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P r o f e s s o r d e Psicologia Social e Psicologia da

A r t e n o I n s t i t u t o d e Psicologia da USP.
C o o r d e n a d o r d o Laboratório d e E s t u d o s e m
Psicologia da A r t e d o m e s m o I n s t i t u t o

Os limites da arte
A A B E R T U R A P A R A A P S I C O L O G I A

Em março de 1991, o Caderno Ciências da


Folha de São Paulo publicou um artigo
intitulado: "Animais usam pintura para fugir
do tédio", sugerindo que as
pinturas produzidas por ma-
cacos e elefantes em zoológicos questionam a
divisão que as separa da arte humana. Esse
tipo de comparação, embora possa deixar
perplexos artistas, historiadores e críticos de
arte, não é uma novidade. Em 1961, desenhos
de um macaco foram expostos numa galeria de Milão por
iniciativa do pintor Francesco D'Areno, exposição que deu lugar
a uma discussão sobre a s f r o n t e i r a s da
arte. E três anos antes, e 9 , em São
Francisco, Califórnia, u i a expuse-
ra quadros de um c h que foram
comprados por uma quena fortuna.
O
ra, a tese subjacente a esses especialistas a pensarem que as ca-
artigos e episódios é a mesma: vernas, além de verdadeiros santuá-
os animais (macacos, sobretu- rios, poderiam ser compreendidas
do) têm capacidade e motiva- como complexos ateliês de pintura.
ção para as artes plásticas. Basta Esses artigos de jornal são, evi-
oferecer-lhes tintas e pincéis que dentemente, muito simples. Mas, da
eles, inicialmente, passam a explorá- sua comparação surge uma série de
los e, depois, a manchar telas quan- questões básicas que nos permitirão
do estas lhes são oferecidas. O lúdico alicerçar as possíveis relações entre
caracteriza essa atividade e, no arti- a Psicologia e as Artes. Ou seja, se os
go da Folha de São Paulo, o artista macacos são capazes da arte, por
cuja pintura é comparada à dos que será que suas manifestações são
primatas é Willen De Kooning, um comparadas à pintura abstracionista,
dos grandes pintores do século XX, resultado de séculos de história da
um notável do abstracionismo. arte? Por que não são comparadas à
Praticamente um ano antes des- chamada arte pré-histórica, por su-
sa notícia, portanto, em maio de posto muito mais próxima dos
1990, igualmente no Caderno Ciên- primatas, na vertende evolucionista?
cia, publica-se um artigo intitulado: Será que é por que a figuração, tão
"Pintura rupestre não é a pré-histó- elaborada já nas pinturas no interior
ria da arte". O artigo fala dos resul- das cavernas, não é possível da
tados das pesquisas da equipe que parte desses seres pré-humanos? E
trabalha no laboratório do Museu se a figuração é impossível no ani-
do Louvre (Paris). Isto é, que "as mal, se o primata só é capaz de
pinturas rupestres da região não são "abstrações" e se na relação entre
realizadas com meros pigmentos de estas não se verifica nenhuma filia-
base e sim com uma sofisticada ção plástica ou gráfica, seria o caso
composição de elementos que não de usarmos o termo arte para desig-
têm nada de natural". Não só as nar aquele tipo de produção pré-
técnicas utilizadas, mas a própria humana?
composição, conforme analisadas Será que podemos falar, nesse
pela aparelhagem sofisticadíssima nível animal, de um estágio ou de
do Louvre, revelam a existência de uma etapa de um tipo de comporta-
"um projeto de artista anterior à mento, o estético, que se verificaria
pintura final, isto é, que esta pintura de modo mais complexo no ho-
não era imediata, mas pensada e mem? Ou será que o comportamen-
bem acabada". Por exemplo, além to estético, suposto e implicado pela
do óxido de ferro para obtenção do arte, é um tipo de comportamento
vermelho e do óxido de manganês inaugurado com a humanidade?
ou carvão de madeira para o preto, Pensando nessas questões, aca-
esses primeiros artistas emprega- bamos sendo levados a uma outra,
vam minerais adicionais (granito e mais geral e fundamental para o
talco) que se destinavam à conser- início de qualquer debate sobre a
vação das obras, evitando as racha- arte. A pergunta é o que, justamen-
duras da pintura ao secar. Além te, se entende por arte? E essa
disso, foram identificados diferen- questão é fundamental porque a
tes períodos de trabalho dentro de partir dela é que poderemos com-
uma mesma caverna. Mais do que preender o comportamento estéti-
isso, os técnicos detectaram esbo- co. Se cada leitor pensasse individu-
ços em carvão por baixo das pintu- almente em alguns exemplos de
ras. E, em suma, o conjunto dessas obras de arte, com toda certeza não
descobertas acabaram por levar os hesitaria muito. Todos nós concor¬
damos que a Monalisa de Leonardo três categorias: arte entendido como
