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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – 383

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Carlos Ari Sundfeld


Professor na Faculdade de Direito na PUC-SP

I – Colocação do procedimento na teoria cácia que possui, para expressar como deve ele
do Direito Administrativo ser editado: que limites encontra nos direitos indi-
viduais, que vinculação deve guardar com a lei e
1. A temática central do direito administrativo
por aí adiante. E, sobretudo, que elementos ou re-
não se resume a uma sistematização neutra das
quisitos há de ostentar.
normas que regem a atividade do Estado. Todo
trabalho humano, e assim o do jurista, tem uma O indivíduo dispõe, então, de uma mais sofis-
finalidade. ticada defesa ante o ato que contra ele se edita.
Pode esquadrinhar o ato produzido, a ver se lhe
Qual o escopo do esforço do administrativis-
falta algum elemento e recorrer ao Judiciário em
ta? Com que objetivo estrutura ele um sistema de
caso positivo: alegará incompetência, ausência de
estudo das normas estatais? Qual a idéia síntese
motivo, desvio de poder...
que governa sua análise?
2. Uma primeira linha que o jurista pode se- 5. Nenhuma crítica, obviamente, a esse tipo
guir, nessa matéria, é a de voltar seu estudo para a de construção, que representa inegavelmente um
explicação da técnica pela qual o Estado submete avanço vital.
o indivíduo: construirá figuras que ensejem um No entanto, ainda é pouco, em verdade muito
exercício autoritário, mas refinado, do poder. Tra- pouco, porque se resume o controle da Adminis-
duzirá para uma linguagem bem elaborada o esta- tração ao resultado de sua ação. Se nos for permi-
tuto do autoritarismo. tida uma figura, a teoria do Direito Administrativo
3. Felizmente, esta não tem sido a tônica do- parece visualizar a Administração ainda como um
minante do administrativismo de hoje. castelo fortificado e inexpugnável, à volta do qual
os indivíduos distribuem suas parcas armas, para
Nossos juristas estão voltados, em sua parce-
se defenderem de qualquer agressão. Vinda esta,
la mais iluminada, a escrever o estatuto do cida-
providencia-se uma expedição corretiva. Mas a ge-
dão contra o Estado. Preocupam-se em sistemati-
rência do castelo, seu funcionamento íntimo, per-
zar um conjunto de técnicas pelas quais o indiví-
siste sem controle jurídico possível. Os indivíduos
duo se opõe ao poder, barrando-o em defesa de
podem escolher o castelão-mór e mais alguns con-
seus direitos individuais. E esta visão se espalha
selheiros. Não podem, porém, derrubar muralhas
por todos os temas clássicos do Direito Adminis-
e portões para examinar o que se passa lá dentro
trativo, que são revistos e arejados.
antes que alguma agressão seja intentada.
4. Mas há um tópico sobre o qual têm sido
lançados os esforços maiores: o do ato administra- Em outras palavras: pode-se reagir contra o
tivo, noção que se tornou central para o controle ato ilegal, mas pouco ou nada se pode fazer para
da atividade do Estado. que ele não seja ilegal.

Se outrora o ato era estudado como o símbolo 6. Afinal, o que há de errado?


da autoridade e, em conseqüência, o enfoque re- Parece-nos que a falha de nossas teorias tem
caía em sua peculiar eficácia – a executoriedade, sido a de polarizar demais a ótica do Direito Admi-
a presunção de legitimidade, a imperatividade – nistrativo. Antes era o Direito do Estado contra o
recentemente acentua-se mais o papel que de- indivíduo; agora é o do indivíduo contra o Estado.
sempenha no controle da Administração. Com isto, Administração e administrado prosse-
Trata-se de uma guinada, sem dúvida, radical. guem sendo dois mundos inconciliáveis, entre os
Deixa-se de apontar o que o ato pode fazer, a efi- quais nenhuma interação é possível.
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É preciso construir, então, o Direito do equilí- Não obstante, a sentença se liga a um proces-
brio entre autoridade e liberdade. so judicial; a lei, a um processo legislativo; e é
desta soma que advém o controle completo. A no-
Mas como equilibrar estes dois pólos, se a ção de processo é que permite captar e submeter
Administração sempre poderá impor obrigações a controle o dinamismo do desempenho dessas
aos administrados? Como equilibrar uma relação funções. A criação da lei e de sentença depende
vertical? de um processo regulado e é ele que permite a
7. Não se pode propor que a Administração interferência do indivíduo no estágio de criação,
seja despida de seus poderes, porque a cada dia anterior ao surgimento da norma.
mais precisamos dela, mais esperamos dela. E, Nossa hipótese de trabalho é que o procedi-
necessariamente, temos de oferecer-lhe os meios mento administrativo cumpre igual papel em rela-
que permitam o atendimento de nossos reclamos. ção ao ato da Administração.
