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OFICINA – O TRABALHO DA CRISE

Tania Brandão

OFICINA, AUTOMÓVEL, PENICILINA

As fontes existentes para o estudo do Grupo Oficina exigem uma interrogação primeira,
como resposta contra falsas questões sugeridas pelo início do registro (provisório) de
suas atividades na memória histórica do teatro. Sua produção profissional, de uma
forma geral estabelecida por alguns como a melhor de todos os tempos no país, surgiu
gênios iluminados, projeções subjetivas, desenvolvimento linear de uma tradição?
Incorporações mediúnicas de Téspis rompendo o espaço entre a religião e a arte,
reencarnações de Édipos no enfrentamento Esfinge, duplicatas de figuras hegelianas de
Napoleão adentrando Viena em seus ginetes para instaurar a materialização da História
como saber absoluto?

É preciso destacar uma operação muito sutil existente nos textos de análise e avaliação
do período - os documentos, de uma forma geral, apesar dos objetivos diferentes, optam
por um certo "ufanismo à Afonso Celso" - ou o Oficina é recalcado junto como TBC ou
é uma incômoda continuação do tebecismo que encontra sua verdadeira expressão no
Arena. O Arena seria a verdade nacional, o Oficina espécie de desvio tentador, mas
negativo. Elogia-se, louva-se, exalta-se - mas com a restrição necessária àqueles que
não fazem caso da pobre cara desdentada brasileira. Estudar o Oficina significa assim
explicitar relações, entender no espaço produtivo também o TBC e o Arena -
modalidades de antecessores contemporâneos.

Sem querer endossar o mito das origens e de uma conseqüente linearidade cumulativa
histórica, por si ingênua e já promovida nos poucos manuais existentes, o problema tem
pertinência: o Oficina "irrompe", "rouba" a cena e "evapora-se" num lance mágico de
alçapão, sob potentes refletores. Não é mais possível estabelecer ingênuas explicações
de ordem subjetiva, afetiva, comportamental ou institucional. O fato é a explosão, num
certo espaço de tempo, da própria cena e do grupo. E a verdade estará sempre um pouco
além do sujeito criador, num lugar onde não é lícito escamotear a falta de um processo
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gerador da produção. O Oficina apareceu como grupo num tempo favorável ao teatro e
às artes, a década do automóvel e da penicilina. Não se precisava mais, na cena, de
consumados heróis (como Renato Vianna, Flavio de Carvalho, Paschoal Carlos Magno)
à maneira de Rondon, rompendo a selva com a morte e o telégrafo. O palco passara de
floresta tropical (espontânea) à mata secundária e a queimada oferecia a clareira como
espaço cultural. Quer dizer: existe o Oficina e uma quantidade razoável de companhias
e grupos, calçados num programa cultural ou buscando uma política de repertório,
produtores anteriores ou contemporâneos, sem que se precise do herói romântico; ao
mesmo tempo em que é possível discutir o trabalho que se faz (pululam referências
produtivas, teatrais; debates técnicos são feitos nos jornais; revistas especializadas são
publicadas). Ao mesmo tempo em que as questões flutuam caóticas no ar.

Ao Oficina coube sem dúvida a melhor compreensão produtiva. E isto se faz numa
modalidade de processo sem sujeito, atuação de trabalhadores no espaço de produção,
onde não se deve localizar a figura de indivíduos visionários como força motriz, mas a
figura do trabalho de arte como produção. Nenhuma análise histórica pode negar, aliás,
o sentido do percurso profissional do grupo encerrado numa evidente metáfora: a
oficina é o lugar do trabalho, o trabalho começa com vento forte para papagaio subir a
ponte.

Compreender o Oficina só é possível a partir de uma certa análise do TBC e do Arena,


portanto. Em princípio, é bom lembrar que nenhum movimento do teatro brasileiro
sofreu tanto como oTBC em termos de recalque. Olhando à distância, lembra a
Alemanha sendo tomada pelas à forças aliadas. E o grande inimigo comum que todos
atacam para "liquidar" e conquistar um pedaço. Em sua defesa existem as vozes tímidas
dos seus ex-integrantes, o parecer antissético de alguns pesquisadores e críticos que
confundem a história com as placas de bronze e de uns as outros tantos um pouco mais
lúcidos que não chegam a construir uma completa explicitação da trajetória do T.B.C. A
maioria dos produtores, no seu desejo de construir plataforma de trabalho, é contra. Não
economizam esforços e palavras. Os discursos são paralelos, esquizofrênios, cada um
com uma área configurada de eco, predominando o desejo de negação. Não é possível
detalhar aqui o sentido da polêmica, mas seu contorno fundamental é necessário. Note-
se que mesmo Augusto Boal e Fernando Peixoto, eventuais defensores do TBC, não
chegam a lhe conceder um espaço muito significativo. Em entrevista recente ao
jornalista José Arrabal, José Celso Martinez Correa definiu TBC dentro das antigas
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noções que o culpavam pelo desaparecimento de um teatro brasileiro mais "popular" e


"autêntico".

A defesa do TBC, que existiu como luta por um certo programa d trabalho e que
reverbera ainda no espaço das montagens por produção não interessa muito ao texto.
Vale usar aqui, no entanto, um dos melhores exemplos de defesa - o depoimento de
Cleyde Yaconis, repleto d dados para o trabalho do historiador:

"Infelizmente, quando se fala de TBC, acontece um coisa


muito estranha. Sempre se começa o histórico a' sim:
"um grupo de granfinos se reuniu em São Paulo par
inventar um teatrinho." E isso, essa mancha, essa nódoa
não desaparece. Eu, ao contrário, completando agora 25
anos de teatro, chego a querer até que realmente tenha
sido diletantismo, para provar que aconteceu um milagre.
Que isso, em vez de ser mancha, é um milagre(...) Isso
se chama milagre do teatro, e não mancha. Mesmo
admitindo que tenha sido essa a origem, São Paulo teve
pela primeira vez quatorze espetáculos sem parar... "Ei
São Paulo durante anos só tivemos o TBC como
organização estável e permanente. Era justo, portanto,
que procurasse alternar os gêneros, dirigindo-se não só a
um público, mas a todos os públicos sucessivamente
"..."Nós na tínhamos ator, não tínhamos nada, também
não tínhamos público."