Da Vinci é Arte, que os Lusíadas de fazer, arte entendida como expri-
Camões é Arte, que um Noturno de mir, arte entendida como conhecer.
Chopin é Arte, que as pinturas no São concepções que ora se opõem,
teto da Capela Sistina são Arte. Mas ora se combinam, mas que "grosso
se é fácil encontrar exemplos de modo" apontam para contextos his-
obras de arte, o mesmo não ocorre tóricos bastante distintos.
quando se pensa nos critérios que Com efeito, a primeira concep-
levam alguém a dizer porque elas ção - a arte entendida como fazer -
são arte (Coli, 1981). Ou seja, é prevaleceu na Antiguidade, quando
difícil dizer o que é Arte, sobretudo o aspecto fabril, manual, executivo,
quando vemos num desses livros era acentuado. Com o Romantismo
ilustrados e bem encadernados, os permaneceu a segunda - a beleza
chamados livros de arte, referências não era compreendida como ade-
aos trabalhos de um importantíssi- quação a um modelo exterior, mas
mo artista plástico contemporâneo, pela íntima coerência das figuras
M. Duchamp, entre os quais um artísticas, com o sentimento que as
aparelho sanitário de louça, exata- inspirava e suscitava. E foi no Re-
mente igual aos existentes no mun- nascimento que prevaleceu a tercei-
do inteiro - um objeto que passou a ra maneira de conceber a arte - a arte
ser conservado em museu e exposto como visão da realidade, ora da
à visitação do chamado público de qualquer definição". Assim, uma de- realidade sensível, ora de uma rea-
arte. No entanto, trata-se de um finição da arte não deve procurar lidade metafísica superior, mais ver-
objetò que não corresponde exata¬ contrariar esse "movimento de auto- dadeira, ou de uma realidade espi-
mente à idéa que se costuma ter da contestaçã e de invenção" que ori- ritual mais íntima, profunda, em-
arte. E, se esse tipo de objeto nos enta a arte e "a torna literalmente ina¬ blemática.
questiona, de qualquer maneira preensível" (Dufrenne, 1982, p. 8). Seria possível dizer que a arte
nossas incertezas acabam se acal- Um erro muito freqüente é con- encerra todos esses atributos. No
mando quando, após ter buscado siderar a Arte ou admitir como con- entanto, é preciso observar mais de
saber o que é arte na Teoria da Arte, ceito geral e definidor da Arte, um perto os próprios termos envolvidos
percebemos que o campo semânti- programa particular de arte, uma nessas definições.
co do termo é ele próprio incerto. E poética. Segundo o grande esteta Se considerarmos a primeira de-
que os teóricos apontam como um italiano, Luigi Pareyson (1984, p. 24- finição, arte é expressão, teremos
dos aspectos da própria arte, as 25), esse engano é freqüente e con- que admitir, no entanto, que todas
dificuldades que apresenta ao en- siste em tomar a parte pelo todo, por as operações humanas são mais ou
quadramento numa definição fixa, exempo, quando se diz que a arte é menos expressivas, isto é, que toda
positiva. Isto é, os teóricos encon- expressão do eu profundo do artista obra humana contém a espiri-
tram dificuldades para delimitar as sem se dar conta que essa é uma tualidade e a personalidade de quem
fronteiras da própria Arte, pois, de ideia que surge com o Romantismo a realizou e a ela se dedicou e que,
um lado, a Arte não teve sempre, no começo do século XIX, e não nesse sentido, a Arte é, também,
nem em toda a parte, o mesmo antes. Para evitar esse equívoco, operação expressiva. E que não é
estatuto, o mesmo conteúdo e a muitos estudiosos admitem uma esse aspecto que a caracteriza es-
mesma função. O que se verifica definição que possua um caráter sencialmente. Dizer, por exemplo,
ainda hoje. De outro lado, indepen- negativo, isto é, que impeça a busca que arte é expressão de sentimentos
dentemente de qualquer pressupos- de uma definição "real", de essência - pode ter sentido no plano de um
to sócio-cultural, desconfia-se hoje ou de qualquer ser oculto, como particular programa de arte (isto é,
muito da palavra Arte. O campo durante séculos fizeram todas as no plano de uma Poética) mas não
recoberto pelo conceito é extenso: poéticas, afirmando que a arte é no plano da Estética, quer dizer, no
entre "a obra-prima e o esboço, o intuição ou forma, que é idéia ou plano de uma concepção geral de
desenho do mestre e o desenho da expressão, que é isto ou aquilo, arte (idem, p. 30).
criança, o canto e o grito, o som e o sempre na ilusão por parte de cada Esse mesmo tipo de reflexão
ruído, a dança e a gesticulação, o uma dessas posições de ter sido esta vale para a concepção que diz ser a
objeto e o acontecimento", é difícil e não as outras a que capturou com arte conhecimento, isto é, que há
traçar uma fronteira e até podería- sua rede conceptual "a própria uni- um componente cognitivo na arte.