A solução é romper a barreira entre o desem- II – O procedimento e as funções
penho da autoridade e o exercício da liberdade do Estado
para fazê-los interagir. O exercício da liberdade de
há muito sofre a intervenção da autoridade: para 9. O fenômeno processual não é exclusivo da
tudo é preciso licença, visto, autorização. Agora é Jurisdição, antes é característico das várias fun-
o momento de abrir a estrada inversa, a da interfe- ções do Estado e do tipo de vontade que elas ex-
pressam 1.
rência do indivíduo no desempenho da autoridade.
10. No Direito Privado, a formação da vontade
Absolutamente não basta o direito político de
dos indivíduos não é juridicamente regulada, isto
escolher os governantes e de impor leis à Admi-
é, inexiste uma disciplina processual. Cada um, ao
nistração. É necessário controlar o processo de tomar suas resoluções, segue o percurso que jul-
aplicação da lei. gar adequado. A lei só interfere nesse caminho
A vontade da Administração é a vontade da lei para defender o sujeito, garantindo a livre forma-
concretizada. Mas ocorre que entre a lei e o ato ção de sua vontade. A coação (por exemplo), vicia
administrativo existe um longo percurso. Aquela o ato privado apenas por significar uma indevida
não se transforma automaticamente neste: um trâ- intromissão no livre fluxo de formação da vontade.
Portanto, pode-se dizer que a lei respeita e faz
mite lógico e real se interpõe. É justamente este
respeitar a liberdade do indivíduo não só para to-
concretizar-se que precisamos conhecer, regular
mar decisões (desde que não proibidas) como para
e controlar.
determinar o itinerário que seguirá para chegar a
8. Para essa missão, o estudo do ato adminis- elas.
trativo parece impotente, porque este é uma cate- É que o poder jurídico do indivíduo não lhe é
goria estática, pouco ampla para captar uma reali- fornecido para atingir fins externos a ele, mas é um
dade dinâmica, feita de puro movimento. valor em si mesmo. Porque sua liberdade é consti-
Façamo-nos entender: não se nega a possibi- tucionalmente assegurada, seu agir não se subor-
lidade de controle do desempenho das funções dina senão a seu próprio querer, inexistindo para
terceiros o direito de interferência.
legislativa, judicial e administrativa examinando-se
o conteúdo da lei, da sentença e do ato administra- 11. Já os agentes estatais, sejam eles quais
tivo. A lei pode violar um direito assegurado e ser, forem, exercitam poderes em nome de uma finali-
por isso, fulminada. A sentença que erradamente dade que lhes é estranha: desempenham função.
interpreta a lei será revisada na instância superior. “O que é função, em Direito? A palavra função –
O ato administrativo sem motivo legal sujeita-se reconheça-se – é utilizada em mais de um sentido.
à posterior invalidação. Enfim, o exame a poste- Seu sentido nuclear, entretanto, é o de que função
riori das três espécies de normas, enquanto cate-
gorias, fornece alguma fiscalização do exercício 1. Cf. Alberto Xavier, Do Procedimento Administrati-
do poder. vo, José Bushatsky Editor, 1976, p. 17 e ss.
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é o exercício, no interesse de terceiro, de um poder cesso cumpriria um papel eminentemente ligado à


que se dispõe exclusivamente para os efeitos de tutela dos direitos individuais.
cumprir o dever de atender determinada finalidade Não obstante, existe um outro enfoque. A ativi-
legalmente estabelecida. Isso é função. Ela não se dade estatal é função, submetida a fins exteriores
confunde meramente com Direito ou com Poder, ao agente. O modo de formação da vontade funcio-
porque nestes alguém desfruta de uma situação nal não pode, por isso, ser idêntico ao da vontade
subjetiva ativa que lhe permite mobilizar uma individual. Uma vontade submetida a fins e outra
potencialidade jurídica em vista de seu próprio in- livre são instrumentadas de modo diverso.
teresse, ao passo que, na função, o exercício des-
A vontade livre, aquela que significa exercício
sa potencialidade se efetua no interesse alheio e
da liberdade, tem um canal de expressão básico: o
como instrumento necessário ao cumprimento de
indivíduo. A vontade funcional é canalizada em um
um dever. Aí e só aí temos função” 2.
processo, no qual o agente é apenas um dos ele-
12. O indivíduo não pode interferir na forma- mentos. Não houvesse processo para a formação
ção da vontade de seu semelhante, mas tem uma da vontade funcional e ela seria idêntica a da von-
proteção eficaz: também não pode ser atingido por tade livre: centrada no agente.