Em primeiro lugar e em caráter acessório é bom que se diga do constrangimento ao ver


uma atriz ou ator seja Cleyde Yaconis, Nídia Lícia, Tônia Carrero, Madalena Nicol,
Jardel Filho, Paulo Autran, Rui Afonso, Walmor Chagas... - necessitando deste tipo de
defesa para o TBC e para o seu próprio trabalho. Leia-se cada um dos depoimentos
publicados pelo SNT, leia-se sobretudo o depoimento de Cleyde Yáconis, o trecho em
que ela busca mostrar a Silney Siqueira que o TBC não era um grupo de atores-zumbis
manipulados pelos "estrangeiros"... lembre-se ainda que o caso é o do palco por
excelência de Cacilda Becker. Do depoimento citado e de todas as defesas promovidas,
salta aos olhos a questão do aprendizado, da descoberta "adolescente" do teatro, o
sentimento de alegria e paixão eclodindo em torno da cena como profissão e técnica,
fora do histrionismo anterior e ainda existente ao redor. Num primeiro momento o TBC
é, inclusive, o lugar onde não há estrela e vedete - Cleyde Yaconis trabalhou no guarda-
roupa antes de tornar-se atriz. E é evidente que o TBC não acabou com o teatro popular"
existente no país - se é possível dizer que ele foi liquidado por alguma outra
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manifestação, os "responsáveis prováveis" são os seus semelhantes mais técnicos: o


rádio e a televisão, para onde muitos de seus produtores migraram, aliás. Ao TBC não é
sequer possível usar esta tradição.

Considerando estas referências, o que foi, resumidamente, este primeiro grande


empreendimento contínuo de renovação? Após os Comediantes e o Teatro do
Estudante, principalmente, ele representou a sedimentação ingênua da questão moderna
na cena nacional. Por sua permanência temporal e produtiva, o TBC é efetivamente
mais importante do que qualquer outro movimento que se enquadre como semelhante
na época. A obra do TBC foi exatamente a afirmação - estranha, muito estranha, pouco
compreendida - do teatro como encenação. O que os encenadores traziam, mostravam e
desejavam sedimentar não era outro referencial. Sendo encenação, o teatro inaugurava o
trabalho técnico do ator, do diretor, do cenógrafo, e espetáculo como construção. Só
que, procurando fazê-lo, inaugurava o sentido de modernidade em que a cena "parece" a
própria vida. Dentro do seu espírito de produção do novo como descoberta, ele era
ingênuo. E não podia, logicamente, explicitar de forma clara o que estava sendo feito.
Quem olhava a cena acreditava, em geral, que é possível dizer "teatro é vida", numa
incompreensão de Aristóteles. E se teatro era vida, no caso do TBC era a vida granfina
associada ao capitalismo internacional. Ao sistema de arte vigente não era inviável
absorver a afirmativa. Ao contrário, pois assim opera seu modo de perceber. O TBC
pode ser colonialismo, imperialismo, lixo cultural, sem maiores contradições. Sua
"melhor leitura" é o recalque, a negação.

Nestas linhas gerais constrói-se a emergência e a supressão do tebecismo - suas


questões são alienígenas, importadas, descabidas, elitistas, esteticistas. A oposição
revela-se basicamente em dois sentidos: o recalque produtivo e o recalque institucional.
O segundo configura um esforço reflexivo para elaborar plataformas político-culturais;
é defendido desde o final dos anos cinqüenta para impor um teatro nacional-popular:
Foi a atitude do Arena, até certo ponto, ao menos a longo prazo, foi a atitude do CPC,
do Opinião e dos seus remanescentes.

O recalque produtivo foi a sua negação, por produtores da mesma época, em favor de
outra cena-programa produtivo imediato para as montagens. Enquanto no caso anterior
discute-se sobretudo política cultural, neste caso o tema é teatro mesmo, privilegiando-
se mais ou menos as questões específicas do palco. Para os que gostam de teatro,
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dificilmente pode-se encontrar instante mais comovente nos tablados do país. Trata-se
do ponto em que a questão moderna é, a um só tempo, compreendida-aprofundada e
afastada-pulverizada. E esta evidência histórica deve ser imposta. por mais horror que a
lembrança do TBC possa provocar. Não é possível negar o papel que ele exerceu como
referência produtiva para tudo o que surgiu ao seu redor.

Arena e Oficina são os dois principais promotores do recalque produtivo. O Arena, sem
que haja aqui uma análise ético-valorativa, defrontou-se com o TBC como referência
produtiva reveladora do massacre nacional, considerando-se o seu trabalho enquanto
intervenção linear e ampla. A atitude da análise é reducionista, mas não há possibilidade
de estabelecer as nuances do trabalho do grupo. De forma ampla, o seu desejo produtivo
é claro - é uma "confusão" em que a questão moderna, antes de ser questão do palco, é
instrumento cultural para transformar a vida através da conscientização. Não existiria o
poder político no interior da própria linguagem, a atuação política só pode ser exterior.
Uma certa dose de xenofobia e ufanismo não pode ser negada, o Arena busca uma
aclimatação radical do teatro como espelho da realidade informada por certa leitura.
Não existe sutileza na sua negação do fato teatral. Se por um lado mantém-se o papel de
destaque do diretor, a direção é diluída no sistema coringa: se há consciência acerca de
um acervo técnico necessário ao ator, a técnica é simplificada na leitura que Arena/Boal
faz de Stanislavski, contra as atitudes "burguesas" latentes nos procedimentos do velho
russo, sobretudo com relação ao tratamento das emoções: se a peça é um espetáculo, a
encenação não tem qualquer sentido a não ser que se submeta enquanto espaço e
cenografia a um problema mais importante e exterior. Não se pode negar, contudo, o
grande saldo positivo do programa fixado - a obsessão por uma dramaturgia nacional,
mesmo que esta fosse buscada sob restritos juízos normativos de espelho da verdade-
realidade. A trajetória do Arena é um esforço crescente de negação, seu estuário éo CPC
e o Teatro do Oprimido. Para fazer teatro, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna serão
obrigados, mais tarde, a rever posições (a revisão não vai em nenhum momento
determinar uma outra atitude diante do TBC - inclusive pelo pouco tempo relativo de
vida que, infelizmente, lhes restará). Além do Arena e do Oficina, promotores do
recalque produtivo por excelência, a questão do TBC restou apenas como espécie de
nostalgia, lembrança dos bancos escolares: os atores, diretores e cenógrafos que foram
formados no TBC e ao lado dele, fora daqueles dois grupos, apropriaram-se dos
elementos construídos pelo tebecismo no sentido de sua diluição, meros referenciais
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técnicos de palco, dissociados de qualquer questão, Conseguiram conciliar a velha


