais), conforme demonstrativo em anexo (doc.2).”
capítulo 1 • 17
Neste exato momento, por conseguinte, violado o direito, surge para o cre-
dor a legítima pretensão de poder exigir, judicialmente, que o devedor cumpra
a prestação assumida (pedido).
O advogado não pode se esquecer de que da narrativa lógica dos fatos que
advém a conclusão, ou seja, dos fatos narrados decorre logicamente o pedido.
Leia a narrativa jurídica a seguir (OAB-FGV-2014) para melhor compreensão
de suas características estruturais ou metodologia:
18 • capítulo 1
Muitos fatos importantes constantes da narrativa têm pouca importância
jurídica, mas lá estão para fornecer um contexto aos fatos jurídicos mais rele-
vantes, pois sem aqueles o restante não faria sentido. É preciso, então, distin-
guir fato importante de fato jurídico: fato jurídico são os fatos fundamentais
dos quais decorre o direito de que pensa ter o autor; importante são os fatos
secundários que compõem o fato jurídico ou que auxiliam na comprovação da
sua existência, propiciando maior clareza à situação fática.
Na narrativa jurídica é de grande importância a seleção dos fatos e a orde-
nação do tempo, antes de eles serem narrados; lembrando-se sempre de que a
narração dos fatos deve ser concisa e eficaz, seguir sempre a ordem linear ou
cronológica (= calendário, relógio), deter-se apenas no essencial, em um racio-
cínio lógico, coeso e coerente.
A narrativa dos fatos tem o conteúdo informativo porque assume a função
de esclarecer uma situação sobre a qual ainda se vai tirar o processo argumen-
tativo, mas é certo que esse conteúdo informativo não é imparcial, porque está
contaminado pela constante vontade do representante legal da parte (advoga-
do) de persuadir; razão por que traz sempre um ponto de vista implícito no ato
de narrar que será a baliza de sustentação dos fundamentos jurídicos do pedi-
do, daí afirmar-se que a narrativa jurídica é sempre marcada pela parcialidade
de ambas as partes nestas peças: Petição Inicial, Contestação, Queixa-Crime,
dentre outras similares.
A narrativa jurídica tem estrutura que oscila entre a narração e a descrição,
por narrar e descrever os fatos, conforme apresentados pela parte, ou seja, aqui-
lo que é significativo para o mundo jurídico e que merece análise e julgamento
do judiciário.
A narrativa jurídica apresenta fatos em sequência e decorrentes de uma re-
lação de causa consequência, isto é, um fato causa uma consequência que dá
origem a outro fato, e assim por diante. Isso significa dizer que entre uma ação
e outra, entre um fato e outro, há um lapso temporal, e é a indicação de trans-
curso do tempo a tarefa principal do autor da narrativa, depois de selecionar os
fatos narrados.
No caso concreto, percebe-se que todos os fatos julgados relevantes pelo
advogado foram narrados linearmente em uma linha lógica e coerente de ra-
ciocínio, em uma progressão temporal, respeitando-se anterioridade e poste-
rioridade dos fatos e presentificam-se todos os elementos da narrativa em seu
corpo textual, como:
capítulo 1 • 19
• O quê? Contrato de compra e venda
• Quem? Partes processuais: Autor e Ré “G” S. A.,
• Onde? Rio de Janeiro
• Quando?15 de janeiro de 2015.
• Por quê? Vício de qualidade do produto
• Como? Modo como os fatos aconteceram: narrativa propriamente dita.
20 • capítulo 1
Deve-se ficar bastante atento a essa postura diante desse tipo de texto por-
que a narrativa dos fatos (“Dos Fatos”) precede à argumentação jurídica (“Do
Direito”) e só traz a situação fática: fatos, provas e as circunstâncias em que o
fato ocorreu.
COMENTÁRIO
As partes processuais no discurso jurídico são sujeitos, seres, indivíduos de carne e osso
(reais) e não personagens, já que estes são fictícios, são construções de/no papel. Logo, a
nomenclatura personagens não deve ser usada nos textos jurídicos.
capítulo 1 • 21
ATENÇÃO
Ementa: HORAS EXTRAS E REFLEXOS. INTERVALO INTRAJORNADA. AUXÍLIO ALIMEN-
TAÇÃO. INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL. MANTIDA. Se, ao deduzir suas pretensões, o autor
não o faz de forma clara, trazendo aos autos os elementos mínimos necessários para a aná-
lise do mérito dos pedidos, impõe-se a declaração da inépcia da inicial. Apelo não provido.
Ementa: Apelação Cível. Ação de indenização por serviços prestados na constância da
união estável Indeferimento da petição inicial Incoerência entre a narrativa dos fatos e os
pedidos deduzidos. Inépcia da petição inicial mantida. Nega-se provimento ao recurso.
A autora, vendedora domiciliada na cidade de São Paulo – SP, alegou ter engravidado,
após relacionamento amoroso exclusivo com o réu, representante de vendas de empre-
sa sediada em Porto Alegre – RS.
22 • capítulo 1
No entanto, o réu se negou a reconhecer a paternidade ao argumento de que tem
dúvidas acerca da fidelidade da mãe, já que ele chegava a ficar um mês sem ir a São
Paulo durante o relacionamento que teve com a autora.
O réu recebe o salário bruto de R$ 5.000,00 mensais e arca com o sustento de uma
filha, estudante de 22 anos, e ele não tem domicílio fixo em razão de sua profissão
demandar deslocamentos constantes entre São Paulo – SP, Rio de Janeiro – RJ e
Porto Alegre – RS.
A autora ganha, no presente momento, cerca de dois salários mínimos e as despesas
mensais de João totalizam R$ 1.000,00.
Como se nota, houve uma seleção prévia dos fatos relevantes que compõem
a narrativa jurídica e eles foram, em seguida, ordenados cronologicamente (=
relógio). Assim, a narrativa se apresenta na ordem linear (fato anterior/causa x
fato posterior/consequência), partindo da causa de pedir remota para a causa
de pedir próxima, em uma linha de raciocínio lógica, clara, concisa e objetiva,
sem nenhuma alusão às normas jurídicas, trazendo somente a narração dos
fatos e a descrição das circunstâncias em que ocorreram (fato, prova, circuns-
tância) e as provas.
Observa-se, também, que a cada parágrafo foi narrado e descrito apenas
um fato.
Os fatos são narrados e situados no tempo, isto é no passado, as datas têm
também como referência um marco temporal, fixado no próprio texto.
Destaca-se que os advérbios e as expressões adverbiais são também fatores
importantes para situar a narração no transcurso do tempo.
Por conseguinte, pode-se afirmar que a narrativa se desenvolve da seguinte
forma: ações determinadas, em ordem preferencialmente linear, havendo um
lapso temporal entre um fato e outro, indicando o transcurso do tempo e com
precisa marcação de tempo, seja pelo uso do tempo verbal, seja por outras mar-
cações, como os advérbios ou as expressões adverbiais.
COMENTÁRIO
A coerência narrativa apresenta os fatos de forma cronológica, linear e progressiva, possibi-
litando que o receptor, no caso o juiz, acompanhe de forma lógica e sequencial o raciocínio
do profissional do Direito. A coerência narrativa evita, assim, a retomada de passagens já
capítulo 1 • 23
narradas e orienta de forma cronológica a exposição dos fatos sem registrá-la fora de ordem,
proporcionando ao juiz melhor entendimento sobre a situação fática e, consequentemente,
maior justeza em seu julgamento.
O quê – fato/ação
Quem – partes envolvidas: autor e réu
Elementos Como – modo como o fato/ação é desenvolvida
Onde – momento em que o fato ocorreu
Narrativa Por quê – motivo dos acontecimentos
Quadro esquemático 1
24 • capítulo 1
Todos esses elementos descritos fazem parte da estratégia de persuasão por-
que produzem no auditório os efeitos de realidade, de “verdade”, ou melhor, de
verossimilhança e, portanto, de maior confiabilidade nos fatos narrados.
[...] o jornalista Clóvis V. disse, em 13/1/2010, em seu blog pessoal na Internet: “ele
não tem condições de gerir o clube porque é um burro, de capacidade intelectual infe-
rior à de uma barata" e, por isso, levou o clube à falência e está com os bolsos cheios
de dinheiro do clube e dos torcedores".
capítulo 1 • 25
O discurso direto caracteriza-se, assim, pela presença de verbos dicendi,
aqueles que servem para introduzir a fala da outra pessoa (dizer, afirmar, res-
ponder, declarar, definir), de verbos da área semântica de perguntar (indagar,
adquirir, questionar, interrogar) e de verbos sentiendi, os que expressam es-
tado de espírito, reação psicológica da pessoa que fala, emoções (gemer, sus-
pirar, lamentar (-se), queixar-se, explodir). Esses verbos podem vir implícitos
ou explícitos.
ATENÇÃO
O discurso direto – que é uma citação direta – se faz muito presente, em busca da argumen-
tação por autoridade para alcançar convencimento ou persuasão. Para fundamentar suas
razões, no campo jurídico, citam-se doutrinadores e jurisprudências, muitas vezes, ocupando
tais estratégias a maior parte do corpo do texto produzido.
26 • capítulo 1
discurso citado é apropriado pelo enunciador do discurso citante e é apresen-
tado sob a forma de uma oração subordinada substantiva objetiva, introduzida
por um verbo de dizer.
Sendo assim, o discurso indireto caracteriza-se, geralmente, pela presença
de verbos dicendi e sentiendi, pela conjunção integrante que ou se e pela alte-
ração de tempos verbais, advérbios e pronomes.
capítulo 1 • 27
DISCURSO DIRETO DISCURSO INDIRETO
Ontem No dia anterior
Hoje e agora Naquele dia e naquele momento
Amanhã No dia seguinte
Aqui, aí, cá Ali e lá
Este, esta e isto Aquele, aquela, aquilo
RESUMO
Discurso Direto: Nesse tipo de discurso os sujeitos/personagens literários ganham voz. É
o que ocorre normalmente em diálogos. Isso permite que traços da fala e da personalidade
das partes/personagens literários sejam destacados e expostos no texto. O discurso dire-
to reproduz fielmente as falas das partes. Verbos como dizer, falar, perguntar, entre outros,
servem para que as falas das partes sejam introduzidas e elas ganhem vida, como em uma
peça teatral.
Travessões, dois pontos, aspas e exclamações são muito comuns durante a reprodução
das falas. Podem ser mantidas interjeições, frases de tipo exclamativo, vocativos, uso afetivo
dos determinantes, vocabulário e frases próprias da oralidade.
Discurso Indireto: O narrador conta a história e reproduz fala, e reações das partes/
personagens por meio da paráfrase, usando as formas verbais, na terceira pessoa. Nesse caso,
o narrador se utiliza de palavras próprias para reproduzir aquilo que foi dito pela parte/ persona-
gem literário. Esse tipo de discurso indireto que deve ser priorizado na narrativa jurídica.
COMENTÁRIO
O discurso indireto livre é uma fusão dos discursos direto e indireto, porque apresenta a fala
ou o pensamento da personagem discretamente inseridos no discurso do narrador, todavia
não se faz uso do discurso indireto livre na narrativa jurídica, porque esse tipo de discurso é
próprio da Literatura.
28 • capítulo 1
No discurso jurídico, as vozes não se confundem, porque são individualizadas, e cada
um será responsável pela informação trazida aos autos e responderá por ela juridicamente.
capítulo 1 • 29
Ele acrescenta (2006, p.213) que o falante pensa nessa ação e pode considerá-la
de cinco formas, a saber: como algo feito, verossímil (modo indicativo - canto,
cantei, cantava e cantarei); como um fato incerto (modo subjuntivo - talvez eu
cante, se cantasse); como um fato dependente de uma condição (modo con-
dicional – cantaria); como uma ação desejada pelo agente (modo optativo – “E
viva eu cá na terra sempre triste”); e, por último, como um ato que se exige do
agente (modo imperativo - cantai).
Os tempos verbais são (BECHARA, 2006, p.195) estes: presente – referência
a fatos que passam ou estendem ao momento em que se fala (eu canto); pre-
térito- referência a fatos anteriores ao momento em que se fala e subdividido
em imperfeito (cantava), perfeito (cantei) e mais-que-perfeito (cantara); e futu-
ro – referência a fatos ainda não realizados e subdividido em futuro do presente
(cantarei) e futuro do pretérito (cantaria).
Bechara (2006, p.212) apresenta a seguinte figura 1.1 para ilustrar o tempo,
também chamado por ele de nível temporal:
Presente
Passado Futuro
Figura 1.1 –
30 • capítulo 1
afirmações sobre o pretérito são apresentadas na figura 1.2 – Momento de refe-
rência pretérito – MR pretérito – (FIORIN, 2010, p. 154):
MR pretérito
concomitância não-concomitância
Figura 1.2 –
Gustavo ajuizou, em face de seu vizinho Leonardo, ação com pedido de indenização
por dano material suportado em razão de ter sido atacado pelo cão pastor alemão de
propriedade do vizinho. Segundo relato do autor, o animal, que estava desamarrado
dentro do quintal de Leonardo, o atacara, provocando-lhe corte profundo na face. Em
consequência do ocorrido, Gustavo alegou ter gasto R$ 3 mil em atendimento hos-
pitalar e R$ 2 mil em medicamentos. Os gastos hospitalares foram comprovados por
meio de notas fiscais emitidas pelo hospital em que Gustavo fora atendido, entretanto
este não apresentou os comprovantes fiscais relativos aos gastos com medica-
mentos, alegando ter-se esquecido de pegá-los na farmácia. Leonardo, devidamente
citado, apresentou contestação, alegando que o ataque ocorrera por provocação de
Gustavo, que jogava pedras no cachorro. Alegou, ainda, que, ante a falta de compro-
vantes, não poderia ser computado na indenização o valor gasto com medicamentos.
capítulo 1 • 31
Momento da
Enunciação
(ME)
Intervalo Anterior Contemporâneo Posterior Anterior Contemporâneo Posterior Anterior Contemporâneo Posterior
de tempo
(IT)
Figura 1.3 –
Azeredo (2008, p. 358) apresenta uma descrição dos tempos verbais simples
no modo indicativo. O presente representa um fato não concluído situado em
um intervalo de tempo do qual faz parte o momento da enunciação (ME). O
pretérito perfeito representa um fato concluído e se situa em um intervalo de
tempo anterior ao ponto de referência presente, compondo uma ação situada
em uma época anterior ao ME.
O pretérito imperfeito indica um fato não concluído que se situa em um in-
tervalo de tempo simultâneo a um ponto de referência passado ou ainda ante-
rior a um ponto de referência futuro. Esse tempo verbal é muito usado no texto
descritivo. O pretérito mais-que-perfeito apresenta um fato concluído que se
situa em um intervalo de tempo anterior a um ponto de referência passado.
O futuro do presente representa um fato não concluído em um intervalo de
tempo posterior ao presente ou simultâneo ao momento da enunciação. E, por
último, o futuro do pretérito representa um fato não concluído em um inter-
valo de tempo posterior ao passado, simultâneo ao passado ou relativamente
hipotético em um intervalo simultâneo. Dessa forma, descrevem-se questões
essenciais para a compreensão semântica dos tempos verbais.
Desse modo, o tempo verbal pretérito imperfeito é um assinalador de fatos
contínuos ou ações frequentes, quando há repetição, pode apresentar a causa
e a consequência no texto. Usa-se esse tempo quando se quer expressar que a
ação está em curso ou que as ações foram interrompidas.
O pretérito perfeito exprime um fato concluso e o mais-que-perfeito é usa-
do quando o narrador retoma um acontecimento ainda mais anterior aos fatos
que narra, pois trata-se de um passado remoto.
O tempo verbal que perdura em quase toda a narrativa jurídica é o pretérito
perfeito porque apresenta os fatos conclusos, acabados e refere-se a um passa-
do próximo.
32 • capítulo 1
COMENTÁRIO
Deve-se evitar o pretérito imperfeito não só por indicar um fato intermitente, contínuo, mas
também por ser a forma verbal muito usada na ficção, e Direito trabalha com o real. Contudo,
em determinadas situações, poderá ser utilizado como recurso estilístico para prolongar a
conduta; enaltecer ou denegrir, atenuar ou agravar a conduta da parte processual desejada,
como: o autor espancava a criança ou batia na criança; a mãe sempre telefonava ao filho
quando viajava a trabalho; reiterando a conduta com intencionalidade positiva ou negativa,
trabalhando-os com a semântica verbal.
Evita-se o pretérito mais-que-perfeito, por se tratar de um tempo passado muito remoto,
distante. Afinal, o Direito é lento, mas um processo não leva mais de cinquenta anos para
ser julgado. Logo, esse tempo verbal deve ser usado em circunstâncias especiais que trazem
fatos ao caso concreto de tempo bem distante, como ocorre na regularização de documentos
em casos de doação feita em um passado muito distante, direito a usucapir ou regularização
de documentos em testamento, dentre outros.
ATENÇÃO
Flexão Verbal: Pessoa, Número, Tempo e Modo
O verbo pode se flexionar de quatro maneiras, a saber: pessoa, número, tempo e
modo. É a classe mais rica em variações de forma ou acidentes gramaticais. Por meio de um
morfema chamado desinência modo temporal, são marcados o tempo e o modo de um
verbo. Observe mais detalhadamente esse tema:
O modo verbal caracteriza as várias maneiras de como se pode utilizar o verbo, depen-
dendo da significação que se pretende dar a ele. Rigorosamente, são três os modos verbais:
indicativo, subjuntivo e imperativo.
A maioria dos gramáticos denomina particípio, o gerúndio e o Infinitivo como formas
nominais do verbo, e não como modos verbais, porque existem algumas particularidades em
cada uma dessas formas que podem impedir de serem consideradas modos verbais. Observe:
Infinitivo: tem características de um substantivo, podendo assumir a função de sujeito
ou de complemento de um outro verbo, e até ser precedido por um artigo.
Gerúndio: assemelha-se mais a um advérbio, já que exprime condições de tempo, modo,
condição e lugar.
Particípio: possui valor e forma de adjetivo, pois além de modificar o substantivo, apre-
senta ainda concordância em gênero e número.
capítulo 1 • 33
Volta-se, agora, para os modos verbais, propriamente ditos:
Modo Indicativo: o verbo expressa uma ação que, provavelmente, acontecerá, uma cer-
teza, trabalhando com reais possibilidades de concretização da ação verbal ou com a certeza
comprovada da realização daquela ação.
Modo Subjuntivo: ao contrário do indicativo, é o modo que expressa a dúvida, a incerte-
za, trabalhando com remotas possibilidades de concretização da ação verbal.
Modo Imperativo: apresenta-se na forma afirmativa e na forma negativa, dirigindo-se
diretamente a alguém, em segunda pessoa, expressando o que se quer que esta (s) pessoa
(s) faça (m). Pode indicar uma ordem, um pedido, um conselho, dependendo da entonação e
do contexto em que é aplicado.
Já o tempo verbal informa, de uma maneira geral, se o verbo expressa algo que já acon-
teceu, que acontece no momento da fala ou que ainda irá acontecer. São essencialmente
três tempos: presente, passado ou pretérito e futuro.
Os tempos verbais são estes:
Presente (amo) – expressa algo que acontece no momento da fala.
Pretérito Perfeito (amei) – expressa uma ação pontual, ocorrida em um momento an-
terior à fala.
Pretérito Imperfeito (amava) – expressa uma ação contínua, ocorrida em um intervalo
de tempo anterior à fala.
Pretérito mais-que-perfeito (amara) – contrasta um acontecimento no passado ocor-
rido anteriormente a outro fato também anterior ao momento da fala.
Futuro do presente (amarei) – expressa algo que possivelmente acontecerá em um
momento posterior ao da fala.
Futuro do pretérito (amaria) – expressa uma ação que era esperada no passado, porém
que não aconteceu.
Na narrativa jurídica prioriza-se também o estudo do verbo para melhor compreensão dos
fatos narrados e descritos e, consequentemente, do caso concreto.
RESUMO
No texto narrativo, a atividade verbal é constante e os fatos se transformam. As partes que
desenvolvem as suas ações no tempo e no espaço caracterizam os elementos principais de
um texto narrativo jurídico. Ocorre uma progressão temporal, o texto se desenvolve no tempo,
um fato se sucede a outro fato, como sequências temporais, as quais podem ser realizadas
por verbos nos tempos pretéritos do modo indicativo.
34 • capítulo 1
O tempo verbal pretérito imperfeito é um assinalador de fatos contínuos ou ações fre-
quentes, quando há repetição, pode apresentar a causa e a consequência no texto. Usa-se
este tempo quando se quer expressar que a ação está em curso ou que as ações foram
interrompidas ou, então, como recurso estilístico-semântico.
O pretérito perfeito exprime um fato concluso e o mais-que-perfeito é usado quando o
narrador retoma um acontecimento ainda mais anterior aos fatos que narra.
Quadro esquemático 2
capítulo 1 • 35
Observe o exemplo abaixo:
O filme Tempos Modernos foi um grande sucesso, mas, à época de seu
lançamento, deu prejuízo. Foi proibido na Itália e na Alemanha, onde Hitler e
Mussolini o consideravam “socialista”.
Tem-se a seguinte paráfrase: Tempos Modernos obteve grande aceitação,
quando de seu lançamento, entretanto não obteve lucro. Foi vetado nos países
europeus dominados pelo fascismo e nazismo, cujos líderes o consideravam
portador de ideias comunistas.
Em Direito, os representantes legais das partes processuais, por exemplo, ao
elaborarem a narrativa jurídica, sempre fazem paráfrase daquilo que foi narrado
por elas, em um discurso indireto, respeitando-se a modalidade culta da língua.
Logo, a narrativa jurídica é uma paráfrase da representação da realidade
apresentada pela parte, por esse motivo pode-se aproximar o discurso jurídico
do discurso científico: primeiro, por lidar com fatos reais e, segundo, pela pos-
sibilidade de ser parafraseado. Encontram-se na narrativa jurídica enunciados
sinônimos ou semanticamente equivalentes aos dos textos apresentados pela
parte ou ao que ela contou, que passaram não só pela interpretação da parte,
mas também pela do advogado, portanto os fatos não são mais puros.
Dessa forma, percebe-se que a narrativa jurídica é profundamente influen-
ciada pelo texto do outro; não é um texto puro, mas sim um intertexto. Há na
narrativa jurídica uma paráfrase interpretativa; uma narração cuja forma de
apresentação (fatos selecionados e sua sintaxe) já antecipa a exposição que se
fará mais adiante no elemento “Do Direito” (argumentação).
Entretanto, o advogado da parte tem sua criatividade tolhida: é impossível
– e ilegal – que os fatos sejam expostos de forma diferente daquela apresentada
pela parte, sob pena de se alterarem os próprios fatos, o que seria uma litigân-
cia de má-fé, além de envolver questões ético-profissionais; embora, em uma
outra situação, se aceite o entendimento de que todo discurso é construído e
que não existe fato puro, mas sim várias versões sobre ele.
A paráfrase pode ser entendida, assim, como um discurso intertextual em
repouso em que alguém abre mão de sua voz para deixar a voz do outro falar.
Não há conflito de vozes, pois não há oposição; funcionando como se fosse um
espelho que reflete o discurso do outro. Partindo desse conceito, pode-se afir-
mar que, na narrativa jurídica, por meio da paráfrase, há uma voz monofônica
aparente (voz do representante legal).
36 • capítulo 1
1.2.5 Polifonia: Discurso Jurídico
capítulo 1 • 37
ATENÇÃO
O discurso jurídico é dotado de polifonia. Ou seja, além da voz narradora, outros elementos
estão presentes como vozes. É o caso das partes, testemunhas, autoridade. Para introduzi-los
no discurso, pode-se usar a referência indireta, por meio de citações e paráfrases. As pará-
frases e citações constituem um recurso frequente nos textos jurídicos. Para introduzi-las,
utilizam-se os verbos dicendi: dizer, afirmar, declarar. Dessa forma, garante-se neutralidade
ao discurso, deixando a carga interpretativa para a voz introduzida.
38 • capítulo 1
CURIOSIDADE
Na intertextualidade, faz-se necessária a presença de um intertexto, cuja fonte pode ou não
vir mencionada-o que se chama de intertextualidade explícita ou intertextualidade implícita,
respectivamente), polifonia, tal como nos diz Ducrot (1984), exige, no texto, apenas repre-
sentação e encenação teatral perspectivas ou pontos de vista de enunciados diferentes -
"daí a metáfora do 'coro de vozes', ligada, de certa forma, ao sentido primeiro que o termo tem
na música, de onde se originou (2004, p.154).
Do ponto de vista de construção de sentido, o conceito de polifonia abrange o de in-
tertextualidade, sendo todo o caso de intertextualidade um caso de polifonia, não sendo
verdadeiro o contrário.
MULTIMÍDIA
1. Tempo de Matar, baseado em livro de John Grisham. Direção de Joel Schumacher.
Atores: Sandra Bullok, Samuel L. Jackson, Matthew Mc Conaughey e Kevin Spacey. Estados
Unidos 1996. Disponível em vídeo pela Warner Home Vídeo.
2. Filadélfia, dirigido por Jonathan Demme. Atores: Tom Hanks, Denzel Washington,
Jason Robards, Mary Steenburgen, Antonio Banderas. Estados Unido, 1993. Disponível em
vídeo pela Abril Vídeo.
ATIVIDADES
01. Leia os fatos que irão compor a situação fática de cada um dos três casos concretos
abaixo, postos intencionalmente na ordem alinear, e reordene-os na ordem rigorosamente
linear ou cronológica.
Caso Concreto 1 – XIV Exame Da Ordem /2014
Síntese da entrevista realizada com Heitor Samuel Santos, brasileiro, solteiro, desempre-
gado, filho de Isaura Santos, portador da identidade 559, CPF 202, residente e domiciliado
na Rua Sete de Setembro, casa 18 – Manaus – Amazonas – CEP 999:
( ) teve a CTPS assinada como assistente de estoque,
( ) mas, em parte do horário de trabalho, também realizava as tarefas de um analista de
compras, pois seu chefe determinava que ele fizesse pesquisa de preços e comparasse a sua
evolução ao longo do tempo, atividades estranhas à sua função de assistente de estoque;
capítulo 1 • 39
( ) trabalhava de 2ª a 6ª feira das 8h às 16h45min, com intervalo de 45 minutos para refei-
ção, e aos sábados das 8h às 12h, sem intervalo;
( ) é portador de deficiência e soube que, após a sua dispensa, não houve contratação de um
substituto em condição semelhante;
( ) a empresa possui 220 empregados;
( ) seu e-mail pessoal era monitorado pela empresa porque, na admissão, estava ocorrendo
um problema na plataforma institucional, daí porque a ex-empregadora acordou com os em-
pregados que o conteúdo de trabalho seria enviado ao e-mail particular de cada um, desde
que pudesse fazer o monitoramento;
( ) trabalhou na fábrica de componentes eletrônicos Nimbus S.A. situada na Rua Leonardo
Malcher, 7.070 – Manaus – Amazonas – CEP 210), de 10.10.2012 a 02.07.2014,
( ) foi dispensado em 2/7/2014, sem justa causa e recebeu, corretamente, sua indenização;
( ) que, em razão disso, o empregador teve acesso a diversos escritos e fotos particulares
do depoente, inclusive conteúdo que ele não desejava expor a terceiros;
( ) durante o contrato sofreu descontos a título de contribuição sindical e confederativa,
mesmo não sendo sindicalizado;
40 • capítulo 1
( ) em 30.11.2011 sofreu acidente do trabalho na referida máquina, quando sua mão ficou
presa no interior do equipamento, ficando afastado pelo INSS e recebendo auxílio doença
acidentário até 20.05.2012, quando retornou ao serviço;
( ) a CIPA da empresa, convocada quando da ocorrência do acidente, verificou que a má-
quina havia sido alterada pela empresa, que retirou um dos componentes de segurança para
que ela trabalhasse com maior rapidez e, assim, aumentasse a produtividade.
02. A partir da coletânea de textos, a seguir, extraídos de matérias jornalísticas, elabore uma
narrativa jurídica, obedecendo à metodologia trabalhada neste livro. Antes, de elaborar a sua
narrativa jurídica, identifique todos os elementos da narrativa jurídica, a saber:
• QUEM QUER?
• QUER O QUÊ?
• DE QUEM?
• POR QUÊ?
• COMO?
capítulo 1 • 41
• ONDE?
• QUANDO?
ATENÇÃO
1. Não inicie a narrativa jurídica pela data ou outro elemento similar (lugar, horas), pois o
texto deve ser iniciado sempre pelo seu protagonista e na narrativa jurídica o protagonista é
o autor. Logo, inicie a narrativa jurídica sempre pelo autor da Petição Inicial. Não há neces-
sidade de qualificá-lo, pois as descrições do autor já foram feitas anteriormente, em outro
momento (Qualificação das Partes).
2. Não faça uma narrativa jurídica confusa, ora usando o nome civil das partes, ora usando
as nomenclaturas autor e réu. Esse procedimento afeta a clareza textual.
3. Na narrativa jurídica, a repetição da nomenclatura autor e réu faz-se necessária à clareza
do texto.
4. Se usar Autor com a primeira letra maiúscula ou todo ele em caixa alta, ou até negrita-
do, adotar o mesmo critério para a parte contrária. Não estabelecer diferenças de estilo de
escrita entre as partes para evitar interpretações distorcidas.
5. Não se posicione na narrativa jurídica, com a intenção de defender uma tese, isto é,
não se justifica, não se fundamenta neste primeiro momento; narram-se apenas os fatos
relevantes (fatos simples- auxiliam na composição da lide) e os relevantes juridicamente
(fato jurídico- deste advêm consequências jurídicas/direito subjetivo lesionado) necessários
à compreensão da lide.
6. Não fazer resumo dos fatos, mas sim a narração dos fatos. Logo narrar e resumir são
institutos bem distintos. Para isso, a cada parágrafo narrar e descrever apenas um (1) fato,
sempre que possível acompanhado de uma prova ou de um indício, e as circunstâncias em
que o fato ocorreu.