ato unilateral deste. De modo que a compa- De outra feita, fizemos, a propósito do ato ad-
tibilização das liberdades tem um instrumento: o ministrativo, uma observação que nos parece po-
acordo de vontades. Ninguém interfere no proces- der ser ampliada para qualquer ato estatal. Afirmá-
so de formação da vontade alheia, mas tem a ga- vamos que, no Direito Público, o agente é mero
rantia de participação toda vez que o ato atingir intermediário entre a lei e o ato, necessário ape-
sua esfera jurídica. Já no exercício da função essa nas para que uma vontade abstrata (a da lei) se
técnica não vigora. A lei, a sentença, o ato admi- concretize (no ato): daí que a lei fixe requisitos
nistrativo são unilaterais, não estão condicionados para garantir, contra o próprio agente, que o ato
à concordância dos particulares. seja espelho fiel da vontade legislativa. No Direito
Privado, é a lei que se põe como intermediária
13. Pois bem, a soma dessas duas caracterís- entre o sujeito e seu ato, necessária apenas para
ticas das atividades estatais, constituírem função que a vontade concreta (do sujeito) se transfira
(exercício de um dever-poder para atingimento de para o ato; daí que a lei fixe requisitos para garan-
uma finalidade) e resultarem em atos unilaterais tir, a favor do próprio sujeito, que o ato seja espe-
que invadem a esfera jurídica dos indivíduos, pro- lho fiel da vontade individual.
voca a necessidade de uma regulação do proces- O processo garante que a vontade funcional,
so formativo da vontade estatal. que se expressará no ato, não seja empolgada
Podemos dizer, então, que o processo é a con- pela vontade do agente, mas signifique uma von-
tade equilibrada, esclarecida, racional, imparcial.
trapartida que se assegura à liberdade pelo fato de
Em suma, assegura que o agente não se transfor-
o ato da autoridade ser unilateral, dentro da pro-
me em fim, mas guarde seu papel de mero inter-
posta de resguardar o equilíbrio entre a liberdade
mediário.
e a autoridade. Sem que o ato estatal deixe de ser
ato de autoridade e, portanto, imperativo, se per- Nessa perspectiva, o processo cumpre uma
mite o exercício da liberdade: condicionando a pro- função mais ampla, a de assegurar a eficiência
dução do ato a um processo regulado do qual o estatal contra o próprio agente, o que interessa
indivíduo possa participar. Sob este ângulo, o pro- mesmo aos regimes despóticos, como observa
Gordilio 3. De fato, também nos regimes que des-
prezam os direitos individuais dos agentes são sub-
metidos a fins obrigatórios, os fixados pelo déspo-
2. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Princípios funda-
mentais de Direito Administrativo”, in Curso de Direito Ad- 3. Tratado de Derecho Administrativo, t. 2, Ed.
ministrativo, Ed. RT, 1986, p. 21. Macchi, Buenos Aires, 1980, p. XVII-13 e ss.
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ta, a quem não é conveniente dividir seu poder. Por a se socorrerem de outrem – possam estabelecer
isso, também tais regimes podem empregar a téc- critérios, padrões e regras de comportamento que
nica processual. servirão de paradigmas da correção do comporta-
mento do titular da função”. E, por fim: “Em tema
14. O processo é, em conseqüência, o modo
de controle, o procedimento exerce grande impor-
normal de agir do Estado, sendo conseqüência di-
tância, pois na medida em que são fixadas se-
reta da idéia de função.
qüências comportamentais obrigatórias, o interes-
Isto não tem passado desapercebido pela dou- sado poderá constatar a exatidão das inúmeras
trina. Alberto Xavier (por exemplo), o reconhece etapas e diagnosticar o momento e o alcance de
nestes termos: “o processo está, pois, intimamente qualquer desvio” 6.
