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SÉRIE ESPECIAL – RACISMO NA MÍDIA E NA ESQUERDA


NEGROS E MÍDIA: INVISIBILIDADES

por: Ana Claudia Mielke


10 de janeiro de 2017

Lançamos nesta edição a série “Racismo na mídia e na esquerda”, cujo objetivo é


diagnosticar, problematizar e combater esse tipo de opressão presente nesses setores.
Nas próximas edições, traremos contribuições de pesquisadores e ativistas negros
sobre o tema. A seguir, confira o artigo da jornalista Ana Claudia Mielke, coordenadora
do Intervozes

Há cerca de um ano a imagem do pequeno Matias Melquíades, fotografado pelos pais


feliz da vida ao lado de um boneco do Finn, personagem de Star Wars, ganhava as
redes sociais. A foto não apenas viralizou nas redes brasileiras, como chegou a John
Boyega, ator norte-americano que interpretou o herói no filme O despertar da Força.

Essa historinha consolida o que os negros já vêm há muito tempo dizendo:

representatividade importa, sim! Não apenas na televisão e no cinema, como também


na publicidade, na literatura e na própria produção dos brinquedos. Afinal, Matias, de
apenas 4 anos, quis comprar o boneco porque “se parecia com ele”.

A questão da representatividade do negro na mídia brasileira é algo que vira e mexe


recebe holofotes em pesquisas e debates. Não é para menos, a indústria cultural
midiática ainda é pouco permeável à ideia de ter o negro em papel protagonista e
segue reproduzindo estereótipos, colocando o negro em papéis que configuram, quase
sempre, subalternidade.

Os velhos papéis se repetem. Do lado negativo, o escravo, a “mulata” lasciva, a

empregada doméstica, o preto bobo ou ignorante que faz a gente rir e o bandido. Do
lado positivo, o jogador de futebol, o sambista ou aquele personagem que interpreta a
exceção: o moço de família humilde que lutou muito e “venceu na vida”. Figuras que
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não são exclusividade dos produtos de ficção, visto que são assim também
apresentados em programas de auditório e em quadros do jornalismo.

Até três anos atrás, a TV Globo veiculava nas noites de sábado, em seu programa

humorístico Zorra Total, a personagem Adelaide, uma negra, pobre e desdentada,


retratada como alguém sem higiene, que dividia a casa com uma ratazana e pedia
dinheiro nos vagões do metrô, embora carregasse consigo aparelhos celulares de
última geração – uma definição de seu caráter. E por que não mencionar a polêmica
charge do Jaguar publicada na edição 111 deste Le Monde Diplomatique Brasil?
Polêmica que, aliás, rendeu debates e provocou a produção deste especial sobre
negros e mídia, que ocupará as páginas do jornal ao longo de 2017.

A eleição de certos atributos dos negros como metonímia para definir e consolidar
determinado olhar negativo sobre a negritude vem sendo há muito tempo uma das
mais contundentes estratégias para fixar sentidos e inviabilizar a diferença racial.
O indiano Homi Bhabha (2007) identificou essa estratégia ao estudar o discurso do
colonialismo. Segundo ele, a diferença é reconhecida como parte da cultura, mas ao
mesmo tempo é repudiada em nome da construção de uma identidade unificadora e
idealizada. Dessa forma, mantém-se o controle sobre determinadas raças e culturas
por meio do alijamento de suas próprias identidades.

No Brasil, o “espetáculo das raças”1 orientou a construção do mito da democracia

racial, que por sua vez elaborou a ideia de miscigenação e convivência racial pacífica
para forjar o sujeito social mestiço denominado “brasileiro”. Enquanto isso,
violentamente produzia o apagamento sistemático e sistêmico da cultura e identidade
negras, o que ocorreu pari passu a uma política de exclusão dos negros (do trabalho e
dos centros urbanos) no Brasil pós-abolição.

O problema é que esses apagamentos e exclusões seguiram sendo reproduzidos –


antes como política e violência, agora como discurso. E em uma sociedade midiatizada
são as mídias de massa as principais responsáveis por isso. É como se algo estivesse
sempre no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, tivesse de ser exaustivamente repetido
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em uma relação ambivalente entre manutenção e repetição. E os estereótipos são,
segundo Bhabha, exatamente isso, um modo de representação complexo, ambivalente
e contraditório.