prática histrionismo-estrelismo com a técnica do palco moderno em diferentes graus.
Seguiram em direção à montagem do-ator-por-peça, após uma efêmera e acidentada
passagem pelas companhias "permanentes". Nesta corrente, o teatro deixou de ser
questão de cálculo cultural para ser exibição de talento, com resultados melhores ou
piores. Não há "condenação" na análise do processo: antes de ser construído
conscientemente pelo artista, ele é obra da história. É difícil não se deixar arrastar.

É possível considerar Alberto D'Aversa como um porta-voz lúcido dos problemas do


TBC e do teatro circundante. Chegando ao Brasil em 1956, trabalhando na E.A.D., no
TBC e na crítica especializada. suas análises são de grande utilidade para qualquer
estudo do período. Falando sobre a importância do TBC, D'Aversa localiza-o no sentido
que fixou-se como moderno, ao mesmo tempo em que denuncia o terreno de areia
movediça sobre o qual está erguido: fora da tradição, a modernidade do TBC é
modernidade estrangulada; não tem autores para solidificar seus procedimentos e,
sobretudo, não tem público. Arena e Oficina despontam neste estrangulamento,
lançando mão da referência produtiva representada pelo TBC. O espaço produtivo em
que ele não pode firmar-se por não ter referências transforma-o em tradição.

Ao Arena, como se tentou mostrar, não interessará a questão da tradição como meio
explícito para buscar um teatro nacional. Sua selvagem apropriação das referencias
teatrais conduz à formulação dos problemas imediatos do TBC como simples equação
matemática a resolver: autor e público. Antes da reflexão produtiva sobre os
procedimentos, cabe a sua aclimatação.

Diversos textos do Oficina (1958-1961) registram ou permitem entrever uma afinidade


imensa de questões e uma colaboração intensa entre os dois grupos (Boal trabalhou na
própria adaptação e direção de A Engrenagem, escreve texto para o programa de A Vida
impressa em dólar, por exemplo). No entanto, não se trata da mesma questão, ao final
das contas, e os dois grupos terão que separar-se no futuro, até mesmo opor-se. Um
texto de José Celso Martinez Correa para a montagem de CIiford Odetts, A vida
impressa em dólar, descrevendo o processo de montagem e os caminhos da direção,
comparado com o texto de A. Boal, Tentativa de análise do desenvolvimento do Teatro
Brasileiro, publicado no mesmo programa, evidencia já em 1961 um abismo entre as
duas concepções. Numa imagem radical, pode-se dizer a diferença em termos de atitude
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intelectual: enquanto a linha produtiva dominante do Oficina significa fazer perguntas


(e vai sempre permanecer nesta atitude), a do Arena deseja respostas (e vai sempre
permanecer nesta atitude).

O Oficina surge como grupo amador em 1958 e sua imagem é a de passatempo de


meninos granfinos. Situação diferente daquela do Arena, onde já está claro o projeto
profissional (todos os integrantes do Arena já haviam feito claramente uma opção de
vida quando o grupo surgiu ou quando vincularam-se a ele, pelo menos os elementos de
maior significado, freqüentaram a E.A.D., inclusive). Os integrantes do Oficina, mesmo
após a profissionalização, hesitam longo tempo para assumir a produção. E o Oficina
desponta amador jogando com uma dupla referência: TBC- Arena. Isto é, nega o espaço
do TBC (estudando-o) e monta textos em sua maior parte nacionais de autores novos,
por exemplo, Vento forte para papagaio subir, A ponte, A incubadeira. Fogo Frio (em
colaboração com o Arena) representam a busca do autor nacional que o Arena propõe e
o Oficina encampa. O Oficina também monta Sartre - estrangeiro que é lido sob o
prisma da necessidade de tomar partido, agir, mudar, conscientizar, construir a
libertação. Percurso oposto ao do Arena, que iniciara trabalhando basicamente com
textos modernos estrangeiros. Até 1957, quando é montada Marido gordo, mulher
chata, de A. Boal, e é iniciada a "fase realista" (segundo Boal) denegação do teatro
existente. Após este texto e até 1962 os únicos textos estrangeiros montados
concentram-se nos anos de 1957-58 (Enquanto eles forem felizes, Vernon Sylvain; Juno
e o pavão, Sean O'Casey; A Falecida senhora sua mãe, Feydeau; Casal de velhos,
Octave Mirabeau, A mulher do outro, Sidney Howard) - ao todo cinco textos
estrangeiros contra onze nacionais. Em 1962 o Arena volta ao trabalho com textos
estrangeiros, mas não se trata mais de explorá-los, conhecê-los, aprender, esclarecer a
construção do palco: trata-se de nacionalizá-los. Daí para a série "Arena conta..." o
caminho é natural.