ligado ao problema da vontade e de sua formação. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello se aper-
É certo que nos simples particulares a formação cebeu com nitidez dessa realidade ao, tratando da
da vontade não é objeto de uma disciplina proces- classificação das funções estatais, igualar o Direi-
sual; mas esta observação só revela que aí onde to Administrativo (no qual enfeixa a ação de legis-
essa disciplina se impõe é quando se trata de ade- lar e de executar) e o Direito Judiciário como direi-
quar a vontade psicológica individual a fins legal- tos adjetivos. Após esclarecer que “o ordenamento
mente determinados, ou seja, quando está em cau- da atividade estatal compreende normas jurídicas
sa a manifestação de uma vontade funcional” 4. de organização e normas jurídicas de ação, e as
respectivas relações jurídicas conseqüentes”, en-
Também Gordillo, ao preferir a expressão pro-
sina que “a parte do Direito Judiciário, denomina-
cedimento administrativo ao termo processo, não
da Direito Processual, se considera direito adjeti-
se esquece de acentuar que “parece ser evidente
vo, porquanto tem por fim regular a forma para
hoje em dia que certos princípios gerais do direito
fazer atuar as normas jurídicas e as conseqüentes
e certas normas constitucionais consubstanciadas
relações definidas em outros ramos jurídicos de
com o Estado de Direito e o sistema republicano
direito substantivo. (...) Igualmente, de direito ad-
de governo, não estão destinadas a serem aplica-
jetivo deve ser havida a parte do Direito Admi-
das unicamente ao processo judicial: também a
nistrativo que ordena a ação de legislar e execu-
Administração está desde logo submetida a esses
tar, ou melhor, às normas e atos relativos à ação
princípios, e seus procedimentos não estarão me-
administrativa, ao procedimento administrativo,
nos ligados a eles pelo fato de que não os cubra-
legislativo e executivo, uma vez que constituem
mos com a qualificação de processo” 5.
formas pelas quais se regulamentam e se exe-
Mesmo no Direito brasileiro, é possível encon- cutam outras normas jurídicas, e conseqüentes
trar-se referência dessa espécie, como a de Marco relações, definidas em outros ramos jurídicos,
Aurélio Greco: “(...) toda função se exterioriza por de direito substantivo” 7.
um procedimento, entendido como seqüência or-
denada de atos voltados a um ato final. A razão da III – Classificação das funções e dos
estreita conexão entre função e procedimento nós procedimentos
a vemos no problema do controle”. E em seguida: 15. Em face do que se disse, a teoria do pro-
“Com efeito, se a função consiste em cuidar de cesso estatal tem, obviamente, um núcleo comum,
expectativas (interesses) alheias que foram confi- independentemente da função de que se trate.
adas a alguém, nada mais coerente que os titula-
As várias funções do Estado – pouco importa
res das expectativas – que não poderão cuidar das
como as classifiquemos – resultam na produção
suas expectativas pessoalmente, sendo obrigados

6. Dinâmica da Tributação e Procedimento, Ed. RT,


1979, p. 98.
4. Ob. cit., p. 18.
7. Princípios Gerais de Direito Administrativo, 2ª
5. Ob. cit., p. XVII-4. ed., v. I, Forense, 1979, pp. 42 e 43.
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de normas jurídicas. Na legislativa se produzem as não pode ser um problema indiferente ao Direito,
leis e na administrativa e judiciária são elas execu- sob pena de privilegiar-se a autoridade em detri-
tadas, através da produção de novas normas jurí- mento da liberdade. Daí ser relevante o processo
dicas (atos administrativos ou judiciais). Na produ- legislativo, vale dizer, o caminho percorrido para a
ção de cada um destes atos, que se encadeiam produção da lei. A própria Carta Maior se incumbiu
hierarquicamente em pirâmide, o agente estatal de regulá-lo em minúcias, criando um fluir para a
deve estar atento ao conteúdo da norma superior, atividade legislativa que assegure ampla partici-
para a ela adequar seu ato. Este é já um meio pação na formação da decisão. Assim, o início da
importante de controle do exercício da autoridade,
atividade (a proposição de um projeto) é atribuído
que garante que os atos estatais guardem entre si
ora ao Presidente, ora aos Tribunais, ora a qual-
coerência, de acordo com padrões sucessivamen-
quer parlamentar, ora a certo número deles; ora a
te estabelecidos (na Constituição, nas leis, nos
apenas uma autoridade, ora a todas indistintamen-
decretos etc.).
te. Há uma tramitação obrigatória, há prazos ne-
Mas esta espécie de controle – que o estudo cessários, há número de votos mínimos. Prevê-se
do ato administrativo como categoria acentua-se o veto, sua derrubada e por aí adiante. Vê-se, com
bem que fundamental, não esgota o sistema de isto, que não importa apenas o resultado final (isto
controles essencial ao Estado de Direito. Tem ele é, o conteúdo da lei), mas, em muito, a atividade
seus limites, inevitáveis a uma proposta de ade- para se chegar a ele. A disciplina dessa atividade
quação de conteúdos entre normas dispostas hie-
tem valor em si mesmo, de modo que, embora a lei
rarquicamente: como as normas são feitas para
em seu conteúdo seja compatível com a Constitui-
resolverem problemas práticos, que surgem varia-
ção, poderá estar viciada por seu processo não ter
damente no dia-a-dia, nem sempre (ou muito rara-
sido o estabelecido. Isso revela que os vazios
mente), a norma superior oferece resposta com-
normativos que devem ser preenchidos toda vez
pleta ao problema. Haverá, então, na criação da
norma individual, a necessidade de estabelecimen- que se produz uma norma, só podem sê-lo com
to da conexão entre a norma superior e o caso um controle e participação regulados, como forma
concreto. Essa atividade assume um relevo extra- de garantir, afinal, que o conteúdo resultante não
ordinário porque o agente, ao produzir o ato, traz seja uma imposição autoritária.