A característica da ambivalência é que dá ao estereótipo a garantia de “repetibilidade

em conjunturas históricas e discursivas mutantes” (Bhabha, 2007, p.106) e faz muitos


estereótipos continuarem sendo reproduzidos no cinema e na TV, e que estes sejam,
por sua vez, temas provocadores de debates acalorados.

Ao mapear a evolução da presença negra na teledramaturgia e no cinema brasileiros,


Joel Zito Araújo (2008) concluiu que a telenovela não dava visibilidade à verdadeira
composição racial do país e reproduzia a ideologia da branquitude como padrão ideal
de beleza. Segundo ele, compactuando “conservadoramente com o uso da
mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento da importância da população
negra na história e na vida cultural brasileira” (p.982).

A análise é precisa, basta lembrar que a primeira protagonista negra numa telenovela

da TV Globo foi vivida pela atriz Taís Araújo em Da cor do pecado, no recentíssimo ano
de 2004 – a mesma atriz havia interpretado Xica da Silva numa novela de época na
extinta TV Manchete, nos idos de 1996, e voltou ao protagonismo a representar Helena

na novela Viver a vida, em 2009. E a primeira protagonista negra de Malhação é de


2016.

A ausência de negros é, ao lado da reprodução de estereótipos, uma forma também de


inviabilizar a diferença, apagá-la. Há o “trabalho do silêncio” (Orlandi, 1997), que se
produz pela não presença de negros nas produções audiovisuais. Ausência essa que
é, em alguma medida, deliberada, visto que seguimos vivendo no regime da
normatividade branca, da branquitude2 como padrão. Então, o negro é ausentado, já
que sua cor marca uma presença que produz estranhamentos dentro dessa
normatividade branca.

O audiovisual é onde os silenciamentos são mais sentidos, visto que lidam com

imagem. Para não ficar apenas nos exemplos das telenovelas, vale jogar luz sobre o
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que acontece no campo das séries de TV. No Estados Unidos, a presença de sitcons
e seriados protagonizados por negros é uma realidade desde os anos 1970.3 No
Brasil, por outro lado, as tentativas de produzir séries com protagonistas negros são
muito recentes, datam da última década: na TV Globo, Antônia (2006), Suburbia
(2012), Sexo e as negas (2014) e Mister Brau (2015).

Os exemplos mostram que existem avanços, impulsionados em sua maioria pelas

ações históricas do movimento negro e pelo empoderamento dos jovens negros da


periferia nos últimos quinze anos (graças ao hip hop ou a movimentos mais ligados à
arte urbana e à estética). A adoção de cotas nas universidades, as organizações de
cursinhos populares negros nas periferias e a produção de políticas de inclusão em
âmbito federal corroboram neste cenário.

Mas estes avanços ainda são pequenos do ponto de vista da qualidade – é preciso
garantir maior representatividade positiva do negro nos meios de comunicação – e
também do ponto de vista da quantidade, visto que esta representatividade ainda está
bem distante da proporção numérica da presença do negro na sociedade brasileira.

Saindo da esfera da ficção, é possível perceber que os silenciamentos operam também

nos produtos jornalísticos. São raros os casos de especialistas negros entrevistados

em matérias de economia e política. A lógica dos comentaristas segue sendo a da


meritocracia: escreve sobre um tema ou responde sobre determinadas questões
apenas aqueles que alçaram um nível de elevada qualidade “técnica” ou “intelectual” –
nada mais conveniente para uma sociedade que sempre alijou seus negros do acesso
a essa suposta qualificação.

Nas matérias de cotidiano, que pautam família, educação, transporte, saúde, moradia
etc., quase nunca os negros são personagens das situações ordinárias.
Contraditoriamente, estão sempre estampando os cadernos policiais e as imagens
deletérias dos programas policialescos que promovem autoritarismo na TV, associando
violência, pobreza e negritude.
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Mantém-se, assim, tudo exatamente como está: naquela “repetição demoníaca” dos
estereótipos descrita por Bhabha. E assim a repetição do estereótipo vai negando a
articulação da ideia de raça como elemento cultural, histórico, identitário, permitindo
que esta apareça tão somente em sua fixidez como racismo, conforme destaca o
filósofo.