O aparecimento profissional do Oficina vincula-se assim ao binômio TBC - Arena no


contorno amplo do seu projeto produtivo. Sua trajetória começa afastando a resposta
que estava no ar: é necessária a emergência do autor nacional. O Oficina deixa de lado a
pretensão de responder defendendo uma pretensão (talvez) maior de perguntar: como
construir uma cena moderna e contemporânea inegavelmente brasileira? Neste conflito
produtivo que é constante interrogação do espaço cênico, se chegará aos Pequenos
Burgueses, a Os inimigos, a O Rei da Vela e ao impasse de Gracias senor.
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Pode-se resumir a questão produtiva do Oficina em momentos diferenciados de


trabalho-reflexão. O primeiro movimento endossa a afirmação "Teatro é vida" e a sua
repetição como pergunta leva à percepção no palco de que a 'vida não está aqui."
Abrange o trabalho decididamente amador de 1958 a l%1. O segundo movimento
registra a percepção de que a "a vida é teatro" e que antes de mais nada é preciso
aprender a fazê-lo Abrange o período de 1961 a 1966, quando o incêndio do teatro força
uma primeira grande retrospectiva. A partir de 1966 encontra-se o terceiro movimento,
a passagem ao contemporâneo como sofrida tentativa: ronda o palco a possibilidade de
situar-se como impossível sujeito no processo cultural - "Vida é morte, morte ao teatro,
morte à vida" é a percepção que funciona como eixo do trabalho entre 1966 e 1%9, até
Na seiva das cidades. Depois o período que o grupo nomeia como ano do silêncio
(1970) - crise e dissolução, excursão pelo país a trabalho, Gracias senor, nova crise, a
impossibilidade de questão ... Toda uma etapa que exige um trabalho crítico agudo para
traduzir-se como história e compreensão fora do espaço produtivo, marcando ao mesmo
tempo as distâncias frente ao apelo de institucionalização. Não é o trabalho deste texto.

Avaliar o Oficina em termos históricos, pois a História é sempre uma avaliação da


posteridade, é procedimento que não pode esquecer o valor de seu trabalho no lugar
onde a tônica é a confusão. Algumas considerações de Alberto D'Aversa em entrevista a
Fernando Peixoto (ainda em Porto Alegre) contribuem para a nitidez de contorno do
espaço em que surge o Oficina: abordam o problema dos jovens diretores e do teatro
brasileiro.

(Eles)... desejam o teatro brasileiro de uma maneira bem


romântica. Afirmam agora que só o teatro brasileiro é
válido. E é verdade que para o público atual, de
composição ambígua, desconcertante, é o único
compreensível coletivamente. E num certo engano estão
caindo todos, inclusive os críticos. Querem um
reconhecimento do teatro igual ao que aconteceu em
Atenas ou no Século de Ouro espanhol. E peças que
reputam enormemente te(r) o mesmo êxito que têm
Dercy e Abílio. Afirmar que neste momento só o teatro
brasileiro serve é bobagem. Acho justo que, não os
conhecendo, Shakespeare e Schiller sejam difíceis para o
público. Mas partir daí para afirmar que o teatro brasileiro
autêntico é somente um teatro popular, imediato(,) onde o
público facilmente se reconhece, é idéia perigosa. Desde
o tema há medo de que a cultura possa impedir esta
comunhão. A idéia é um pouco demagógica.
Pessoalmente, creio que quanto mais se conhecer o
teatro universal, melhor. Conhecê-lo não de ordem
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literária ou acadêmica. Mas conhecimento de palco.


Conhecimento direto, pelo espetáculo. E a única via para
o autêntico teatro brasileiro. Caso contrário, pode-se cair
no grosso equívoco de fazer passar por conhecimento
coisas que estão à margem na periferia da cultura.

É confusa a idéia de que o teatro brasileiro é uma


espécie de parcialismo, pré-conceitual, que a priori exclui
outras foras. Alguns escrevem sobre temas brasileiros,
mas são completamente estrangeiros. A essência não
esta na eleição do tema, ou em determinar o uso da
linguagem. E errado o escritor que se propõe a ser
brasileiro. A melhor coisa de nosso tempo é "A
Compadecida", de Suassuna, brasileiro com cultura
humanística, onde se vê recordações medievais. Mas é
brasileiro autêntico. Outro escritor enfrenta também um
tema nordestino, mas sem conhecer o nordeste, e o
resultado é inexistente, o espírito é todo errado. Outro
escreve sobre um tema atual da juventude transviada,
mas é inteiramente estrangeiro, embora a história esteja
situada em Copacabana. Uma obra muito menos
brasileira do que outras do próprio autor."

Alberto D'Aversa não está apenas sustentando-se, neste momento, ao lado do TBC -
afirmação que seria no mínimo injusta. Seu texto aponta o impasse da modernidade
tebecista, que ele vê, como já se viu, como impossibilidade pela falta da tradição. Mas
vai além, pois pensa a impossibilidade do moderno, espécie de arbitrário na selva
tropical. O texto revela o ponto básico de atrito entre o TBC e o Arena. E a tan gente
que o Oficina traçou.

Em 1961 o Oficina inaugura sua casa de espetáculos com A vida impressa em dólar.
Impossível deixar de lembrar José Renato saindo da E .A. D. em 1953 como Arena e
Esta noite é nossa e Um Demorado Adeus. Em l961 - sem que se considere o tempo
cronológico diferente de cada grupo, mas considerando-se apenas suas questões - a
atenção do Arena não está mais voltada para a compreensão no tablado da modernidade.
Apesar de Boal19 afirmar que o realismo é apenas uma linguagem entre muitas, ele é a
linguagem. E é como redução. O Arena deseja produzir um teatro verdadeiro, legítimo,
justo, lúcido - revelar a essência nacional no espaço distante-envolvido do público. Para
dominar os meios técnicos adequados, expressar o mundo circundante, a urgência é de
novos autores, novos textos: o Seminário de Dramaturgia de São Paulo é o esforço
central do Arena entre 1958 e 1962.
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O Oficina profissionalizado não trabalha mais à procura do texto brasileiro, esta não é
mais a questão, José Celso não mais escreverá (a peça que comporia sua "trilogia",
"Cadeiras vazias", jamais será encenada). Um paciente trabalho de interpretação é
iniciado, com Eugênio Kusnet como professor (Stanislavski numa versão híbrida, que é
russa-européia, antes de americana). Para a montagem de Odetts recebe-se a
colaboração de Jimmy Colby.