elementos novos ao mundo jurídico. 17. De outro lado, a atividade jurisdicional, em
É necessário, assim, que o modo de criação suas especificidades, sujeita-se a uma equivalen-
da norma possa ser objeto de um controle jurídico. te disciplina. Visa ela à produção de sentenças
E o fato é que o Estado de Direito regula esse que sejam aplicação da lei: mas ninguém dirá que
trâmite, impedindo que a decisão final seja uma basta uma adequação de conteúdo para que o ofí-
imposição autoritária, por mais esclarecida que a cio do juiz tenha sido bem exercido. O itinerário
autoridade se apresente. percorrido é fundamental e por isto regulado: quem
16. Assim, em primeiro lugar, com as leis. É e quando pode provocar a Jurisdição (exemplo: o
sabido que o legislador está preso aos ditames réu), que tipo de provas e alegações se pode pro-
constitucionais, de maneira que os atos que pro- duzir, quando fazê-lo, a oportunidade e requisitos
duz devem – sob pena de inconstitucionalidade – da decisão (exemplo: motivação, apreciação das
adequar-se ao conteúdo dos direitos básicos, às razões das partes). Aqui também se garante que a
metas econômicas e aos princípios sociais formu- decisão do magistrado não seja uma imposição
lados pela Constituição da República. Mas absolu- autoritária, mas que signifique um exercício equili-
tamente não basta que os conteúdos sejam com- brado de autoridade em vista da liberdade das par-
patíveis, embora isto seja essencial. Ocorre que o tes. Por mais que o conteúdo de uma sentença
conteúdo da Constituição é mais rarefeito que o da pareça adequado, por exemplo, à lei penal, será
lei em relação ao problema concreto que se quer inválida se não se assegurou a defesa do acusa-
enfrentar e o preenchimento desse espaço vago do, isto é, sua regular participação no processo.
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18. E a atividade administrativa? Será ela cial e o parecer de uma comissão do Congresso
estruturada sob a influência de semelhante idéia? ou o primeiro turno de votação de um projeto são
A resposta quase imediata de quem examinar a atos diversos da sentença e da lei, mas ninguém
doutrina brasileira dominante será negativa, ob- dirá que são internos: são relevantes, influem juri-
servadas algumas exceções. Dir-se-á que a Admi- dicamente na decisão final, são controláveis; em
suma, não constituem um problema do interesse
nistração comporta, em regra, uma atividade livre
exclusivo do legislador ou julgador.
em seu itinerário e regulada em seu resultado. O
ato administrativo parece ser regulado juridicamen- Esconde-se nessa tendência, de considerar
te, procura-se examinar seus elementos, suas par- pouco ou nada relevante a atividade administrativa
tes internas, a ver se existe uma incompatibilidade que não se enquadre no conceito restrito de ato
delas, com a previsão da lei. Mas o modo como se (ou enquanto não se reduza nele), uma visão ain-
da autoritária que impede a constatação de que
chegou a ele normalmente pouco importa, é um
qualquer função pública, para ser desenvolvida,
indiferente jurídico.
depende de um procedimento juridicamente regu-
Ninguém negará que o ato é antecedido de lado e relevante.
uma atividade administrativa; o que se dirá é que Assim sendo, também é regra no Direito Admi-
ela é neutra. Isto fica extremamente claro quando nistrativo a exigência de um procedimento como
se examina a terminologia e o sentido que lhe é condição de legitimidade do agir estatal.
atribuído. À atividade jurisdicional se aplicaria a
19. Dessa forma, podemos dizer que o nú-
noção de processo, uma sucessão encadeada de
cleo comum da teoria do processo estatal nas
atos teleologicamente dirigida a um resultado final; várias funções é o da sua obrigatoriedade. Have-
sucessão essa normatizada, relevante, repleta de rá, para cada uma delas, uma diferente espécie
sentido. Já à atividade administrativa quadraria de processo, com uma ordenação, uma estrutura,
melhor o conceito de procedimento, que surgiu no mesmo um objetivo imediato diverso, mas em to-
Direito Processual como sinônimo de rito, de as- das elas a existência do processo, a observância
pecto externo, meramente formal do processo; um de atos anteriores ao ato final, será condição de
conceito juridicamente neutro, mais ligado à ciên- validade deste.
cia da administração, que não evoca as idéias ge- 20. Sem embargo, existem, como se disse, di-
nerosas de proteção do indivíduo contidas no pro- ferenças, por vezes, profundas diferenças.
