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Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Este poema de Manuel Bandeira relata uma cena cotidiana, em que qualquer pessoa poderia se
deparar com situação semelhante. O autor utiliza uma linguagem coloquial e
acessível, recorrendo à simplicidade, característica tão marcante em sua obra.
Há uma surpresa preparada para o leitor… o texto se inicia com refinada transitoriedade, talvez
se perceba até mesmo o silêncio de uma rua vazia, ecoando alguns movimentos solitários e
pontuais. Porém, há perplexidade quando se anuncia que o bicho descrito, que poderia se passar
despercebido, na realidade é um homem.
Como se pode observar, este poema foi escrito na cidade do Rio de Janeiro, dois dias após o
Natal, portanto a cena se teria realizado no eco das festas comemorativas e de fartura. O
personagem estaria buscando restos das alegrias de outras pessoas, evidenciando aí as
desigualdades sociais de uma cidade urbana.
O poema intensifica a dinâmica da fome: não examinar nem cheirar demonstra ações imediatas e
vorazes, próprias de um ser irracional, a que se reduz um homem diante a calamidade. Estar
rebaixado além do cão, do gato e do rato introduz o impacto emocional do expectador, que
impotente observa. Impotente, porém não passivo, pois denuncia através da palavra as condições
de sofrimento e desumanidade da miséria. Ver uma pessoa na rua numa grande cidade revirando
o lixo talvez não causasse tamanha comoção, pois que o hábito de conviver com a pobreza
banaliza-a. Manuel Bandeira a coloca no seu devido patamar de sensação: a da repúdia, a da
lamentação, pois este olhar verdadeiro diante um homem em necessidades extremas é o de
identificação, de empatia.