mos nos perguntar se vale a pena versalidade da arte, toda arte e para Mas, sabemos, se a arte pode chegar
traçar essa fronteira. "Porque não sempre" (Formaggio, 1981, p. 9). a se fazer ciência como em Leonar-
são apenas as teorias da arte que
No entanto, se considerarmos do Da Vinci, aquilo que se diz da
hesitam em atribuir-lhe uma essên-
historicamente as definições da arte, arte - que ela é reveladora da verda-
cia, mas a própria prática dos artistas
segundo Pareyson (1984, p. 29-33), deira realidade das coisas - pode-se
é que desmente a todo momento
podemos ordená-las basicamente em dizer de outras atividades humanas
que no seu concreto exercício abrem Conclusão: a arte é um fazer. Mas Trata-se, portanto, de um ques-
portas sobre a constituição da reali- é um fazer específico. Ou seja, "É tionamento que nos leva necessa-
dade: a Filosofia, a Ciência, a Moral, um tal tazer que, enquanto faz, riamente a admitir, lembrando
a Religião... inventa o por fazer e o modo de Foucault (1972), que é somente na
Mas a arte é também um fazer. E Fazer". "É uma atividade na qual história que se poderá descobrir o
também aqui é preciso observar que execução e invenção caminham pa- único a priori concreto a partir do
todas as atividades humanas têm ralelamente, simultaneamente e de qual a arte assume seus contornos
esse lado executivo, que há criação modo inseparável. Assim, na arte necessários.
em outros planos que não o artísti- concebe-se executando; projeta-se, Claro deve estar, a partir dessa
co. E, nesse momento, ainda estamos fazendo; executa-se encontrando a breve apresentação da problemáti-
no ponto zero, às voltas com a regra, já que a obra existe só quando ca conceitual encerrada pelo termo
questão da qual partimos: o que é a é acabada. Isto é, não há arte sem arte, que o terreno no qual se deve
arte? obra, entendida inicialmente como fundamentar qualquer pesquisa que
Pensar a articulação exprimir - objeto sensível que é inventado ao envolva o processo artístico é o
conhecer - fazer, rompendo com a ser feito. A sua realização não é um traçado pela história da arte. Esse é
atitude isolante, que opera com facere, mas um per-ficere- isto é, um o ponto de partida indiscutível de
positividades, é, através de Pareyson acabar, um levar a termo de modo qualquer pesquisa sobre a arte. E a
(1984), a maneira de nos aproximar- tão radical que o resultado é um ser partir dele fica impossível pensar a
mos de uma resposta que dê conta inteiramente novo e irrepetível. arte em geral. E isso porque, como
da concretude da arte. São essas, em suma, as caracte- já sabemos, falar sobre a arte em
Com efeito, a arte é necessaria- rísticas da Forma: "exemplar na sua geral é correr o risco de falar sobre
mente expressiva enquanto é for- perfeição, singularíssima na sua ori- o nada.
ma, isto é, um ser que "vive por ginalidade". Portanto, a arte é uma Nessa medida, quando se deseja
conta própria e contém tudo o que atividade que é um Formar, isto é, estabelecer um diálogo com a arte,
deve conter". E esta afirmação um executar que é um inventar. há que se admitir um ponto básico
signifca que "a forma é expressiva (Idem, p. 32). Nesse sentido, se a do qual qualquer pesquisa deve
enquanto o seu ser é um dizer". obra de arte é Forma, a atividade partir: a obra de arte. Afinal, "a arte
Nesse sentido, ela não tem um sig- artística é Formatividade - na medi- existe para ser percepcionada"
nificado, mas é um significado. Mas, da em que é o resultado de um (Argan, 1982, p. 109). Contudo, per-
a partir daí entende-se porque a arte processo de perfeição. A obra é cebemos muitos objetos que nada
é também um conhecer, pois ao perfeita exatamente na medida em têm de artísticos. Quer dizer, "a
revelar um sentido das coisas, o faz que o por fazer e como fazer foram percepção orientada para a arte,
de modo particular, ensinando uma levados a termo, plenamente. tenta comunicar-nos algo diferente
nova maneira de perceber a realida- Contudo, o modo como os ho- do que nos é comunicado pela per-
de. Esse novo olhar é revelador mens concebem a arte e a atividade cepção normal, projeto que se evi-
porque é construtivo, isto é, forma- artística, isto é, a forma e a forma- dencia no modo de elaboração das
dor. Nessa medida, é um olhar que tividade, concretamente, é uma ou- coisas que os artistas oferecem à
se prolonga no fazer, "como o olho tra história: a história da arte. nossa percepção, ou seja, as técni-
do pintor cujo ver já é um pintar" Um maneira abrangente de se cas artísticas" (Idem). Essas técnicas
(Idem, p. 31). compreender a arte, portanto, teria que só podem ser postas em prática
que levar em conta a sua particula- tendo em vista certos materiais, jun-