cesso, apenas acentua que todo administrador se-
No processo de criação da lei, os indivíduos
gue um itinerário para a tomada de decisões 8.
não participam diretamente, mas através de seus
Revelador também é o conceito de ato admi- representantes, os parlamentares e os chefes do
nistrativo que, na maioria da doutrina, exclui os executivo. Trata-se de uma espécie de processo
atos internos, relegados a um discreto limbo. Im- adequado à produção de atos gerais e abstratos,
porta o ato externo; o interno – categoria na qual que compõem uma imensa gama de interesses,
se pode incluir o ato procedimental – é um proble- difusos. Não seria cabível uma participação indivi-
ma exclusivo da Administração, de escasso inte- dual nesse processo, o que tornaria impossível a
resse jurídico, algo assim de “operatividade casei- produção da lei.
ra”, na saborosa expressão de Hely Lopes Meirel- Já na criação da sentença e do ato administra-
les 9. Curioso que a doutrina desconhece qualquer tivo, põem-se semelhantes questões, eis que am-
ato jurisdicional ou legislativo interno. Decerto que bos são atos de aplicação da lei, de ordinário afe-
o despacho do juiz ou os cálculos do contador judi- tando diretamente interesses individuais. Este fa-
tor produzirá algumas concomitâncias importantes
entre o processo judicial e o procedimento admi-
8. A observação é de Alberto Xavier, ob. cit., pp. 10 e nistrativo, que se estruturarão, em conseqüência,
12 e pode ser confirmada em Hely Lopes Meirelles, Direito sob o manto de alguns princípios comuns, como o
Administrativo Brasileiro, 8ª ed., Ed. RT, 1981, p. 656. da legalidade objetiva, o da imparcialidade, da
9. Ob. cit., p. 139. impulsão oficial, da garantia de defesa, igualdade,
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publicidade, tipicidade e motivação 10. Obviamente perior, o que não ocorre no processo. Por fim, no
que atuarão de variadas formas, adaptando-se a procedimento será comum uma técnica de revisão
cada situação, a cada peculiar atividade, mas libe- automática das decisões pelo hierarca, por meio
rarão seus efeitos em ambas as espécies de pro- das homologações, aprovações e exame de “re-
cesso. cursos de ofício”, de aplicação muito restrita na
Jurisdição. E o recurso hierárquico, por provoca-
21. De outro lado, as diferenças básicas entre ção do administrado, será sempre cabível mesmo
as funções jurisdicional e administrativa 11 influirão à míngua de lei.
decisivamente na estruturação dos respectivos pro-
A terceira característica – esta de uma impor-
cessos.
tância extraordinária – está alojada na provocação
A nosso ver, apartam-se a Jurisdição e a ad- da atividade. No processo, vigora íntegro o princí-
ministração por três fatores essenciais. O primeiro pio da ação: a Jurisdição é inerte, só atua sob
deles é a eficácia da imutabilidade que reveste as provocação externa. Haverá, portanto, sempre um
decisões judiciais definitivas, que se opõe à revisibi- conflito, uma lide, a demandar uma solução neces-
lidade dos atos da Administração, seja por ela pró- sária. Diferentemente, na Administração, tanto a
atividade pode iniciar-se por provocação do admi-
pria, seja pelo Poder Judiciário. Isto determinará
nistrado – o que é um direito constitucional seu –
um formalismo maior no processo judicial, contra
art. 153, § 30 12 – como de ofício. Isto determina
um relativo informalismo no procedimento: com
uma riqueza de formas no procedimento, uma va-
efeito, não há porque rejeitar-se, por questões de riedade de encadeamentos e de problemas de todo
prazo e forma, pretensões do administrado que insuspeitada na Jurisdição. Muito raramente a apli-
poderão ser acolhidas judicialmente. Ademais, le- cação da lei pela Administração se apresenta sob
vará à admissão da revogação, dentro de certas a roupagem de conflito; reveste múltiplas outras
condições, de atos administrativos resultantes de formas. Perde, portanto, sua força, a idéia de par-
procedimento, quando não se cogita da revogação tes no processo. No processo, é freqüente que não
de sentença passada em julgado. se vislumbre quaisquer partes, que só atuem agen-
tes administrativos em busca da adequada aplica-
Em segundo lugar, caracteriza a atividade ju-
ção da lei. Ademais, a função da autoridade se
risdicional a independência de seus membros, con- amplia, seja na busca das provas, seja na revisão
tra a hierarquia, essencial na organização da ativi- dos atos.
