Professional Documents
Culture Documents
4.5.3.
A desqualificação da edificação
e das obras de autoria feminina
O
lhar para a literatura portuguesa feminina continuará a privilegiar o Utile. Por quê?
anterior ao século XIX leva Até ao vinte e cinco de Abril de 1974, do
a compreender como as código de género das portuguesas constava
modificações profundas (pode um imperativo de silêncio que só aceitava duas
dizer-se, a quase inversão) das motivações exceções: era lícito às portuguesas falar/escrever
para a escrita e dos respetivos critérios em defesa da ordem social, se a considerassem
de validação que ocorrem no último ameaçada, e/ou falar/escrever em louvor dos
quartel de oitocentos arrastam com elas a representantes divinos e terrestres dessa
desqualificação das obras de autoria feminina, mesma ordem social (ver textos em caixa).
e colocam as mulheres perante
o dilema de serem reprovadas As mulheres “decentes”
como artistas – se obedecessem deveriam fugir de qualquer
às convenções sociais – ou como possibilidade, mesmo a mais
pessoas – se acompanhassem remota, de serem nomeadas.
Nos termos do código de género
o movimento artístico. português até 1974, um homem
“falado” é uma celebridade,
Antecipando: no último quartel de oitocentos
uma mulher “falada” é
os ingredientes da máxima latina que
uma transgressora sexual
dita as caraterísticas da obra ideal – o
merecedora de ostracismo.
ser ela Utile et Dulce – trocam de peso:
antes, a utilidade social de uma obra é
Alegadamente as
mais valorizada do que a sua qualidade “bem-formadas” deveriam
estética18. Depois, dá-se o contrário. expressar uma relutância
íntima – o pudor – proveniente
Esta mudança afecta a valorização da escrita da consciência da sua condição
de homens e mulheres, mas tem um impacto de alheias à res publica
muito superior nas obras de autoria feminina e da consciência da sua
portuguesa.Com efeito, como se verá, desadequação a interferir nela.
enquanto os homens se movem na direção
do Dulce, o conjunto das obras de autoria
18 Sendo que a qualidade estética é sinalizada pelo seu poder de atração, que a torna Dulce a quem lê.
19 Margarida Vieira Mendes (1980) falou-nos das “convenções da sociedade de então ou (...) as da literatura romântica (princípios
que nem sempre coincidiram entre si)” (p. 66).
20 Veja-se por todas as obras de devoção as de Violante do Céu, já mencionadas, e pelas novelas românticas as de Maria Pere-
grina de Sousa.
21 Manifestado como o grau de invenção linguística e a capacidade de “estranhamento” produzida por uma obra.
22 Como, evidentemente, Florbela. Mas esse novo e muito relativo “descaro” é socialmente punido – o caso mais visível é o de
Judite Teixeira, claro está.
0152
152 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
23 Pense-se na apologia da sinceridade que “justifica” a exibição do eu dividido nas obras de Florbela Espanca. Neste contexto,
claro, Fernando Pessoa fingidor é o anti-Florbela, assim como Florbela é o anti-poeta.