7. Não se usa na narrativa jurídica, elaborada pelos representantes legais das partes, no-
menclatura jurídica nem tampouco dispositivos legais. Nesse elemento trabalha-se apenas
com NARRAÇÃO e DESCRIÇÃO DOS FATOS, PROVAS e CIRCUNSTÂNCIAS em que o
fato aconteceu.
8. Não se faz uso dos conectores subordinativos, pois eles fazem parte da argumentação
e não da narração. Deve-se optar sempre pelos conectores coordenativos.
9. Evite a expressão “Ocorre que” (verbo + a conjunção integrante “que”) em sua narrativa
jurídica, que vem sendo usada frequentemente nos textos jurídicos, mas sem preservar o
42 • capítulo 1
sentido de sua etimologia. Pode-se vislumbrar, nos textos jurídicos, que há um processo de
polissemia (múltiplos sentidos) em relação a esse fenômeno.
10. Cuidado! O advérbio “onde” indica o lugar (estático) em que se está ou em que se passa
algum fato. Geralmente, refere-se a verbos que exprimem permanência. O advérbio “onde” não
deve ser usado em situações em que a ideia de lugar, mesmo que metaforicamente, não esteja
presente. Em termos práticos, “onde” pode ser substituído por: em que lugar, no qual, em que.
11. Prefira a voz ativa à voz passiva. Exemplo: “A Autora e a avó materna cuidaram da criança,
durante cinco anos, e o menor nunca recebeu a visita ou auxílio financeiro do Réu, mesmo tendo
este reconhecido a paternidade”. Em vez de: “Durante cinco anos, a criança foi cuidada por sua
mãe e sua avó materna, nunca tendo o menor recebido visita ou auxílio financeiro do genitor,
mesmo tendo este reconhecido a paternidade”. A voz ativa possui força mais persuasiva.
12. Priorize a ordem direta (verbo + sujeito + o restante) em nome da clareza: O autor
comprou um aparelho de ar condicionado fabricado pela “G” S. A., empresa sediada no Rio
de Janeiro, em função da chegada do verão, em 15 de janeiro de 2015.
13. Lembrar-se sempre de que da narrativa lógica dos fatos que advém a conclusão, isto é,
dos fatos narrados decorre logicamente o pedido.
14. Depois de selecionar os fatos, narre-os em ordem cronológica ou linear.
Caso Concreto 1
Doutor, foi uma tragédia! Eu sei que sou vaidosa – e não é porque eu sou gaúcha não,
porque as cariocas são muito mais, mas na flor dos meus 23 anos é que eu não ia imaginar
que eu ia ficar careca, doutor!
O senhor sabe que eu sou empregada doméstica, lá no Leblon, no Rio de Janeiro, mas
eu moro em Caxias, mesmo. Eu sou doméstica, mas não trabalho há dois anos! Desde que fui
dispensada, em 30 de abril de 2011, porque meus ex-patrões passaram a diminuir despesas.
Nem como faxineira me quiseram por causa do valor da passagem. Quando o meu cabelo co-
meçou a cair, o pessoal achou que eu tava com AIDS e tudo, foi um horror! Meu cabelo caía,
parecia de algodão! Não podia sair na rua, todo mundo zoava! Fora que não pude trabalhar,
o pessoal achava que tava eu doente, já pensou? Tudo porque eu queria arrasar na festa de
aniversário da minha irmã; ela é de aquário e faz aniversário dia 19 de fevereiro, a Claudete.
Aí, eu vou lá à farmácia, no dia 19 de fevereiro e 2009, em busca de uma tinta que me
deixe loura como a Madonna - eu sou fã dela, sabe? Aí eu chego em casa, ansiosa e sonhan-
do com o meu novo visual, e logo aplico a tinta, claro! O funcionário da Perfumaria Márcia,
sabe, aquela que fica ali, perto de onde eu trabalhava, na Ataulfo de Paiva, nº 30, não falou
nada de teste do toque, senão eu tinha feito, né? Eu lá quero ficar careca, eu hein?
capítulo 1 • 43
Quando eu fui lá reclamar, ele chega e diz: “Mulher é um bicho vaidoso mermo! Não lê o
que tá escrito no produto, vai passano logo, querendo ficar igual aos artistas de novela. Dá
nisso aí.” Anotei até o nome dele: João Amaral – foi ele que me vendeu a tinta. Fiquei furiosa
e a minha patroa, na época, falou para eu falar com o gerente – eu fui. O nome dele é Leo-
nardo Ferreira. Ele falou:
–Veja bem, 24 horas antes da aplicação, deve ser feito um teste de sensibilidade, usando
uma pequena quantidade da tintura, para se comprovar uma eventual reação alérgica. É o
chamado "teste do toque”.
Como é que eu ia saber? Custava me dizer isso? Depois é que o marido da minha patroa,
que é advogado, me disse: Odete, em 2009, a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro deter-
minou que a Perfumaria Márcia suspendesse a fabricação, comercialização, venda e uso de
dois produtos cosméticos: a água oxigenada cremosa Márcia 30 volumes e o lote 30.410
do produto descolorante em pó com proteínas da Seda, "em virtude da fabricação estar em
desacordo com as respectivas fórmulas-padrão registradas na Anvisa". O senhor entendeu?
Eu guardei comigo até hoje a nota fiscal da compra feita e a caixa do produto de tinta
comprado. Guardei também umas fotos que não mostro para ninguém de tão horrível que es-
tou, careca, careca. Não gosto nem de me lembrar. E não é que quando fui ver era o mesmo
lote do produto, tudo igualzinho ao que o meu patrão falou.
Olha, só sei, moço, que só agora, 30 de abril de 2013, uma amiga, depois de dois anos
de muito sofrimento, vivendo dependendo da ajuda dos outros, é que eu comecei a trabalhar
de diarista, lá no Leblon mesmo, mas, antes, ninguém me queria, não. Agora o meu cabelo já
cresceu um tiquinho e eu não tenho tanta vergonha de sair na rua. Mas eu sofri muito, sabe?
Caso Concreto 2
Mãe diz que filha de 6 anos sofreu racismo em escola do Rio - O desabafo de uma mãe
que acredita que sua filha Maria de 6 anos foi vítima de racismo, em 5 de outubro de 2015,
e - na Escola Parque, Na Gávea- RJ, , vem chamando a atenção dos internautas e já foi com-
partilhado mais de 800 vezes no Facebook. Neste domingo, a carioca Andressa Cabral, de
35 anos, contou na rede social que uma colega de turma de sua filha- Paulo Dias, de 6 anos,
“disse-lhe que seu cabelo ‘é de pobre’, claramente se referindo ao cabelo afro como algo me-
nor”. A mãe pede que o colégio tome uma atitude para que cenas como essa não se repitam.
“Ela relata que chorou muito, tentou falar com a professora, que não teria lhe dado muita
atenção e visivelmente não tratou o assunto com a relevância devida. Já as amigas a impe-
diram de contar a sua versão, interrompendo-a, alegando ser mentira”, escreveu Andressa,
contando, ainda, que, depois disso, a menina passou a demonstrar muita insegurança ao
falar sobre o incidente: “Ela evita falar do assunto de uma maneira linear, prefere abordar
44 • capítulo 1
a questão de forma embaralhada, embaralho este que parece refletir o seu quebra-cabe-
ças emocional”.
No dia seguinte ao ocorrido, a mãe pediu, pela agenda escolar, uma reunião com a coor-
denadora da instituição, a Escola Parque, na Gávea. A professora da garotinha já tinha sido
pessoalmente avisada do ocorrido pelo pai. Segundo Andressa, o colégio só se manifestou
depois da grande repercussão que o caso ganhou na web, cinco dias após o incidente, na
tarde desta segunda-feira. Por telefone, uma das coordenadoras da instituição antecipou a
reunião agendada de sexta para terça-feira. A Escola Parque disse, através de sua asses-
soria de imprensa, que “não se pronuncia publicamente quando se trata de alunos e casos
internos da escola, já que envolve todo um trabalho psicopedagógico”.
— A coordenação informou que só tomou ciência da magnitude do caso agora e que o
pai só tinha mencionado o problema “por alto” com a professora. Ora, uma questão dessa
tinha que ter sido tratada pela escola com a devida atenção desde o início! Minha filha ficou
claramente muito abalada com o que aconteceu — disse Andressa a O GLOBO por telefone.
Andressa, que é chef de cozinha, acrescentou que as mães das crianças que ofenderam
sua filha também estão cientes do ocorrido e dispostas a cobrar da escola uma postura
mais ativa.
— As mães estão solidárias e interessadas em educar as crianças. Mas também se sen-
tiram pouco assistidas pelo colégio. Algumas me contaram que a escola informou que já está
trabalhando o assunto da inclusão em sala, mas que prefere não chamar a atenção para um
caso específico — contou a chef. — Mas como não ser específico se a minha filha é a única
negra da série dela, que tem mais de 40 alunos?
Considerando a postura da instituição negligente, Andressa sugere que o ensino de
história e cultura afro-brasileira faça parte da grade curricular das escolas particulares, assim
como acontece na rede pública, e que o tema seja trabalhado desde a primeira infância.
— Se tem aula de robótica e de ecologia, também deveria ter uma disciplina sobre a
constituição do povo brasileiro e a questão do negro no país. Há inúmeros livros para crianças
que abordam a questão racial. Mas sinto que falta coragem para debater assuntos duros —
afirmou Andressa.
Fonte:<http://oglobo.globo.com/sociedade/mae-diz-que-filha-de-6-anos-sofreu-
racismo-em-escola-do-rio-17692097#ixzz3nkVpSerS>. Inserir data de acesso
Caso Concreto 3
José Ferreira foi atropelado na Rua Marquês de São Vicente, uma das principais da
Gávea, na madrugada da sexta-feira. Ele chegou a ser levado para o Hospital Miguel Couto,
também na Zona Sul, mas não resistiu. José trabalhava como operário na obra da linha 4 do
capítulo 1 • 45
Metrô e voltava do trabalho no momento em que foi atingido pelo veículo. O caso foi regis-
trado na 14ª DP (Leblon).
Em discordância com o indiciamento da Polícia Civil, o MP-RJ (Ministério Público do
Rio de Janeiro) decidiu oferecer denúncia por homicídio culposo (quando não há intenção
de matar) contra o empresário Ivo Nascimento de Campos Pitanguy, 59, filho do cirurgião
plástico Ivo Pitanguy, que atropelou e matou o operário José Fernando Ferreira da Silva, 44,
na última quinta-feira (20/8/2015), na Gávea, zona sul da capital fluminense. A denúncia foi
enviada à Justiça na tarde desta terça (25/8/2015).
Nesta segunda (24/9/2015), Pitanguy foi indiciado por homicídio doloso (intencional)
no inquérito realizado pela 14ª DP (Leblon). A delegada Monique Vidal considerou que, ao
dirigir embriagado, como atestam as testemunhas do acidente e os policiais que atenderam
a ocorrência, o empresário assumiu o risco de matar alguém.
Pitanguy foi preso em flagrante logo após o acidente. Como ele também se feriu, es-
teve internado sob custódia no Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea. No domingo
(23/8/2015), ele foi transferido para o complexo penitenciário de Gericinó, na zona oeste
do Rio, onde permanece até o momento. Na madrugada do dia anterior, seu advogado, Ra-
fael de Piro, apresentou pedido de liberdade provisória ao plantão judiciário, mas a medida
foi negada.
De acordo com o MP-RJ, em nota oficial, a Promotoria de Justiça pediu à 40ª Vara Cri-
minal da Capital detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para dirigir ao empresário, pelo fato de ele ter dirigido sob
influência de álcool.
Na denúncia, o Ministério Público requereu ainda o agravamento da pena pelo fato de "o
homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor ocorrer em faixa de pedestres
ou na calçada e quando o motorista deixa de prestar socorro à vítima".
Procurado pela reportagem na noite desta terça, o advogado do empresário não atendeu
ao telefone até o momento.
Multas por embriaguez
Pitanguy, que acumulava 70 multas nos últimos cinco anos, 14 delas por dirigir embria-
gado, seguia pela Rua Marquês de São Vicente, na Gávea, zona sul do Rio, quando perdeu o
controle de seu veículo, que subiu na calçada e atingiu o operário. José Fernando trabalhava
nas obras de construção da Linha 4 do Metrô e havia acabado de sair do trabalho quando foi
atropelado. Ele chegou a ser socorrido, mas morreu no Hospital Miguel Couto.
46 • capítulo 1
Ivo Pitanguy sofreu traumatismo craniano e um corte na cabeça, mas já se recuperou.
Segundo o Detran (Departamento de Trânsito do Estado do Rio), nos últimos 12 meses
Pitanguy somou 27 pontos em infrações de trânsito --em teoria, quem atinge 20 pontos tem
a carteira de habilitação provisoriamente suspensa. O órgão abriu processo para suspender
a carteira do empresário.
Nesta segunda (24/8/2015), o Governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão
(PMDB), afirmou ter cobrado o Detran para saber por que a carteira de Pitanguy ainda não
havia sido suspensa.
Fonte:<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/justica-concede-
liberdade-provisoria-empresario-que-atropelou-operario.html. Acesso em: 7/10/2015.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, José Carlos. Gramática Houaiss da língua portuguesa. 2.ed. São Paulo:
Publifolha,2008.
BAKHTIN, M.. Problemas da Poética de Dostoiévski. 3. ed. Traduzido por Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002.
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966.
BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
COLASANTI. Amores Rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
CUNHA, Celso e Lindley Cintra, L. F. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2008. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. São Paulo: Pontes, 1987. DWORKIN,
Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São
Paulo: Ática, 2010.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 18. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2012.
RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Manual de Redação Forense. Curso de Linguagem e Construção de
Texto no Direito. 2. ed. Campinas: LZN, 2002.
PALADINO, Valquiria da Cunha (ORG.) et al. Argumentação Jurídica. Teoria e Prática. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
capítulo 1 • 47
48 • capítulo 1
2
Narrativa dos
Fatos e Construção
de Versões
O capítulo 2 procura fazer uma abordagem teórica da narrativa jurídica, afir-
mando que o fato é um só, mas cada narrador ou representante legal da parte
mostrará a sua versão sobre ele de acordo com o seu intento defensivo ou acu-
satório, isto é, cada um deles irá narrar o fato, dando-lhe uma versão, do modo
que lhe interessar.
Assim como a seleção dos fatos e, consequentemente, as versões dadas so-
bre eles, que constam da narrativa jurídica, devem atender às intenções argu-
mentativas futuras dos representantes legais das partes.
Demonstrar, portanto, neste capítulo 2, que a noção de fato no direito im-
plica sempre uma normatização jurídica, de forma tal, que não se poderia falar
em fato puro em contraposição a fato jurídico. Neste sentido é que, superando
a noção de fato como correspondência com a realidade, esta terá, em direito,
um caráter sempre persuasivo, desde já normatizado e valorado pelos interes-
ses de quem o descreve.
Considerar, assim, o fato como uma construção humana numa atividade
interpretativa que atenda aos interesses da parte sem perder de vista o raciocí-
nio lógico e a aparência da “verdade”, isto é, a verossimilhança no ato de narrar
a situação fática.
OBJETIVOS
• Compreender como os recursos linguísticos auxiliam na apresentação dos fatos e cons-
troem diferentes versões.
• Compreender a função da descrição no ato de narrar.
• Identificar a função do uso de modalizadores na narrativa jurídica.
• Selecionar fatos/versões e vocábulos que imprimam ao texto a função persuasiva.
• Compreender a importância da narrativa dos fatos, das provas, das versões lógicas e veros-
símeis sobre os fatos para a argumentação.
50 • capítulo 2
2.1 Construção: Fatos e Versões
Analisa-se aqui a noção de fato, segundo a abordagem do pragmatismo filosófi-
co, porque, nessa perspectiva, é visto como uma narração (construção humana),
que reflete os interesses das partes (advogado), afastando-se da teoria da con-
cepção da objetividade na interpretação do fato e da teoria da “verdade” como
correspondência, e a prova é examinada como descrição, voltada à persuasão.
O fato (suporte fático concreto) será trabalhado, portanto, como versões tra-
zidas pelas partes, incompatível com a tese de que existe uma única versão “ver-
dadeira” passível de ser descoberta. Tenta-se explicar, de modo simples e lógi-
co, como ocorre a passagem do fato, do mundo fático para o mundo jurídico.
Leia a crônica de Luís Fernando Veríssimo para melhor compreensão do
que foi ensinado até o momento:
Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho
passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante
ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora
assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu
dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da
donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o
mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:
– Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o
mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:
– Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela
saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o ma-
taram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revista-
ram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.
– Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfaleci-
da – gritaram os aldeões.
Matem-no!
– Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo
seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou para a donzela,
diante do escândalo de todos.
capítulo 2 • 51
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela
se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e
pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor.
Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter pa-
ciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe
oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o
seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu
sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
– A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar
pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse: – A verdade é que eu achei o anel na barriga de
um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias
de pescador.
(VERÍSSIMO, 1966, p. 144-145)
Como se pode notar pela crônica lida, no processo jurisdicional não é diferen-
te. As partes, nesse contexto, apresentam-se ao órgão de justiça, oferecendo cada
qual a sua versão para os fatos, geralmente antagônicas, uma em relação à outra.
Nota-se, então, que “fato” não é algo independente da elaboração de quem
o narra. Os advogados, por exemplo, constroem os fatos com os meios que lhes
são disponíveis e, principalmente, constroem-nos por meio da linguagem.
Todo fato ao ser elaborado é narrado. E, como se sabe, fatos podem ser narra-
dos de diferentes maneiras, conforme texto apresentado.
Em todos os casos concretos haverá uma reconstrução de uma história par-
ticular- narrativa jurídica-, em que cada uma das partes envolvidas em um lití-
gio buscará e tentará propor uma leitura dos acontecimentos que possa receber
o consentimento daquele que julga a ação. E a versão será considerada mais ou
menos plausível à medida que ela for capaz de integrar o maior número de pro-
vas e de resistir às leituras adversas, conforme texto lido e como descreve Carlos
Drummond de Andrade em seu poema “A verdade dividida”:
52 • capítulo 2
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
capítulo 2 • 53
CURIOSIDADE
O fato pode ser visto de múltiplos pontos de observação. Quem está “certo”? Onde está a
“verdade”? Narra-se uma história que pode ser considerada uma boa alegoria.
“Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam,
como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E
à medida que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O
outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu
fala: “Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemen-
te. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a
congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se
você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o
religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acre-
ditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é
que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me
mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida".
(Autor desconhecido)
Percebe-se que não há, nesse texto, qualquer dúvida quanto aos fatos, ape-
nas sobre como interpretá-los.
54 • capítulo 2
Todavia, se a narração não pode existir sem a descrição, essa “dependên-
cia” não lhe retira a prerrogativa de lhe ser superior. Não é pelo fato de não se
poder narrar sem se referir ou contar com determinados objetos e personagens
(partes processuais) que a descrição se eleva à condição de superioridade. Pelo
contrário, pois por maior que seja sua importância, sempre lhe é atribuído o
papel de um simples auxiliar da narrativa.
Diferentemente da dinâmica do fio condutor da narração, na descrição o
tempo não corre. Aliás, ele pode até mesmo inexistir. A respeito do tempo na
descrição e na narrativa Genette afirma:
capítulo 2 • 55
Na denúncia, o Ministério Público requereu ainda o agravamento da pena pelo fato de
"o homicídio culposo ser praticado na direção de veículo automotor ocorrer em faixa
de pedestres ou na calçada e quando o motorista deixa de prestar socorro à vítima".
56 • capítulo 2
Como se nota na narrativa jurídica em estudo, o advogado narra os fatos
com as formas verbais no passado e na terceira pessoa do singular, aproprian-
do-se da fala da autora, por meio da paráfrase, em uma estratégia de apagamen-
to da voz da autora, em busca da pretensão de que a verdade possua uma só ver-
são. A esse fenômeno conforme já estudado, chama-se discurso monofônico.
Observa-se que as circunstâncias que cercam os fatos precisam ser descritas
porque elas são submetidas também à apreciação no contexto do caso concre-
to, produzindo melhor entendimento acerca dos fatos narrados, além isso con-
tribuem para tipificação da conduta praticada e na avaliação da possibilidade
das atenuantes e/ou agravantes para o crime praticado.
Na realidade, a análise dos textos jurídicos permite que se entenda que o
discurso jurídico reveste-se de uma tipologia própria, que é a do poder e da per-
suasão. É essencialmente persuasivo, pois instaura sempre como destinatário
direto ou indireto um alguém que, supostamente, tenha infringido o ordena-
mento. Sendo assim, o espaço jurídico conduzirá os efeitos de poder e as rela-
ções de força que se instauram entre os sujeitos que, inscritos em uma forma-
ção ideológico-discursiva, passam a ser vistos como seres socializados que se
utilizam de certos fatos e argumentos de “verdade” que lhes servem de sustento.
Sabe-se que o discurso não é o do advogado, pois nos momentos em que
se manifesta dentro do Processo, é sempre a voz e o desejo de seu cliente que
está representando, embora, na narrativa jurídica, por exemplo, apague a voz
do autor para que se tenha a ilusão do discurso da “verdade” única, em busca da
persuasão dos fatos narrados. Essa linha de pensamento pode ser vislumbrada
nas demais partes da peça processual e não só na narração dos fatos, mas esta
será ponta de lança para os demais elementos que comporão a peça jurídica.
Leia este fragmento extraído do caso concreto Augusto Carlos Eduardo
da Rocha Monteiro Gallo e Margot Proença Gallo (ELUF, 2002, p.53) e atente
para a descrição intencional nele apresentada e da sua importância como fator
de persuasão:
“ [...] No dia em que foi assassinada, Margot trajava blusa de algodão branca e saia
xadrez nas cores verde e vermelho. Sapatinho de salto baixo, parecia uma colegial.
Tinha 37 anos de idade. [...]”
capítulo 2 • 57
Parece que a descrição presente na Denúncia teve a intenção de reforçar o
ponto de vista de que a vítima não se portava dentro do padrão moral e social
exigido àquela época à mulher casada e que, de fato, o adultério poderia sim ter-
se consumado, seguindo em uma direção para denegrir a conduta da vítima.
A descrição intencional se volta para o modo como a vítima se vestia, mostra
-a como uma colegial, embora tivesse 37 anos, como se não assumisse a idade
que tinha, e as roupas descritas minuciosamente, reforçam esse ponto de vista,
pois pertencem ao campo semântico da jovialidade, em plena década de 70,
como: blusa de algodão, saia xadrez verde e vermelha (típica das jovens ingle-
sas), sapatinho de salto baixo (muito usado pelas adolescentes de 70).
A própria construção do período curto –“Tinha 37 anos de idade –“parece
estar repleto de intencionalidade, como: levar o auditório a refletir sobre o fato
descrito (pausa para reflexão) em uma busca persuasiva para o lançamento da
TESE que será proposta mais adiante. Afinal, àquela época, adultério era cri-
me, o que levava fatalmente à absolvição do réu, pois havia assassinado a vítima
para “lavar a sua honra”– crime em defesa da honra –, indo ao encontro dos
valores da sociedade patriarcal e machista que reinava ainda naquela década.
A descrição pormenorizada reforça circunstâncias, voltadas para o compor-
tamento da vítima, as quais não poderão passar despercebidas pelo Tribunal
de Júri, assim como irão contribuir para a sustentação da tese que se pretende
ser aceita pelo auditório.
RESUMO
A narração reproduz, dentro da sequência temporal do texto, a sucessão temporal dos fatos
ou acontecimentos do mundo real, havendo, pois, uma sequência de situações que se enca-
deiam em direção a um fim ou resultado.
Já a descrição apresenta funções diversas e sempre surge nos vários tipos de textos
como um tipo auxiliar a serviço deles, sobretudo na narração. A descrição suspende o curso
do tempo e contribui para estender a narração, dando-lhe movimento e auxiliando-a na fun-
ção persuasiva.
Na descrição não há uma progressão temporal como no texto narrativo, a ordenação das
situações se dá em uma relação de simultaneidade. No texto descritivo, as propriedades, os as-
pectos de um dado objeto, pessoa, cena descritos inserem-se em certo momento único do tempo.
58 • capítulo 2
2.3 Modalização da Linguagem: Seleção
Vocabular
capítulo 2 • 59
Cesare Battisti cumpria pena em prisão destinada a autores de crimes políticos que
não estiveram envolvidos em ações que causaram morte. De lá evadiu-se, em 1981,
indo inicialmente para a França, por alguns meses, e depois para o México. Mais à
frente, em 1990, retornou para a França, onde passou a se beneficiar da denominada
“Doutrina Mitterand”.
Como é sabido e encontra-se documentado nos autos, o Presidente da França, à
época, concedeu abrigo a ativistas políticos italianos que houvessem renunciado à
luta armada.
Ali, Battisti viveu quatorze anos, trabalhando como zelador e escritor, tornando-se pes-
soa reconhecida e estimada na comunidade intelectual francesa. Sua primeira filha
nasceu no México, em 1984, e a segunda, em Paris, em 1995 (v. doc. fls. 1993).”
Luís Roberto Barroso & Associados Escritório de Advocacia
60 • capítulo 2
reforça o silenciar-se do auditório, tornando mais evidente o passado tal como
é recontado, funcionando quase como uma “prova a posteriori de que as coisas
foram de fato como são narradas neste agora: “retornou para a França, onde
passou a se beneficiar da denominada “Doutrina Mitterand”, “zelador e escri-
tor”, “pessoa reconhecida e estimada na comunidade intelectual francesa”,
“nascimento das filhas”, ressurgindo, assim, “um novo homem”.
Para melhor compreensão da modalização da linguagem, leia os fragmen-
tos jornalísticos, extraídos do livro de Rodríguez (2002, p.177), prestando bas-
tante atenção à seleção vocabular apresentada e à análise feita pelas autoras:
capítulo 2 • 61
acerca do fato narrado, por não existir discurso algum em nosso mundo real
sem intencionalidade.
No entanto, fatos diferentes, atendendo à necessidade de comprovação do
ponto de vista apresentado por cada um dos redatores, foram selecionados,
mostrando o objetivo acusatório ou defensivo, sem, entretanto, enunciar que
cada um deles narra os fatos da forma que lhe interessa ou que ambos fujam à
“verdade”, pontuando que os fatos podem sim apresentar formas distintas de
interpretação, segundo os interesses de cada um dos interpretantes, tal qual
ocorre no discurso jurídico nas versões apresentadas pelo autor e réu por meio
de seus representantes legais.
Analisa-se, agora, a escolha lexical opositiva, apresentada em ambos os tex-
tos, como:
CURIOSIDADE
Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou
chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e excla-
mou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir
a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem
chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o
sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver
62 • capítulo 2
mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar
ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o
segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do pri-
meiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu:
"a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".
Na vida á assim, não basta ter razão: é preciso saber levá-la. É possível embrulhar os nos-
sos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos
alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em
papel suave, que revele consideração pelo outro.
(Autor desconhecido)
capítulo 2 • 63
resgatar o sentido produzido pelo locutor no discurso. Esse resgatar do sentido
requer que o interlocutor reconheça como o sentido é construído, sentido esse
que está vinculado à argumentação inerente ao discurso.
Com isso, observa-se que, para a Semântica Argumentativa, a natureza da
narrativa é essencialmente argumentativa.
Esse sentido argumentativo da narrativa jurídica é construído pelo advoga-
do, por meio da forma como ele organiza e estabelece as relações semânticas
entre as unidades linguísticas do discurso narrativo.
Na verdade, quando o operador do Direito passa a narrar os fatos, ele já
está procurando, desde logo, a persuadir o seu auditório, pois já é do nosso co-
nhecimento que a tentativa de persuasão existe a partir da narração, uma vez
que se selecionam, para a narrativa, fatos que procuram reforçar a persuasão
do auditório.
Nesse sentido, a narração, apesar de apresentar um foco meramente infor-
mativo, voltando-se para a função referencial da linguagem, tende sempre a
adotar um ponto de vista inicial. É esse ponto de vista que faz com que, ao nar-
rar qualquer fato, de acordo com a sua intenção, o advogado procure persuadir
o juiz, a partir da narrativa dos fatos.
Observe os exemplos abaixo:
O réu ameaçava a vítima que, aos gritos, clamava por não ser morta. Ele pediu as joias
e, ao ouvir a negativa da vítima, que dizia não possuir nenhuma, não teve dúvida: com
frieza desumana, puxou o gatilho do revólver encostado à cabeça da vitimada, pros-
trando-a no chão sem vida, de forma cruel, por motivo absolutamente fútil. (RODRÍ-
GUEZ, 2002, p.178)
O réu, no intento de roubar, pediu à vítima joias e dinheiro. Assustado, temeroso e
alterado, pois não é bandido profissional, mas incidentalmente cometendo aquele
equívoco, ouviu a ríspida negação da vítima e, supondo tendo ela chance de reação,
que por certo poria sua vida em risco, em um ímpeto de emoção e medo apertou o
gatilho, temendo por sua sobrevivência. (RODRÍGUEZ, 2002, p.178)
Em ambos os textos, nota-se o ponto de vista implícito, pois ele não é enun-
ciado diretamente, mas apenas sugerido, em uma modalização da linguagem,
marcando, assim, a presença da parcialidade das narrativas jurídicas, via sele-
ção vocabular.
64 • capítulo 2
Não é sem propósito que Ducrot (2005), um dos maiores estudiosos da
Semântica Argumentativa, afirma que todos os discursos são argumentativos,
mesmo os que à primeira vista não pareçam ser.
Portanto, configura-se na narrativa uma estrutura argumentativa em que a
narração é um elemento estruturador, servindo de pano de fundo para a argu-
mentação. Ou seja, narrativa é antes de tudo argumentativa.