ridade, definida pela sua histori- to com estes, variam conforme as
cidade. Por exemplo, um outro pen- épocas e os lugares. E esse fato -
sador italiano importante - Dino embora não seja decisivo na deter-
Formaggio (1981, p. 9) - define arte minação de um objeto como obra
dizendo o seguinte: "arte é tudo de arte, pois para isso concorrem,
aquilo a que os homens na história além do artista e dos meios que
chamaram e chamam arte". Como se emprega, também a crítica, o públi-
pode observar, trata-se de uma de- co, o mercado e, em suma, todos os
finição que permite a própria verifi- espaços institucionais da arte (mu-
cação do conceito de arte, isto é, ela seus, galerias etc.) - permite-nos
suscita uma série de interrogações observar novamente que é pratica-
que começa com a seguinte pergun- mente impossível definir para a arte
ta: como se constitui aquilo a que os um esquema ou um programa de
homens chamam arte? E esta inda- realização universal e invariável.
gação gera outras: que significa "aqui- Vejamos um exemplo fundado na
lo", que "homens" são esses, qual a contemporaneidade quando, é bem
"validade desses discursos" e, prin- evidente, é impossível manter a
cipalmente, "a que hoje os homens unicidade da arte para falarmos da
chamam arte"? arte.
Com efeito, de um lado encon- com a série de trabalhos em negro cos não fazem parte desse processo
tramos os expressionistas abastratos semelhantes aos de Reinhardt, des- que justamente admite tantas varia-
dos anos 40/50 que reviveram "uma tacava estar interessado somente ções? Para compreendermos esta
concepção romântica do artista, em "expressar as emoções humanas questão, será preciso entendermos
como um homem concomitante- e em comunicá-las aos outros". Uma que tipo de comportamento é esse,
mente pertencente e contrário ao comparação entre as pinturas em pressuposto e implicado pela arte,
seu tempo e que dá forma aos negro de Reinhardt e as de Rothko que se verifica na "ordem humana".
conflitos mais profundos de sua "mostra a diferença entre uma arte E, nesse instante, a indagação não é
época, e que além dessa concepção que, tendo renunciado à esperança mais histórica, cultural ou psicológi-
romântica do artista defendiam que: de impor a ordem do artista ao ca. Ela é, antes, uma questão filosó-
uma era violenta exigia uma arte mundo, apega-se, no entanto, à in- fica. E entre os pensadores contem-
violenta" (Lasch, 1986, p. 133). De dividualidade, como a única fonte porâneos Maurice Merleau-Ponty é
outro lado, há que se considerar a de continuidade num meio circun- talvez aquele que mais radicalmente
sensibilidade minimalista que se dante de outro modo caótico, e uma considerou essa questão, elaboran-
originou de um espírito de redução arte que, por outro lado, renuncia à do uma Filosofia na qual o "compor-
e reflete um sentimento de que não própria possibilidade de uma vida tamento estético" tem um valor
há espaço para a arte e de que a interior". ontológico fundamental.
sociedade moderna, como a arte Segundo Eliza Rothbone as pin- Em "A Estrutura do Comporta-
moderna, aproxima-se do fim do turas em negro de Rothko "mantêm mento", o filósofo (1942) distingue a
caminho. Se considerarmos esses sua preocupação com uma experi- "ordem humana", a "ordem física" e
dois movimentos, veremos que, de ência humanamente vivida". A úni- a "ordem vital". A "ordem humana"
um ao outro, temos o contemporâ- ca idéia desse artista é a de "uma é definida por uma "estrutura sim-
neo e possibilidades de se pensar o experiência que possa se expandir bólica" cujo equilíbrio não se verifi-
indivíduo, os tempos modernos e a na resposta do espectador, ao passo ca como conservação de uma or-
própria arte, segundo modos dis- que Reinhardt recusa qualquer in- dem dada (ordem física), nem como
tintos. tercâmbio desse tipo entre possibi- adaptação através das virtualidades
Numa conferência pronunciada lidades interpretativas". Para do organismo às condições atuais
em 1951, o pintor francês Jean Reinhardt "a opção pelo negro foi o (ordem vital), mas sim em virtude de
Dubuffet antecipou os traços princi- último passo para evitar qualquer uma possibilidade de ultrapassar a
pais da sensibilidade minimalista, uso da cor..." (Lasch, 1986, 134). imediatez das situações e criar uma
ao defender a "completa liquidação Porém, admitindo que é quase situação nova, tendo em vista algo
de todas as formas de pensamento, impossível manter a unidade da arte que está ausente. O símbolo é justa-
cuja soma constituía o que tem sido na contemporaneidade, dada a mente o que exprime esse tipo de
chamado de humanismo e foi fun- multiplicidade das poéticas existen- estruturação onde a ação se orienta