dade administrativa, o que produz fundas conse-
qüências na sistematização dos respectivos pro- Curioso, quanto a esta última característica,
observar a aplicação da linguagem na legislação e
cessos. Por força da hierarquia, o agente adminis-
na doutrina, que é reveladora da incompreensão
trativo não dirige o procedimento com independên-
de que sofre a matéria.
cia, mas está submetido pelos atos internos, como
o Decreto, a Resolução, as Portarias, etc., que tan- Fala-se de processo administrativo normal-
to limitam o conteúdo das decisões como condi- mente com referência aos procedimentos tributá-
cionam os atos do procedimento. De outro lado, é rio e disciplinar, onde aparentemente há duas “par-
tes”: o Fisco que lançou um tributo e o contribuinte
freqüente que um agente apenas dirija o procedi-
que quer anulá-lo; a Administração que quer apli-
mento para que a decisão seja ditada por seu su-
car uma punição e o servidor que tenta evitá-la.
Estabelecida assim uma aparente semelhança com
10. Sobre os princípios do processo, v. Teoria Geral do o processo judicial, serão invocados os princípios
Processo, Antônio Carlos A. Cintra, Ada P. Grinover e Cândi- que o norteiam, como o da publicidade, o da defe-
do R. Dinamarco, Ed. RT, 3ª ed., 1981, pp. 20 a 43. Sobre os sa, etc.
princípios do procedimento administrativo, v. Gordillo, ob. cit.,
p. XVII-10 e ss.; e Aurélio Pitanga Seixas Filho, Dos Recur- Quando, contudo, não se assemelha o caso
sos Fiscais, Liv. Freitas Bastos, 1983, pp. 17 e ss.
com o processo judicial, por aparente ausência de
11. Para uma classificação das funções estatais, v.
Carlos Ari Sundfeld, Motivação do ato administrativo como
garantia dos administrados, in RDP 75/126, nota 8. 12. CF/88, art. 5º, XXXIV, “a”.
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“partes” ou excesso delas, usa-se a expressão pro- freqüente nas obras de Direito Processual Civil,
cedimento administrativo. O lançamento tributário que se referem a procedimento ordinário, suma-
é precedido, na terminologia do Código Tributário ríssimo ou especial, como os vários modos de de-
Nacional, de procedimento, o que parece adequa- senvolvimento do processo. No uso que adotamos,
do, eis que não se vislumbra qualquer conflito. A procedimento administrativo tem função conceitual
licitação e o concurso público são procedimentos: semelhante a processo judicial, isto é, visa desig-
é que há “partes” demais para que se possa falar nar à somatória de trâmites necessários ao desen-
de processo. volvimento da atividade administrativa.
Afinal, quando se trata do trâmite para dispen- Preferimos afastar a expressão processo, seja
sa de licitação, ou para assinatura de contrato de para um uso restrito, seja para um uso amplo na
locação, ou para legitimação de posse em áreas seara administrativa, porque ela está por demais
públicas embora muitas vezes um trâmite regula- ligada à atividade jurisdicional que, como se viu,
do em lei, parece que se está ante uma categoria tem características próprias. Empregar a palavra
neutra, distinta do processo e do procedimento. indistintamente, para as duas atividades, tem a
É preciso afastar esses preconceitos, que re- qualidade de acentuar as semelhanças. Mas tem
sultam de uma inadequada compreensão das se- vários perigos, que poderíamos sintetizar como
melhanças e dissemelhanças entre as atividades segue:
jurisdicional e administrativa e de uma parcial
a) Como todas as características do processo
desatenção à amplitude do fenômeno processual
judicial são muito marcadas em nossa mente, já
em todo o Direito Público.
que seu estudo é parte importante da formação
E a primeira tarefa é a de uniformizar a lingua- jurídica, falar em processo administrativo pode pa-
gem. recer forçado pois imediatamente nos ocorrem as
inadaptabilidades. O que acaba resultando é uma
IV – Processo ou procedimento restrição do uso da expressão apenas para os ca-
administrativo sos em que parece haver “partes” e controvérsia
22. As palavras, em si, não possuem qualquer (procedimento disciplinar e tributário), o que certa-
importância. No entanto, invocam, em quem as mente favorece a defesa do indivíduo nessas hipó-
ouve, alguma realidade a elas ligadas. Por tal ra- teses, mas deixa-o indefeso nas demais.
zão é que se faz necessário escolher, sobretudo
b Falar-se em processos administrativos pode
quando se propõe um estudo diverso do usual,
sugerir que seja dado à Administração julgar defi-
palavras que não levem a impressões equivoca-
nitivamente em certas situações, desde que reali-
das e que não provoquem falsos debates.