MULTIMÍDIA
Assista as séries policiais sugeridas abaixo, pois elas trazem situações em que se pode ob-
servar, entre outros aspectos abordados, a seleção de fatos relevantes e ordenação dos fatos:
• Bones
• Castle
• CSI: Crime Scene Investigation
• Law &Order: Special Victims Unit
LEITURA
“A Vida N ão é Justa” e “Segredo de Justiça” de Andréia Pachá
Baseada em suas experiências profissionais com casos de família, a autora petropolita-
na traduz em palavras, com maestria, as alegrias e tristezas das histórias reais que teve con-
tato na condução dos processos como magistrada, demonstrando profundo conhecimento
do ofício que exerce e da natureza humana. Em crônicas escritas com emoção e delicadeza,
narrando disputas, amores e desejos de histórias de pais e filhos que chegaram à Justiça
nos últimos vinte anos.
Autora
Andréa Maciel Pachá (Petrópolis, 04/01/1964) é juíza, formada em Direito pela Universi-
dade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Participou de um grupo de dramaturgia, trabalhou
com cinema e teatro. Morou no Rio até 1993, quando voltou para Petrópolis. Como membro
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criou o Cadastro Nacional de Adoção e a Comissão
de Conciliação e Acesso à Justiça. Também promoveu campanhas para simplificar a lingua-
gem utilizada nos processos, combatendo o "juridiquês". Pela sua atuação no CNJ, recebeu
em 2010 o Diploma Bertha Lutz. Possui artigos publicados em jornais de circulação nacional
e revistas especializadas.
capítulo 2 • 65
2.5 Disposição da Narrativa Jurídica: Petição
Inicial
ATENÇÃO
Pretensão é a expressão utilizada para caracterizar o poder de exigir de outrem coercitiva-
mente o cumprimento de um dever jurídico, vale dizer, é o poder de exigir a submissão de um
interesse subordinado (do devedor da pretensão) a um interesse subordinante (do credor da
prestação) amparado pelo ordenamento jurídico.
66 • capítulo 2
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA
COMARCA DO RIO DE JANEIRO-RJ.
MARCELO DA PRAIA, nacionalidade, estado civil, profissão, número de inscrição
no Cadastro de Pessoa Física, endereço eletrônico, domicílio, residência vem respeito-
samente à presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 11 da Lei 9656,
de 3/6/2014 e artigo 319 e seguintes do NCPC propor pelo RITO COMUM
AÇÃO DE COBRANÇA
em face da SEGURADORA PÉ NA AREIA LTDA, pessoa jurídica, inscrita no Cadastro
Nacional da Pessoa Jurídica- CNPJ- nº XXXXXXX, endereço, endereço eletrônico,
pelos motivos a seguir:
DOS FATOS (NARRATIVA JURÍDICA)
O autor celebrou um contrato padrão com a ré denominado Seguro Saúde, em 03
de outubro de 2012, pelo qual teria direito à cobertura médico-hospitalar completa em
caso de cirurgia de qualquer espécie.
O contrato foi celebrado no Rio de Janeiro, local em que a ré possui filial (doc.1).
O autor, dois anos depois de ter assinado o contrato, teve diagnosticada grave en-
fermidade renal para a qual o transplante era a única solução (doc. 2).
Tão logo surgiu um órgão compatível, em 16 e outubro de 2014, o autor foi interna-
do no hospital Ilha Bela, localizado na Rua do Catavento, nº 13, no bairro de Botafogo,
no Rio e Janeiro, e, imediatamente, submeteu-se ao transplante renal, cujo resultado
foi positivo. (doc. 3)
As despesas do autor com a cirurgia, incluídos os gastos hospitalares e os honorá-
rios médicos, totalizaram em R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais) (doc. 4).
O autor procurou a ré para que esta restituísse a quantia que ele gastou com o seu
tratamento. No entanto, a ré negou-se a reembolsar as despesas médico-hospitalares,
sustentando que a doença do autor era preexistente à assinatura do contrato e que foi
por ele omitida no momento da contratação.
capítulo 2 • 67
AUDIÊNCIA CONCILIAÇÃO OU DE MEDIAÇÃO
O autor não tem interesse na realização de audiência de conciliação ou de mediação.
DO DIREITO (ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA)
O autor deve ter direito ao ressarcimento das despesas efetuadas com o seu trata-
mento – transplante renal – a que foi submetido, uma vez que os Planos de Saúde es-
tão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor, enquanto relação
de consumo atinente ao mercado de prestação de serviços médicos, logo a restrição da
parte ré ofende não só o Código de Defesa do Consumidor, aplicável à relação jurídica
discutida, mas também o mencionado art. 11 , da Lei nº 9.656 /98:
68 • capítulo 2
Portanto, as alegações da ré para o não ressarcimento das despesas que o autor
teve com o tratamento de transplante renal não procedem e são completamente infun-
dadas, pois o autor só teve a doença diagnosticada e tratada depois de terem decorrido
24 (vinte e quatro) meses da relação contratual avençada entre as partes.
DO PEDIDO
Diante do exposto, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, requerer:
a) a inversão do ônus da prova a favor do autor, considerando-se a verossimi-
lhança das suas alegações e por ele ser parte hipossuficiente, com fundamento no
artigo 6º, inciso VIII, da Lei 8078, de 11/9/1990 (Código de Defesa do Consumidor-
CDC);
b) a procedência do pedido, condenando a ré ao pagamento da quantia de
R$45.000,00 (quarenta e cinco mil reais), acrescida de juros e correção monetária, na
forma da lei, bem como dos honorários advocatícios.
DAS PROVAS
Protesta provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em Direito, em
especial, documental, depoimento pessoal do representante legal da ré, oitiva de tes-
temunhas e pericial.
DO VALOR DA CAUSA
Dá-se à causa o valor de R$45.000,00(quarenta e cinco mil reais), nos termos do
artigo 292, I, o NCPC.
O advogado receberá todas as intimações no endereço do seu Escritório Jurídico,
situado à Rua Florida, nº 35, na cidade de Angra dos Reis, Estado do Rio de Janeiro-RJ.
Nesses termos, pede deferimento.
Angra dos Reis, 28 de junho de 2014.
Assinatura do Advogado
Nº da Inscrição na OAB-RJ
RESUMO
A narrativa jurídica deve expor todos os fatos juridicamente importantes do caso concreto,
em ordem rigorosamente linear- o modo de dispor os fatos a serem narrados (= calendá-
rio)-, partindo sempre da causa mais remota (nascedouro da relação jurídica) para a causa
mais próxima de pedir(não cumprimento da obrigação), utilizando-se das formas verbais no
passado - de preferência no pretérito perfeito (por ser ação acabada, concluída)-, na terceira
capítulo 2 • 69
pessoa do singular, a fim de que o juiz possa tomar ciência da lide, de forma clara e coesa, e
julgar o pedido do autor.
Como já visto, a estrutura da narrativa é uma sequência de fatos relacionados entre si,
em que há uma ordem temporal e uma causal. A ordem temporal trata da cronologia dos
fatos, sucessão de acontecimentos no decorrer do tempo, e a causal estabelece a relação de
causa e consequência ou causa e efeito.
O aluno - futuro advogado- não pode se esquecer também, em momento algum, de que a
função da narrativa não é apenas o de expor (narrar) o que aconteceu, dentro do que é juridi-
camente relevante, mas também persuadir a respeito da “verdade” (leia-se verossimilhança)
deles e, para isso, é necessário narrar os elementos circundantes, periféricos, para fornecer
mais elementos ainda para a clareza e compreensão do caso concreto (contexto narrativo).
Desse modo, os elementos fáticos (simples) que contribuem para a compreensão dos
juridicamente relevantes são aqueles que, embora não imponham consequência jurídica por
eles próprios, auxiliam o leitor-juiz (auditório) na compreensão mínima dos juridicamente re-
levantes. Eles são circunstanciais, mas possuem a relevante função de explicar e individua-
lizar os fatos sobre os quais recaem diretamente os efeitos da norma jurídica (aplicação
do Direito).
É sabido que redigir é exteriorizar, em palavras, fatos e ideias em ordem clara, coesa, coe-
rente, lógica e com método (Como fazer?), razão por que o advogado deve expor os fatos de
forma clara a combinar fatos, conceitos e ideias, com o objetivo de persuadir o seu auditório.
O advogado não deve ser prolixo em suas exposições, por isso deve apresentar uma nar-
rativa jurídica objetiva, sem se exceder na exposição dos fatos desnecessariamente, isto é,
sem se afastar das questões realmente importantes para o resultado final da lide. Narram-se
somente os fatos imprescindíveis para a qualificação jurídica do fato de forma sucinta (objetiva).
Finalmente, a boa escrita é obrigação do advogado, e o conhecimento da língua culta e
das técnicas de construção de qualquer tipo de documento ou peça jurídica lhe são essen-
ciais para o exercício da prática forense.
ATIVIDADES
01. A forma como os modalizadores do discurso jurídico é utilizado vai influenciar decisivamente
na credibilidade ou não aceitação do auditório daquele fato narrado pelo advogado, razão por que
deve ter muita cautela ao selecionar os termos a serem empregados em sua na narrativa jurídica.
Partindo dos estudos feitos sobre este tema “modalização da linguagem: seleção voca-
bular” analise os fragmentos abaixo:
70 • capítulo 2
Fragmento 1:
(Extravio de Bagagem) “O fato é que a T. Turismo atua como mera agenciadora, agindo
em nome e por conta da operadora.”
Fragmento 2:
(Extravio de Bagagem) “ (...) extrai que o voo foi fretado, isto é, alugada a aeronave para
transporte apenas das pessoas que haviam adquirido o pacote turístico a ela, operadora. ”
Fragmento 3:
A autora, sentindo fortes dores em sua perna esquerda, procurou diagnóstico do seu mé-
dico-ortopedista ZZZ, o qual atestou a gravidade do problema (doc.1): não havia circulação
de sangue nos dedos do pé esquerdo da autora, razão pela qual se roxeavam.
Diante desse fato, o referido profissional contatou a médica infectologista YYY, inte-
grante do hospital AAA, credenciado pelo Plano de Saúde da autora, informando-lhe ser a
autora diabética e solicitou-lhe urgente atendimento a ela, cuja perna esquerda necrosava e
cujas veias entupiram-se (doc.02). Todavia, a autora não foi internada no local, porque a 1ª
ré – Plano de Saúde- negou a respectiva e necessária autorização, em face do que a referida
médica encaminhou a paciente para o hospital público WWW. Nesse lugar, a autora recebeu
o devido tratamento, que culminou com a amputação de parte da sua perna necrosada.
02. Partindo desses ensinamentos, apresente o seu entendimento acerca e “fatos e ver-
sões” e a questão da “verdade” no discurso jurídico, tendo como texto inspirador “Apólogo dos
dois escudos”, de José Júlio da Silva Ramos (10 a 15 linhas).
capítulo 2 • 71
Palavra puxa palavra, ei-los que arremetem um contra o outro, em combate singular,
até caírem gravemente feridos.
Nisto passa um dervis, que depois de os pensar com toda caridade, inquire deles o
motivo de contenda.
- É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de ouro.
- É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de prata.
-Pois, meus irmãos, observou o daroês, ambos tendes razão e nenhum a tendes. Todo
esse sangue se teria poupado, se cada um de vós se tivesse dado ao incômodo de
passar um momento ao lado oposto. De ora em diante nunca mais entreis em pen-
dência sem haverdes considerado todas as faces da questão.
Vocabulário
• de ponto em branco: com cuidado, com esmero, completamente.
• dervis: religioso muçulmano.
72 • capítulo 2
Lamentavelmente, ao tentar ingressar no imóvel, para sua surpresa, Miranda ali per-
manecia instalada. Questionada, respondeu que não havia recebido qualquer notifi-
cação de Max, que seu contrato foi concretizado com Max e que, em virtude disso,
somente devia satisfação a ele, dizendo, por fim, que dali só sairia a seu pedido.
Indignado, Jorge conta o ocorrido a Max, que diz lamentar a situação, acrescentando
que Miranda sempre foi uma locatária de trato difícil. Disse, por fim, que como Jorge é
o atual proprietário cabe a ele lidar com o problema, não tendo mais qualquer respon-
sabilidade sobre essa relação.
capítulo 2 • 73
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DRUMMOND, Carlos de Andrade. Poesia e Prosa. Organizada pelo autor. São Paulo: Nova Aguilar
S.A., 1988.
ELUF, Luiza Nagib. A Paixão no Banco os Réus. São Paulo: Saraiva, 2002.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Trad.: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.
GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Vega, 1995.
PALADINO, Valquiria da Cunha (ORG.) et al. Argumentação Jurídica. Teoria e Prática. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Org. Cleonice Berardinelli. São Paulo: Nova Aguilar S.A., 1993.
RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança Marcondes Cesar (Tomo I), Marina Appenzeller
(Tomo II) e Roberto Leal Ferreira (Tomo III). Campinas, SP: Papirus, 1994, 1995, 1997.
RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Manual de Redação Forense. Curso de Linguagem e Construção do
texto em Direito. Campinas-SP: LZN, 2002.
Anexo I
74 • capítulo 2
perguntas são importantes porque permitem perceber vários pontos relevantes
do caso concreto a ser trabalhado.
Após essa primeira etapa, deve-se colocar todos os fatos relevantes (fatos
simples e fato jurídico) na ordem rigorosamente linear, estabelecendo relações
lógicas entre os fatos narrados, e, em seguida, iniciar a narrativa jurídica.
Atentar sempre para a importância de cada uma dessas perguntas na elabo-
ração da narrativa jurídica, como também para a seleção cuidadosa dos fatos
que melhor atendem aos interesses do seu cliente.
Isso não significa que o advogado não venha a narrar os fatos que contra-
riarem a pretensão do seu cliente, porque isso seria agir de litigância de má
fé. Os fatos contrários aos interesses do cliente devem ser narrados e descritos
de forma breve sem se dar muita importância a eles (estratégia da indiferen-
ça, como se não fossem relevantes ou verossímeis, mas sim meras alegações
infundadas).
Portanto, o modo de organizar a narrativa dos fatos já direciona o juiz a re-
fletir sobre a veracidade dos fatos narrados e a considerar em seu julgamento
a tese mais verossímil e justa que será apresentada pela parte no próximo ele-
mento da Petição Inicial - “Do Direito”.
O Autor
Lembre-se de que não há necessidade de se qualificar as partes no corpo da
narrativa, pois esse elemento da Inicial é anterior ao elemento “Dos Fatos”, no
qual se apresenta a narrativa jurídica.
Retrata o pedido, o mérito. A causa de pedir deve ser a decorrência lógica dos
fatos e fundamentos narrados.
Quando o autor, por meio do seu representante legal, narra fatos e apresenta
uma conclusão que deles não decorre, não há coerência lógica na apresentação
da Petição Inicial, razão por que será considerada inepta, isto é, não apta para
dar prosseguimento ao processo, em virtude de haver ausência de correlação
capítulo 2 • 75
entre fundamentos fáticos e jurídicos expostos e o pedido final formulado, jul-
gando-se extinto o processo sem exame de mérito.
O aluno deve observar quem é a parte contrária para indicá-la na peça proces-
sual, considerando os dados fornecidos pela situação fática.
Esse elemento refere-se à causa, ao motivo por que o autor ajuizou a Petição Inicial.
Qual o fundamento jurídico que ampara a pretensão? Basta, neste momen-
to, identificar a causa de pedir remota (nascimento da relação jurídica) e a cau-
sa de pedir próxima (o descumprimento da obrigação), isto é, a relação de cau-
salidade ou nexo causal entre os fatos narrados e a causa de pedir.
76 • capítulo 2
A competência é a medida e o limite da jurisdição, dentre os quais o órgão
judicial poderá dizer o direito, ou seja, a competência visa a assinalar os limites
da atuação de cada juiz.
capítulo 2 • 77
Anexo II – Proposta de Trabalho
1. Livro Base
FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Caverna. Porto Alegre: Sérgio An-
tonio Fabris.
O caso dos exploradores de cavernas é uma leitura recomendável àqueles
que têm interesse na área jurídica, especialmente, sobre a área criminal, por-
que aborda vários princípios, leis, dogmas (Direito Natural) do ordenamen-
to jurídico.
2. Objetivos
Resumo do Livro
78 • capítulo 2
Foram condenados em primeiro grau, resultando em recurso de apelação que
será objeto da análise do autor do livro.
Na obra, são dispostos os votos dos juízes incumbidos de rever a sentença dada
em primeira instância, e é apresentada uma emaranhada rede de complicações
e pormenores. O livro é importante, sobretudo, pelo papel das Leis, e do Direito
na ordem social e no ordenamento jurídico; e ela ressalta, ainda, a passividade
e a necessidade de interpretação da norma, para que esta atenda a sua função.
Também é evidenciada na obra, a diferença entre aquilo que é legal e justo, e é
estabelecida uma reflexão implícita acerca do papel do legislador e do magis-
trado na esfera jurídica.
O escopo dessa leitura é fazer com que os operadores jurídicos e as demais pes-
soas que tenham acesso à obra façam uma crítica ao modo como foi realiza-
do o processo e a aplicação da respectiva pena, tendo em vista, o contexto da
Constituição brasileira de 1988 que trouxe o princípio da dignidade da pessoa
humana, e a regra do in dubio pro réu que serve de diretriz para o Direito Penal.
capítulo 2 • 79
Composição do Júri
Dinâmica do Trabalho
Avaliação do Trabalho
80 • capítulo 2
3
Argumentação
Jurídica 3
O Capítulo 3 trata do conceito, origem e importância da argumentação jurídica,
permitindo ao aluno de Direito uma visão geral acerca desse tema e certos ques-
tionamentos, como: O que é argumentação? Por que Direito é argumentação?
O que significa argumentar? O que é uma tese? O que é um argumento? O que
é um silogismo lógico – formal? O que é silogismo retórico ou argumentativo?
O que é um raciocínio dedutivo ou indutivo? Quais são os tipos de raciocínio no
discurso jurídico? O Direito oferece uma única resposta correta para cada caso?
Qual a relevância dos argumentos jurídicos? O que é Lógica Formal? O que é a
Lógica Jurídica ou a Lógica do Razoável?
Portanto, serão propostos alguns temas, como conceito de argumentação,
Retórica e Nova Retórica, importância da argumentação jurídica, Teoria da
Argumentação Jurídica de Chaim Perelman, as três valências do discurso ju-
rídico: descritivo, valorativo e normativo, a importância da função persuasiva
dos conectores discursivo-argumentativos, a importância da estrutura de argu-
mentação de Perelman, dentre outros aspectos argumentativos e linguísticos a
serem aqui tratados.
OBJETIVOS
• Compreender os pressupostos da argumentação no mundo do Direito, bem como as téc-
nicas de construção de textos e sustentações persuasivas.
• Construir textos claros, coerentes e persuasivos, que sejam capazes de exteriorizar a teoria
jurídica aplicável, adequando-a ao caso concreto.
• Formular teses e argumentos persuasivos para alcançar a adesão do auditório à sua tese.
• Identificar os tipos de raciocínios jurídicos.
• Elaborar diferentes tipos de argumentos, visando maior convencimento de sua tese.
• Conhecer valores retóricos e algumas questões relevantes da teoria da argumentação ju-
rídica na Nova Retórica de Perelman.
82 • capítulo 3
3.1 Características: Argumentação Jurídica
A argumentação é um dos elementos mais importantes da Ciência Jurídica,
pois praticamente todas as atividades dos operadores do Direito envolvem de
alguma forma a apresentação de razões com o intuito de fundamentar, argu-
mentar, justificar, convencer, persuadir o auditório de que aquilo que se afirma
é válido e verdadeiro. O que define um bom advogado ou jurista é sua capacida-
de de construir argumentos e manejá-los com habilidade.
O entendimento da importância da argumentação para o profissional do
Direito está cada vez mais presente no mundo jurídico. Diversas são as teorias,
os livros, os autores que buscam desenvolver teorias de argumentação eficien-
tes para a prática jurídica. Um bom jurista é um bom argumentador e não pou-
cas vezes é a qualidade da argumentação que determinará a vitória ou a derrota.
Apesar de sua importância, destaca Atienza (2003, p.17) que: “[...] pouquíssi-
mos juristas leram uma única vez um livro sobre a matéria e, seguramente,
muitos ignoram por completo a existência de algo próximo a uma “teoria da
argumentação jurídica.”
Abbagnano (1998, p.79), em seu “Dicionário de Filosofia”, afirma que argu-
mento: “[...] é qualquer razão, prova, demonstração, indício, motivo capaz de
captar o assentimento e de induzir à persuasão ou à convicção.”
Manuel Atienza (2003, p.18) afirma que argumentar: “[...] é uma atividade
que consiste em dar razões a favor de ou contra uma determinada tese que se
trata de defender ou de refutar.” É fato que a arte de argumentar encontra-se
presente na atividade jurídica a todo momento: o advogado deve argumentar
para persuadir o juiz de que seus argumentos são válidos e que ele deve decidir
a seu favor, deve argumentar com o cliente, demonstrando qual são as opções
que ele possui para solucionar o seu problema e qual delas é a mais indicada
ou, então, persuadi-lo de que ele é o advogado certo para a causa e que aquele é
o valor justo de honorários.
Garcia (1997, p.370) explica que argumentar é convencer (leia-se persuadir)
mediante a apresentação de razões, de provas e de um raciocínio coerente. E
que a “legítima argumentação deve ser construtiva na sua finalidade, coope-
rativa em espírito e socialmente útil”, sendo os seus elementos principais: a
consistência do raciocínio e a evidência das provas.
O juiz deve argumentar de forma a fundamentar todas as suas decisões, em
busca do convencimento o auditório [sociedade como um todo], garantindo
capítulo 3 • 83
que a decisão está de acordo com a lei e não é uma decisão arbitrária, conforme
garantia constitucional presente no art. 93, inciso IX: “[...] todos os julgamen-
tos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, [...]”.
O promotor também argumenta para persuadir o juiz a julgar a seu favor,
instaurar ação penal na denúncia. Também os especialistas do direito, os au-
tores, os doutrinadores argumentam em seus livros e artigos com o objetivo de
demonstrar e convencer os juristas de que o que dizem é “correto”.
A argumentação não é apenas um fato presente na atividade jurídica, mas
é muitas vezes o fator determinante da vitória ou da derrota. Por exemplo, na
atividade jurisdicional, a capacidade de persuasão dos argumentos irá exercer
grande influência no julgador no momento de decidir qual das partes envolvi-
das será favorecida.
Perelman (2000) faz distinção entre os termos persuadir e convencer. Afirma
que a persuasão busca atingir o interlocutor por meio dos sentimentos, da von-
tade, por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis, estando, portanto,
vinculado à emoção, ao agir; enquanto convencer é estritamente ligado à razão,
por meio de provas objetivas e claras, ao crer, ligado, pois, à lógica.
A argumentação implica produzir razões em favor daquilo que se afirma,
mostrar que razões são pertinentes e o porquê de rebater outras razões que jus-
tificariam uma conclusão distinta. Percebe-se, assim, que argumentar é uma
atividade muito complexa, o que destaca ainda mais a importância do uso de
argumentos consistentes e de qualidade.
Os argumentos podem ser avaliados de um ponto de vista formal como vá-
lidos ou inválidos, de um ponto de vista material como mais ou menos consis-
tentes, e de um ponto de vista pragmático como mais ou menos persuasivos.
Na prática forense, o operador do Direito busca sempre superar os argu-
mentos contrários à sua tese, de forma a invalidar a tese contrária à sua, razão
por que a argumentação constitui, em todos os sentidos, a principal ferramen-
ta dos profissionais do Direito.
Por essa razão, o objeto da argumentação jurídica é visar à sustentação de
uma tese, de tal modo que cada tese é passível de uma antítese, o que determi-
na que as escolhas dos argumentos aspiram a superar ou a minimizar as fragili-
dades dos sentidos da linguagem e a reforçar os procedimentos de sustentação
da tese, já que a verdade dos argumentos é sempre parcial, pois não há verdade
absoluta (PERELMAN, 2000, p. 11).
84 • capítulo 3
Nessa linha de pensamento, afirma o teórico belga (PERELMAN, 2000,
p. 11): “Um argumento não é correto e coercitivo ou incorreto e sem valor, mas
relevante ou irrelevante, forte ou fraco,consoante razões que lhe justificam o
emprego no caso”. É por isso que o estudo dos argumentos, que nem o Direito
nem as ciências humanas nem a filosofia podem dispensar, não se prende a
uma teoria da demonstração rigorosa, concebida a exemplo de um cálculo me-
canizável, mas a uma teoria da argumentação.
Portanto, existem decisões ou teses com fundamentos mais fortes, ou seja,
com argumentos melhores que as sustentam, e que esses fundamentos, que
nada mais são que argumentos, sustentam uma tese ou um posicionamento,
mas não lhe comprovam a verdade, pois existem, no Direito, dois posiciona-
mentos totalmente distintos, sem que em qualquer deles haja erro, razão por
que se afirma que a verdade de cada um é sempre parcial.
Segue um exemplo de narrativa jurídica e, em seguida, de argumentação ju-
rídica, para que se perceba a diferença entre as características que compõem
esses dois gêneros textuais:
Narrativa Jurídica
O pescador Ademar Manoel Pereira morava com a família, em julho 2004, em um bar-
raco de madeira que incendiou e todos os móveis foram destruídos, não podendo nada
ser recuperado. E, por isso, devido às dificuldades financeiras, atrasou o pagamento das
contas de água à CASAN (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).
Conforme afirmou Marlene Teixeira Pereira, esposa do pescador, ela foi ao escritório
da companhia para pedir o parcelamento da dívida, pois não teriam condições de
pagar a quantia à vista, porque o marido estava reconstruindo a casa com a ajuda da
comunidade local, e não poderia a sua família ficar sem água.
Entretanto, o representante da CASAN negou o pedido de Marlene Pereira e a com-
panhia cortou o fornecimento de água devido ao atraso de pagamento por parte do
usuário, em dezembro de 2004.
O pescador trabalha na Prefeitura de Piçarras (SC) e recebe mensalmente um salário
mínimo.
capítulo 3 • 85
Argumentação Jurídica
O fornecimento da água não pode ser interrompido por inadimplência, pois, por se
tratar de serviço público fundamental, é essencial e vital ao ser humano, não podendo,
assim, ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder
Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários.
A requerida Companhia Catarinense de Águas cometeu, grosso modo, um ato re-
provável, desumano e ilegal. É ela obrigada a fornecer água à população de maneira
adequada, eficiente, segura e contínua e, em caso de atraso por parte do usuário, não
poderia ter cortado o seu fornecimento, expondo o consumidor ao ridículo e ao cons-
trangimento, casos previstos, inclusive, no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
É fato que o art. 42 do CDC não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja
exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou
ameaça. Embora a requerida CASAN tenha alegado à requerente que o fornecimento
de água constitui serviço remunerado por tarifa, e que deve ser permitida sua inter-
rupção no caso de não pagamento das contas, a requerida deve usar os meios legais
próprios, não podendo fazer justiça privada porque hoje se vive no império da lei, e os
litígios são compostos pelo Poder Judiciário, e não pelo particular.
A água é bem essencial e indispensável à saúde e higiene da população. Seu
fornecimento é serviço público indispensável, subordinado aos princípios da con-
tinuidade, sendo impossível, pois, a sua interrupção e muito menos por atraso no
seu pagamento.
Primeiramente, resta evidente que o fornecimento de serviços água encanada em
áreas urbanas, é considerado serviço público essencial, assim definido pela Lei 7.783,
de 28/6/89. Como todo e qualquer serviço público, o fornecimento de água está
sujeito a cinco requisitos básicos: a) eficiência; b) generalidade; c) cortesia; d) modici-
dade e finalmente e) permanência.
A permanência, principalmente no que tange aos serviços públicos essenciais, está
ainda sedimentada no artigo 22, “caput – parte final” do Código de Defesa do Consu-
midor: “Art. 22: Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permis-
sionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer
serviços adequados, eficientes, seguros e, quando essenciais, contínuos”.
Assim, resta como evidente que o serviço de fornecimento de água, por ser essencial,
não pode ser interrompido sob qualquer pretexto. Evidentemente, que a empresa
concessionária pode utilizar-se de todos os meios juridicamente permitidos para fazer
valer seu direito de receber pelos serviços prestados.
86 • capítulo 3
A requerida, como concessionária dos serviços de fornecimento de água encanada
à população, explora na verdade um serviço público essencial à dignidade humana,
posto que ligada diretamente à saúde e ao lazer.
Aliás, a dignidade da pessoa humana encontra-se entre os princípios fundamentais de
nossa Nação, como se encontra insculpida no artigo 1º, inciso III, da Constituição Fe-
deral. E mais, o artigo 6º da Carta Magna reconhece que a saúde e o lazer são direitos
sociais assegurados a todos os cidadãos e que incumbem ao Estado conforme se vê
do artigo 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação”. A matéria novamente foi referendada
pelo CDC na primeira parte do inciso I do artigo 6º: “Artigo 6º – São Direitos básicos
do consumidor: I – a proteção à vida, à saúde…”.
Não pode desta forma a requerida, como concessionária de serviços públicos de
fornecimento de água encanada, proceder a cortes, a fim de coagir a requerente
ao pagamento, já que se trata, o seu fornecimento, de um dos direitos integrantes
da cidadania.
Se não houve o pagamento, incumbe à requerida empresa concessionária do serviço
adotar providências que a lei lhe assegura para efetuar a cobrança do que lhe é
devido. O que não se pode admitir nem permitir é a absurda exceção concedida a
estas empresas para que procedam à margem da lei e do judiciário, realizando sua
própria justiça.
Portanto, o inadimplemento quanto ao pagamento da taxa de água não dá à reque-
rida concessionária o direito de suspender o fornecimento, como forma de compelir
o usuário a pagar a dívida. Tal conduta extrapola os limites da legalidade, existindo,
como já se sabe, outros meios para buscar o adimplemento do débito.
Conclusão
Em face do exposto, requer-se que a requerida Companhia Catarinense de Águas
seja obrigada a fazer a religação da água e cobrança pelas vias adequadas para rece-
bimento de pagamentos em atraso.
capítulo 3 • 87
Observe o quadro abaixo para compreender melhor as diferenças formais e
linguísticas existentes entre a construção de um texto narrativo e argumentativo:
NARRAÇÃO ARGUMENTAÇÃO
Defender uma tese compatível
com o interesse da parte que
Expor os fatos relevantes do
o advogado representa para
OBJETIVO caso concreto a ser solucionado
sustentação do pedido que
no Judiciário.
se pretende ter acolhido pelo
judiciário.