Vendo os fatos à distância, José Celso Martinez Correa percebe a cisão neste momento
em que os grupos aparentemente ainda estão intimamente ligados. Na entrevista citada,
a cisão é referida como posição entre uma tendência à seriedade (Arena) e uma
tendência à super-valorização das questões individuais, tais como o emocionalismo e o
homossexualismo (Oficina). 'Em jargão de certa ortodoxia de esquerda, trata-se do
conflito insuperável entre o verdadeiro revolucionário" e o desbundado". A formulação
ingênua ou a condenação ético-normativa situa o centro do problema: não é apenas a
forma de apropriação da questão moderna que separa os dois grupos como projeto
produtivo. Ou seja - não é apenas o caso de posicionar-se diante do moderno optando
por promover a sua radical negação ou a sua negação no trabalho. É escolher um
posicionamento no interior de um "projeto-Brasil" diferenciado. No primeiro caso, o
Arena pode suprimir a importância da questão moderna sem pensá-la completamente
como questão do palco porque no seu "projeto-Brasil" o país é um dado reificado, uma
revelação simples de mostrar, realidade que se funde ao sujeito pensante e é o que ele
quer sem que nenhum dos termos tenha que ser posto em questão. Basta ao teatro
submeter-se à História, usando os meios mais eficientes possíveis para falar nela (que é
verdade, que é o real).

No segundo caso, a questão da negação do moderno no trabalho, trata-se de um


"projeto-Brasil" que é antes de mais indivíduo. Indivíduo que pensa, reflete, busca,
procura e debate-se sempre no interior da questão. Poder-se-á até mesmo dizer, num
certo sentido, que o Oficina estrangulou-se pela impossibilidade de responder - chegou
ao limite de sua arte, sua "virtude" produtiva acabou em "prisão". Um outro trabalho
poderia traçar em termos epistemológicos a trajetória: compreende no mínimo a
localização de Aristóteles, Hegel, Marx, Sartre, Nietzsche, Brecht e Artaud.

Evidentemente nada é mecânico, imediato, consciente, assumido. As linhas aparecem e


somem ao nível das produções, dos textos, da documentação. É bom frisar uma vez
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mais que a tônica é a confusão. Os textos recentemente publicados por Fernando


Peixoto ilustram bem a flutuação-oscilação do contorno das ideologias produtivas.
Como também é útil a "briga" de Sadi Cabral com José Celso durante a montage24m de
Todo anjo é terrível (l%2) a propósito dos canônes da fala em cena.

Cabe localizar nos trabalhos, de acordo com os limites fixados na Introdução, as linhas
gerais da produção do Oficina como produção consciente do moderno e do
contemporâneo. O texto, destaque-se, não é uma história do grupo ou uma análise de
sua trajetória. E, antes, uma tentativa de compreensão da sua questão produtiva na
trajetória da história do teatro brasileiro. Desta forma, na medida em que o TBC pode
ser encarado como modernidade ingênua, o Oficina opera como modernidade
consciente por excelência sua questão produtiva, que explode perplexa ao perseguir a
instauração da ruptura contemporânea.

POLÍCIA, LEIS E BOMBEIRO

Seria necessário bem mais do que este texto para analisar o trabalho do Oficina no
espaço histórico-cronólogico fixado, deixando inteiramente claras as linhas do seu palco
em cada montagem. E sem esforço de recuperação institucional anódina, sem adjetivar
para a fossilização. Adjetivar e institucionalizar o Oficina, aliás, é obra fácil - o aplauso
foi um dos meios para promover sua neutralização. A análise aqui terá como eixo básico
a reflexão sobre três trabalhos considerados como decisivos em termo de elaboração
histórica de linguagem cênica: Os Pequenos Burgueses, Os Inimigos, O rei da vela.

Após a localização do Grupo Oficina na Rua Jaceguai, 520, pode-se traçar o percurso de
produtores que optaram pelo teatro como área de trabalho sintonizada com sua época. O
Oficina é antes de mais nada um palco numa cidade em movimento que gostaria de ter a
cultura como inócua contemplação. Manter o trabalho como sintonia produtiva com sua
época é reproduzir em termos teatrais o ritmo febril das máquinas e operários, a
agitação urbana do grande centro econômico que desconhece o "possível humano" e
necessita devorar carne, idéias, entranhas, para dar plena vigência a sua própria questão.
"Espelhar" este movimento, pretender ser apenas um "espelho", é ordenar sob uma
visão unívoca, perspectivista, direcionada - catártica, digamos – a violência cotidiana.
Oferecê-la como objeto de reconhecimento, evocação. Possibilidade de estar no mundo
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sem conflito, porque reconhecido como alguém individuando ao contemplar o caos


como exterior a si e inexorável contingência.

Mantendo o teatro como oficina, a encenação como trabalho, o edifício do teatro como
parte da cidade (as obras nunca param) o grupo pode refutar uma opção de facilidade
técnica - recortar um quadro vivo do espaço urbano e concedê-lo como contemplação.
Trabalhando intensamente com Stanislavski, afasta o perigo de uma saída platônica para
o seu problema. Não há 'opinião certa". Há a questão da arte como um saber (poésis),
reproduzir ações humanas pode ser o meio artístico de saber. Mas como colocar estas
ações humanas no palco se nem a sua apreensão fotográfica nem a sua apreensão
dirigida-intencional-calculada registram o núcleo de operação cultural por excelência
que elas encerram? Como atingir no palco a ação humana que é cristalização
inconsciente, social, política, ideológica do gestual vago da época? Quer dizer, se
Stanislavski-Brecht podem aproximar, num certo sentido, o grupo de um "aristotelismo"
(o mundo sensível só pode pensar a idéia como transcendência se encerrar na aparência
algo essencial), este é desde sempre problemático porque o primado da técnica deixou
de ser insinuação de construção do cotidiano para ser o cotidiano. Ou seja-não existe a
possibilidade imediata de esquematizar Stanislavski, adicionar afirmações de Brecht e
colocar um real pretensamente crítico no palco. A técnica, além de indústria, passou a
ser indústria cultural. A era científica pressentida por Brecht não levou a ciência ao
mercado, mas instaurou o mercado da ciência como ideologia. A febre de saber revelou-
se "saber de febre" - ideologia de consumo, banalização, cultura-inútil que é só mais
uma mercadoria. A Razão (metafísica ou não, nem importa) - possibilidade de análise e
conhecimento -foi reduzida à Técnica. A sociedade é a do fazer e da inconsciência do
fazer sabendo. Assim, Stanislavski-Aristóteles e até mesmo Brecht não são soluções,
são quando muito etapas. A transposição rápida de Brecht para o Brasil pode ocorrer
nesta época e neste clima como instauração de um saber sobre o cotidiano que é mais
uma forma de representação, mas não é crítica.