damental para a nossa cultura, des- tes, como compreender que todas para o virtual; orientação que se
de o Renascimento" (Idem). Segun- elas sejam arte, ou melhor, que presentifica na percepção, na lin-
do Dubuffet, o artista deve suprimir Reinhardt e Rotko, por exemplo, guagem e no trabalho. A "estrutura
a assinatura pessoal de sua obra. Se representam modos diferentes de se simbólica" define-se, então, por um
ele pinta um retrato, insiste, deve fazer arte, (ou diferenciações da movimento de transcendência que
procurar libertar o retrato de quais- arte), e que as expressões dos maca- confere à existência humana o po-
quer traços pessoais. Trata-se de der de ultrapassar o dado, encon-
fazer uma arte impessoal que rejeita trando para ele um sentido novo
o primitivismo, o surrealismo e o através de uma ação orientada em
expressionismo abastrato com vee- função do possível. "Por isso mes-
mência. Nessa linha, Ad Reinhardt, mo somente nessa dimensão é que
pintor americano que de 1957 a se poderá falar em história propria-
1967 não pintou outra coisa senão mente dita" (Chauí, 1974).
composições em negro, no texto Embora não seja possível tratar
"Doze regras para uma nova acade- dessas distinções no espaço deste
mia" (1957), dizia o seguinte: "ne- artigo, algo que já fizemos em outro
nhuma textura; nenhum trabalho de trabalho (Frayse-Pereira, 1984), cabe
pincel ou caligrafia; nenhum esbo- citar deste uma passagem para es-
ço ou desenho (...); nenhuma for- clarecer um pouco mais a questão
ma, desenho, cor, luz, espaço, tem- que nos interessa:
po, movimento, dimensão ou esca-
la; nenhum objeto; nenhum sujeito; "A transcendência já descoberta
nenhum tema; nenhum símbolo no plano vital é, na ordem huma-
imagem ou signo; nem prazer; nem na, conservada e ultrapassada, pois
dor" (Lasch, 1986, p. 133). a pecularidade da "estrutura sim-
De outro lado, Mark Rothko, bólica " é ser reflexionante. Trata-
se de uma reflexão que, como sabe- bilidades que a transformam e
mos, ocorre primordialmente no viabilizam o seu uso. O ciclo natu-
corpo, propagando-se nas coisas e ral se rompe na medida em que a
instaurando entre ele e elas uma ação humana - na qual o agente se
relação expressiva. É o corpo refle- encontra corporalmente engajado
xivo, portanto, que inaugura a "es- e com domínios ampliados medi-
trutura simbólica", destruindo a ante o uso de instrumentos - não é
oposição subjetivo/objetivo. Assim mera negatividade mas negati-
é que "não há coisas puras. Há vidade, formadora. Projeta "obje-
coisas humanas no meio da natu- tos de uso " ("a vestimenta, a mesa,
reza.Háfisionomias. Há valores". ojardim ") e "objetos culturais " ("o
(Chauí, 1974). É, nesse sentido, livro, o instrumento de música, a
impossível distinguir, nessadimen- linguagem"), que constituem o
são, meios e fins como elementos meio propriamente humano e fa-
separados. A ação humana só po- zem emergir um ciclo inédito de
derá ser apreendida concretamen- comportamentos (Merleau-Ponty,
te através de uma estrutura que 1942, p. 175). São esses os objetos
rompa com a exterioridade entre que inicialmente compõem o cam-
meios e fins. Diz-nosMerleau-Ponty po da percepção. E mesmo quando
(1942, p. 188): "sem dúvida, o a percepção se orienta para "obje-
vestuário e a moradia, servem para tos naturais" é, ainda através de
ar os pontos de vista permite-lhe
nos proteger do frio-, a linguagem objetos humanos (por exemplo: a
criar instrumentos, não sob apres¬
ajuda o trabalho coletivo e a aná- linguagem) que ela os visa. E isto é
são de uma situação de fato, mas
lise do sólido inorgânico. Mas, o possível porque o homem não é
para um uso virtual e em particu-
ato de se vestir torna-se o ato de uma coisa e nem um ser que se
lar parafabricar outros " (Merleau-
enfeite ou, ainda, o do pudor, e perde nas transformações reais que
Ponty, 1942. p. 190). A ação pro-
revela uma nova atitudepara con- opera sem poder reproduzi-las:
priamente humana não pode ser
sigo mesmo e para com o outro. "tem o privilégio de relacionar-se
reduzida à ação vital. O galho
Somente os homens vêem que estão com outra coisa diferente delepró-
transfigurado em bastão adquire
nus. Na casa que constrói para si, prio, porque não é simplesmente,
para o agente a forma de um ins-
o homem projeta e realiza seus mas "existe"(Merleau-Ponty, 1966,
trumento de trabalho, trabalho este
valores preferidos. O ato da pala- p. 227). Na "estrutura simbólica",
que os consome no processo ao
vra exprime, enfim, que deixa de o corpo humano deixa, portanto
mesmo tempo que repõe novos ins-
aderir imediatamente ao meio, ele¬ de aderiraomeio da maneira como
trumentos. E é dessa maneira que
va-o ã condição de espetáculo e o animal adere. Ademais, esse cor-