O fato (informação) narrado é
interpretado à luz do ordena-
Cada fato representa uma infor-
mento jurídico e transformado
mação que compõe a situação
IMPORTÂNCIA DO FATO fática a ser conhecida pelo
em elemento de persuasão que
é o raciocínio; para sustentação
judiciário.
da defesa tese pretendida (Des-
critivo-Valorativo-Normativo).
Pretéritos (perfeito, imperfeito,
mais-que-perfeito), porque
todos os fatos narrados já
Presente atemporal. Pretérito
ocorreram.
Perfeito: só deve ser usado
O presente é usado somente
para retomar os fatos (provas /
TEMPO VERBAL UTILIZADO para os fatos que se iniciaram
indícios) relevantes da narrativa
no passado e que perduram até
jurídica, com os quais se defen-
o momento da narração.
derá a tese.
O futuro não é utilizado porque
fatos futuros são incertos,
hipotéticos.
Utiliza-se a 3ª pessoa do singu-
Utiliza-se a 3ª pessoa do
lar, por marcar a imparcialidade
singular em busca de maior
PESSOA DO DISCURSO do advogado, passando, assim,
persuasão e veracidade para os
maior veracidade aos fatos
argumentos formulados.
narrados.
Os argumentos são organiza-
Os fatos são narrados e dos em uma linha de raciocínio
descritos em ordem cronológica, lógica, coerente e coesa em
ORGANIZAÇÃO isto é, na mesma ordem em que busca da persuasão do audi-
aconteceram no mundo natural tório. É de grande relevância a
(= relógio/calendário). consistência do raciocínio e a
evidência das provas.
O quê? (fato gerador do confli-
to/pedido); quem? (partes pro-
cessuais); onde? (local do fato);
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA quando? (momento do fato-dia.
NARRATIVA Mês, ano); como? (modo
como os fatos ocorreram); por
quê? (nexo e causalidade/
razão/motivo).
88 • capítulo 3
NARRAÇÃO ARGUMENTAÇÃO
O fato gerador do conflito (nexo
causal), apresentação explícita
da tese a ser defendida, cons-
trução de argumentos fortes ou
consistentes, a partir dos fatos
ESTRUTURA DA ARGUMENTAÇÃO relevantes selecionados, para
sustentação da tese a ser apre-
sentada, seleção dos tipos de
argumentos para sustentação
da tese de forma persuasiva.
A narrativa possui função
informativa, mas é também
A argumentação tem função
NATUREZA DO TEXTO entendida como um excelente
persuasiva por excelência.
recurso persuasivo a serviço da
argumentação.
CURIOSIDADE
A nomenclatura fundamentação é usada apenas como forma no Direito: as peças jurídicas que
buscam apenas o convencimento do raciocínio próprio, ou seja, voltadas apenas para o emissor,
como em opinamentos (Pareceres) e atos decisórios (Sentenças, Acórdãos e similares), voltam-se
exclusivamente para a convicção do julgador ou do parecerista, sem necessitar da persuasão ou
adesão do receptor (auditório), bastando apenas o convencimento do julgado ou opinamento dado.
Contudo, no caso da argumentação jurídica, produzida e apresentada pelas partes por meio
de seu representante legal, há necessidade da adesão e da persuasão do auditório (juiz ou
tribunal de júri) para obtenção da pretensão deduzida em juízo. Logo, a fundamentação volta-se
para o raciocínio próprio (emissor) e busca somente o convencimento, já a argumentação jurí-
dica volta-se para o auditório (receptor) e necessita da persuasão e adesão dele para obtenção
do sucesso em seu pleito. Por essa razão esses termos não devem ser usados aleatoriamente.
capítulo 3 • 89
dor ou tribunal de júri acerca da verossimilhança e por ser a mais útil e razoável.
Contudo, uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna, so-
cialmente justa ou equilibrada, por isso é fundamental que o advogado tente ob-
ter com a sua tese a adesão do juiz, dos jurados, da opinião pública e da audiência
e, para tal adesão, a tese deve estar bem fundamentada ou justificada.
Tese A
A queda do gesso
foi causada pelo terremoto
e não por negligência.
90 • capítulo 3
Tese B
A queda do gesso foi
causada por neglegência do
hotel, não pelo terremoto.
capítulo 3 • 91
ATENÇÃO
A tese é o ponto de vista jurídico que o advogado da parte irá apresentar em juízo, em sua
argumentação, para sustentar o pedido, isto é, para que o autor da Inicial, por exemplo,
obtenha êxito em sua pretensão. É fato que, se a tese for acolhida pelo magistrado, haverá
também uma tendência de ele acolher o pedido formulado pela parte por meio de seu re-
presentante legal.
Portanto, a tese está sempre relacionada ao pedido, mas não é o pedido.
O PEDIDO nada mais é do que a manifestação da intenção daquele que ingressa com
uma demanda no judiciário, é a materialização de sua pretensão, é o que ele pretende
que lhe seja outorgado, reconhecido ou ainda constituído em uma sentença judicial.
92 • capítulo 3
Segue, agora, um exemplo de parágrafo-padrão tecnicamente estruturado,
com introdução, desenvolvimento e conclusão:
capítulo 3 • 93
3§ – Ora, quem age com culpa, a teor do disposto na citada norma, está obrigado a
reparar os danos.
• Introdução:
Temos três espécies de preclusão: temporal, lógica e consumativa.
Introduz e delimita o tema, estabelecendo um roteiro do que vai ser discutido,
conceituado.
• Desenvolvimento:
Corresponde ao conceito de cada espécie de preclusão.
• Conclusão:
Corresponde ao último período, funcionando como uma confirmação dos
conceitos, apresentando a consequência da preclusão, qualquer que seja ela.
94 • capítulo 3
É comum deparar-se com decisões que apresentam um parágrafo único e
mais comum ainda é encontrar decisões com uma infinidade de parágrafos,
trazendo, inclusive, palavras anacrônicas e excesso de adjetivações. Ambas as
situações, com certeza, irão apresentar desordem de raciocínio (incoerência,
falta de unidade, falta de objetividade e outros defeitos textuais).
Como ilustração para esses comentários, apresentam-se dois fragmentos
de uma dada decisão judicial:
capítulo 3 • 95
No exemplo 2, não se encontram os mencionados defeitos do texto anterior.
Nota-se, entretanto, a fragmentação do parágrafo. A tese que o sentenciante
defende é a da legitimidade ativa (rejeição da preliminar). A ideia central, que
também deve constituir a introdução do parágrafo, está expressa na frase “Não
se pode falar em ilegitimidade ativa”. Assim, as demais ideias a ela deveriam
estar agregadas, como forma de justificá-la, mas isso não ocorre.
Observe, agora, como ficariam os mesmos fragmentos se estruturados de for-
ma mais técnica e lógica, a partir da análise dos elementos contidos dos autos:
1–A materialidade do crime vem comprovada pelo laudo de exame de corpo de delito
de fl...., que revela que a vítima veio a sofrer lesões corporais em razão de disparo da
arma de fogo. Apesar de o referido laudo omitir a gravidade das lesões, ante a ausên-
cia de exame complementar, ele, por si só, demonstra que ocorreu o disparo de arma
de fogo contra a vítima. Assim, o fato de não se mencionar expressamente o número
de disparos que a atingiu em nada interfere no deslinde da questão, sendo, portanto,
irrelevante.
Interrogado à fl...., o réu alegou ter disparado três vezes contra a vítima, segundo ele,
agindo em situação de legítima defesa, visto que esta teria adentrado o interior de sua
residência, proferindo palavras injuriosas contra a sua pessoa.
A vítima, por outro lado, narrou ter sido alvejada pelo réu, quando se dirigia para sua
residência, em razão da discussão anteriormente havida entre eles, quando ambos se
achavam embriagados e trocaram empurrões.
As testemunhas ouvidas nos autos não presenciaram os fatos, não confirmando, pois,
algumas das versões apresentadas.
Entretanto, como bem descreveu o Promotor de Justiça, há fortes indícios de que a
versão ostentada pelo réu não corresponda à realidade, pois a vítima teria sido encon-
trada ferida e caída ao solo, defronte de sua residência.
Assim, não resultando a excludente da legítima defesa extreme de dúvidas, de modo
a poder-se reconhecê-la de plano, por isso o mais recomendável é submeter o réu ao
julgamento pelo tribunal do júri.
2–Não se pode falar em ilegitimidade ativa. Trata-se de empresa administradora de
consórcios com existência regular, conforme a comprovação nos autos. A autoriza-
ção de funcionamento é presumida, pela menção no contrato, de seu número. Via
de consequência, como assinalado pelo ilustre advogado da autora, cumpria ao réu
demonstrar o contrário.
96 • capítulo 3
Por esse motivo, aconselha-se ao aluno que, antes de ele iniciar a sua pro-
dução textual, deve estabelecer um planejamento a ser seguido, com as respec-
tivas ideias, apresentando o encadeamento delas, para não comprometer o ra-
ciocínio lógico, a coesão e a coerência do texto.
capítulo 3 • 97
argumentação jurídica. A forma verbal deve ser usada na terceira pessoa do sin-
gular, no presente do indicativo (atemporal) e em forma de paragrafação.
Conforme já visto a estrutura da argumentação jurídica deve apresentar as
seguintes partes para facilitar a compreensão e alcançar a clareza textual: intro-
dução, desenvolvimento e conclusão.
Na introdução apresenta-se a tese, seguida de elementos fáticos valorados,
que passam a ter função de argumentos, e que estão a serviço da sustentação da
tese; no desenvolvimento entram aqueles elementos de comprovação (provas),
juntamente acompanhado dos demais argumentos que fundamentarão a tese
e, finalmente, a conclusão com o pedido feito ao juiz. Segue a estrutura a ser
feita a cada parágrafo argumentativo:
Essa estrutura deve estar presente em cada um dos parágrafos que com-
põem a argumentação, em busca de um texto consistente, inteligível, persua-
sivo, claro e coeso.
O tipo de argumento mais adequado para a introdução é o argumento por
vínculo causal ou argumento de causa e consequência, que é muito elucidati-
vo, porque contém as partes processuais envolvidas (autor e réu), nexo causal
(conduta e resultado ou obrigação/dever e descumprimento da obrigação/ina-
dimplência, por exemplo) e a tese a ser defendida. Esse tipo de argumento já
esclarece toda a situação fática ocorrida entre as partes. O conector argumenta-
tivo adequado para esse tipo de argumento é o causal.
Observe a construção de um parágrafo argumentativo por vínculo causal:
O fornecimento da água não pode ser interrompido por inadimplência do autor, por-
que, por se tratar de serviço público fundamental, é essencial e vital ao ser humano,
não podendo, assim, ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas,
uma vez que o Poder Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos
dos usuários. (Doc.fls.6)
98 • capítulo 3
Nota-se que o advogado da parte preocupou-se com a comprovação das con-
sequências jurídicas, advindas dos fatos narrados, a norma jurídica aplicada
ao fato, à luz do ordenamento jurídico, buscando persuadir o juiz sobre a con-
sistência da tese diante dos fatos narrados e comprovados. As provas descritas
(Doc.fls 6) têm efeito de veracidade e convencem quanto aos fatos narrados.
Foi-lhe dito que, ao completar a segunda etapa da estrutura da argumen-
tação jurídica - o desenvolvimento-, o advogado passa ao tópico final: o pedi-
do. As etapas anteriores devem ser bem elaboradas, principalmente o desen-
volvimento, demonstrando de forma bem objetiva e concisa o que se pretende
que o magistrado conceda ao advogado da parte, havendo, pois, uma ligação
lógica e coerente não só entre as ideias ou argumentos apresentados a cada
parágrafo, mas também entre os próprios parágrafos apresentados no corpo
da argumentação jurídica e toda essa relação de sentido entre os argumentos
apresentados devem estar direcionados ao pedido, que está ligado diretamente
à tese defendida.
Portanto, o advogado, na conclusão da argumentação, após toda a exposi-
ção feita no desenvolvimento da tese, deve resumir a intenção de seu pedido:
capítulo 3 • 99
LEITURA
ELUF, Luiza Nagib Eluf. A paixão no banco dos réus. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
100 • capítulo 3
OPERADOR /CONECTOR FUNÇÃO
Distribuem-se em escalas opostas, isto é, um
‘um pouco’ e ‘pouco’, ‘quase’ e ‘apenas’, ‘só’, deles funciona numa escala orientada para a
‘somente’ afirmação total e o outro, numa escala orientada
para a negação total.
‘e’, ‘também’, ‘ainda’, ‘nem’ (= e não), ‘não só... São argumentos que fazem parte de uma mesma
mas também’, ‘tanto...como’, ‘além disso’, ‘além classe argumentativa, isto é, somam argumentos
de’, ‘a par de’ a favor de uma mesma conclusão.
Introduz um argumento decisivo, resumindo todos
‘aliás’
os demais argumentos.
São responsáveis por introduzir no enunciado
‘já’, ‘ainda’, ‘agora’
conteúdos pressupostos.
§ lº: É fato provado e incontroverso (NCPC, 373, I; 374, III) o aponte do nome do
autor no cadastro de restrição ao crédito (fls. 15), muito embora inexistente qualquer
inadimplemento (fls. 17/28). Ou seja, no momento da inclusão, inexistia um dos re-
quisitos legais para tanto: a inadimplência do devedor (S.323 STJ; S.90 TJ/RJ a con-
trario sensu). O ilícito é flagrante, consubstanciado na conduta abusiva da ré, contrária
ao megadever jurídico da boa-fé (CR, 1º, III; CC, 187, 422; Lei 8.078/90, 4º, caput, III,
VI; 42, caput; 43, §1º), do que resulta inequívoca a responsabilidade da apelada.
capítulo 3 • 101
são usadas com a intenção de desprestigiar, de pronto, qualquer outra tese que
possa vir em direção contrária.
O operador, “Ou seja”, tem a função geral de introduzir uma asserção deri-
vada que visa a um ajustamento ou a um ajuste de precisão de sentido. O produ-
tor de texto deve ficar atento para que esse conector não seja usado inadequa-
damente, tornando-se um vício de linguagem (“muleta argumentativa”).
É muito comum, em textos jurídicos, deparar-se de forma excessiva e ina-
dequada quanto ao uso dessa expressão que se volta para informar um sentido
preciso ou mais esclarecedor do que foi dito antes. Na maioria das vezes, é usa-
da pela dificuldade que demonstra o produtor do texto em articular os parágra-
fos entre si com os elementos coesivos adequados àquela situação semântica
estabelecida entre eles.
Assim, os operadores, isto é, quer dizer, ou melhor, ou seja, entre outras
expressões visam a esclarecer, retificar, desenvolver ou explicar uma enuncia-
ção anterior e só quando houver, realmente, necessidade devem ser utilizados.
No caso em análise, visa a dar um entendimento preciso à asserção anterior,
reforçando que, no momento da inclusão“[...]do nome do autor no cadastro de
restrição ao crédito[...]”, pois, não havia termo legal para a conduta praticada, o
que passou a ser entendido como medida ilícita e abusiva por parte da ré.
Os conectores “mas” e “embora” expressam relação de restrição entre ele-
mentos semânticos explícitos ou implícitos. O conector “mas” nega os argu-
mentos da outra asserção, ele quase sempre frustra uma expectativa. E o conec-
tor “embora” nega o argumento do segmento em que aparece. Assim sendo, o
“mas” restringe uma conclusão a partir da primeira ideia (implícita) e, o “em-
bora” é sinalizador de um argumento mais fraco daquele que seguirá depois. O
uso de um ou outro depende do tipo de estratégia empregada pelo relator (ou
produtor de texto).
Nesse primeiro parágrafo, percebe-se, nitidamente, que o relator faz uso de
uma precisa modalização da linguagem, mediante uma estratégia argumenta-
tiva persuasiva, por uma criteriosa seleção vocabular, com a finalidade de des-
tacar, de imediato, o posicionamento ou a tese dele, diante do caso concreto: “É
fato provado e incontroverso”; “inequívoca”, além de outros vocábulos.
O relator lança a sua tese, fazendo uso do argumento de vínculo causal, já
delimitando, pois, o nexo causal: “o aponte do nome do autor no cadastro de
restrição ao crédito, destacando a inexistência um dos requisitos legais para
102 • capítulo 3
tanto e conduta abusiva da ré (causa/conduta) do que resulta inequívoca a res-
ponsabilidade da apelada”. (consequência/ resultado).
Por fim, o relator ressalta o uso do Princípio da Boa-Fé que rege os negócios
jurídicos, com o objetivo de enfatizar a conduta ilícita por parte da ré (litigância
de má-fé), reforçando-se, assim, a tese apresentada.
Observação: É muito importante nesse primeiro parágrafo que serve de in-
trodução à fundamentação ou à argumentação, o advogado ou jurista já des-
creva as partes envolvidas (autor e réu), nexo causal (causa e a consequência
ou conduta e resultado) e tese a ser defendida, marcando de forma acentua-
da o lugar da fundamentação ou argumentação. Os conectores utilizados nes-
se tipo de argumento de causa e consequência ou pragmático são os causais:
porque, como, visto que, uma vez que, já que; lembrando-se sempre de que o
único conector causal que pode iniciar um período é o COMO. Os demais co-
nectores causais só podem ser usados após a oração principal, nunca iniciando
um período.
capítulo 3 • 103
consoante as regras dos artigos 14 e 17 do Código de Defesa do Consumidor”.
Estão nesse mesmo campo semântico os conectores “aliás”, “além do mais”
entre outros.
O conector “como tal” soma argumentos a favor de uma mesma conclusão.
Já o conector “Além disso” encadeia duas escalas orientadas no mesmo senti-
do: ser a ré responsável pelo dano causado, reforçando, assim, o dever de ela in-
denizar, que é a tese desejada. Com essa mesma finalidade usam-se os demais
conectores, como “não só... mas também”; nem, e; “além de”; “além disso”;
“também”. Logo, esses conectores acrescentam mais um argumento que passa
a ser decisivo, quando há duas ou mais escalas (hierarquização) orientadas no
mesmo sentido.
Pode-se, ainda, destacar que o operador “também” liga dois atos de afirma-
ção do relator do texto: um consiste em uma afirmação do fato e o outro, em
uma afirmação atenuada: “de sorte que, provado o fato, provado está o dano
moral”. Em um raciocínio silogístico, as premissas trazem a seguinte conclu-
são: logo não há como o relator negar esse nexo causal- reafirmando a tese prin-
cipal proposta inicialmente.
O conector “de sorte que” – assim como tão...que; tanto...que; tal... que- ex-
plicita relação de consequência, efeito de ação: “provado o fato, provado está o
dano moral”.
Nesse segundo parágrafo, o relator busca um discurso argumentativo com
eficácia, fazendo uso, mais uma vez, do argumento de vínculo causal, pois volta
à cena o nexo de causalidade, descrevendo o jurista a causa geradora do dano e
o resultando advindo dela (dano moral) e introduz, ainda, dois argumentos de
autoridade: Código de Defesa do Consumidor (CDC) e entendimento doutriná-
rio sobre a questão como legitimação da tese apresentada.
104 • capítulo 3
Há nesse terceiro parágrafo da fundamentação do Acórdão uma série de
advérbios atitudinais cuja função é esclarecer ou confirmar um ato de asser-
ção anterior, utilizados como recursos argumentativos: “consequentemente”;
“implicitamente”; “exclusivamente”. Esses elementos utilizados, como recur-
sos retóricos-argumentativos, traduzem, claramente, o sentimento do relator
diante do caso concreto em questão que, sem dúvida, representam um julga-
mento por parte do relator. Inclusive, o advérbio consequentemente, estudado
por muitos como conector pospositivo conclusivo, inicia o período como estra-
tégia para convencer e persuadir o leitor, apresentando, de pronto, a conclusão
do raciocínio, como se outra não pudesse existir.
Há, nesse parágrafo, a presença do argumento de autoridade, pois o fato
de existir um verbete sumular específico tratando desse tema, favorece a defe-
sa da tese do Relator, em julgar esse caso, indo ao encontro do entendimento
sumular. Por outro lado, esse mesmo verbete sumular será usado como argu-
mento de autoridade a serviço também da tese proposta por ele. Assim como
pela presença da expressão “sobejamente demonstrados”, tem-se a presença
do argumento de prova documental, anexado ao processo.
O conector “consoante” que é de conformidade ou acordo pacífico nos
Tribunais já antecipa a mínima probabilidade de êxito em uma fundamenta-
ção contrária à tese apresentada.
capítulo 3 • 105
Quanto ao emprego do conector para (= para que), a relação estabelecida
por meio desse conector exemplifica um caso de frases ligadas, visto que a rela-
ção entre elas é de dependência, ou seja, constituem operadores do tipo lógico
e, como tal, encerram relação de finalidade.
As ocorrências do conector “e”(figura de linguagem chamada polissíndeto)
introduzem um ato de asserção, aparente, apenas acrescentando algo ao an-
terior, mas que, na verdade, organizam uma escala argumentativa, na qual os
argumentos não são apenas justapostos mas se intensificam e se somam, em
uma reiteração estilística, em busca de convencimento e/ou persuasão; no caso
em questão apenas convencimento, por se tratar de fundamentação de uma
peça decisória, sem necessitar da adesão do auditório para a tese que se propõe.
O operador “ainda” serve para orientar o discurso e introduzir o argumento
forte a favor da conclusão que será apresentada nos próximos parágrafos.
Há, também, no quarto parágrafo, a presença do argumento por enumera-
ção e definição dos termos jurídicos nos quais o relator enquadrará a conduta
ilícita e de má-fé da ré, como resultado de indenização punitiva pelo dano mo-
ral, comportamento do ofensor e outros fatos a ela relacionados.
Como exemplos de enumeração têm-se: verba indenizatória, prática abusi-
va, indenização por dano moral, princípio da exemplaridade.
Nesse tipo de estratégia retórico-argumentativa, o relator faz um apanhado
das consequências, com modalizações deônticas, de obrigatoriedade, como
“deve ser”, advindas da causa geradora da ação, como reforço a tudo que foi ar-
gumentado e para melhor entendimento por parte dos leitores. Portanto há, na
verdade, uma retomada de toda a fundamentação apresentada em relação aos
fatos e ao direito, feita nos parágrafos anteriores, em busca do convencimento.
Assim como, o relator, também, se prepara para o fechamento da sua funda-
mentação, momento em que dará a sua decisão (dispositivo).
Na verdade, nos dois últimos parágrafos, o relator já começa a cumprir com
a norma constitucional, em seu artigo 93, inciso IX. Trata-se, aqui, do livre con-
vencimento motivado, já que o justo processo, garantia do cidadão, precisa tra-
zer uma decisão amplamente justificada, não só em relação ao Direito aplicado,
mas também em referência aos fatos que foram levados em consideração para
se tomar a decisão. Sua importância fundamental é que a motivação quanto aos
106 • capítulo 3
fatos será reflexo do Direito à prova no processo, que consiste não só em um
direito à valoração das provas, mas sobretudo em um direito à motivação que
exprima e explique, de forma expressa e completa, a avaliação realizada pelo
Magistrado sobre elas.
§ 5º: Certamente, a reparação por dano moral não pode ser fonte de lucro indevido
àquele que a postula, sob pena de se ensejar novo dano. Entretanto, não é menos
certo que sua fixação não pode ser tão moderada a ponto de estimular a continui-
dade de comportamentos abusivos, contrários aos maiores interesses da sociedade.
Daí a afirmação de a indenização possuir natureza dúplice: compensatório-punitivo.
Esses dois aspectos da reparação merecem equilibrada consideração, quando da
apreciação judicial dos fatos. Sendo assim, afigura-se adequado o arbitramento de
indenização no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
capítulo 3 • 107
§ 6º: Quanto ao percentual relativo à verba honorária, nada a reparar. Não se nega
e nem se olvida a importância do causídico (advogado) na defesa dos interesses e
direitos do seu cliente, cujo mister configura verdadeiro múnus público [que denota
"o que procede de autoridade pública ou da lei, e obriga o indivíduo a certos encargos
em benefício da coletividade ou da ordem social"]. Tal qual preceitua a Constituição
da República, cuida-se de função essencial à Justiça (CRFB, 133). Entretanto, a
causa ora apreciada é de pouquíssima complexidade, não só ante a robusta pro-
va dos autos, mas também em razão do entendimento pacificado nesta Corte
(verbete sumular nº 89).
108 • capítulo 3
qualquer linha de pensamento oposta à do relator. É uma estratégia discursiva
brilhante para reafirmação e fortalecimento da tese apresentada.
Há, nesse parágrafo não só a presença do argumento de autoridade (artigo
133 da CRFB e verbete sumular), mas também o de provas documentais robus-
tas constantes dos autos, conforme abordado há pouco.
§ 7º: Isso posto, dá-se parcial provimento ao recurso, para se reduzir o quantum
indenizatório para a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), mantida a sentença nos
seus demais termos.
capítulo 3 • 109
A Retórica é definida por Aristóteles como arte de procurar, em qualquer
situação os meios de persuasão disponíveis. Esse conceito é ampliado pelo filó-
sofo Chaim Perelman, ao afirmar que o objetivo da Nova Retórica é o estudo das
técnicas discursivas que visam a provocar ou aumentar a adesão das mentes às
teses apresentadas.
Para se elaborar uma argumentação jurídica é necessário construir argu-
mentos, aduzir raciocínios que a constituem e para isso é necessário conhecer
alguns tipos, entre muitos outros existentes, para maior consistência em sua
construção. Dessa forma, as possibilidades de construções argumentativas são
bastante numerosas, razão por que a classificação de alguns dos argumentos, a
seguir, é meramente didática.
110 • capítulo 3
A argumentação desenvolve-se, nesse caso, de uma forma análoga: o aconte-
cimento garante certas consequências; algumas consequências previstas,
que, caso se realizem, contribuem para provar a existência de um fato que
as condiciona.
Observe como este parágrafo argumentativo, entremeado de tom narrativo,
que inicia a fundamentação de um Acórdão apresenta esse tipo de argumento:
capítulo 3 • 111
trabalhando assim com fato e consequências, advindas de cada um deles, antes
de iniciar o mérito da Apelação.
112 • capítulo 3
Há, entretanto, algumas diferenças entre as duas construções – MAS e
EMBORA. Nesta, é o argumento mais fraco que vem introduzido por conector;
naquela, é o mais forte. Isso ocorre, porque embora tenha valor de concessão, e
mas, de restrição, o argumento concessivo, por representar o ponto de vista do
opositor, é obviamente o mais fraco; o argumento restritivo, por representar o
ponto de vista do locutor, é o mais forte, o que prevalece.
É conveniente chamar a atenção, ainda, para as implicações da opção por
estruturas com embora ou com mas. O jogo enunciativo composto da oposição
entre os enunciadores, da orientação argumentativa e da articulação entre as
duas orações cria vários caminhos na organização textual (GUIMARÃES, 1987,
p. 121), pois quando o locutor (emissor) opta por uma estrutura do tipo X MAS
Y, ele estabelece com o alocutário(receptor) um começo a que se opõe imedia-
tamente. Trata-se, nos termos de Guimarães (1987, pp. 120,121), da estratégia
do suspense, estratégia que frustra a expectativa criada pelo que se deu no co-
meço, o enunciado concessivo/restritivo.
Se a opção for por EMBORA Y, X, o locutor apresenta como começo algo que
não é predominante, que não é sustentável na organização argumentativa, e
esse caráter não predominante é antecipado em virtude de o recorte vir introdu-
zido pelo conector, não criando expectativa nenhuma no receptor.
O processo de concessão – coordenativo e subordinativo – é um dos meca-
nismos que podem ser utilizados para se contestar os argumentos do outro. A
concessão é um tipo de manobra capaz de persuadir o leitor, uma vez que, con-
cordando com o adversário, pode-se tanto se conciliar com ele quanto tornar
mais fácil ao adversário assimilar os argumentos que são contrários a ele.
Na coordenação, que é representada simplificadamente pelos enunciados
do tipo E MAS S, o locutor apresenta não somente seu ponto de vista, mas tam-
bém o ponto de vista do outro.
Na subordinação, por sua vez, o locutor, por meio da estrutura concessiva,
anuncia a relevância do argumento do outro, reconhecendo a sua legitimidade.
Percebe-se, portanto, que, enquanto a concessão coordenativa estabelece
um contraponto à ideia principal, a subordinativa promove uma conciliação
“aparente” entre os argumentos contrários. Entretanto, é importante ressaltar
que, nesse processo de conciliação, leva-se em conta a argumentação alheia até
certo ponto, ocorrendo uma pseudogenerosidade, uma vez que se tem o objeti-
vo de valorizar a posição do interlocutor. Observe:
capítulo 3 • 113
[...]. Embora o desvio da rota do coletivo para a garagem não tenha sido autorizado
pela ANTT, não há nenhum indício nos autos de que os passageiros tenham sido
previamente informados, antes de contratar o transporte com a ré, de que o percurso
para São Paulo incluiria um desvio para a garagem da ré, fora da rota regular dos
veículos terrestres que se dirigem para São Paulo, próximo a local perigoso e durante
altas horas da noite.
“O pedido do autor não deve ser acolhido, porque o réu, embora abalroando o automó-
vel do autor, nenhuma responsabilidade teve pela colisão, à medida que foi projetado
contra aquele outro, em razão do impacto produzido exatamente pelo ônibus que lhe
seguia atrás.”
ATENÇÃO
Contra-argumentação
Um modo bastante eficiente de organizar um texto argumentativo é antecipar os argu-
mentos contrários à posição que se pretende defender. Uma vez expostos os argumentos
alheios, o advogado pode buscar contra-argumentos, ou seja, fatos, dados, reflexões que
demonstrem por que os argumentos contrários à posição sustentada no texto poderiam ser
questionados. Essa estratégia faz com que o advogado pareça uma pessoa ponderada, ca-
paz de analisar diferentes pontos de vista, o que reforça a ideia de que a perspectiva por ele
defendida é a mais razoável.