O Oficina tem seu centro básico em São Paulo, mas viaja muito e viajará sempre. Situa-
se como espécie de ponto-fixo-flutuante. Apropria-se das circunstâncias e transforma-as
em produção. Em princípio estas condições fazem do Oficina apenas mais um grupo em
São Paulo, grupo que manipula as questões que estão no ar. O problema é situar os
momentos que fazem com que de um grupo a mais ele chegue a ser uma espécie de
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estranhamento, nenhum lugar-qualquer lugar. O instante em que sua ideologia produtiva


diferencia-se claramente, em que os meninos começam a incomodar o décor do salão.

A temática da técnica das possibilidades não-platônicas de falar sobre o real já


transparece clara em 1963. Após a montagem de A vida impre0sa em dólar, Todo anjo é
terrível, Um bonde chamado desejo emerge cada vez mais clara a impossibilidade do
teatro no mundo do século XX. De 1961 a 1963 construiu-se a questão moderna, que
não é resposta para a opção teatral. Os pequenos burgueses equaciona no palco parte do
problema, mas não o resolve - na verdade, não há uma equação. No texto do programa
de Quatro num quarto (1962) o impasse é verbalizado:

"Depois de um 62 indefinido culturalmente e bastante


definido economicamente como um ano de prestação de
compromissos assumidos com a adaptação deste local
para Teatro, estaremos durante as apresentações de
Kataiev nos reestruturando para a execução de um
programa que julgamos significativo para a continuidade
cultural de nosso teatro.
A peça de Kataiev é um exercício de comédia para os
nossos atores, a possibilidade de contacto com um dos
maiores diretores do gênero do Brasil...
estamos tentando planificar atividade teatral segundo
uma concepção de teatro ambulante.(...)
Hoje, em que jornais, televisões, se encontram
inteiramente aprisionados nas mãos das grandes
empresas, destinados a funcionar como instrumentos de
ampliação do mercado, dispostos a encarar o espectador
não como liberdade criadora, mas como simples cifra de
consumo, o teatro tem nova função. Sua possibilidade de
funcionar com pequenos recursos financeiros permite que
se constitua num instrumento (de) desmistificador,
encarando o espectador como sujeito culturalmente
transformável e dialogável. As grandes empresas
exercem através da utilização dos instrumentos de arte
como publicidade, o que Norman Mailer chama a mais
valia da mente humana, não prevista por Marx, na sua
concepção da mais valia. Por outro lado, devido às
circunstâncias nacionais e internacionais, se armaram de
um exército de defesa da cultura e da moral, quando uma
cultura se cria por si e uma moral não se arma ou rearma,
se cria e recria nas situações humanas sempres novas.
O Teatro de Hoje terá de ser um teatro violento, um teatro
essencialmente inteligente, um teatro total mostrando as
relações totais econômicas, morais, sexuais,
psicológicas, históricas, políticas do homem com o
mundo. Um teatro culturalmente de acordo com todas as
conquistas da cultura moderna. Um teatro que antes de
apelar para os bons sentimentos do público deverá apelar
14

por uma comunicação racional dentro da esfera do


problemático".
(os grifos e as eventuais correções da impressão original
foram feitos para realçar e esclarecer o sentido.)

Talvez a razão central do capitalismo selvagem ou dependente seja a violência,


exarcebando os sentidos e retendo a reflexão. A violência é razão. Se assim for, mostrar
o que ocorre no dia a dia como cena teatral não serve ao conhecimento ou à
transformação, em qualquer nível, pois o mero gesto de captar o real violento incide
sobre o mesmo espaço de recepção. Há uma instância de produção do gesto que a
fotografia e mesmo o cálculo não chegam a compreender.

Passar pela fotografia, analisar todas as suas nuances, dominar os meios de produzida
talvez seja o privilegiado caminho para descobrir o momento além, onde o próprio
fotografar é mistificação.

Note-se que José Celso Martinez Correa não dirigiu a montagem original de Quatro
num quarto, como não dirigiu José do parto à sepultura, Um bonde chamado desejo,
Poder Negro e Don Juan no interior do grupo existe um debate constante sobre teatro
e o atrito entre linhas produtivas diferentes é permanente. O que não significa a
existência de uma linha "melhor" ou "pior", "boa" ou "má", mas configura um clima
produtivo bastante favorável.

Por todas estas razões, a montagem de Os Pequenos burgueses é uma radical resposta
moderna enquanto consciência dos meios técnicos do palco e de seu emprego. E
sucesso. Mas não é solução produtiva a optar. O Oficina em 1963 sabe os meios para
fazer dinheiro e procura dominar todos os meios para fazer teatro. Um teatro que não é
questão de bilheteria ou ferramenta para o dia-a-dia mais imediato, mas opção cultural
pela revolução.