o galho de árvore dado desaparece
apodera-se dele (...) pelo conheci- po já não está sozinho. Encontra-
no bastão. E é este o sentido do
mentopropriamente dito". A estru- se situado entre outros corpos tam-
trabalho, isto é, o reconhecimento
tura que vincula meios e fins deter- bém situados, de sorte que a ação
para além do mundo atual de um
mina a gênese da ação como trans- humana aqui referida é tomada
mundo depossibilidades (Merleau-
formação do dado em fins, e des- no seu sentido particular e concre-
Ponty, 1942, p. 190). E estas são
tes, em meios para novos fins" to. O agente não é a subjetividade,
possibilidades do corpo e das coi-
(Chauí. 1974). Aponte construída mas uma intersubjetividade, de
sas. Escreve A. Bosi (1977, p. 55):
pelo castor reitera-se num processo modo que "o conhecimento se en-
"morar é possível porque mãos fir-
cíclico a perdurar nas suas condi- contra recolocado na totalidade
mes depele dura amassam o barro,
ções naturais. É um objeto que não da praxis humana e lastreado por
empilham pedras, atam bambús,
tem sentido senão na sua relação ela " (Merleau-Ponty, 1966, p.237).
assentam tijolos, aprumam o fio,
vital com o comportamento do or- Nesse sentido, "o que define o ho-
trançam ripas, diluem a cal vir-
ganismo. Do mesmo modo, se o mem não é a capacidade para
gem, moldam o concreto, arga-
chimpazé é capaz de conferir va- criar uma segunda natureza-eco-
massam juntas, desempenham o
lor instrumental a um galho de nômica, social, cultural-para além
reboco, armam o madeirame, co-
árvore, jamais chega a construir da natureza biológica -, é sobretu-
brem com telha, goivo ou sapé,
instrumentos a servir-lhepara repôr do, o poder de ultrapassar as estru-
pregam ripas no forro, pregam tá-
outros. Ademais, no galho de árvo- turas criadas criando outras"
buas no assoalho, rejuntam azule-
re transformado em bastão, o ga- (Merleau-Ponty, 1942. p. 189). É
jos, abrem portas, recortam jane-
lho é suprimido enquanto tal. "Para um poder de transcendência que
las, chumbam batentes, dão àpin¬
o homem, ao contrário, o galho de põe o agente humano como um ser
tura a última demão".
árvore transformado em bastão histórico. Ou seja, "a dialética hu-
A casa não está em potência como
permanecerá justamente um ga- mana éambigüa:ela se manifesta
forma indeterminada na matéria.
Iho-de-ãrvore-transformado-em- inicialmente através das estrutu-
Depende de um ato de violência
bastão, uma mesma coisa com duas ras sociais ou culturais que faz
através do qual se extraem da
funções diferentes, visível para ele aparecer e nas quais se aprisiona.
matéria, mediante a visualização
sob uma pluralidade de aspectos. Mas seus objetos de uso e seus obje-
de uma perspectiva (a casa), possi-
Opoder de escolher e de fazer vari- tos culturais não seriam o que são
se a atividade que os fez aparecer Merleau-Ponty, diz Chauí (1974): "a Que significa isso?
não tivesse também como sentido propagação da reflexão corporal nas Em outras palavras, o seguinte:
negá-los e ultrapassá-los" coisas desdobra a interioridade ou o quer tratemos do desenho na caver-
(Merleau-Ponty, 1942. p. 190 - sentido presente nelas como neles. na, quer da pintura contemporânea,
grifos do autor omitidos). Quando o pintor diz que é visto o suposto é uma operação reflexiva
Assim, com a "estrutura simbóli- pelas coisas ao invés de serem as que funda a unidade da pintura e
ca " marca-se o advento da lógi- coisas vistas por ele, põe a visão no que na pintura se amplifica.
ca da expressão mediante a qual próprio mundo. Ou seja, há uma É nesse sentido que o historiador
o significante e o significado não visibilidade secreta nas coisas que da arte Michel Thévoz (1984, p. 7),
se vinculam com base numa as- se torna visibilidade manifesta atra- pensa ser o homem diferente dos
sociação empírica, por sua vez vés de nosso corpo (...). A estrutura outros seres por seu corpo, isto é,
fundada na situação imediata e simbólica, p o r t a n t o , p õ e a porque se situa numa relação pro-
limitada que circunda o agente. reversibilidade do sujeito e do mun- blemática com sua própria imagem,
Isto é, com a "estrutura simbóli- do como uma relação expressiva. relação que o leva a retocar seu
ca" abre-se a possibilidade de Não há coisas puras, mas coisas corpo de múltiplas maneiras, defor-
expressões variadas de um mes- humanas, fisionomias, valores. Os mando-o, mutilando-o ou, então,
mo tema: "multiplicidade depers- outros e as coisas se oferecem como ornando-o - através de tatuagens,
pectivas"(Merleau-Ponty, 1942, pólos do desejo e a dialética huma- escarificações, maquilagem, cirur-
p. 133)" (Frayze-Pereira, 1984, na nasce aí, na tentativa de apropri- gia plática etc. E pode ser que essa