114 • capítulo 3
além de outras fontes do Direito, pelo recurso da intertextualidade para assegu-
rar a defesa de sua tese. Por exemplo:
[...] Enquanto o artigo 544 do Código Civil define a propriedade como “o direito de
gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, contando que não se faça em uso
proibido pelas leis ou pelos regulamentos”, a teoria do abuso de direito insiste no fato
de que os direitos subjetivos não podem ser exercidos de modo contrário ao interesse
geral. Ao estabelecer que se exerça o direito de propriedade de um modo que não
seja, sem utilidade para o proprietário, prejudicial a outrem, a doutrina e a jurisprudên-
cia introduzem uma limitação no direito de propriedade que não havia sido prevista
pelo artigo 544.
‘[...]. Como é do entendimento dominante, o Estado só poderá ser responsabilizado
pelos danos causados por atos judiciais típicos nos casos previstos no art. 5º, inciso
LXXV, da CR/88, o qual contempla as hipóteses do condenado por erro judiciário e
daquele que ficar preso além do tempo fixado na sentença. Contudo, na hipótese dos
autos, como a prisão preventiva foi regularmente decretada, em consonância com as
normas constitucionais e legais pertinentes, a superveniente rejeição da queixa-cri-
me por falta de justa causa ao prosseguimento da ação penal não tem o condão de
transformá-la em ato ilegal/abusivo, apto a caracterizar o erro judiciário. Improcede,
portanto, o pedido indenizatório.
capítulo 3 • 115
persuadir porque são transformadas pelos advogados das partes em argumen-
tos de prova.
Todo argumento, entretanto, pode ser contestado a parte adversa pode tra-
zer outras arguições que busquem comprovar tese contrária.
Conforme demonstra Rodriguez (2004, p.231), é possível contra-argumen-
tar o argumento de prova de duas formas: apresentar argumento que diminua
o valor impingido pela parte contrária à prova que traz” e apresentar outro ele-
mento de convencimento “mais forte que a prova da parte adversa.”
Portanto, a prova é capaz de convencer quando elaborada como argumento
de prova, se o advogado ou julgador as transforma em argumentos convincen-
tes e persuasivos.
Exemplo:
O próprio médico que prestou depoimento às fls. 21 informou que, quando alguma
criança nasce com problema, nas 24 horas seguintes ao nascimento, a clínica trans-
fere o recém-nascido para a UTI Neonatal para receber o tratamento devido; mas isso
não foi feito com o menor, o que torna a ré responsável por sua morte em decorrência
da sua conduta negligente, pois tinha o dever de cuidar do paciente e não o fez.
116 • capítulo 3
Imaginemos que ela seja condenada pelo Júri, a 26 anos de prisão, pois é homicida,
porque infringiu as leis penais, uma vez que matou um homem – e o discurso do
promotor conduziu os jurados a essa verdade.
Imaginemos agora que ela é absolvida, pois a retórica de seu advogado foi de tal for-
ma bem conduzida que trouxe à tona novos elementos, que, aos olhos do Júri, foram
suficientes para convencê-los da injustiça que estaria sendo cometida caso fosse
aquela mulher enviada à prisão.
Imaginemos que esse advogado falou aos jurados sobre a história do sofrimento das
mulheres, sobre machismo, sobre os espancamentos constantes e a humilhação a
que esse marido assassinado submetia diariamente sua esposa.
Imaginemos que ela realmente matou o seu marido, mas em legítima defesa. De sua
vida e da vida do filho que carregava em seu ventre. Não se trata, garante o advogado,
de uma homicida, mas de uma vítima. Vítima de uma história de humilhação e sofri-
mento, de um sistema milenar de opressão.
A esse respeito não se pode esquecer de que o Juiz é o destinatário direto da prova,
consoante disposto no art. 130 do CPC, e, portanto, possui a faculdade de indeferir
aquelas que julgar protelatórias ou desnecessárias para a solução da controvérsia, em
alinho, também, com o art. 33 da Lei 9.099/95.
capítulo 3 • 117
Nesse diapasão, o decisum alvejado se encontra em perfeita harmonia com
a legislação pátria e a jurisprudência dominante nesse Egrégio Tribunal de
Justiça, conforme se depreende do julgado abaixo:
118 • capítulo 3
O argumento a fortiori também pode ser a maiori ad minus e, se aplica para
normas permissivas: “Quem pode o mais pode o menos”, Rodriguez (2004,
p.255) explica o brocardo: “se a lei concede certo benefício a alguém, com cer-
teza concede um benefício menor, que está contido nele” O argumentante usa
de simplicidade e persuasão ao pedir que seja concedido “com mais razão (a
fortiori)” um benefício a um crime menos grave, partindo do pressuposto que o
crime mais grave obteve o tal benefício. “Esse argumento tem por base a lógica
jurídica, a proporcionalidade entre as penas e, assim, os benefícios legais de-
vem também resguardar um mínimo de proporcionalidade”.
Pois bem, se o querelante pode oferecer queixa crime quando faz a prova da autori-
zação do entrevistado para a publicação dos ditos ofensivos, depreende-se, contrario
sensu, que não o pode fazer se não realizar, anteriormente, essa mesma prova.
capítulo 3 • 119
Se o advogado deseja uma argumentação contrario sensu convincente, pri-
meiro deve observar se ela é racionalmente possível, não sendo, o argumento
perde sua razão de convencer. A desconstrução deste argumento, pela parte
contrária, se dá pela análise do argumento contrario sensu, se é observada sua
inviabilidade deve-se demonstrar tal impossibilidade, o que desconstituiu o ra-
ciocínio contrário sensu.
Esse tipo de argumento é muito usado em Direito. Doutrina e jurisprudên-
cias, muitas vezes, revelam a mesma tese que se quer defender, mas de prisma
inverso, por exemplo: aceita-se a incidência de uma norma jurídica porque está
presente um requisito, enquanto se quer defender, no caso concreto, e a não
incidência dessa mesma norma jurídica, por causa da ausência desse requisito,
dependendo do interesse de cada um. Nesses casos, é lícito ao advogado a cons-
trução do raciocínio contrario sensu, que não é raro na comunidade forense
(RODRÍGUEZ, 2002, p.246).
É o argumento que traz declarações aceitas pela maioria, sendo difícil comba-
tê-las. No Direito, poucas teses específicas são de senso comum, porque a con-
cordância quanto à interpretação da lei é rara. Ainda pode-se dizer, segundo
Rodriguez (2004, p.263), que essas declarações trazidas pelo argumento de sen-
so comum não podem ser negadas pela parte contrária, pois são óbvias. Ape-
sar, de parecer convincente, até porque não aceita réplica, esse argumento tem
força de persuasão fraca, “pois seu alcance é por demais vago, obtuso” além do
que, as duas partes do litígio podem utilizá-la.
Dessa forma, para garantir a eficácia desse argumento, ele deve estar acompa-
nhado de outros argumentos que lhe venham a dar sustento. Nas lides judiciais,
o argumento de senso comum funciona dando mais ênfase ao texto, “como um
recurso retórico”, sua utilização deve ser com o objetivo de reforçar o contexto do
que se pretende. Caso contrário, a argumentação aproxima-se do lugar comum.
O combate desse tipo de argumento pela parte contrária é feito pedindo-se argu-
mentações mais pertinentes ou exigindo comprovação de que houve “violação
aos princípios aceitos por unanimidade” (RODRIGUEZ, 2004, p. 264-265).
120 • capítulo 3
3.6.9 Argumento por Modelo
O advogado de defesa Nilo Batista, em sua tese em relação a X, que matou a sua mulher
a facadas, argumentou que seu cliente havia matado a mulher em legítima defesa, sob
violenta emoção, e para isso recorreu às falas de Otelo.
O advogado, para persuadir de sua tese o 2º Tribunal do Júri, fez várias citações da peça
Otelo – o mouro de Veneza, de Shakespeare (1995, p. 705).
Começou repetindo Iago, o vilão que convence Otelo de que Desdêmona o traíra, inclusi-
ve, com direito à dramatização, pois o advogado convidou o ator Antônio Alves para ence-
nação de alguns fragmentos da obra, enquanto o próprio advogado de defesa os recitava.
(Iago) Ó meu senhor, tomai cuidado com o ciúme! É o monstro
de olhos verdes que se escarnece do próprio pasto em que se alimenta! Vive feliz o
cornudo que, ciente de seu destino, detesta o ofensor; mas, oh! Que minutos maldi-
tos conta àquele que ama e, não obstante, duvida; aquele que suspeita e, contudo,
ama loucamente.
[...]
(Otelo) [...] deveis falar de um homem que não amou com sensatez, mas que amou de-
pois; de um homem que nunca teve ciúmes, mas que, uma vez provocado pelo ciúme,
inquietou-se ao extremo.
[...]
(Otelo) Eu te beijei antes de matar-te. . . não havia outra saída
senão matar-me para morrer sobre teu beijo! [...] açoitem-me, diabos para longe desta
visão celestial.
[...]
Ao final do julgamento, o Réu saiu a pé do Tribunal junto com três amigos e foi-lhe
aplicada uma pena justa, segundo Nilo Batista: quatro anos em regime aberto. Os
argumentos persuadiram o Tribunal do Júri. (“Jornal do Brasil”, 25/5/2001).
capítulo 3 • 121
3.6.10 Argumento por Antimodelo
O antimodelo indica o que deve ser repugnado: o não exemplo, e é uma técnica
típica da escola de Górgias, o qual foi a ponta de lança na criação das primeiras
técnicas destinadas a estimular, com meios apropriados, a invenção dos con-
ceitos. Essa técnica parte da convicção de que se, na invenção dos conceitos,
referir-se, como ponto de partida a um modelo precedente, espontaneamente
imitá-lo e, portanto, será difícil dizer algo original.
Perelman (2000, p. 388) notou como essa técnica do antimodelo conjuga a
vantagem de estimular a criatividade a contrário com a de não excluir a possi-
bilidade de derivar alguma ideia ou algum procedimento parcial precisamente
do próprio antimodelo: “É sabido que a competição desenvolve a semelhança
entre antagonistas que acabam tomando um do outro todos os procedimen-
tos eficazes”.
A técnica argumentativa do antimodelo pressupõe a existência prévia de um
tema ou de um conceito e ensina a partir deste para derivar outros. Esse tipo de
argumento foi denominado pela retórica antiga como tópica, ou como “ciência
dos lugares dos argumentos”. Tal ciência tem como seu instrumento essencial
a localização do argumento dado para depois buscar outros que se encontrem
no lugar mental mais próximo de tal localização.
Em um outro caso concreto semelhante, trazendo como réu Augusto
Eduardo da Rocha Monteiro Gallo, a acusação utilizou-se do mesmo texto de
Shakespeare só que como um antimodelo, ou seja, a acusação utilizando-se das
falas de Otelo, sem nenhuma encenação, tentava persuadir o Tribunal do Júri
da sua tese em uma linha do homicídio qualificado, indesculpável.
Disse o promotor de Justiça Alcides Amaral Salles, por ocasião do recurso da
pronúncia, citando Nélson Hungria (ELUF, 2002, p. 53):
122 • capítulo 3
defesa da honra. Os jurados consideraram que ele agiu moderadamente, sem
nenhum excesso em sua conduta ao matar a esposa. Ficou livre de qualquer
penalidade (ELUF, 2002, p. 53).
A eficácia retórica de um antimodelo define-se pela inversão e negação ir-
restrita dos atributos que ele leva em conta, ou seja, o antimodelo é tão mais
eficaz à medida que em nenhum ponto do modelo sugerido encontre paridade
com o antimodelo (PERELMAN, 2000). Surge, assim, uma estratégia retórica
inversa, definida a partir da negação de um antimodelo sobre o qual se estabe-
leceu um consenso negativo.
capítulo 3 • 123
O argumento pelo absurdo consiste, de modo geral, em se refutar uma as-
serção, mostrando-lhe a falta de cabimento ao contrariar a evidência. É o argu-
mento contrário à razão ou que está para além dos limites da racionalidade. No
exemplo dado, absurdo foi o argumento do primeiro ao dizer que o cordeiro lhe
turvava a água, porque este (o cordeiro) estava muito mais abaixo.
O filósofo Perelman explica que o ridículo está para a argumentação, assim
como o absurdo para a demonstração. A figura que bem elucida esse fato é a iro-
nia, pretendendo desqualificar a tese pelo riso. Segundo, ainda, o filósofo (2000, p.
219), o empenho em dirimir incompatibilidade é muito comum a todos os níveis
da atividade jurídica, característico do legislador, do teórico do Direito e do juiz.
COMENTÁRIO
Viu-se, neste primeiro momento, que o planejamento implica a escolha de argumentos, bem
como a sequência e a técnica de sua apresentação e que não há força persuasiva de um
argumento isoladamente porque ela depende da forma como ele articula em uma rede de
vários argumentos, isto é, como os argumentos se articulam entre os vários parágrafos que
constituem o corpo textual da argumentação jurídica.
É necessário, portanto, verificar se os argumentos selecionados vão, de fato, contribuir
com a linha de raciocínio escolhida para a tese. Os argumentos devem ser selecionados
isoladamente, mas é importante verificar se eles todos são realmente cabíveis e coerentes
quando agrupados no corpo textual.
O importante no texto argumentativo não é a sofisticação da linguagem, mas a clareza,
a concisão (objetividade), a qualidade dos argumentos apresentados, organizados mediante
um raciocínio lógico e coerente, originados de uma seleção madura de fatos relevantes que
compõem o caso concreto.
Utilizar-se de uma linguagem mais viva, mais dinâmica, usando apenas de termos ou ex-
pressões latinas que façam parte do domínio comum e constantes da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil/88 torna o texto mais criativo e coerente; assim como a eliminação
da maioria dos brocardos jurídicos já envelhecidos com o tempo.
A propósito disso, Machado de Assis, nosso escritor maior, deixou-nos, já em 1873, a se-
guinte lição: "Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as neces-
sidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro
igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas”.
Há, portanto, certos modos de dizer, que devem ficar esquecidos por terem se tornado
anacrônicos ou em desuso. Não se deve esquecer também de que o Latim saiu dos bancos
124 • capítulo 3
escolares, aproximadamente, na década de 70. Logo, ninguém pode falar e/ou escrever em
uma língua que nunca aprendeu. A competência linguística é também fator fundamental no
alcance da persuasão, além de ser também um forte instrumento de construção da sua ima-
gem na sociedade e na comunidade jurídica.
ATENÇÃO
Ao interpretar o fato, busque o sentido de acordo com as fontes de direito, nada de inter-
pretações pessoais, passionais ou preconceituosas para não fragilizar os seus argumentos.
Ao estudar o caso concreto, fique atento aos fatos, às provas a serem apresentadas e às
circunstâncias (tipificação da conduta, descaracterização da conduta, agravantes, atenuante)
em que eles ocorreram e o Direito que os regula. Não se esquecer de escolher o tipo de
raciocínio que será utilizado a cada parágrafo: dedutivo (geral para o particular) ou indutivo
(particular para o geral), dentro da linha de pensamento da razoabilidade, sabendo sempre
que todo parágrafo irá apresentar introdução (fato), desenvolvimento (valor- fato/argumento)
e conclusão (norma ou conhecimento jurídico aplicado ao argumento do parágrafo).
capítulo 3 • 125
proposições e os juízos descritivos são proposições ou juízos racionais que se
podem qualificar de verdadeiros ou falsos, acabando por ser o tópico basilar da
argumentação forense.
Ao se considerar esse entendimento sobre o discurso jurídico, parte-se do
pressuposto que uma interpretação deve ser ativa, construtiva, e não passiva e
meramente descritiva.
Os valores, juridicamente considerados, não se confundem com os modis-
mos nem com a comoção pública, pois estes são inconstantes. Ao contrário, os
argumentos de valor impõem-se como instrumentos de estabilidade, demolin-
do conduta ultrapassada, em busca da vivificação e da efetivação do Direito e
forma mais justa, razoável e humana, por isso deve estar sempre contextuali-
zado à luz do contexto histórico político-social em que o homem está inserido.
Quando o Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal,
concedeu habeas corpus a um acusado de estupro presumido contra uma me-
nor de doze anos, disse que sempre adota nas suas decisões os padrões do ho-
mem comum.
A situação fática mencionada informou que o acusado manteve conjunção
carnal consentida com uma menor de 12 anos, que não era mais virgem.
Processado o réu, a Sentença condenatória saiu cinco anos depois, quando
ele já era casado e pai de um filho. “Condená-lo por um crime hediondo e pren-
dê-lo em regime fechado se mostrou outro paradoxo. Por que ele e não qualquer
dos outros rapazes que haviam mantido relações antes com a moça?”, funda-
mentou o Ministro. É de conhecimento comum, fundamenta ainda o ministro,
que a prostituição adulta nem sempre, mas a infantil é famélica.
No caso, a presunção legal de violência abrigada no Direito estático foi re-
lativizada no direito em movimento, porque é mais próxima da realidade so-
cial. Assim, se a menor consente na conjunção carnal, tem aparência de l4 anos
de idade ou mais, confessando ela em juízo a ausência de qualquer coação,
conforme o caso, pode-se elidir a presunção legal de violência, fundamenta
o ministro.
O Ministro fundamenta, ainda, em seu voto que, nos tempos atuais (década
de 90), com a televisão e outros meios de comunicação, não se pode presumir a
desinformação da menor sobre o sexo, como era na década de 1940, quando foi
feito o Código Penal brasileiro.
Como se vê, o caso é um típico julgamento de valor, opondo-se ao pensamen-
to do dogma da justiça formal, corrente esta conservadora e muito expressiva
126 • capítulo 3
ainda no Brasil, que defende que a presunção de violência, na hipótese dada,
é absoluta.
O ministro também fundamenta que não é recolhendo em regime fechado
os homens que praticam sexo com as menores soltas na rua que se resolve o
problema da prostituição infantil. Primeiro deve-se atacar o problema de base,
de ordem social.
Por sua vez, a doutrina da presunção absoluta de violência, na hipótese sob
comento, é tão desconforme com a atualidade que, se o namorado, de 18 anos,
transa com sua namorada de 13 anos e 11 meses, por puro amor e paixão, con-
sentido e curtido, poderá ser punido severamente tal qual por assassinato.
É a valoração que assegura a efetividade dos direitos, modificando o conteú-
do de aplicação de regras antigas e até revogando regras ultrapassadas.
O concubinato, por exemplo, já foi muito hostilizado pela sociedade e pelo
Direito. Até que o Supremo Tribunal Federal, sem que a lei houvesse muda-
do, passou a interpretar o direito da união de fato em favor da concubina, re-
conhecendo-lhe direito a pensão do falecido companheiro. Posteriormente, o
Direito Previdenciário evoluiu para também admiti-lo. Até que a Constituição
de 1988 atribuiu pleno efeito à união de fato. A mudança operou-se no campo
dos valores. Por fim, o Supremo Tribunal Federal já proclamou a legitimidade
da união estável entre homossexuais, e a Previdência Social já lhes confere di-
reitos previdenciários.
Em outro caso – mas sem argumento de valor – um rapaz solteiro casou-se
com uma moça que já tinha um filho não reconhecido pelo pai. Em um gesto
nobre, ele registrou a criança como seu filho, dando-lhe, portanto, nome e pai.
Um promotor de justiça da região, de ofício, sem provocação, processou-o
pela prática de ato ilegal e o juiz condenou-o. Aqui, a letra fria do texto violen-
tou o Direito, o direito mais sagrado do amparo à família (arts. 226 e 227, da
Constituição Federal).
Os valores podem ser classificados em materiais e espirituais. Os primei-
ros dizem respeito ao ser humano como ser na natureza; os segundos, como
ser cultural. Entre os espirituais, interessa evidenciar os éticos, como o amor, a
humildade, a honestidade, a bondade, a dignidade; os estéticos ou do belo; os
lógicos e os religiosos; dentre os materiais, os vitais compõem o topo da pirâmi-
de, ocupando a vida o cume, daí derivando a integridade moral e física, a saúde,
a segurança; e os patrimoniais vêm em segundo plano. Mas até estes sobem na
capítulo 3 • 127
espiral quando compõem o piso da dignidade, como a moradia e os bens que a
guarnecem, tornados impenhoráveis pela Lei nº 8.009/90.
LEITURA
A teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale é uma teoria jurídica conhecida internacio-
nalmente. Por essa teoria, Reale superou o simples normativismo jurídico que prevalecia nos
meios acadêmicos e jurisprudenciais de sua época, demonstrando que o fenômeno jurídico
decorre de um fato social, recebe inevitavelmente uma carga de valoração humana, antes de
tornar-se norma. Assim, Fato, Valor e Norma em seus diferentes momentos, mas interligados
entre si, explicariam a essência do fenômeno jurídico; o que confirma ser o discurso jurídico
descritivo, valorativo e normativo.
ATENÇÃO
Do grego axio (apreciação, valoração), a axiologia é a parte da filosofia que estuda os pro-
blemas dos valores, como o bem e o mal, o verdadeiro, o justo. No caso, a axiologia jurídica
é o estudo dos valores jurídicos, na base dos quais está a justiça.
128 • capítulo 3
Para Aristóteles (2005, p.99), alguns meios de persuasão são próprios da
arte retórica e outros não. “As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são
de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras, no modo
como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demons-
tra ou parece demonstrar”. Com essa noção devem-se formar silogismos, isto
é, raciocinar logicamente, compreender o caráter humano e suas virtudes, bem
como entender as paixões ou emoções, e como podem ser provocadas.
Para se alcançar a persuasão por meio de demonstração evidente ou apa-
rente, há por um lado o exemplo e o entimema (=considerar, ponderar, refletir).
Aristóteles considera o exemplo como indução e o entimema como silogismo.
Assim, o filósofo afirma que chama entimema ao silogismo retórico e exemplo
à indução retórica”.
Os entimemas são silogismos retóricos por serem formal ou logicamente im-
perfeitos, suas conclusões não decorrem necessariamente de suas premissas, ao
contrário dos silogismos apodíticos; mas são pragmaticamente úteis se o obje-
tivo é persuadir sem as exigências de rígida coerência lógica, quando esta não é
possível ou mesmo estrategicamente desejável (ADEODATO, 2012, p.359).
Assim, o raciocínio retórico objetiva persuadir alguém a uma ação concreta,
um fazer ou não fazer. Busca influenciar o destinatário do discurso com ele-
mentos diretos e concretos, exigindo uma posição final, uma ação que siga ao
discurso, como forma de aprovação ou não à tese apresentada. O objetivo do
discurso retórico é persuadir, já o do dialético é convencer, já que a natureza do
discurso retórico traz sempre, explícita ou não, uma ordem ou um pedido que
exige do destinatário uma ação específica, segundo a persuasão obtida.
Dessa maneira, a credibilidade do discurso retórico consiste em fazer o ou-
vinte agir de acordo com sua vontade e, para tanto, deve igualar-se à sua vontade,
deve persuadir o destinatário de que sua vontade é aquela proposta pelo discurso.
A participação do destinatário no discurso retórico é ativa, segundo uma
manifestação e identificação de vontade, a saber: do titular do discurso e
seu destinatário.
Por essa razão que a lógica formal não se aplica ao Direito, uma vez que a de-
finição do argumento válido dedutivamente se refere a proposições (premissas
e conclusões) que podem ser verdadeiras ou falsas, por isso a inferência silogís-
tica não funciona com relação às normas. Ao se considerar a norma jurídica,
uma das premissas, pode ser válida ou não, e se baseia num ato de vontade,
não tendo sentido em se falar em verdade ou falsidade. No máximo, fala-se
capítulo 3 • 129
em silogismo normativo ou prático, em contraposição ao silogismo retórico
(ATIENZA, 2006, p.29).
Assim sendo, o entimema ou silogismo retórico é aquele tipo de silogismo em
que as premissas não se referem àquilo que é certo, mas àquilo que é provável, e
tem importância fundamental para a retórica já que, na maioria dos casos em
que estão em jogo assuntos humanos, nem sempre se pode basear a argumenta-
ção apenas naquilo que é verdadeiro, mas apenas no que é verossímil. Destaca-
se, pois, a importância atribuída por Aristóteles ao conhecimento do auditório.
De todo modo, se o discurso jurídico é realizado com finalidade persua-
siva e justificadora, os fundamentos estão presentes no silogismo retórico
ou argumentativo.
Cita-se, como exemplo de raciocínio lógico-formal ou raciocínio dedutivo, o
caso concreto em que “a autora ajuizou uma ação em face do pai, após ter obti-
do reconhecimento judicial da paternidade, por ter sofrido abandono material
e afetivo durante a infância e adolescência e, na primeira instância, o pedido
foi julgado improcedente, mas, em fase recursal, a ministra Nancy Andrighi, da
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), julgou o pedido proceden-
te, fazendo uma crítica às decisões judiciais muito calcadas ainda em axiomas,
e com esta frase Amar é faculdade, cuidar é dever, fundamentou a sua decisão.
Segundo ela, a interpretação técnica e sistemática do Código Civil e da
Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é tratado de for-
ma ampla e irrestrita, regulando inclusive “os intrincados meandros das rela-
ções familiares”.
Para a ministra, porém, não há por que excluir os danos decorrentes das rela-
ções familiares dos ilícitos civis em geral. “Muitos, calcados em axiomas que se fo-
cam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções
–, negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do
descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores”.
ATENÇÃO
O discurso retórico é constituído de argumentos persuasivos técnicos e não técnicos, isto
é, sem arte. Estes são aqueles que já se encontram à disposição do orador; já são dados de
antemão, sem a pesquisa intelectual, como testemunhas, confissões obtidas sob torturas, do-
cumentos e convenções. Já aqueles, os técnicos, são adquiridos mediante método e podem
ser dispostos pelo orador, isto é, criados.
130 • capítulo 3
3.8 Raciocínios: Dedutivo, Indutivo, Dialético
(Ou Jurídico)
Raciocínio é entendido como uma operação mental, uma forma de reflexão or-
denada e coerente que pode ser comunicada por uma expressão verbal. O ra-
ciocínio caracteriza-se por um encadeamento lógico de proposições, que forma
a matéria argumento. O raciocínio se apresenta sob a forma de indução e dialé-
tica. Os raciocínios dedutivos são também chamados explicativos, analíticos e
os raciocínios indutivos, de amplificativos, sintéticos.
O raciocínio analítico ou dedutivo caracteriza-se por um processo que, inde-
pendentemente de provas experimentais, desenvolve-se de uma verdade sabida ou
admitida a uma nova verdade. No raciocínio dedutivo existe o silogismo que a par-
tir de suas proposições, chamadas premissa maior e premissa menor, delas resulta
necessariamente uma conclusão, a qual, se esclarece ou particulariza um ponto,
nada acresce substancialmente ao já sabido. É um conhecimento que se obtém de
forma inevitável e sem contraposição. Como exemplo de raciocínio dedutivo tem-
se uma situação fática em que um homem raspa a casca de uma árvore para fazer
chá para a sua mulher e é preso em flagrante delito por crime ambiental inafian-
çável, sendo colocado em uma cela somente com acusados de homicídio e roubo.
O delegado preocupou-se apenas em fazer a aplicação da estrutura do ra-
ciocínio jurídico, sem valoração alguma do fato e de suas circunstâncias, ou
seja, fez apenas, de forma matemática, informatizada, de forma irrazoável, a
subsunção da norma ao fato, sem considerar em momento algum as circuns-
tâncias em que o fato ocorreu e a sua particularidade, assim como não consi-
derou o princípio da razoabilidade e o da proporcionalidade, embora tivesse
discernimento para tal, em decorrência da sua formação jurídica.
Observe:
capítulo 3 • 131
Josias raspava a casca de uma árvore chamada almesca, em 7 de junho de 2011, em
uma área de preservação permanente que fica às margens do córrego Pindaíba, em
Planaltina (a 44 km de Brasília).
O lavrador disse que usava a casca para fazer chá para a mulher, Erotildes Guimarães.
Ela tem Doença de Chagas. Josias conta que soube que o chá melhorava as condi-
ções dos acometidos pela doença..
Josias foi surpreendido com um tiro para o alto, dado por soldados da Polícia Flores-
tal, quando raspava a almesca.
Preso em flagrante delito, algemado, Josias foi levado para a delegacia, e o lavrador
foi enquadrado na Lei do Meio Ambiente (Nº 9.605/ 98).
Segundo o delegado Ivanilson Severino de Melo, Josias provocou "danos diretos ao
patrimônio ambiental”, crime previsto no artigo 40 da lei. O delito, inafiançável, é puni-
do com 1 a 5 anos de prisão.
Josias foi colocado em uma cela com outros cinco presos, acusados de homicídio e roubo
“A” foi presa em flagrante no Aeroporto internacional de uma grande capital brasileira
tentando embarcar com 2kg de droga para o exterior. O exame pericial comprovou
que a substância apreendida era mesmo entorpecente, cujo uso é considerado proibi-
do por ato administrativo do Ministério da Saúde. As testemunhas confirmaram que a
substância foi encontrada presa por fitas adesivas ao redor da barriga de “A” quando
esta se dirigia para o avião. ”A” confessou o crime.
Logo, em uma aplicação silogística da norma Penal, “A” deve ser condena-
da, não pode ter a pena substituída, deve cumpri-la integralmente em regime
fechado. Isso satisfaz o princípio da universalidade, da igualdade e da justiça
(formal): todas as pessoas devem ser tratadas da mesma forma; todos são iguais
perante a lei.
Agora, trabalha-se individualizando o mesmo exemplo:
132 • capítulo 3
“A” é uma senhora de 60 anos, que mora na zona periférica de uma grande capital
brasileira. Ela foi abandonada há anos pelo marido, mora sozinha e cria um neto de
quatro anos, filho da sua filha. A filha de “A” tem problemas psiquiátricos e não traba-
lha nem tem condições de cuidar do próprio filho. ”A” possui uma “vendinha” próxima a
uma favela, de onde provém todo o seu sustento, de sua filha doente e do seu neto.
O neto de “A” nasceu com um problema congênito - decorrente do uso excessivo de be-
bidas alcoólicas e de drogas por parte da mãe, doente mental, durante a gravidez - que
consiste na perda gradativa da visão: a criança é praticamente cega.