O frisson causado pela presença da jornalista Maria Júlia Coutinho no quadro fixo do

Jornal Nacional é um bom exemplo da negação da diferença e da produção do


racismo. Parte da sociedade não assume enxergar a diferença dela, a sua negritude.
Mas bastou ela ocupar um lugar ao qual não era historicamente “destinada” para
enxergarem a sua pretidão.

Na publicidade não é diferente. Conforme pesquisa de Carlos A. M. Martins (2010), em


1995 apenas 7% dos anúncios veiculados tinham a presença de modelos negros,
número que subiu para 10% em 2000 e para 13% em 2005. Além disso, embora seja
visível o aumento progressivo de negros escritores, ainda há limitações e barreiras
inexplicáveis à entrada destes no mercado editorial tradicional ou, como afirmou certa
vez Fernanda Felisberto, “a literatura negra é rotulada como fundo de catálogo”.4

Evitar a repetibilidade dos estereótipos e dos apagamentos da diferença produzidos na

mídia é algo que requer política pública. Nesse sentido, a regulação dos meios,
especialmente das mídias eletrônicas de massa (rádio e TV), que no país são objeto de
concessão pública, é essencial para garantir a diversidade racial e a participação
efetiva dos negros. Não se trata apenas de um debate sobre o consumo, mas do
entendimento de que a não representatividade produz consequências devastadoras
para a construção da identidade de um povo.

Na ausência de identificações positivas com negros na TV, nas revistas, nos livros, nos
brinquedos, “a criança negra afasta-se de si própria, de sua raça, em sua total
identificação com a positividade da brancura que é ao mesmo tempo cor e ausência de
cor” (Bhabha, 2007, p.118). E são muitas as gerações que passaram por isso no Brasil
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(eu mesma tive dificuldade outro dia em me lembrar dos personagens negros que
marcaram minha infância e adolescência).

A regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal seria um primeiro passo na

promoção da diversidade, visto que trata, entre outras coisas, da necessidade de


garantir a regionalização da produção. Esta, por sua vez, possibilitaria que identidades
e culturas regionais (dentre elas a negra, a quilombola) fossem mais bem
representadas. Além disso, parece ser necessário retomar o debate sobre as políticas
de ações afirmativas nos meios comerciais de comunicação, como inicialmente se
previa com a elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) ou como
se pretendia com o PL n. 4.370/1998.5

Por fim, se as mudanças são poucas diante da amplitude do problema, podemos dizer
que elas seguem persistentes, à revelia daqueles que não aceitam a diferença e não
querem promover a inclusão. Felicidade seria ver, daqui para frente, outras crianças
podendo se identificar com personagens negros no cinema e na TV, tal como Matias.

1 Referência ao livro de Lilia Moritz Schwarcz que conta a história de como

a intelectualidade branca brasileira (e estrangeira que vinha para cá) elaborou os


processos ideológicos (científicos) de branqueamento da sociedade no início do século

XX.
2 A branquitude “é um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si
mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de
raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se
atribui a si mesmo” (Frankenberg, 1995, p.43).

3 Dentre as chamadas black sitcoms nos EUA estão com That’s My Mama, Good
Times, Sanford and Son, What’s Happening?, nos anos 70; The Cosby Show, A
Different World e Frank’s Place, nos anos 80; The Fresh Prince of Bel-air (Um maluco
no pedaço), nos anos 90; e recentemente, Everybody Hates Chris (Todo mundo odeia
o Chris).
4 Mais sobre esse assunto pode ser encontrado nas pesquisas de Fernanda
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Felisberto ou no mapeamento da Fundação Palmares, que resultou na publicação
Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro,
leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014).

5 De autoria de Paulo Paim (PT-RS), o projeto previa o estabelecimento de cotas

mínimas de partição de negros, sendo 25% atores e figurantes dos programas de


televisão – extensiva aos elencos de peças de teatro – e de 40% nas peças
publicitárias apresentadas nas TVs e nos cinemas. O projeto foi arquivado em 2006.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito

da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.3, p.


970-985, set./dez. 2008.

BHABHA, Homi K. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do


colonialismo. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

FRANKENBERG, Ruth. The Social Construction of Whiteness: White Women, Race

Matters [A construção social da branquitude: mulheres brancas, raça importa].


Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995.

MARTINS, Carlos A. M. Racismo anunciado: o negro e a publicidade no Brasil, 2010.

ORLANDI, Eni. As formas dos silêncios: no movimento dos sentidos. Campinas:

Unicamp, 1997

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