ps. 191-194). ação e negação do mundo natural, tendência auto plástica sugira a al-
fazendo emergir o mundo humano guns uma raiz vital da própria arte.
Em suma, a estrutura simbólica é da linguagem e do trabalho". Isto é, No entanto, se o homem nasce pre-
polarizada pelo "corpo enquanto da arte. maturamente, com uma pele muito
unidade de condutas e núcleo de Ora, como sabemos, a arte é um fina, muito frágil, muito pura e que,
significações e pelas coisas, enquanto fazer, formativo, isto é, trabalho. por isso, pede uma proteção artifici-
qualidades expressivas, isto é dota- Mas, é um fazer expressivo, isto é, al, esta não é apenas física, mas,
das de sentido". Isto quer dizer que dotado de sentido, quer dizer, lin- sobretudo, simbólica. Quer dizer, o
a estrutura simbólica é reflexionante, guagem. Como o símbolo exprime homem, ao nascer, fica exposto num
reflexão que ocorre primordialmen- justamente um tipo de estruturação duplo sentido: aos perigos, mas tam-
te no corpo e não na consciência, onde a ação visa o que está ausente, bém aos olhares. Ele é com toda
situando-se o "para-si" num domí- a linguagem e o trabalho podem certeza o único animal que nasce nu
nio que sempre, filosoficamente, aparecer no mundo humano e com e que faz de sua pele uma superfície
pertenceu ao "em-si" (Chauí, 1974). elas, a dimensão do sentido. a pintar - superfície na qual se
"O enigma é que meu corpo é Percebemos, assim, que já é por inscreve sua identidade, que, por
simultaneamente vidente e visível. seu próprio corpo que o homem se exemplo, a tela, epiderme ultra-
Ele, que olha todas as coisas, tam- diferencia dos outros seres. E mais, sensível, através da pintura e de
bém pode olhar-se e reconhecer-se que é através desse corpo, vidente- toda a arte, irá ampliar.
naquilo que vê o "outro lado" de sua visível que se abre o campo das Ora, será que a partir dessas
potência vidente. Ele se vê vendo, significações picturais, campo aber- considerações que delimitam o cam-
toca-se, tocando. É visível e sensível to desde o momento em que um po da arte, é preciso dizer algo mais
para si mesmo. E um si, não por homem surgiu no mundo. "E o pri- para que os psicólogos percebam
transparência, como o pensamento meiro desenho nas paredes das ca- nesse campo um sentido para o seu
que só pode pensar assimilando o vernas fundava uma tradição unica- próprio trabalho? No momento con-
pensado, constituindo-o, transfor- mente por recolher outra: a da per- temporâneo da modernidade, mo-
mando-o em pensamento, mas um cepção. A quase eternidade da arte mento que abrange o século XX
si por confusão, narcisismo, inerência confunde-se com a quase eternida- (Berman, 1986, p. 16), no qual a arte
daquele que vê, naquilo que vê, de da existência corpórea, e temos se emancipa definitivamente de uma
daquele que toca, naquilo que toca no exercício do corpo e dos senti- cultura totalizante, se desliga de
(...). Visível e móvel, meu corpo está dos, enquanto nos inserem no mun- valores religiosos, éticos ou sociais,
no número das coisas, é uma delas, do, material para compreender a adquirindo o poder de exprimir uma
preso no tecido do mundo e dotado gesticulação cultural enquanto nos relação mais profunda, mais origi-
da coesão de uma coisa. Mas, por- insere na história" (Merleau-Ponty, nária do homem com o mundo,
que vê e se move, mantêm as coisas 1975, p. 355). Quer dizer, "os pri- relação que Dufrenne (1982, p. 30)
em círculo ao seu redor, são um meiros desenhos nas cavernas ins- ousa chamar "pré-cultural ou pré-
anexo ou um prolongamento dele tauravam o mundo como a pintar ou histórica"; nesse momento contem-
mesmo, estão incrustradas em sua a desenhar, invocavam um porvir porâneo em que surgem como ques-
carne, fazem parte de sua definição indefinido da pintura e por isso nos tões, simultaneamente, o olhar e o
plena, e o mundo é feito do próprio, falam e os evocamos por metamor- desejo, o imaginário e o real, a arte
estofo do corpo". (Merleau-Ponty, foses em que fluem conosco" (Idem, possui "uma função e uma força
1964, p. 18-19). E comentando p. 347). insubstituíveis". Ora, exatamente por
isso, não terá a Psicologia - com
lugar interdisciplinar garantido en-
tre a história da arte e a estética -
algo a dizer? Tudo dependerá da
disposição do psicólogo, como
expectador da arte, para introduzir-
se nesse campo abissal, de cujos
limites tratamos aqui, correndo o
risco da vertigem e da perda de
pontos fixos que esse campo neces-
sariamente suscita. Afinal, como
observou René Huyghe (1986, p.
19), "a obra não põe apenas em jogo
a psicologia do artista, mas também
a do espectador. Que procura nela,
que recebe dela e por que razão a
sente!". I