Existe cura para a doença, mas a cirurgia custa cerca de R$ 15.000,00 (quinze mil
reais), e o SUS – Sistema Único de Saúde- não a realiza nem paga a sua realização em
rede privada. Se “A” for encarcerada, o menino ficaria aos cuidados de sua filha, doente
mental, mãe da criança.
“A” nunca cometeu qualquer tipo de crime anteriormente; nunca foi presa ou proces-
sada; sempre trabalhou desde muito nova.
“A”, além da pressão sofrida pelos traficantes da favela em que possui sua “vendinha”,
receberia como pagamento pelo transporte da droga cerca de R$15.0000,00 (quinze
mil reais), dinheiro que usaria para a operação do neto de quatro anos, que com isso
voltaria a enxergar. Provas documentais provaram a existência da doença e a possibi-
lidade de cura cirúrgica. A primariedade de “A” foi provada por sua Folha de Antece-
dentes Criminais. Documentos e testemunhas corroboraram os outros argumentos
apresentados em favor da ré, como o problema da filha e a existência da “vendinha”.
“A” foi condenada por tráfico de drogas. O juiz, contrariando jurisprudência pacífica do
Supremo Tribunal Federal (STF), substituiu a pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade). O Ministério público não
recorreu da Sentença.
No caso concreto, segundo o juiz federal Granzinoli (2009, p.138), foi criada
uma regra de exceção para superar no caso particular à regra geral, a rigor, a
jurisprudência do STF, que veda a substituição da pena. Argumentos particu-
lares existentes no caso concreto, aliados a outras regras previstas no próprio
Código Penal, funcionaram na criação da regra de exceção, pois as decisões
não devem ter em conta apenas a aplicação literal da lei (presunção de lega-
lidade), mas também sua aceitabilidade moral pela sociedade (presunção de
razoabilidade).
capítulo 3 • 133
Diferentemente do dedutivo, tem-se o raciocínio indutivo – utilizado no ra-
ciocínio retórico-que se caracteriza por ser um processo que se desenvolve a
partir dos fatos particulares até atingir uma conclusão de ordem geral, median-
te a qual se possa explicar o que há de constante ou comum nos fatos observa-
dos e em outros da mesma natureza.
Segue mais um julgado que comprova que, de fato, em Direito, o raciocínio
indutivo é o mais justo e razoável, porque se deve analisar caso a caso, visto que
os casos podem ser semelhantes, mas as circunstâncias em que aconteceram
podem ser diferentes, o que justifica a tese de ser o discurso jurídico descritivo,
valorativo e normativo:
A Terceira Seção da Corte decidiu, em 5 de abril e 2012 que atos sexuais com meno-
res de 14 anos podem não ser caracterizados como estupro, de acordo com o caso.
O tribunal entendeu que não se pode considerar crime o ato que não viola o bem jurí-
dico tutelado, no caso, a liberdade sexual. No processo analisado pela seção do STJ,
o réu é acusado de ter estuprado três menores, todas de 12 anos. Tanto o juiz que
analisou o processo como o tribunal local o inocentaram com o argumento de que as
crianças “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”.
A decisão do STJ é uma reafirmação do entendimento do STF (Supremo Tribunal
Federal) sobre a questão. Em 1996, o ministro Marco Aurélio Mello, relator do habeas
corpus de um acusado de estupro de vulnerável, disse, no processo, que presunção
violência em estupro de menores de 14 anos é relativa. "Confessada ou demonstra-
da o consentimento da mulher e levantando da prova dos autos a aparência, física e
mental, de tratar-se de pessoa com idade superior a 14 anos, impõe-se a conclusão
sobre a ausência de configuração do tipo penal”.
Essas decisões reforçam a tese de que o Direito jamais pode sair de uma
máquina porque ele supõe que sejam ouvidas e confrontadas dialeticamente
uma e outra parte no processo. A solução do Direito nasce, assim, do choque
dos discursos contraditórios.
Portanto, em todo litígio de ordem jurídica, cabe considerar, no que diz res-
peito ao raciocínio e, independentemente das questões de procedimento, três
aspectos, que são: a prova dos fatos, a sua qualificação e as consequências le-
gais daí decorrentes, levando-se em consideração o sistema de Direito em vigor.
134 • capítulo 3
Como se vê pelo exemplo dado, a indução é um processo mental por inter-
médio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados,
infere-se uma verdade geral ou universal, não contida nas partes examinadas.
Portanto, o objetivo dos argumentos indutivos é chegar a conclusões cujo con-
teúdo é muito mais amplo do que os das premissas nas quais se basearam.
O estudo de Perelman, quanto aos tipos de raciocínio, relaciona-se às pro-
vas que Aristóteles, nos Tópicos, chama de dialéticas e utiliza na Retórica. A
evocação da terminologia do pensador grego “teria justificado a aproximação
da teoria da argumentação à dialética, concebida pelo próprio Aristóteles como
a arte de raciocinar a partir de opiniões geralmente aceitas.
No entanto, o professor belga (2000, p. 36) prefere a aproximação da teoria
da argumentação à retórica. Em primeiro lugar, para não haver risco de confu-
são que a volta a Aristóteles poderia trazer: Em segundo lugar, afirma o filósofo:
O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas
trata do verossímil em vez de tratar de proposições necessárias. A própria ideia
de que a dialética concerne a opiniões, ou seja, a tese às quais se adere com uma
intensidade variável, não foi aproveitada.
Dir-se-ia que o estatuto do opinável é impessoal e que as opiniões não são
relativas aos espíritos que a elas aderem. Em contrapartida, essa ideia da ade-
são e de espíritos aos quais se dirige um discurso é essencial em todas as teorias
antigas da retórica. (PERELMAN, 2000, p.39)
A aproximação da Retórica ao dialético visa a enfatizar o fato de que é em
função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. O estudo
do opinável dos Tópicos poderá, nesse contexto, inserir-se em seu lugar.
O raciocínio dialético ou jurídico corresponde à apreensão discursiva do
conhecimento a partir da análise dos opostos e da interposição de elementos
diferentes. Procede de tal modo crítico, ponderando polaridades contrárias,
até o alcance da síntese. Quando esses raciocínios adentram a área jurídica,
produzem resultados diferentes, pois a peculiaridade do direito é a questão
do juízo, não analítico, mas valorativo. Por essa razão que todo raciocínio que
procure eliminar a discussão, o debate, a controvérsia, em Direito, não pode-
rá prosperar.
Sendo assim, o raciocínio dialético ou jurídico busca tratar das deliberações
e controvérsias, típicas de um discurso, a fim de criticar as teses do adversário,
de defender e justificar suas próprias, utilizando argumentos. (PERELMAN,
capítulo 3 • 135
2000, p.40) e transcende os aspectos meramente formais, preocupando-se em
persuadir ou convencer pelo discurso.
Perelman (2000, p.39), tratando da Lógica aristotélica, destaca também a
ideia de sobre raciocínio analítico:
ATENÇÃO
A conclusão de uma argumentação não-formal resulta de uma escolha que sempre pode
ser discutida e contestada, contrariamente a uma lógica do tipo matemático; trata-se, an-
tes de tudo, de uma lógica dos valores, uma lógica do razoável, do preferível, como afirma
Perelman (2000), por essa razão que o raciocínio jurídico não tem forma demonstrativa,
mas argumentativa.
136 • capítulo 3
Segundo Monteiro (2001) há dois tipos de raciocínio no Direito: os raciocínios lógico-de-
dutivos, também chamados de explicativos ou analíticos ou lógico-formais e os raciocínios
jurídicos, que Perelman (2000) caracteriza como dialéticos. Os raciocínios lógico-dedutivo
são procedimentos de ordem geral que podem ser encontrados na teoria e na vida jurídica.
Os dialéticos também chamados de metalógicos tratam da argumentação jurídica.
capítulo 3 • 137
não obstante a variedade de tais métodos interpretativos, subsistiam situações
nas quais a lei não poderia lhe ser aplicada. Esta inaplicabilidade da lei, por
sua vez, decorria basicamente de uma inegável constatação, a saber: o imagi-
nário humano, não obstante sua vasta extensão criativa, não havia previsto, e,
portanto, não pudera normatizar, a solução de alguns conflitos decorrentes da
evolução das relações sociais.
Nesse ínterim, Perelman destaca (2005, p.43) que, já nesta fase, os juristas
foram confrontados com a percepção de que, em sendo a sociedade dinâmica,
o Direito também deveria tornar-se dinâmico, sob pena de perder o elo que o co-
nectava à própria sociedade. Além isso, ao prolatar uma decisão, o juiz deveria
indagar se a sua decisão, além de ser legal, também seria justa e harmoniosa com
os valores morais então vigentes na sociedade para a qual a decisão se destinava.
Essa possibilidade, todavia, foi completamente rechaçada pela doutrina de
então, cujo caráter prevalente ainda era centrado no positivismo jurídico decor-
rente da Revolução Francesa. A grande mudança, contudo, operou-se por impo-
sição de fator histórico, cuja ocorrência silenciou todas as vozes que pregavam
a soberania absoluta da lei, e que, em sendo a lei soberana, ninguém jamais po-
deria se insurgir contra ela. Tal fator consistiu na assunção do Estado Nacional
Socialista na Alemanha, e, por conseguinte, nos atos realizados em nome desse
sistema que, sob o comando de Adolf Hitler, foi responsável por um dos mais
abjetos genocídios registrados pela história da humanidade.
Assim, tão logo encerrado o período beligerante tornou-se a percepção de
que os atos realizados sob a égide do Estado Nacional Socialista não poderiam
permanecer incólumes, sob pena de motivar a formação de outros Estados que
pudessem repetir os mesmos atos abomináveis cometidos sob a orientação
desse sistema.
Todavia, como resolver essa questão, se o Estado Nacional Socialista, estra-
tegicamente, promulgou previamente inúmeras leis que legitimaram os atos
abomináveis cometidos por Hitler e seus oficiais, de modo a isentá-los de qual-
quer responsabilidade jurídica, sob o argumento de que agiram no estrito cum-
primento da lei?
Opera-se, então, a respeito do que era pregado pelo positivismo jurídico,
o ressurgimento da concepção aristotélica, segundo a qual, além do Direito
positivado, existe um Direito principiológico que, embora não escrito expres-
samente na legislação, vem a ser reconhecido por todos. Em face do ressur-
gimento dessa concepção, instaura-se o Processo de Nuremberg que, ao ser
138 • capítulo 3
fundamentado em um enunciado principiológico, possibilitou o julgamento
dos alemães dirigentes do Estado Nacional Socialista (e de seus colaboradores
diretos), por terem cometido crimes de guerra, quais sejam: todo e qualquer
ato que tenha violado o princípio que tutela o respeito à dignidade da pessoa
humana.
A partir desse momento, vislumbra-se o ressurgimento do valor atribuído
aos princípios gerais do Direito e, com eles, aos tópicos jurídicos que, embora
menos abrangentes que os princípios, passaram a contribuir para a elaboração
de uma decisão mais justa, à medida que, ao serem invocados, vieram possibili-
tar uma maior aproximação entre o Direito positivado e o caso concreto.
O ressurgimento dos tópicos, contudo, não foi acatado por uma parcela da
comunidade jurídica que lhe fez sérias críticas ao exaltar, de forma exacerbada,
a imprecisão que eles encerravam. Essas críticas, na visão de Perelman (2005),
são motivadas não pelo caráter impreciso dos tópicos, mas sim pela constata-
ção, levada a efeito pelos próprios relutantes adeptos do positivismo jurídico,
de que não existe um valor (ou regra de direito) absoluto, ou seja, que se sobre-
ponha sobre todas as situações, sempre da mesma forma, independentemente
das circunstâncias que as distinguem.
Ao abraçar essa discussão, Perelman (2005, p.123) vislumbrou a possibili-
dade de conciliação entre a utilização dos tópicos e a sistematização do Direito,
ressaltando que o papel dos tópicos não seria mudar o ordenamento jurídi-
co, ao sabor das situações circunstanciais, mas sim possibilitar a obtenção de
uma solução mais equitativa para os conflitos que batessem à porta do Poder
Judiciário, clamando por uma solução.
E para possibilitar uma clara compreensão de seu pensamento, desenvolveu
uma perspectiva racional capaz de conciliar os valores à aplicação do Direito,
afastando, de acordo com as possibilidades máximas permitidas, toda a impre-
cisão que eles naturalmente encerram, e que poderiam torná-los instrumentos
aptos à execução de arbitrariedades judiciais de todos os matizes.
Por essa razão, buscaram-se as fontes da filosofia clássica, sobretudo no
pensamento socrático e aristotélico, para desvendar os mecanismos mediante
os quais seria possível à lógica jurídica, mesmo em utilizando elementos variá-
veis e imprecisos, conservar a racionalidade e a precisão necessárias à legitima-
ção da prestação jurisdicional.
Ao aprofundar os seus estudos, Perelman (2000) reabilitou a retórica, a
qual ele a denominou como “técnicas argumentativas” ou “nova retórica”, e,
capítulo 3 • 139
de forma pioneira, buscou sustentar como a argumentação poderia ser aplica-
da à lógica jurídica, diferenciando-se das demais, por ser uma lógica dialética
ou argumentativa.
Ao elaborar uma metodologia para a utilização das técnicas argumentati-
vas, Perelman (2000)teve de contestar o pensamento de Descartes segundo o
qual quando duas pessoas manifestam concepções distintas acerca do mesmo
fato, pelo menos uma delas deve estar errada. De forma inédita, ele expressa-
mente demonstrou que, em tal situação, é possível que ambas estejam certas
e que suas concepções, embora distintas, possam ser conciliadas (ou mesmo
complementadas) dialeticamente em uma argumentação para, enfim, serem
colocadas em prática.
De fato, a aplicação subsidiária dos valores, sobretudo os manifestos nos
princípios gerais do Direito, tornou-se amplamente permitida pelas legislações
de diversos países, inclusive pelo Ordenamento Jurídico brasileiro, passando
a constituir em uma das mais importantes fontes que os juristas contemporâ-
neos se utilizam para argumentar o raciocínio jurídico e, por conseguinte, plei-
tear a aplicação do Direito como corolário para a efetivação da justiça. Segue
um fragmento de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja maté-
ria é o “abandono afetivo”, que bem ilustra o entendimento da Lógica Jurídica
perelmaniana ou a Lógica do Razoável de Recaséns, por serem sinônimas:
A autora ajuizou uma ação em face do pai, após ter obtido reconhecimento judicial da
paternidade, por ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescên-
cia. Na primeira instância, o pedido foi julgado improcedente, tendo o juiz entendido que
o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai. [...]”
[...] No caso analisado, a ministra ressaltou que a filha superou as dificuldades
sentimentais ocasionadas pelo tratamento como “filha de segunda classe”, sem que
fossem oferecidas as mesmas condições de desenvolvimento dadas aos filhos pos-
teriores, mesmo diante da “evidente” presunção de paternidade e até depois de seu
reconhecimento judicial. [...]
[...] Alcançou inserção profissional, constituiu família e filhos e conseguiu “crescer com
razoável prumo”. Porém, os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligên-
cia paterna perduraram. [...]
140 • capítulo 3
[...] “Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente
apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de
seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegia-
ram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in reipsa e traduzin-
do-se, assim, em causa eficiente à compensação”, concluiu a ministra. [...]
Amar é faculdade, cuidar é dever. ” Com essa frase, a ministra Nancy Andrighi, a
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) asseverou ser possível exigir
indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais. A decisão é
inédita. Em 2005, a Quarta Turma do STJ, que também analisa o tema, havia rejeitado
a possibilidade de ocorrência de dano moral por abandono afetivo.
LEITURA
A Lógica do Razoável, criada pelo filósofo Recaséns(1997),Professor da Universidade Na-
cional Autônoma do México, em 1926, conhecida também como “logos do humano” ou, ain-
da, “logos da razão vital”, é um método de interpretação jurídica que muito se assemelha à
Lógica Jurídica apresentada por Perelman.
Recaséns (1997, p.257) sustenta a tese de que o Juiz deve submeter-se à lógica do
razoável. Explica as fases por que passa o julgador para chegar à decisão: filtra os fatos,
avalia a prova, confronta com a lei, faz aportes de circunstâncias extralegais, pondera as
consequências de sua decisão e, depois de passar e repassar por esse complexo de fatores,
chega finalmente à sua conclusão por intuição intelectiva, momento em que a questão se
esclarece e é fixada uma posição.
capítulo 3 • 141
A Lógica do Razoável tem como característica não se apoiar no silogismo nem tampouco
na subsunção formal das decisões judiciais e se fundamenta na prudência, na equidade e no
sentimento do justo.
A Lógica do Razoável apresenta, ainda, outras características, que sustentam a sua exis-
tência e importância para o mundo jurídico, visto que está condicionada pela realidade con-
creta do mundo em que opera e é impregnada de critérios estimativos ou axiológicos, o que
a distingue, decisivamente, da lógica formal.
A Lógica do Razoável reporta-se a uma determinada situação real, é regida por razões de
congruência ou adequação: entre os valores e os fins; entre os fins e a realidade concreta;
entre os fins e os meios; entre fins e meios e a correção ética dos meios; entre fins e meios
e a eficácia dos meios; e, por fim, a lógica do razoável está orientada pelos ensinamentos da
experiência da vida humana e da experiência histórica.
A Lógica do Razoável enseja a aplicação das normas jurídicas, segundo princípios de
razoabilidade, ou seja, elegendo a solução mais razoável para o problema jurídico concreto,
dentro das circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas que envolvem a questão,
sem se afastar, completamente, dos parâmetros legais.
142 • capítulo 3
Assim, a retórica clássica grega perde a sua importância no século I e passa a ser
profundamente criticada no século XIX com as ideias cartesianas e com o positivis-
mo de Auguste Comte. A partir daí, as evidências ganham valor absoluto e a lingua-
gem servirá apenas como instrumento de demonstração. Retirada, portanto, a for-
ça da retórica, ela se converteu em um conjunto de técnicas ornamentativas, sem
objetivo persuasivo. Nessa época, o Direito, ao se reivindicar como ciência, tenta
divorciar-se da retórica, sem sucesso, pois seu objeto não é a certeza.
Os sucessos da ciência e dos métodos cartesianos ameaçaram e prepondera-
ram sobre o humanismo retórico, inclusive no que concerne ao direito e seu pro-
cesso de dogmatização na modernidade ocidental. Talvez o repúdio à retórica se
tenha tornado ainda mais forte sob a influência do novo racionalismo moderno
do que na Europa da Idade Média, apesar de impregnada pelas críticas de Platão
à Sofística e pelos textos ontológicos de Aristóteles (BARILLI,1987, p.17).
Seguindo a perspectiva de Descartes (BARILLI,1987,p.10), o conhecimen-
to científico deve progredir por inferências providas de evidência interna por
meio da dedução. Não há dúvidas que o ideal de uma ciência, principalmente
a jurídica, pautada na busca de verdades claras e distintas, guarda, até hoje, as
marcas do legado “cartesiano”.
LEITURA
Sob a rubrica de sofistas, agrupam-se diversos pensadores que, mesmo não constituindo uma
escola no sentido técnico do termo, mantiveram entre si certa afinidade de métodos e propósi-
tos. Propunham-se os sofistas a ensinar a arte da política e as qualidades indispensáveis para
a formação de bons cidadãos, o que incluía a retórica, ou "a arte da persuasão exercida nos
tribunais e nas outras assembleias a propósito daquelas coisas que são justas e injustas". São
os sofistas, portanto, os primeiros protagonistas importantes da história da Retórica. Mestres
na arte de bem falar, adquiriram extraordinária reputação e seus ensinamentos eram disputa-
dos avidamente pelos jovens bem-nascidos. Se os sofistas gozavam de excelente reputação
em sua própria época, o mesmo não se pode dizer de sua posteridade; graças a Platão, o
termo "sofista" e seus derivados adquiriram uma irredutível conotação pejorativa. Muitas das
acepções atuais da palavra Retórica - como a que a identifica com "adornos empolados ou
pomposos de um discurso", segundo o dicionário Aurélio - correspondem a distorções de fundo
platônico daquilo que originariamente se chamou Retórica na Grécia antiga.
capítulo 3 • 143
3.9.2 Retórica Aristotélica
A elaboração de pequenos tratados sobre a "arte retórica" era uma prática co-
mum na Grécia antiga. Todos os sofistas e oradores proeminentes elaboraram
em alguma parte de suas vidas pequenos textos que pudessem servir de orien-
tação para seus alunos; mas a retórica só receberia uma sólida base teórica por
meio da obra daquele que foi o mais influente e mais versátil dos filósofos gre-
gos: Aristóteles.
Aristóteles nasceu em Estagira, no norte da Grécia, em 384 a.c., e morreu
na ilha de Euboea em 322 a.c. Aluno de Platão na Academia, fundador de sua
própria escola - o Liceu - e tutor de Alexandre, o Grande, Aristóteles foi a primei-
ra pessoa a dar importância ao estudo sistemático das diversas disciplinas das
artes e ciências que surgiam como entidades separadas pela primeira vez no
século IV a.c., inclusive no que diz respeito à definição dos conceitos básicos e
das relações entre cada uma.
Possuidor de um verdadeiro espírito enciclopédico, Aristóteles escreveu
centenas de obras sobre os mais variados campos do saber, da poesia à bio-
logia, textos que serviram aos seus alunos no Liceu e continuariam servindo
como fontes fundamentais de conhecimento durante muitos séculos após a
sua morte. Entre estes textos, encontra-se a Arte Retórica. Nessa obra clássica,
Aristóteles elabora uma conceitualização da retórica dividindo-a em categorias
e dando nomes às diversas técnicas utilizadas, a exemplo do que fez em diver-
sos outros campos do conhecimento.
Em alguns momentos a retórica é concebida como uma ferramenta, uma
disciplina puramente formal utilizável em diversos campos do conhecimento.
É essa a concepção vigente entre os estudiosos antigos e medievais. Os estudio-
sos modernos, entretanto, tem preferido ver na retórica uma arte produtora,
a exemplo da poética e das belas artes. A retórica é classificada em gêneros,
de acordo com o objetivo a que se propõe: pode ser deliberativa, se o auditório
tiver que julgar uma ação futura; judicial, se o auditório tiver que julgar uma
ação passada; e epideitica, se o auditório não tiver que julgar ações passadas
nem futuras.
Para Aristóteles, o discurso é composto necessariamente de no mínimo
quatro elementos: exórdio, enunciação da tese, prova e epílogo. A função do
exórdio é tornar o auditório receptivo à atuação do orador e fornecer uma in-
trodução geral ao discurso, tornando claro seu propósito. Quanto aos meios de
144 • capítulo 3
prova utilizados, podem ser não artísticos ou artísticos. Meios de prova não ar-
tísticos são as provas em sentido estrito, as evidências, tais como testemunhas
ou documentos. Meios de prova artísticos são os argumentos inventados pelo
orador, e podem ser de três tipos, como: aqueles derivados do caráter do pró-
prio orador, que empresta sua credibilidade à causa (ethos); aqueles em que o
orador procura lidar com as emoções do auditório (pathos); e aqueles derivados
da razão (logos). Os argumentos lógicos se apresentam sob duas formas: indu-
ções, ou o uso de exemplos, e deduções, chamadas em retórica de "entimemas".
O entimema, ou silogismo retórico, é aquele tipo de silogismo em que as
premissas não se referem àquilo que é certo, mas àquilo que é provável, e tem
importância fundamental para a retórica já que na maioria dos casos em que
estão em jogo assuntos humanos nem sempre se pode basear a argumentação
apenas naquilo que é verdadeiro, mas apenas no que é verossímil.
O epílogo tem por objetivo deixar no auditório uma boa impressão do ora-
dor (e uma má impressão de seu oponente) e recapitular brevemente os pontos
principais do discurso.
Em síntese, a técnica retórica de Aristóteles – Retórica II (1998, p. 67) – con-
siste nos principais meios ou recursos persuasivos de que se vale o orador para
persuadir o auditório. Esses meios de persuasão podem classificar-se em téc-
nicos e não técnicos. Os meios de persuasão não técnicos são os que existem
independentemente do orador, como: leis, tratados, testemunhos, documen-
tos; já os meios de persuasão técnicos são aqueles que o próprio orador inventa
para incorporar a sua própria argumentação ou discurso e que se repartem por
três grupos, tantos quantas as instâncias da relação retórica: ethos, o caráter do
orador; pathos, a emoção do auditório e logos, a argumentação. Impõe-se, con-
tudo, precisar um pouco melhor cada uma destas instâncias: aquele que fala, a
quem se fala e o que se fala, significando redizer que a persuasão é obtida por
meio do ethos, do pathos e do logos.
Em primeiro lugar, o ethos, pois persuade-se pelo caráter quando o discurso
é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé,
porque se acredita mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas
as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que
deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que essa confiança seja re-
sultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o caráter do orador; pois
não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que
capítulo 3 • 145
fala, como, aliás, alguns autores dessa arte propõem, mas que se poderia dizer
que o caráter é o principal meio de persuasão.
Quanto ao pathos, persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes
são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos emitidos va-
riam, conforme sentimentos de tristeza ou alegria, amor ou ódio. É dessa espé-
cie de prova e só dessa que se tentam ocupar os autores atuais de artes retóricas.
Tem-se de reconhecer que a emoção que o orador consiga produzir nos seus
ouvintes pode ser determinante na decisão de serem a favor ou contra a cau-
sa defendida. Se o orador suscita nos juízes sentimentos de alegria ou triste-
za, amor ou ódio, compaixão ou irritação, estes poderão decidir num sentido
ou no outro. Foi, aliás, este o ponto mais estudado nos anteriores tratadistas
da retórica.
Por último, os logos, persuade-se, enfim, pelo discurso, quando se mostra a
verdade ou o que parece ser verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso
particular, constituindo, assim, o discurso argumentativo, que é a parte mais
importante da oratória, aquela a que se aplicam as principais regras e princí-
pios da técnica retórica – é a arte de persuadir – e os recursos argumentativos.
A partir da década de 50, no século XX, é que começou a se esboçar uma
corrente filosófica e acadêmica de vulto que tinha por objetivo recuperar a dig-
nidade dessa forma de conhecimento tão antiga e tão intimamente ligada à his-
tória da humanidade. A partir da importância dada à filosofia da linguagem e
à filosofia dos valores, diversos filósofos e estudiosos começaram a considerar
a retórica como um objeto digno de estudo, seja sob a sua vertente formal, seja
sob a ótica que privilegia seu aspecto de instrumento de persuasão.
Segundo Perelman (2000), o objeto da Retórica é o estudo das técnicas dis-
cursivas que visam a provocar ou a intensificar, aumentar a adesão das mentes,
ou seja, de certo auditório, às teses apresentadas a seu assentimento. Trata-se
de um processo racional de decisão em situação de incerteza, de verossimi-
lhança, de probabilidade.
Sendo assim, a configuração contemporânea do pensamento jurídico pro-
voca uma ruptura com o contorno básico de compreensão do Direito conforme
descrito acima. A partir da década de 50, surgem diversas críticas ao modelo
lógico do raciocínio jurídico próprio do positivismo jurídico. Essas críticas,
ressaltam a inadequação e a insuficiência da metodologia lógico-formalista e
sublinham a necessidade de elaborar novos instrumentos de pesquisa da argu-
mentação prática, em geral, e a jurídica em particular e a retórica começou a
recuperar seu prestígio.
146 • capítulo 3
Como o objeto do estudo deste capítulo também diz respeito a esse segundo
aspecto, será dada uma atenção exclusiva sobre a obra do pensador que mais
ajudou a romper com a tradição cartesiano-positivista de desconsideração da
retórica: Chaim Perelman, filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica.
MULTIMÍDIA
Doze Homens e Uma Sentença. Título original: “Twelve Angry Men”. Direção: Sidney Lu-
met. Produção/Distribuição: Fox/MGM. Elenco: Henry Fonda, Lee J. Cobb, Ed Begley, E.G.
Marshall, JackWarden, Martin Balsam, John Fiedler, Jack Klugman, Edward Binns, Joseph
Sweeney, George Voskovec, Robert Webber. EUA. 1957. Drama. DVD. 96 min.
capítulo 3 • 147
frase do Tratado da argumentação, uma vez que Descartes tem quase por falso
tudo o que não é mais que verossímil (PERELMAN, 2000, p. 194).
Os estudos de Perelman vão além dos limites da Retórica antiga, que obje-
tivava a arte de falar em público de forma persuasiva perante uma multidão,
com o intuito de obter a adesão à tese defendida. A nova retórica, do filósofo
de Bruxelas (2000, p. 6), estende-se à argumentação escrita e preocupa-se mais
em compreender o mecanismo do pensamento “do que as de um mestre de
eloquência cioso de formar praticantes”. Ela, na realidade, preocupa-se com o
ponto de partida do raciocínio com o seu desenvolvimento e com o resultado
a ser obtido, retomando conceitos e categorias da Antiguidade, ao valorizar a
argumentação como técnica para lidar com valores, objetiva chegar a acordos,
descritos pela argumentação.
As palavras perelmanianas, escritas em 1958, trazem, portanto, quase uma
premonição do que será a crítica pós-moderna da razão, porque em vez da ne-
cessidade do encadeamento das ideias no raciocínio e da evidência com que
estas se impõem ao espírito, o vocabulário privilegiado é outro e nele emergem
termos como verossímil, plausível, provável. A verossimilhança (2000, p. 6) dife-
rencia-se da verdade porque aquela é semelhante ao vero e se decide apenas na
instância interlocutória que é um auditório, por isso as provas são necessárias
e estão voltadas para o estatuto aproximativo da probabilidade e do plausível.
A verossimilhança é, portanto, a marca do discurso retórico e, no espaço
jurídico, cumprirá papel determinante na equação de realização do fenômeno
jurídico em toda sua extensão. A noção de verossímil é tradicionalmente explo-
rada na retórica argumentativa. A priori, característica de um modo de correla-
ção entre o enunciado e a realidade, o verossímil deve ser compreendido tanto
como um produto quanto como um fundamento do discurso.