"...Acreditamos na necessidade de uma verdadeira


participação na atualidade que vivemos. Só estudando-a,
levantando e discutindo os problemas da forma mais
franca, mais aberta, mais sincera possível, com a
disposição de revisar a cada instante nossos acertos e
erros, acreditamos estar cumprindo nossa parcela de
responsabilidade diante de nós mesmos, de nosso
público e da própria história. Nossa meta é a de atingir as
condições para um teatro popular, livre, ligado às
autênticas tradições culturais de nosso povo e de nossa
15

cultura. Nosso trabalho diário é a pesquisa, a experiência,


a certeza de que cada dia nos traz um conhecimento
novo, mesmo como risco de voltar atrás e recomeçar
tudo o que nos parecer errado, inútil ou falso. Para nós
cada ensaio, cada espetáculo, cada platéia nova é não
uma rotina profissional, mas, sim, a oportunidade de um
aperfeiçoamento. Aperfeiçoamento que não poderemos
adquirir sozinhos, mas, sim, auxiliados pelo incentivo e
pela compreensão do público... Aquela compreensão que
não é a do elogio fácil, mas, sim, a crítica que investiga
em profundidade e julga com absoluta sinceridade."
(Do programa de Os Pequenos Burgueses)

A peça estréia em São Paulo em setembro de 1963. No Teatro Oficina, com seu palco
de duas platéias, opção possibilitadora da arena e de certa variante do palco italiano. A
cena é leve, despojada, construída com alguns móveis, o samovar, pequena capela com
ícones. Objetos, adereços, cores, todos os detalhes são marcados pelo cálculo da
encenação. O exame das fotos da cena causa uma sensação de peso, sobrecarga, até
ingenuidade - este não era ocaso no espaço especifico da época.

Em entrevista ao Jornal do Commércio do Rio de Janeiro, de 21/12/1966, José Celso


afirmava a orientação do grupo como busca de uma linguagem teatral "que enquadre
todo o conhecimento moderno" - insistindo na afirmação dos textos dos programas. O
ponto de partida é o método Stanislavski, em 19660 estágio do grupo, a seu ver, é a
penetração no teatro épico. No trabalho com Os Pequenos Burgueses a principal
motivação foi o uso do Método sem deixar de lado a problemática de Górki, que
correspondia aos anseios dos jovens da classe média paulista e ao momento histórico.
Um ano antes, numa entrevista ligeira ao O Jornal ("A oficina e os "Pequenos
Burgueses"), Renato Borghi referia-se à questão do trabalho do ator tentando esclarecer
o que o consenso da crítica considerava como novo e diferente. O ator, do núcleo básico
e da administração do Oficina, dá a perceber na estrutura da sua resposta um certo
caráter arbitrário dos adjetivos escolhidos, indicados pelo repórter. Na matéria, sua
sintética resposta é interessante: "Fazemos da interpretação um verdadeiro trabalho de
laboratório. Trabalhamos em torno de cada cena, através de uma série de exercícios e
improvisações, a fim de que cada uma traga ao público o seu conteúdo de verdade. O
que pode dar impressão de maneira nova de interpretar é que cada ator colaborou muito
com sua própria experiência porque há uma coincidência da época em que a peça foi
16

escrita - Rússia 1902 -com o Brasil 1965. Por isso o público acha a interpretação tão
viva, tão quente."

No mesmo ano o Jornal do Brasil publica uma grande matéria sobre Eugênio Kusnet, o
responsável pelos cursos de interpretação do Oficina. Kusnet representa, como já se
disse anteriormente, uma "vertente européia", mais exatamente russa, do Método.
Segundo suas declarações, esta opção de trabalho estava no ar na Rússia de sua
juventude (Boal, ao contrário, trabalharia como Método via E.U.A.). O trabalho de ator
em Pequenos Burgueses, a seu ver, é bem sucedido pela atualidade do texto na realidade
do Brasil, pela qualidade geral do espetáculo, pelo trabalho de nacionalização da
escritura cênica realizado por José Celso e pela seriedade profissional do grupo.

Existem outros textos importantes de "produtores" analisando o evento. Em texto de


Augusto Boal, de 1963, é particularmente interessante - Os Pequenos Burgueses: o
laboratório místico. (IV). Procura em princípio caracterizar o recurso tradicional do ator
brasileiro - a inflexão mecanizada - para esclarecer a construção do personagem na
concepção de Stanislavski que defende. O ator deve ir (ou ser levado a) além do texto
escrito, retomando o trabalho criador do dramaturgo, num estrito sentido teatral. A
questão é construir a "imagem" do personagem partindo das suas condições e
características subjetivas, sentindo-as, absorvendo as suas idéias como se fossem
próprias. Ao dominá-las, exercendo sobre elas sua condição de sujeito, o ator será capaz
de criar as aparências exteriores adequadas. O perigo e o problema, no entanto, é
sobrecarregar demais a construção, com dados que possam escurecer as linhas
fundamentais da peça: tornar o personagem por demais subjetivo, tendendo para uma
individualização exarcebada que interfere com outros níveis de maior significação.

Fernando Peixoto reúne em Górki e Pequenos Burgueses o pequeno texto de sua autoria
publicado num dos primeiros programas da peça, preocupado sobretudo com Górki,
com algumas observações mais amplas. Após focalizar, em termos produtivos, os
objetivos do autor, vinculados à possibilidade da pequena burguesia enquanto classe e
ao caráter revolucionário do operariado, que está surgindo em direção ao poder,
considera a cena como microcosmo (o macrocosmo é a sociedade soviética russa no
início do século) onde o autor não deixa espaço para os pequenos dramas individuais,
psicológicos, submetidos a um enfoque simplista:"... atrás de cada contradição
encontramos sempre as razões de ordem social, reflexos diretos da luta de classes."
17

Apesar das tendências produtivas divergentes, pois só Renato Borghi e José Celso
situam-se sem maiores conflitos num mesmo sentido produtivo, os textos referidos, com
maior ou menor ênfase, situam em primeiro plano um projeto de ordem "extra-teatral",
digamos, preocupados em conferir um efeito mais imediato à cena. O sentido da palco o
de lutar pela conscientização para transformar o real concreto. isto se faz longe de
qualquer possibilidade de banalizar as questões mesmas do palco. A todo momento é
descrito o trabalho como técnica, sua intencionalidade, seu desejo de fazer a cena passar
por real. A partir daí esboça-se o trabalho do diretor enquanto pensador da cena e diretor
de ator, o trabalho da cenografia e do figurino enquanto materialização ideal de um
espaço que quer ser real, o trabalho do ator como indivíduo específico numa situação
em que é também ser social. A divertência de Boal é clara: minimiza a questão da
pessoa como conflito além do social; para ele, o personagem é espécie de suporte de
uma tese onde a emergência de certos coloridos particularizados constitui "perda de
sentido". O personagem é sobretudo "ser social" e deve ser construído para exemplificar
o ser social em dada situação.