ze processo, é dizer, desde que respeitadas ga-
Importa apenas escolher uma expressão, jus- rantias semelhantes as do processo judicial. Esta
tificando a opção e alertando para o sentido que falsa impressão poderia gerar um efeito terrível:
se quer provocar e os que se quer afastar. supor-se que certos atos administrativos, por re-
23. Preferimos a palavra procedimento admi- sultarem de processos, estariam imunes ao con-
nistrativo por uma razão muito clara e com um sen- trole jurisdicional, o que em caso algum é aceitável
tido muito definido 13. Para nós, ela significa a su- no Direito brasileiro (CF, art. 153, § 4º) 14. Ademais,
cessão de atos que se encadeiam e que condi- poderia surgir a tentação de o legislador substituir
cionam uma decisão final. o processo judicial pelo administrativo em casos
de supressão da liberdade ou da propriedade
Não a utilizamos como sinônimo de rito, de
(exemplo: condenação criminal ou desapropria-
modo de realização do processo, utilização que é
ção), que exigem processo judicial por força dos

13. No mesmo sentido, Gordillo, ob. cit., pp. XVII-2


e ss. 14. CF/88, art. 5º, XXXV.
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – 391

princípios do devido processo legal e do juiz natu- na necessidade de que a lei, a sentença e o ato
ral 15. administrativo sejam precedidos de outros atos
c) Por fim, também o Judiciário, quando admi- encadeados, cuja finalidade é permitir a formação
nistra, realiza procedimento administrativo. Quem de uma vontade democrática.
já examinou autos de “processos” administrativos 4. O procedimento administrativo e o processo
desenvolvidos no Judiciário, sobretudo os discipli- judicial, na medida em que constituem métodos
nares, certamente terá encontrado carimbos ates- para a aplicação da lei, possuem princípios co-
tando o “trânsito em julgado” do ato administrativo muns, como o da legalidade objetiva, da imparcia-
final e coisas semelhantes. Certa vez, o Tribunal lidade, da impulsão oficial, da garantia de defesa,
de Justiça de um importante Estado da Federa- igualdade, publicidade, tipicidade e motivação.
ção, negou seguimento a um “recurso extraordiná-
5. As diferenças essenciais entre o procedi-
rio” para o STF, interposto por um funcionário indi-
mento administrativo e o processo judicial corres-
ciado em “processo disciplinar”, e o fez por ausên-
pondem às características essenciais das funções
cia de prévio questionamento!
jurisdicional e administrativa.
Por tais razões é que preferimos usar unifor-
memente a expressão procedimento administrati- As decisões administrativas não produzem
vo, confiando que o simples falar-se em procedi- coisa julgada, razão pela qual o procedimento é
mento invoque as generosas garantias consagra- mais informal, além de não gerar necessariamente
das no Direito Processual, sem permitir transposi- atos irrevogáveis.
ções indevidas. Vigora na Administração a hierarquia, que se
contrapõe à independência dos juízes. Disso de-
V – Conclusões corre que os procedimentos devem submeter-se
1. Ao lado do estudo do ato administrativo, que aos atos normativos internos (decretos, resoluções
propicia um controle do resultado da atividade es- etc.), que possam ser dirigidos por uma autoridade
tatal, é necessário atentar para o procedimento e decididos por outra, que se submetem à revisão
administrativo, que favorece o controle do proces- do hierarca independentemente de provocação
so de formação das decisões. (através de homologações, aprovações, “recursos
de ofício”) ou por provocação do interessado, mes-
2. O fenômeno processual é característico de
mo sem que a lei preveja tal possibilidade.
todas as funções do Estado e da espécie de vonta-
de que elas expressam. Como a atividade estatal Por fim, enquanto a Jurisdição só age provo-
se traduz em atos unilaterais (lei, sentença, ato cada, a Administração atua de ofício, embora seja
administrativo) e, por ser função, subordina-se a assegurada a provocação do administrado (CF, art.
fins cogentes, seu processo de formação torna-se 153, § 30) 16. Por isso, inexistem partes no procedi-
juridicamente relevante, seja para que os indivíduos mento; este pode organizar-se de modo muito vari-
afetados possam intervir, seja como garantia de ado e a função do agente resulta ampliada em
que os atos expressem não a vontade psicológica relação a do juiz, seja na busca de provas e infor-
do agente, mas a vontade impessoal do ordena- mações, seja na revisão dos atos.
mento.
6. É preferível a expressão procedimento ad-
3. Assim sendo, a teoria do processo estatal ministrativo ao termo processo, uma vez que este
possui um núcleo comum, que pode ser resumido está por demais ligado à Jurisdição.

15. Ampliar em Ada Pellegrini Grinover, o Processo


em sua Unidade – II, Forense, 1984, pp. 3 e ss. 16. CF/88, art. 5º, XXXIV, “a”.

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