O verossímil é uma qualidade da opinião, que a opõe ao verdadeiro. Ele cor-
responde ao provável da estatística ou ao plausível da doxa, ou seja, às repre-
sentações, maneiras de fazer, de pensar e dizer normais, coerentes, frequen-
tes numa comunidade (rotinas, cenários, lugares-comuns, estereótipos), que
pré-formam as expectativas e guiam as ações. Distinguem-se o verossímil dos
argumentos e o verossímil dos esquemas argumentativos ou topoi, que, con-
juntamente, devem produzir a persuasão. Relativamente aos argumentos, o ve-
rossímil é definido como aquilo sobre o qual não pesa a carga da prova. Dessa
forma, para se defender de uma acusação de assassinato, uma atriz utilizará o
topoi da profissão e do tempo.
148 • capítulo 3
Daí o autor nos dizer que ao lado da prova para a lógica tradicional, dedutiva
ou indutiva, impõe-se considerar também outro tipo de argumentos, os dialé-
ticos ou retóricos.
As provas fundadoras de uma convicção não têm a exatidão de uma prova
dedutiva ou científica, como já visto. Basta pensarmos no sistema jurídico e na
sua codificação de um conhecimento procedimental em que a prova tende a
fundar um saber, mas voltado para o campo do verossímil, do plausível ou do
provável. Se toda a prova fosse reduzida à evidência não teria necessidade de
prova (2000, p. 5), logo a noção de evidência tem de ser entendida, para que
uma teoria da argumentação seja possível, como uma força de persuasão que
se insere numa escala proporcional.
Campo do plausível porque fundado em juízos de adesão, que dependem
do posicionamento do destinatário e não da natureza do objeto do discurso; à
medida que se transfere a responsabilidade da decisão final ao destinatário do
discurso, enquanto titular da adesão, a Nova Retórica, escapando dos limites
fixados por Aristóteles, possibilita uma prática discursiva ágil e dinâmica em
situações que não exigem mais que verossimilhança em suas conclusões.
O conhecimento psicológico, sociológico ou ideológico do auditório é, pois,
essencial à própria eficácia da argumentação. Compreendemos que assim seja
dado o papel central que a natureza do auditório tem na argumentação, visto
que a argumentação tem por objetivo não propriamente a verdade, mas a ve-
rossimilhança, essa semelhança ao verdadeiro só pode encontrar um critério
de validade ou justeza naquilo que pensa o auditório, qual seja o seu estado de
espírito, a força da sua convicção ou crença, eventualmente pela argumenta-
ção aduzida.
Desse modo, num processo penal com intervenção de um júri, o que proces-
sualmente está em causa não é tanto a verdade dos fatos, mas antes a adesão do
espírito dos jurados a uma das teses em confronto: culpabilidade ou inocência
(PERELMAN, 2000, p. 31).
A verdade, que, cartesianamente, se impõe pela evidência, não resulta de
uma deliberação argumentada, nem é, por isso, também objeto de um consen-
so. Deliberação e evidência são duas expressões quase contraditórias, porque,
como descreve Perelman, “não se delibera quando a solução é necessária e não
se argumenta contra a evidência” (PERELMAN, 2000, p. 1).
Como sublinha o jurista de Bruxelas (2000, p. 5), não há que se confundir
“evidência” com “verdade”, uma vez que a “evidência” se referirá apenas à
capítulo 3 • 149
adesão por parte do espírito que uma ideia merece. Estaremos, portanto, num
campo puramente psicológico, enquanto que a questão da verdade, pelo me-
nos na tradição racionalista cartesiana, contra a qual o teórico se inscreve em
ruptura, implica uma necessidade e um constrangimento lógico.
O teórico define de prontoargumentação e demonstração e destaca a im-
portância do tempo nessas categorizações. A citação abaixo esclarece a diferen-
ça entre esses dois elementos contraditórios:
150 • capítulo 3
Enquanto numa demonstração matemática, esses axiomas não estão em
discussão, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipóteses, e por isso
mesmo não dependem também de qualquer aceitação do auditório, na argu-
mentação, a discutibilidade está sempre presente, já que o seu fim “não é de-
duzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão
de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento” (PERELMAN,
2000 p. 15-17). Pode-se, então, dizer que, na linha de pensamento perelmania-
no, a diferença entre demonstração e argumentação surge ligada ao modo
como nele se distingue a lógica tradicional da retórica.
Segundo Bertrand Russel in Perelman (2000, p. 57), “o homem racional se-
ria simplesmente um monstro desumano”, pois é um ser unilateral, que fun-
ciona como uma máquina. Já o homem razoável não é sempre racional. Ele é
influenciado pelo senso-comum ou pelo bom-senso e se esforça para fazer o
que é aceito pelo seu próprio meio social e, se possível, por todos. Ele leva em
consideração as mudanças das circunstâncias, a evolução social, a sensibilida-
de, o desenvolvimento da moral e os critérios modificáveis da decência, uma
vez que “o razoável de ontem não é o razoável de hoje”.
O que é razoável modifica-se à medida que a Humanidade evolui. Um indi-
víduo razoável pode viver a qualquer momento com uma variedade de grupos,
com diferentes ideais e filosofia, pois ele está preparado para viver num mundo
pluralista, ao contrário do que é racional, o qual pode facilmente conduzir-nos
a conclusões induzidas e socialmente inadmissíveis; e quando isso acontece,
Perelman (2001, p. 57) relata que se deve reavaliar todo o sistema. No Direito,
ele prossegue a ideia de “razoável corresponde a uma solução equitativa”.
Por essa razão, o objeto da argumentação jurídica é visar à sustentação de uma
tese, de tal modo que cada tese é passível de uma antítese, o que determina que as
escolhas dos argumentos aspiram a superar ou a minimizar as fragilidades dos
sentidos da linguagem e a reforçar os procedimentos de sustentação da tese, já
que a verdade dos argumentos é sempre parcial, pois não há verdade absoluta.
Nessa linha de pensamento, afirma o teórico belga (PERELMAN, 2000, p.
11): “Um argumento não é correto e coercitivo ou incorreto e sem valor, mas
relevante ou irrelevante, forte ou fraco, consoante razões que lhe justificam o
emprego no caso”. É por isso que o estudo dos argumentos, que nem o Direito
nem as ciências humanas nem a filosofia podem dispensar, não se prende a
uma teoria da demonstração rigorosa, concebida a exemplo de um cálculo me-
canizável, mas a uma teoria da argumentação.
capítulo 3 • 151
Portanto, existem decisões ou teses com fundamentos mais fortes, ou seja,
com argumentos melhores que as sustentam, e que esses fundamentos, que
nada mais são que argumentos, sustentam uma tese ou um posicionamento,
mas não lhe comprovam a verdade, pois existem, no Direito, dois posiciona-
mentos totalmente distintos, sem que em qualquer deles haja erro, razão por
que se afirma que a verdade de cada um é sempre parcial.
A argumentação jurídica (2000, p. 15-17), portanto, centra-se inteiramente
não na ideia de verdade, mas na de adesão, por isso o objeto de tal teoria é o
estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão
dos espíritos às teses que se lhes apresentam.
É essencial, pois, que se conheça o auditório, saber quais são as teses que, se
supõe, ele aceitaria, e que poderiam servir de premissas para a argumentação
que o advogado se propõe a desenvolver, ou seja, que a Nova Retórica provoca
o jurista a não pensar os fatos dentro dos ditames da lei, mas a pensá-los como
ocorrências suscetíveis de valoração, ao lado de normas igualmente suscetí-
veis de valoração, justapostas a provas também suscetíveis de valoração que se
aconchegam em argumentos favoráveis ou contrários aos interesses em jogo
em determinada causa, mas que, de qualquer forma, revelam-se por meio do
discurso e da prática judiciária
Na realidade, o advogado (ou judiciário) busca a adesão de um auditório mais
amplo do que a comunidade jurídica em si, procurando atingir a sociedade como
um todo. Esse fato dialoga com o que Perelman (2000, p. 22) denomina auditório
universal, isto é, aquele que não é persuadido apenas por argumentos jurídicos,
mas que demanda uma fundamentação mais próxima da realidade social.
Dessa maneira, é impossível cogitar-se validamente do Direito sem pensar
na sociedade sobre a qual atua e de que recebe o influxo. Direito e sociedade
são realidades historicamente situadas, mutáveis e perfectíveis, em que de
modo necessário se inscreve o homem, interagindo com seu semelhante na
construção da vida cultural.
Sendo assim, mediante instrumentos retóricos (recursos e técnicas argumen-
tativas), os advogados privilegiam determinados valores e fatos, em detrimento
de outros. Criam-se, portanto, relações aparentes de causa e efeito, isto é, entre
situações de fatos e normas jurídicas, por meio de argumentos quase lógicos,
que se aproximam da lógica formal, mas não fazem parte dela, pois criam verda-
des formais, num modelo lógico argumentativo que admite questionamento, à
medida que haja carência de suporte argumentativo (PERELMAN, 2000, p. 50).
152 • capítulo 3
A argumentação das partes, segundo o teórico em estudo, tem como objeti-
vo ou efeito fornecer ao juiz as razões que lhe motivarão a decisão, razões que
ele considerará as melhores tanto para ele como para os juízes de apelação e de
cassação que, eventualmente, teriam de apreciar sua decisão, e às quais terão
de submeter-se as partes e opinião pública, que poderia exigir, eventualmente,
uma modificação da legislação (PERELMAN, 2000, p. 504-505).
Além disso, o ato de provar fica assim indissociavelmente ligado a uma dimen-
são referencial que implica a consideração das condições concretas do uso da lin-
guagem natural e da ambiguidade sempre presente nas noções vagas e confusas
que integram aquela. Do que se trata agora é de realizar uma prova nas e para as
situações concretas em que se elabora, em face às quais se apresenta como justifi-
cativa razoável de uma opção, pois, como diz o filósofo (PERELMAN, 2000, p. 80):
[...] a possibilidade de conferir a uma mesma expressão sentidos múltiplos, por vezes
inteiramente novos, de recorrer a metáforas, a interpretações controversas, está ligada
às condições de emprego da linguagem natural. O fato desta recorrer frequentemente
a noções confusas, que dão lugar a interpretações múltiplas, a definições variadas,
obriga-nos muito frequentemente a efetuar escolhas, decisões, não necessariamen-
te coincidentes. De onde a obrigação, bem frequente, de justificar esta escolha, de
motivar estas decisões.
[...] o direito não é o lugar do irracional nem do racionalismo tal como é conhecido
em ciência. O meiotermo proposto pela ‘Nova Retórica’ é o razoável e seu contraste,
mais bem identificável por seus efeitos sociais, o desarrazoado. O filósofo de Bruxelas
pleiteia, assim, que se leve em conta a atividade do direito, feita de debates, de trocas
de argumentos e de questionamentos das ontologias assentes no real, no verossímil.
O realismo radical de Perelman tem condições de explicar a evolução no direito: é
suscitada por uma dialética entre formalismo e pragmatismo, entre legislador e juiz.
Para encontrar a solução mais adequada, o estatismo do prescrito legal é adaptado
pelo dinamismo da decisão judiciária.
capítulo 3 • 153
ATENÇÃO
O verossímil seria um tipo de afirmação que admitiria o contrário; sua verdade não se subme-
te à prova, mas postula o caráter de ser provavelmente verdadeira. Trata-se de um raciocínio,
que provoca um efeito de verdade ou realidade, ou seja, algo é verossímil quando consegue
provocar a representação de sua veracidade ou realidade.
154 • capítulo 3
dirigir-se a um auditório universal, pois “todos que compreenderem suas ra-
zões terão de aderir às suas conclusões”:
a superioridade, do ponto de vista teórico, dos argumentos que seriam admitidos por
todos, isto é, pelo auditório universal: dir-se-á então que se lança um apelo à razão,
que se utilizam argumentos convincentes, que deveriam ser aceitos por qualquer ser
racional. É esta espécie de argumentos que Aristóteles analisa nos Tópicos, onde a
noção de auditório não é explícita, pois trata-se de raciocínios dialéticos utilizáveis em
qualquer controvérsia, diante de qualquer interlocutor e que não precisam ser adapta-
dos às particularidades deste ou daquele auditório. A nova retórica, por considerar que
a argumentação pode dirigir-se a auditórios diversos, não se limitará, como a retórica
clássica, ao exame das técnicas do discurso público, dirigido a uma multidão não
especializada, mas se interessará igualmente pelo diálogo socrático, pela dialética,
tal como foi concebida por Platão e Aristóteles, pela arte de defender uma tese e de
atacar a do adversário, numa controvérsia. Englobará, portanto, todo o campo da ar-
gumentação, complementar da demonstração, da prova pela inferência estudada pela
lógica formal. (PERELMAN, 2000, p. 35)
capítulo 3 • 155
E a deliberação íntima e o discurso perante um único ouvinte também são en-
globados pela teoria da argumentação (PERELMAN, 2000, p. 41). Acrescenta-se
que, mesmo quando o ouvinte único, seja ele o ouvinte ativo do diálogo ou um ou-
vinte silencioso a quem o orador se dirige, é considerado a encarnação de um audi-
tório, nem sempre se trata do auditório universal. Ele também pode ser – e muito
amiúde o é – a encarnação de um auditório particular.
Dessa forma, no auditório individual, que é constituído dialogicamente por
um só interlocutor, a questão acaba por ser a mesma, uma vez que se vê nele
uma simples declinação do auditório universal: “o auditório único encarna o
auditório universal” (PERELMAN, 2000, p. 48).
Perelman termina por entender um auditório universal como modelo de
todos os auditórios universais, individuais ou particulares. É que nele reen-
contra-se uma ideia de necessidade que, segundo ele próprio, caracterizava o
formalismo lógico, mas não, precisamente, a argumentação retórica. Escreve
o teórico: “uma argumentação que se dirige a um auditório universal deve con-
vencer o leitor do caráter constringente das razões fornecidas, da sua evidência,
da sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais
e históricas” (PERELMAN, 2000, p. 41).
Esta distinção nasceu quando o teórico belga, ao ler as obras de São Tomás
de Aquino, Summa Theologica e Summa Contra Gentile, constatou que ambas
continham as mesmas ideias, mas eram profundamente diferentes em relação
ao público-alvo a que se dirigiam, de tal sorte que, enquanto a primeira obra
era escrita para teólogos (um auditório particularizado pelas crenças e pelos
valores que possui), a segunda falava para os descrentes, para os agnósticos,
para os ateus. Enfim, fazia um apelo exclusivamente à racionalidade huma-
na. Perelman (2000), então, escreve que este apelo dirigia-se a um auditó-
rio universal.
Para a argumentação, devem estar presentes duas condições essenciais:
deve existir um auditório a ser persuadido ou convencido, e deve haver premis-
sas que funcionem como ponto de partida, ao passo que, o auditório, para a
teoria da argumentação, não é definido como o conjunto daqueles que escutam
um discurso, mas antes como o conjunto daqueles aos quais visa a persuadir.
A diferença substancial entre a Retórica de Aristóteles e a Nova Retórica re-
side exatamente na concepção de auditório universal elaborada por Perelman,
a qual institui a própria racionalidade retórico-argumentativa a que se propõe.
156 • capítulo 3
Nesse sentido, o modelo de argumentação racional perelmaniano é aquele
que é desenvolvido diante de um auditório universal. A argumentação filosófi-
ca é o exemplo a ser seguido para a argumentação racional, porque o discurso
filosófico caracteriza-se, principalmente, por se dirigir ao auditório universal.
Com efeito, o filósofo [orador] dirige-se ao auditório universal, que é fictício, e
que é uma representação de seu próprio ambiente cultural.
Trata-se, pois, de um aspecto importante no pensamento de Perelman que
precisa o caráter histórico e pessoal de toda a ação argumentativa. Além disso,
os argumentos utilizados no auditório universal diferenciam-se do auditório
particular quanto ao grau de adesão, porque atingem o seu patamar máximo
em face do acordo requerido entre seus constituintes.
Reitera-se que outro conceito muito relevante para a teoria da argumen-
tação, em relação ao auditório, é a diferença de procedimento em relação aos
discursos demonstrativo-analítico e o retórico. Para o discurso demonstrativo
-analítico, que se utiliza da lógica formal, as provas utilizadas são impessoais,
devendo ser aceitas universalmente. Para o discurso retórico, no entanto, é vital
a relação entre o orador e o auditório a que se dirige. A verdade obtida pela ló-
gica formal é sempre universal e incontestável, enquanto que a adesão obtida
pela argumentação é sempre a adesão de um auditório determinado, já que
pode ser de intensidade variável.
Na esfera do argumentativo não é necessário, afirma o teórico (2000, p. 236)
o encerramento definitivo de uma pendência, podendo sempre ser reaberta a
questão. Não se concebe uma tal quantidade de precauções em matemática ou
nas ciências naturais. O modelo da razão argumentativa é o que se aplica não
apenas à defesa, mas à construção das teses nas diversas ciências humanas e
sociais, onde a comprovação é sinônimo de argumentação.
Na amplitude que confere ao universo da argumentação, Perelman (2000, p.
237) indica três tipos de auditório: o especializado, o universal e o de elite, sendo
o primeiro constituído por especialistas de determinada área, nos moldes da ci-
dade científica de Bachelard. Já o auditório universal é típico da filosofia, pois:
Cada pensador – desde que defenda alguma forma de racionalismo – procu-
ra construir uma argumentação capaz de persuadir e conquistar a adesão, em
princípio, de todos os espíritos racionais. Embora efetivamente o acordo total
jamais ocorra, a argumentação filosófica não renuncia à pretensão de se dirigir à
universalidade dos espíritos. A pretensão de universalidade pode levar, porém, à
afirmação dos auditórios de elite, constituídos segundo critério qualitativo.
capítulo 3 • 157
Esses auditórios comportam apenas os ‘normais’, os ‘sábios’, os ‘competen-
tes’, os ‘beneficiados pela graça’, os ‘eleitos’ – enfim, aqueles que, por algum
motivo, se destacariam do restante dos homens, mostrando-se aptos a receber
a verdade que escapa aos demais. Permitem esses auditórios também repudiar
o oponente como incapacitado, anormal ou recalcitrante, num tipo de intole-
rância autoritária que acompanha frequentemente as concepções monistas,
teológicas, filosóficas, políticas – e a noção de verdade única.
Diante desse quadro, para o professor belga, o auditório universal é o formado
por pessoas que podem compreender todos os argumentos, ou melhor, todos os
argumentos convincentes e aceitos por qualquer ser racional. Os filósofos sem-
pre pretendem dirigir-se a um auditório universal, pois “todos que compreende-
rem suas razões terão de aderir às suas conclusões” (PERELMAN, 2000, p. 35).
Há, ainda, segundo o autor, os auditórios particulares, formados por um grupo
de pessoas determinadas, especialistas em certas matérias, por exemplo, os que
adotam valores semelhantes, da mesma classe social (PERELMAN, 2000, p. 37).
E, por fim, o auditório universal, afirmando o teórico não ser este absoluto, ou
seja, não é um só em todos os tempos, sendo constituído “por cada qual a partir
do que se sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições
de que tem consciência”. Depende da situação, da concepção social, cultural.
Exemplificando:
158 • capítulo 3
No entanto, como destaca Perelman (2000, p. 73), estes podem recusá-las, “seja
por não aderirem ao que o orador lhe apresenta como adquirido, “seja por per-
ceberem o caráter unilateral da escolha de premissas, seja por ficarem contra-
riados com o caráter tendencioso da apresentação delas”. Se isso acontecer,
toda a argumentação pode restar prejudicada, razão pela qual deve haver um
acordo referente às premissas.
Desse modo, quando o auditório e as premissas encontram-se definidas, a
argumentação desenrola-se de acordo com um plano cujo objetivo é persuadir
ou convencer o auditório. Esse plano implica a escolha de argumentos, bem
como a sequência e a técnica de sua apresentação. Não se pode determinar a
força persuasiva de um argumento isoladamente, porque ela depende da forma
como ele se articula numa cadeia ou numa rede de vários argumentos.
Na teoria perelmaniana, a posição do auditório ou do auditor assemelha-
se à de um juiz, que pondera, pesa os argumentos, antes de dar ou negar seu
assentimento. A razão argumentativa segue o modelo jurídico e não o modelo
matemático, pois, não podendo recorrer à evidência da prova demonstrativa,
que se impõe a todos, tem que deixar a possibilidade de revisão das decisões e
adesões. Para a argumentação, segundo Perelman, devem estar presentes duas
condições essenciais: deve existir um auditório a ser persuadido ou convencido
e premissas que funcionam como ponto de partida.
Acresce o filósofo belga que “aquele que argumenta não se dirige ao que
consideramos como faculdades, como a razão, as emoções, a vontade. O orador
dirige-se ao homem todo [...]” (PERELMAN, 2000, p. 35). Daí a distinção entre
persuasão e convencimento – quando centrada nos índices de confiabilidade e
validação inerentes ao par racional/irracional –, pareça nada poder vir a acres-
centar à compreensão do ato retórico.
Estará mesmo contraindicada, pois “os critérios pelos quais se julga poder
separar convicção e persuasão são sempre fundamentados numa decisão que
pretende isolar de um conjunto – conjunto de procedimentos, conjunto de fa-
culdades – certos elementos considerados racionais” (PERELMAN, 2000, p. 29).
Assim como existem instâncias de julgamento para as quais se apela de uma
sentença, o campo do argumentativo deve possibilitar a reabertura da discus-
são, propiciando, se for o caso, a mudança de opinião.
Perelman afirma que o principal objetivo de um orador é conseguir a adesão
às suas propostas, razão por que observa o teórico que o orador deve adaptar o
seu discurso ao seu auditório, sob pena de ver seriamente afetada a eficácia do
capítulo 3 • 159
seu discurso. Essa adaptação consiste, essencialmente, no reconhecimento de
que só pode escolher como ponto de partida do seu raciocínio, teses já admi-
tidas por aqueles a quem se dirige, mesmo que lhe pareçam inverossímeis. Já
vimos que a finalidade da argumentação – ao contrário da demonstração – não
é provar a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas, mas sim,
como descreve Perelman: “transferir para as conclusões a adesão concedida às
premissas” (PERELMAN, 2000, p. 73).
Não se preocupar com a adesão do auditório às premissas do seu discurso,
levaria o orador a cometer a mais grave das faltas – a petição de princípio (2000,
p. 125) – ou seja, apresentar uma tese como já aceite pelo auditório, sem cuidar
primeiramente de confirmar se ela se beneficia previamente de uma suficiente
adesão. A argumentação, como o seu próprio nome sugere, corresponde a um
encadear de argumentos intimamente solidários entre si, com o fim de mostrar
a plausibilidade das conclusões.
Se uma das premissas do raciocínio argumentativo for contestada, quebra-
se essa cadeia de solidariedade, independentemente do valor intrínseco da
tese apresentada pelo orador. É que uma coisa é a verdade da tese, outra é a
adesão que ela suscita, pois mesmo que a tese fosse verdadeira, supô-la admi-
tida, quando é controversa, constitui uma petição de princípio característica. E
como a adesão pressupõe consenso, o orador deve recorrer aos possíveis obje-
tos de acordo para neles fixar o ponto de partida da sua argumentação.
Para Perelman, a expressão geralmente aceite não deve ser confundida com
uma probabilidade calculável, por ser portadora de um aspecto qualitativo que
a aproxima mais do termo razoável do que do termo provável.
Se o raciocínio dialético parte do que é aceite, com o fim de fazer admitir ou-
tras teses que são ou podem ser controversas, é porque tem o propósito de per-
suadir ou convencer, de ser apreciado pela sua ação sobre outro espírito, numa
palavra, é porque não é impessoal, como o raciocínio analítico. Podemos, en-
tão, fazer a distinção entre os raciocínios analíticos e os raciocínios dialéticos
com base no fato de os primeiros incidirem sobre a verdade e os segundos so-
bre a opinião. É que, como diz o filósofo, seria [...] tão ridículo contentarmo-nos
com argumentações razoáveis por parte de um matemático como exigir provas
científicas a um orador (PERELMAN, 1993, p. 22).
A razão argumentativa pressupõe também a liberdade do auditório, que
pode aderir ou não às teses ou valores defendidos. Neste ponto se estabele-
ce a distinção entre a Retórica e o modelo dialético de Platão, que pretende,
160 • capítulo 3
mediante o diálogo, obter uma adesão necessária do interlocutor, já que suas
teses corresponderiam à verdade. Para a Teoria da Argumentação, a razão his-
tórica é vista (PESSANHA. 1989, p. 232-233):
Este é um dos princípios básicos da retórica que Perelman (2000, p. 23) ex-
plica melhor do que ninguém: “O conhecimento de um auditório não é inde-
pendente do conhecimento da forma de o influenciar, [...] é também o conhe-
cimento da forma de o moldar e ainda o conhecimento de quanto ele já está
moldado num qualquer momento do discurso” (SANTOS, 2006, p. 100).
Sendo estudioso de lógica, durante muitos anos, Perelman acabou interes-
sando-se pela criação de uma lógica dos juízos de valor que pudesse fornecer
critérios objetivos e universais para a aferição de valores, em vez de relegá-la ao
arbítrio de cada um. Seguiu este caminho por discordar da posição positivista
que, ao limitar o papel da lógica, do método científico e da razão à solução de
problemas de fundo meramente teórico, abandona a solução dos problemas
humanos à emoção, aos interesses e à violência.
Perelman (2000, p. 42), aliás, admite que a íntima deliberação serve, por-
tanto, para “intensificar a convicção” já arraigada, do que a receber novas opi-
niões, embora solidamente argumentadas. Em todo o caso, há pelo menos um
aspecto inegavelmente e necessariamente presente em qualquer tipo de argu-
mentação qualquer que seja a sua relação à ação. O discurso argumentativo é
sempre constituído por uma palavra performativa, no sentido em que essa pa-
lavra cumpre uma ação persuasiva que procura o efeito de “mover a mente” do
Outro, ”comovê-la” até criando uma certa “disposição de ação”.
O que também significa, uma vez mais, que, se a ação escolhe a palavra para
se exercer, é porque renuncia à violência. Como escreve Perelman (2000, p. 44):
“[...] toda argumentação pode ser vista como um substituto da força material
que, pelo constrangimento, propõe-se a obter efeitos da mesma natureza”.
Habermas (2002) envereda também por esta direção quando distingue a ação
comunicativa mediada pela discussão argumentada que pressupõe a aceita-
ção mútua de uma certa “ética da discussão”, à ação estratégica que se impõe
(instrumentalmente).
A noção perelmaniana de auditório passa, portanto, pela de reconhecimen-
to, o que implica a renúncia à violência, mesmo se esta for simbólica. Aliás, os
termos em que Perelman define o auditório, aproximam-no singularmente da
já referida definição do espaço público. Diz o professor belga: “[...] o auditório
é o conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação”
(PERELMAN, 2000, p. 25).
capítulo 3 • 161
O reconhecimento do interlocutor por parte do orador faz do auditório, em
grande parte, uma construção deste, já que o orador lhe demarca os limites e
define-lhe a identidade. Assim, quando o líder do PC afirma estar disposto a
falar “com todos os partidos democráticos”, o auditório sabe bem quem ele ex-
clui do universo dos partidos “democráticos”. Inversamente, quando o chefe de
um partido da direita pronuncia exatamente a mesma frase “estamos dispostos
a negociar com todos os partidos “democráticos”, sabemos também que esse
universo não inclui o PC. Em ambos os casos, cada orador delimita e constrói o
universo daqueles que admite como seu auditório. Em boa parte, toda a argu-
mentação tem de ser construída a partir do que se definiu ser o seu destinatá-
rio, quer dizer, o seu auditório (PERELMAN, 2000, p. 27).
É essencial, pois, conhecer o auditório, saber quais são as teses que se su-
põe que ele aceitaria, e que poderiam servir de premissas para a argumentação
que o advogado se propõe a desenvolver. Ou seja, diríamos que a Nova Retórica
provoca o jurista a não pensar os fatos dentro de um sistema legal fechado, mas
a pensá-lo como ocorrências suscetíveis de valoração, ao lado de normas igual-
mente suscetíveis de valoração, justapostas a provas também suscetíveis de va-
loração, que se aconchegam em argumentos favoráveis ou contrários aos inte-
resses em jogo em determinada causa, mas que, de qualquer forma, revelam-se
por meio do discurso e da prática judiciária.
Se o orador desconhecer o auditório, poderá construí-lo como uma presun-
ção sua, mas o auditório presumido deve se aproximar da realidade, sob pena
da argumentação perder em eficácia. Com essa noção de auditório presumido,
Perelman (2000, p. 39) enfatiza a importância do conhecimento prévio do am-
biente cultural de cada auditório: “O conhecimento daqueles que se pretende
conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz”.
O conhecimento do auditório é vital para o sucesso da argumentação, uma
vez que o orador sempre fundamentará seu discurso sobre determinados acor-
dos prévios do auditório. Quanto melhor se conhece o auditório, maior é o nú-
mero de acordos prévios que se tem à disposição e, portanto, melhor funda-
mentada será a argumentação, e vice-versa; porque um dos erros mais comuns
em uma argumentação ineficaz é o que se chama de uma petição de princípio.
A petição de princípio consiste em “supor admitida uma tese que se de-
sejaria fazer admitir pelo auditório” (2000, p. 115). Assim, se um missionário
162 • capítulo 3
protestante, ao tentar converter uma tribo africana à sua fé, começa sua argu-
mentação a partir do princípio de que qualquer uma das tradições religiosas da
tribo é intrinsecamente ruim, é pouco provável que seja bem-sucedido em sua
tarefa, já que o que é óbvio e incontroverso para ele poderá não o ser necessa-
riamente para o seu auditório. Para evitar o risco de uma petição de princípio, é
necessário que o orador conheça as teses admitidas pelo seu auditório. Se o au-
ditório é pequeno, o orador pode proceder mediante algumas perguntas sim-
ples; este é o procedimento adotado por Sócrates nos diálogos platônicos. Se
o auditório for grande, contudo, o orador deverá se contentar com suposições
(PERELMAN, 2000, p. 40).