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

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M. A Estética e as ciências da arte. Lisboa:
Bertrand, 1982, vol. 2, p. 105-119.

BERMAN, M. Tudo que é sólido


desmancha no ar. A aventura da
modernidade. São Paulo: Cia. Letras, 1986.

CHAUÍ, M. A noção de estrutura em


Merleau-Ponty: uma esperança
malograda?

Conferência na F.F.L.C.H. - USP, 1974.


(mimeo)
COLI, J. O que é arte. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1981.

DUFRENNE, M. A estética e as ciências da


arte. Lisboa: Bertrand, 1982, vol. 1

FOUCAULT, M. Histoire de la folie. Paris:


Gallimard, 1972.
FORMAGGIO, D. L'art. Paris: klincksieck,
1981.

HUYGHE, R. O poder da imagem. Lisboa/


São Paulo: Edições 70/Martins Fontes,
1986.
LASCH, C. O mínimo eu. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. La structure du
comportment. Paris: PUF, 1942.

L'oeil et I'esprit. Paris: Galimard,


1964.
A linguagem indireta e as vozes
do silêncio. Col. Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1975.
THÉVOZ, M. Le corps peint. Genève: Skira,
1984.
ARTIGOS DE IMPRENSA:
MACCAULAY, J.T. O macaco veio do
homem. Enciclopédia Bloch, Ano II, n.° 14,
junho de 1968, ps. 38-49.
"Animais usam pintura para fugir do
tédio" Caderno Ciência - Folha de São
Paulo, março de 1991, p. 7-6.
"Pintura rupestre não é a pré-história da
arte" Caderno Ciência - Folha de São Paulo,
maio de 1990, p. G-3.

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