No contato do orador com o auditório, o meio de comunicação utilizado
será uma língua natural, não existindo necessidade, no discurso retórico, de
que a linguagem utilizada seja absolutamente precisa e livre de ambiguidades,
como no discurso analítico, que se utiliza de uma linguagem artificial, inequí-
voca, “uma vez que a verdade ou falsidade de uma proposição devem resultar
unicamente da sua forma, a qual não pode admitir, por isso, interpretações
diferentes” (PERELMAN, 2000, p. 28). Por esse motivo, o discurso analítico se
mostra em muitos casos tão técnico e especializado que se torna impenetrável
àqueles que não tenham tido contato anterior com a disciplina com que se está
lidando. Em contrapartida, o discurso retórico se utiliza sempre da linguagem
comum, ou da linguagem comum adaptada conforme as circunstâncias, e é um
discurso não especializado por excelência.
O filósofo belga assegura que a motivação deve se adaptar ao auditório que
se propõe persuadir, a suas exigências em matéria de direito e de justiça, à ideia
que ele se forma do papel e dos poderes do juiz no conjunto das instituições
nacionais e internacionais. Como essa concepção varia conforme as épocas,
os países, a ideologia dominante, não há verdade objetiva a tal respeito, mas
unicamente uma tentativa de adaptação a uma dada situação. O Direito é, si-
multaneamente, ato de autoridade e obra de razão e de persuasão (PERELMAN,
2001, p. 570).
Traz-se uma pertinente ilustração, que elucida bem todas essas questões
perelmanianas tratadas até o momento, que é o caso concreto de um julga-
mento ocorrido recentemente (O Globo – 9/5/07): “a sogra Solange Viana, de 52
anos, matou a nora Lia Gomes, de 24 anos, e foi absolvida”.
capítulo 3 • 163
Solange Viana, de 52 anos, deixou nesta quarta-feira a penitenciária Nélson Hungria,
no Complexo Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste da cidade. Na última segun-
da-feira, ela foi absolvida da acusação de mandar assassinar a nora, a professora Lia
Gomes, em Queimados, na Baixada Fluminense, em 1º de agosto de 2006. Solange
foi recebida na entrada do complexo penitenciário por seu advogado, Nata Rozeira,
e seguiu para Santa Cruz pela Avenida Brasil. Depois de 12 horas de julgamento, o
Tribunal do Júri de Queimados absolveu Solange por quatro votos a três. Segundo
o advogado assistente da promotoria, Jorge Luiz Souza, várias vezes o advogado de
defesa usou a palavra “evangélico”, para sensibilizar o júri: “ele disse que Jesus foi o
primeiro criminalista e ainda fez uso de citações bíblicas, como “O salário do pecado é
a morte”. Isso sem falar que, nas palavras dele, minha sobrinha seria uma destruidora
de lares. É claro que tudo isso tem muito impacto sobre a decisão tomada por um
grupo formado principalmente por evangélicos[...].
164 • capítulo 3
MULTIMÍDIA
DVD- Linha Direta Justiça. Quatro histórias reais. Globo, 2005.
DVD – A Maldição do Edifício Joelma e outras histórias misteriosas, episódios
exibidos pelo programa Linha Direta em 2004 e 2005. Globo Marcas e a Som Livre.
capítulo 3 • 165
Argumentos baseados na realidade são aqueles cujo fundamento encontra-
se na ligação existente entre os diversos elementos da realidade. Como se ad-
mite que os elementos do real estão associados entre si, em uma dada ligação,
é possível fundar sobre tal relação uma argumentação que permita passar de
um destes elementos ao outro. Podem ser de sucessão ou coexistência. Os ar-
gumentos fundados na estrutura do real por sucessão são aqueles que dizem
respeito à relação de causa e efeito ou causa e consequência; por exemplo, o ar-
gumento pragmático, que atribui o valor de uma tese aos resultados causados
por sua adoção.
Os argumentos fundados na estrutura do real por sucessão são aqueles que
dizem respeito às relações envolvendo realidades de ordens diferentes, em que
uma seja a essência e a outra a manifestação exterior dessa essência. É o argu-
mento que procura associar o caráter de uma pessoa a seus atos, por exemplo.
Argumentos que fundam a estrutura do real são aqueles que "generalizam
aquilo que é aceite a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, rela-
ção) ou transpõem para um outro domínio o que é admitido num domínio de-
terminado". Trata-se dos argumentos que se utilizam do exemplo, do modelo,
da analogia e da metáfora.
Os argumentos por dissociação são aqueles que, em vez de proceder por
meio da ligação e ruptura de associações anteriormente estabelecidas, pro-
curam solucionar uma incompatibilidade do discurso, reestabelecendo uma
visão coerente da realidade. Quando posto em contradição, o orador procura
construir um conceito de realidade capaz de se usado para julgar as aparências:
aquelas que se conformarem, são consideradas válidas; as que não se confor-
marem, são desconsideradas. A dissociação resulta da depreciação do que era
até então um valor aceito e a sua substituição por outro conceito que esteja de
acordo com o valor original. É uma técnica fundamental para a filosofia, mas
pouco mencionada na retórica tradicional. Está na raiz de todos os pares filo-
sóficos, ou seja, todos os conceitos que giram em torno do par "aparência/rea-
lidade" e seus correlatos, cujo exemplo mais vívido encontramos na teoria das
ideias de Platão (PERELMAN, 2000, p.52).
Perelman (2000,p.472) inclui nesses tipos de argumentos por dissociação o
par “aparência-realidade”, explicitado pelo autor da seguinte forma:
166 • capítulo 3
O bastão, parcialmente mergulhado na água, parece curvo, quando o olhamos, e reto,
quando o tocamos, mas, na realidade, ele não pode ser simultaneamente curvo e reto. En-
quanto as aparências podem opor-se, o real é coerente: sua elaboração terá como efeito
dissociar, entre as aparências, as que são enganosas das que correspondem ao real.
Fatos e verdades
Real Presunções
Premissas de
argumentação
Valores
Preferível Hierarquia
Estrutura de Lugares
argumentação de Quase - lógicos
Perelman
Argumentos Que se baseiam na
associativos estrutura do real
Técnicas
Que se fundamentam
argumentativas
na estrutura do real
Argumentos
dissociativos
Figura 3.4 –
Por fim, reitera-se que a teoria da argumentação de Perelman não abre mão
dos aspectos históricos e sociais e não pode começar do nada, nem partir de
qualquer lugar, superando assim a lógica pura do sistema cartesiano.
capítulo 3 • 167
ATENÇÃO
A utilização dos argumentos depende de certas condições. Há argumentos que podem ser de-
cisivos num caso, mas não terem aplicação em outro, por conta da mudança do contexto fático.
É fato que a análise de determinada norma ou fato, deve dar primazia à interpretação que
melhor acolha os valores retratados em princípios constitucionais.
CONCEITO
Pode-se identificar o raciocínio jurídico sob dois prismas, sendo eles:
a) raciocínio dedutivo (norma-fato), analítico ou silogismo lógico-formal: com base em
premissas categóricas de uma preposição, se obtêm elementos para uma conclusão válida,
apontando e separando o correto do falso, em forma de axioma.
b) raciocínio indutivo (descritivo/valorativo/normativo ou fato/valor/norma), partindo-se do
particular para o geral por meio da axiologia: terá que se chegar o mais próximo do razoavel-
mente necessário para um bom e justo raciocínio.
ATIVIDADES
01. Partindo das noções acerca da Lógica Formal e Lógica Jurídica (Lógica do Razoável) e
dos tipos de raciocínio apresentados, analise os casos concretos aparentemente simples, a
seguir, aplicando-lhes as informações recebidas (GRANZINOLI,2009, p.142).
Caso concreto 1
Existe uma regra de trânsito que não permite buzinar perto de hospitais. Suponha-se que
um motorista, parado em um sinal de trânsito próximo a um hospital, vê-se obrigado a utilizar
a buzina para chamar a atenção de um policial do outro lado da rua, pois está na iminência de
ser sequestrado por dois homens armados.
168 • capítulo 3
Caso concreto 2
Há uma regra que proíbe o uso de rádios, telefones celulares e outros aparelhos sonoros
nas bibliotecas públicas. Suponha que o faxineiro escute rádio antes da abertura da biblio-
teca, enquanto a limpa, ou que a bibliotecária, por conta de um princípio de incêndio, utilize o
celular, durante o expediente para chamar o Corpo de Bombeiros.
Caso concreto 3
Existem regras de trânsito que proíbem o tráfego de veículos acima de determinada ve-
locidade em certas vias (Placa- velocidade máxima 60 km/h). Imagine que um motorista de
táxi, conduzindo uma pessoa gravemente enferma ao hospital ultrapasse essa velocidade e
é multada pelo radar eletrônico (ÁVILA, Humberto, 1999, p.18).
02. Argumentar é fornecer argumentos, isto é, razões a favor ou contra uma determinada
tese. A tese é o posicionamento defendido diante do caso concreto. Pois bem, faça a leitura
e o entendimento do texto abaixo e depois identifique as teses e os argumentos que as sus-
tentam no texto apresentado.
Texto
No conceito de justa causa de indenização, insere-se também o pagamento dos juros
compensatórios como forma de ressarcir os prejuízos decorrentes da antecipada
imissão judicial na posse.
Ao contrário do que supõe o Município-réu, o fato de o bem expropriado ser lote vago
não subtrai do proprietário o direito aos juros compensatórios. Isto porque, pelo menos
potencialmente, houve lucros cessantes, uma vez que o lote vago poderia, por exem-
plo, ser alugado e produzir renda.
E, ocorrendo lucros cessantes, os juros compensatórios devem ser contados como
forma de indenização. Aliás, a indenização a que faz jus o expropriado, para ser justa, há
de recompor seu patrimônio com quantia que corresponda exatamente ao desfalque,
produzido pela desapropriação.
Indenizar somente o bem expropriado, sem levar em conta as perdas e danos sofridos
pelo proprietário (incluídos nestes os danos emergentes e os lucros cessantes), tornaria
insuficiente o ressarcimento, representando tal fato visível descumprimento da norma
constitucional que determina seja justa a indenização. (CRFB/88, art. 5º, XXIV).
capítulo 3 • 169
03. Leia o caso concreto abaixo e, a seguir, resolva a questão proposta.
“Amar é faculdade, cuidar é dever” – STJ obriga pai a indenizar filha em R$ 200 mil
por abandono afetivo.
“Amar é faculdade, cuidar é dever.” Com essa frase, da ministra Nancy Andrighi,
a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) asseverou ser possível exigir
indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais. A decisão é
inédita. Em 2005, a Quarta Turma do STJ, que também analisa o tema, havia rejeitado
a possibilidade de ocorrência de dano moral por abandono afetivo.
No caso mais recente, a autora entrou com ação contra o pai, após ter obtido reco-
nhecimento judicial da paternidade, por ter sofrido abandono material e afetivo duran-
te a infância e adolescência. Na primeira instância, o pedido foi julgado improcedente,
tendo o juiz entendido que o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo
da mãe em relação ao pai.
Dano familiar
Para a ministra, porém, não há por que excluir os danos decorrentes das relações
familiares dos ilícitos civis em geral. “Muitos, calcados em axiomas que se focam na
existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –, negam a
possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimen-
to das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores”, afirmou.
“Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsa-
bilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família”,
completou a ministra Nancy. Segundo ela, a interpretação técnica e sistemática do
Código Civil e da Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é
tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive “os intrincados meandros das
relações familiares”.
170 • capítulo 3
Liberdade e responsabilidade
A ministra apontou que, nas relações familiares, o dano moral pode envolver ques-
tões extremamente subjetivas, como afetividade, mágoa, amor e outros. Isso tornaria
bastante difícil a identificação dos elementos que tradicionalmente compõem o dano
moral indenizável: dano, culpa do autor e nexo causal.
Porém, ela entendeu que a par desses elementos intangíveis, existem relações que
trazem vínculos objetivos, para os quais há previsões legais e constitucionais de obri-
gações mínimas. É o caso da paternidade.
Segundo a ministra, o vínculo – biológico ou autoimposto, por adoção – decorre sem-
pre de ato de vontade do agente, acarretando a quem contribuiu com o nascimento
ou adoção a responsabilidade por suas ações e escolhas. À liberdade de exercício
das ações humanas corresponde à responsabilidade do agente pelos ônus decorren-
tes, entendeu a relatora.
Dever de cuidar
“Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que
une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres
inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e
educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de aten-
ção e o acompanhamento do desenvolvimento sóciopsicológico da criança”, explicou.
“E é esse vínculo que deve ser buscado e mensurado, para garantir a proteção do
filho quando o sentimento for tão tênue a ponto de não sustentar, por si só, a manu-
tenção física e psíquica do filho, por seus pais – biológicos ou não”, acrescentou a
ministra Nancy.
Para a relatora, o cuidado é um valor jurídico apreciável e com repercussão no âmbito da
responsabilidade civil, porque constitui fator essencial – e não acessório – no desenvol-
vimento da personalidade da criança. “Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar
que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em
relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium vitae”, asseverou.
Amor
“Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar,
que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem
filhos”, ponderou a ministra. O amor estaria alheio ao campo legal, situando-se no
metajurídico, filosófico, psicológico ou religioso.
capítulo 3 • 171
“O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar
pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da
avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações
voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos
– quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação
do julgador, pelas partes”, justificou.
Alienação parental
A ministra ressalvou que o ato ilícito deve ser demonstrado, assim como o dolo ou
culpa do agente. Dessa forma, não bastaria o simples afastamento do pai ou mãe, de-
corrente de separação, reconhecimento de orientação sexual ou constituição de nova
família. “Quem usa de um direito seu não causa dano a ninguém”, ponderou.
Conforme a relatora, algumas hipóteses trazem ainda impossibilidade prática de pres-
tação do cuidado por um dos genitores: limitações financeiras, distâncias geográficas
e mesmo alienação parental deveriam servir de excludentes de ilicitude civil.
Ela destacou que cabe ao julgador, diante dos casos concretos, ponderar também
no campo do dano moral, como ocorre no material, a necessidade do demandante
e a possibilidade do réu na situação fática posta em juízo, mas sem nunca deixar de
prestar efetividade à norma constitucional de proteção dos menores.
“Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência de pleno cuidado
de um dos genitores em relação à sua prole, não pode o julgador se olvidar que deve
existir um núcleo mínimo de cuidados parentais com o menor que, para além do mero
cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições
para uma adequada formação psicológica e inserção social”, concluiu.
172 • capítulo 3
“Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente
apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de
seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegia-
ram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in reipsa e traduzin-
do-se, assim, em causa eficiente à compensação”, concluiu a ministra.
A relatora considerou que tais aspectos fáticos foram devidamente estabelecidos pelo
TJSP, não sendo cabível ao STJ alterá-los em recurso especial. Para o TJSP, o pai
ainda teria consciência de sua omissão e das consequências desse ato.
A Turma considerou apenas o valor fixado pelo TJSP elevado, mesmo diante do grau
das agressões ao dever de cuidado presentes no caso, e reduziu a compensação para
R$ 200 mil. Esse valor deve ser atualizado a partir de 26 de novembro de 2008, data
do julgamento pelo tribunal paulista. No julgamento do STJ, ficou vencido o ministro
Massami Uyeda, que divergiu da maioria.
Fonte: Superior Tribunal de Justiça. Endereço eletrônico: <http://camargopereira.
blogspot.com.br/2012/05/amar-e-faculdade-cuidar-e-dever-stj.html>.
Acesso em: 15 out. 2015
No caso concreto “Amar é faculdade, cuidar é dever”, nota-se que o Supremo Tribunal
de Justiça (STJ) reconheceu o direito à indenização por danos morais decorrentes de aban-
dono afetivo. Em um passado muito recente, entendia-se que o amor é um bem jurídico não
exigível, razão por que as indenizações eram regularmente negadas.
Releia a fundamentação da Ministra Nancy Andrighi acerca da matéria do caso concreto,
e, em seguida, fundamente o seu entendimento, em até 15 linhas, sobre o fragmento abaixo,
aplicando as informações recebidas acerca do Silogismo Lógico-Formal, silogismo Retórico,
Lógica Formal e Lógica Jurídica:
"Muitos magistrados, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na
relação familiar - sentimentos e emoções -, negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os
danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores".
capítulo 3 • 173
04. Leia o texto, a seguir, “Propaganda de mau gosto” e responda à questão proposta:
A polícia federal exigiu a retirada de três outdoors da cidade de Porto Alegre sob acu-
sação de que poderiam incentivar o uso de drogas. Os anúncios traziam a seguinte
frase: “um jeans Di Trevi custa o mesmo que três gramas de cocaína e você agita mui-
to mais”. Como se não bastasse a infeliz frase, o anúncio também exibia uma imensa
seringa. (“Isto É”, 15/10/2007)
a) Havia base legal para exigir a retirada do anúncio? Que norma ou normas foram violadas
pela empresa que promoveu o anúncio?
b) Construa um parágrafo argumentativo com 10 linhas, defendendo a sua tese diante do
recorte apresentado.
05. Analise o caso concreto abaixo, seguido de uma pesquisa na internet ou outras fontes,
de matérias que o orientem acerca da problematização do caso, ou seja, o ponto de vista
da família da criança. Algum direito dela ou do filho foi violado? Qual? Qual a norma jurídica
aplicada ao caso? Com base nessa(s) norma(s), o que pode a família do aluno pleitear? Que
argumentos pode a escola usar em sua defesa?
Caso Concreto
Os pais conseguiram a ajuda de um policial, que foi até a escola e pulou o muro, con-
seguiu o número do telefone de uma funcionária e fez contato com ela. A proprietária
da escola chegou ao local por volta das 20h30 e abriu o prédio. O menino estava
dormindo, mas havia chorado muito e estava assustado. (“Agência Estado”, 2001)
174 • capítulo 3
06. A partir do caso concreto apresentado, faça uma pesquisa sobre a matéria em questão,
escolha uma tese a ser defendida e apresente uma argumentação jurídica em, pelo menos,
três parágrafos argumentativos, aproximadamente, com seis linhas, no mínimo, cada um de-
les. O tipo de argumento a ser utilizado a cada parágrafo é de sua livre escolha.
Em 21/08/2012, foi noticiado que foi lavrada uma escritura de união estável poliafe-
tiva entre um homem e duas mulheres na cidade de Tupã/SP, na qual a Nobre Tabeliã
asseverou a ausência de proibição legal e a influência dos princípios constitucionais
da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade para justificar a juridici-
dade de tal escritura. Em decorrência desse caso, alguns escritos foram divulgados
na internet comentando o fato – ressalvada a posição sempre vanguardista de Maria
Berenice Dias (na notícia supracitada), em geral tem sido negada juridicidade a tal
escritura, por considerada como contrária ao ordenamento jurídico pela consideração
de seus defensores de que a família brasileira teria “natureza monogâmica”.
Leia mais: <http://jus.com.br/artigos/22830/uniao-estavel-poliafetiva-breves-consi-
deracoes-acerca-de-sua-constitucionalidade#ixzz3om1E8ITu>.
capítulo 3 • 175
07. A partir do caso concreto apresentado, escolha uma tese a ser defendida em um pará-
grafo argumentativo de 10 linhas. O tipo de argumento a ser utilizado no parágrafo é de sua
livre escolha.
Lorena Pereira, 38 anos de idade, Paulo Pereira, 40 anos de idade, Rua X, na e Pedro
Pereira, x, 8 anos de idade, todos domiciliados na Rua Barata Ribeiro, nº 67, em Copa-
cabana, na cidade do Rio de Janeiro, sofreram um grave acidente de carro, enquanto
viajavam para Angra dos Reis, em 10 de março de 2010.
Em consequência do acidente, Pedro Pereira, o filho do casal, ficou preso nos es-
combros do carro. Após alguns minutos, a ambulância chegou e o menor foi retirado
dos escombros pelos médicos, encontrando-se em estado grave. O casal, porém, saiu
ileso do acidente.
O menor foi levado para o Hospital Municipal de Angra dos Reis onde foi examinado
pelo médico Dr. Paulo Rainho de Menezes que constatou hemorragia generalizada e,
consequentemente, que o menor precisaria de uma transfusão de grande quantidade
de sangue. Os pais do menor não autorizaram a transfusão de sangue por motivos
religiosos o que levou o menor a falecer em decorrência de hemorragia generalizada
algumas horas depois.
176 • capítulo 3
O artigo 6º do Código de Ética Médica descreve que o médico deve guardar o absoluto
respeito da vida humana, sempre agindo pelo bem do paciente. De acordo com a jurispru-
dência, temos o seguinte entendimento: “Uma vez comprovado efetivo perigo de vida para a
vítima, não cometeria delito nenhum o médico que, mesmo contrariando a vontade expressa
dos que por ela são responsáveis, se ministrar a transfusão de sangue.” (Habeas Corpus no
184.642/5, julgado em 30.08.1989, 9ª Câmara, relator: Marrey Neto, RJDTACRIM 7/175)
08. Com base no caso concreto, construa uma tese e apresente uma argumentação jurídica
que a sustente, utilizando-se dos tipos de argumentos estudados. Para a construção do seu ar-
gumento de autoridade, consulte os artigos 6º e 14, ambos do Código de Defesa do Consumi-
dor. Não se esqueça de apresentar a conclusão da sua argumentação (formulação do pedido).
Martha foi convidada para participar, como palestrante, de um Congresso que ocorre-
ria no Uruguai. Após confirmar a sua participação no evento, Martha decide comprar
suas passagens pela Internet no site de uma famosa companhia aérea. Como não
possuía voo direto que a levasse de Goiás para o Uruguai, Martha adquire um voo
com escala em São Paulo.
No dia da viagem, ao chegar a São Paulo, lugar onde teria que fazer a troca de
aeronave, a passageira é informada a respeito do cancelamento de seu voo para o
Uruguai. Preocupada, Martha indaga se seria possível realocá-la em outra aeronave,
mas recebe a notícia de que somente decolariam novos voos para o Uruguai no dia
seguinte, ou seja, após o evento do qual participaria. Inconformada com a perda do
Congresso, Martha procura você para que, na qualidade de advogado(a), busque a
tutela adequada de seu direito.
(OAB/FGV/2014)
capítulo 3 • 177
09. Apresente uma argumentação, em defesa do réu, utilizando-se dos argumentos jurídicos
apropriados e consulte os dispositivos legais pertinentes ao caso, como os artigos. 938 e
403, ambos do Código Civil. Não se esqueça da importância do argumento de concessão em
sua contra-argumentação para maior reafirmação de sua tese de defesa.
João andava pela calçada da rua onde morava, no Rio de Janeiro, quando foi atingido
na cabeça por um pote de vidro lançado da janela do apartamento 601 do edifício do
Condomínio Bosque das Araras, cujo síndico é o Sr. Marcelo Rodrigues. João des-
maiou com o impacto, sendo socorrido por transeuntes que contataram o Corpo de
Bombeiros, que o transferiu, de imediato, via ambulância, para o Hospital Municipal X.
Lá chegando, João foi internado e submetido a exames e, em seguida, a uma cirurgia
para estagnar a hemorragia interna sofrida.
João, caminhoneiro autônomo que tem como principal fonte de renda a contratação
de fretes, permaneceu internado por 30 dias, deixando de executar contratos já nego-
ciados. A internação de João, nesse período, causou uma perda de R$ 20 mil. Após
sua alta, ele retomou sua função como caminhoneiro, realizando novos fretes.
Contudo, 20 dias após seu retorno às atividades laborais, João, sentindo- se mal,
voltou ao Hospital X. Foi constatada a necessidade de realização de nova cirurgia, em
decorrência de uma infecção no crânio causada por uma gaze cirúrgica deixada no
seu corpo por ocasião da primeira cirurgia. João ficou mais 30 dias internado, deixan-
do de realizar outros contratos.
A internação de João, por este novo período, causou uma perda de R$ 10 mil. João
ingressa com ação indenizatória perante a 2ª Vara Cível da Comarca da Capital contra
o Condomínio Bosque das Araras, requerendo a compensação dos danos sofridos,
alegando que a integralidade dos danos é consequência da queda do pote de vidro
do condomínio, no valor total de R$ 30 mil, a título de lucros cessantes, e 50 salários
mínimos a título de danos morais, pela violação de sua integridade física. Citado, o
Condomínio Bosque das Araras, por meio de seu síndico, procura você para que,
na qualidade de advogado(a), busque a tutela adequada de seu direito. Concreto
(OAB-FGV-17/5/2015).
178 • capítulo 3
Siga este esquema para melhor aprimoramento o seu texto:
capítulo 3 • 179
Art. 403 do CC: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só
incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem pre-
juízo do disposto na lei processual”. Por fim, deverá defender a inexistência de danos morais
a serem indenizados e, caso seja diferente o entendimento do juízo, que o valor a ser fixado
a título de indenização seja inferior àquele pedido pelo autor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BARRILI, Renato. Retórica.Lisboa: Presença,1987.
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5.ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e
Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
____________. Retórica. Tradução Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel, 2007.
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2003.
DESCARTES, René. Discurso do Método e outros escritos. Coleção Os Pensadores. Rio de Janeiro:
Nova Cultural, 1996.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de Princípios. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
GRANZINOLI, Cassio Murilo Monteiro. Interpretação e Argumentação Jurídica. Uma contribuição para
a fundamentação e justificação as decisões judiciais. Rio de Janeiro: Forense,2009.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2012.
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica jurídica clássica. 2.ed. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2003.
______. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3.ed. Belo Horizonte: Mandamentos,
2004.
PALADINO, Valquiria da Cunha (ORG) et alli. Argumentação Jurídica. Teoria e Prática. Rio e Janeiro,
Freitas Bastos, 2013.
PLEBE, Armando. Breve história da retórica antiga. São Paulo: EPU, 1978.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: Nova Retórica. Tradução Virgínia K. Pupi; Revisão da tradução
Maria Ermantina de Almeida Padro Galvão; Revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
180 • capítulo 3
______. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão; [revisão da tradução
Eduardo Brandão]. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão; [revisão da tradução Eduardo Brandão]. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27.ed.. São Paulo: Saraiva, 2009.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Manual de Redação Forense. Curso de Linguagem e Construção de Texto
no Direito. Campinas:LZN, 2002.
Anexo I
Proposta se Trabalho
ASSUNTO: Trabalho em grupo sobre o livro A Paixão no Banco dos Réus
LIVRO: ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. São Paulo: Saraiva,
2002.
Objetivos: Desenvolver a capacidade de trabalhar em equipe; desenvolver
a linguagem oral; aperfeiçoar o raciocínio jurídico, desenvolver o trabalho de
pesquisa e conhecer casos concretos importantes para ampliar o conhecimen-
to jurídico.
Dados sobre a autora: Luiza Nagib Eluf é Procuradora de Justiça do
Ministério Público do Estado de São Paulo, especializada na área criminal. Foi
secretária nacional dos Direitos da Cidadania no governo Fernando Henrique
Cardoso e membro da delegação oficial que representou o Brasil em Pequim
na IV Conferência Mundial da Mulher, promovida pela ONU em 1995, além de
membro do Conselho Federal de Entorpecentes e dos conselhos estaduais da
Mulher, de Entorpecentes e de Direitos Humanos.
Dados sobre o livro: O livro é organizado em 3 (três) partes, a primeira a
apresenta os casos reais; a segunda apresenta uma parte teórica sobre o crime
passional, o julgamento pelo tribunal do júri, o crime passional e homicídio
qualificado (teses da acusação), o papel do Ministério Público, a acusação no
plenário do júri, o papel do advogado de defesa e, finalmente, a terceira parte
apresenta excelente entrevista com Valdir Troncoso Peres.
capítulo 3 • 181
Dinâmica do trabalho:
• Após a organização dos grupos, serão sorteados os casos concretos do li-
vro A Paixão no Banco dos Réus, entre os grupos.
• O trabalho constará de uma apresentação oral (10 min) e de uma apresen-
tação escrita.
• Todos os participantes do grupo farão apresentação oral de parte
do trabalho.
• Os grupos deverão solicitar com antecedência o material necessário à
apresentação oral (Datashow, DVD).
Referências
CHALITA, Gabriel. A sedução no discurso. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
ELUF, Luiza Nagib Eluf. A paixão no banco dos réus. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003.
182 • capítulo 3
GABARITO
Capítulo 1
Capítulo 2
01. Fragmento 1: A palavra mera – que significa simples - no contexto é empregada como
um recurso para marcar o seu discurso de modo que consiga persuadir o auditório de que a
T. Turismo não é responsável pelo extravio da bagagem da Senhora T. M. L., pois ela é uma
simples agenciadora, isto é, ela apenas agencia a relação de contratação entre a pessoa
interessada e a empresa aérea, e, por isso, não deve ser responsabilizada por algo que não
lhe compete.
Fragmento 2: O modalizador apenas tem a finalidade de expressar a pouca responsa-
bilidade ou quase nenhuma da agência de turismo T. Turismo, pois esse termo linguístico é
um operador argumentativo que denota exclusão e que pertence à mesma classe do só, so-
mente, senão, simplesmente. E é realmente essa a intenção posta no fragmento em questão,
porque se procura excluir as possibilidades de a agência de turismo ser acusada de algo pelo
qual ela não é responsável.
Fragmento 3: A estratégia discursiva consiste em levar o juiz e as partes interessadas
a refletirem sobre os fatos narrados e descritos e, assim, serem persuadidos da situação
factual, aderindo à futura tese que o advogado apresentará mais adiante, nos fundamentos
jurídicos do pedido.
De forma resumida e intencional, o advogado relata fato por fato na narrativa jurídica –
como se desfiasse um novelo de linha– sucedendo-se uns aos outros (sequência temporal),
em uma linha de raciocínio lógica, coesa e linear.
Entendeu-se que os fatos se mostram na situação fática por versões diferentes (autor/
réu) e que a busca da verdade nada mais é do que uma questão de ponto de vista.
02. Várias possibilidades de entendimento.
capítulo 3 • 183
03. Produção textual do aluno.
04. Produção textual do aluno.
Capítulo 3
184 • capítulo 3