No Oficina subsiste uma questão ética, uma diluição de postulados existencialistas e


fenomenológicos que, enquanto diluição, em lugar de dirigir a leitura da cena,
determina sua mais densa exploração. De todas as matérias consultadas, com
declarações dos produtores sobre as montagens, salta aos olhos o desejo de enquadrar o
trabalho construção e não como reprodução, duplicação, cópia da vida orientada num
sentido que ela tem ou deveria ter. Apesar de defender-se sempre a peça como sintonia
histórica. Em vez do simples desejo de encenar a realidade, o grupo encena a realidade
da encenação. Neste procedimento ele é' no rigor e na consciência, o grande trabalho
radical moderno.

As declarações aos jornais deixam claro o sentido do que é feito e só Fernando Peixoto
consegue atribuir de forma mais estanque uma importância preponderante à temática, à
História, ao "ser de classe" e ao "ser social" como sentidos definidores do trabalho - ou
melhor, do texto mesmo de Górki, afinal o que ele está abordando. Fala-se de teatro, dos
meios e caminhos para fazer teatro, estar no palco, as condições brasileiras para
encenar. Declaram mesmo que conseguiram mostrar uma "família russa" no Brasil (?).
Nem assim causam grande estranheza. Ninguém chega a lembrar de forma explícita a
vinculação do texto ao Teatro de Moscou, a não ser como informação acessória sobre o
autor.
18

A crítica olha perplexa a cena. O que vê e o seu desejo mais radical, implícito nos
critérios de avaliação que usa, é desejar o Oficina como espécie de novo TBC. Menos
indigesto, mais à esquerda, com um texto "mais significativo" diante da realidade, se
comparado com os que o "pessoal" do Zampari costumava encenar. Elogia-se. Os
adjetivos do idioma são esgotados. Agradece-se até mesmo aos deuses - ao anjo da
guarda do teatro nomeadamente - pelo presente que veio do céu. Nenhuma referência à
trajetória teatral do grupo enquanto trabalho teatral efetivo. Quando ela é citada, é para
mostrar os frutos que podem ser obtidos através da seriedade e da dedicação.
Conseqüentemente, a crítica não vê o palco; mais tarde, nas remontagens, chegar-se-á a
dizer que o espetáculo é a 'galinha dos ovos de ouro" do grupo - como se a remontagem
tivesse apenas a função de caça-níquel e o teatro fosse um reino encantado onde quem
faz opção pela "cultura" não pode pensar em "dinheiro".

Na verdade, a crítica vê a cena de uma tal distância neste primeiro momento de impacto
que através dela ninguém chega a saber ao certo o que foi e a que veio a montagem.
Busca - inconsciente, logicamente - de esvaziamento do trabalho, tentativa de
transformá-lo em quadro vivo com moldura dourada que só é mais um. Chovem os
prêmios para os jovens. Afirma-se sempre que eles ajudam a compreender nossos pais,
tios, irmãos, primos com a sua montagem. O teatro, para a critica mostra a realidade,
permite uma identificação que é o nosso reconhecimento como pessoa, fornece uma
lição de vida e um quadro norteador da moral. Agradecer aos deuses é um gesto que se
impõe, já que a Arte é um meio para atingir o Bem. Olha-se o Oficina com os mesmos
olhos arregalados que olharam o TBC.

No entanto o grupo não está mais operando ingenuamente no sentido do Bem e da


Moral. E claro que a leitura efetuada pelo consenso da crítica pode ser vista ainda como
pertinência. Veja-se o projeto produtivo da montagem. A decodificação solicita
Aristóteles, a crítica não é o descabido absoluto. Só que, vendo apenas isto, não
discutindo o trabalho, capta-se exclusivamente sua primeira aparência e o seu
movimento mais conservador. Este passa a ser o sentido e o limite da montagem. Além
dele, recusa-se a localização de qualquer outra coisa. Recusa-se a percepção de que está
sendo feita uma retomada crítica do TBC no ponto de sua perda. Não se percebe que a
escolha rigorosa dos elementos do espetáculo está a um passo de impedir sua função
como complemento, decoração e apoio, para lançar sua existência como recurso
expressivo unicamente em termos cênicos. Não se percebe que o trabalho naturalista-
19

realista do ator está em vias de explodir a si próprio como suporte da razão para
reproduzir a estranha impossibilidade do mundo. Não se percebe que, na estrutura da
cena, insinua-se uma intencionalidade nova: do interior do espetáculo a direção traça
movimentos de tensionamento capazes de duvidar do teatro, da razão, do real. De uma
forma leve e sutil (com Salmos, Marselhesa e Internacional acirrando o ridículo da
angústia de viver que pode ser estraçalhamento na euforia) começa a rondar o palco a
leitura tropical antropofágica de Brecht e Artaud. O Oficina encena o moderno - elabora
a cena como rigorosa consciência de seus meios - o Oficina intui o contemporâneo.

A crítica desejava apenas apontar as formas da reprodução da vida vigentes no palco. O


pressuposto impede a compreensão do palco, da vida e da História. Górki não é
reconhecido em Stanislavski, na maior parte dos casos. Stanislavski não é nenhum meio
técnico voltado para uma nova operação cênica, quando muito é novo em si. A peça é
apenas o aguardado advento de um neutro realismo tardio, associável ao
"expressionismo tardio" que Ziembinski teria introduzido no país. O Oficina é mais uma
academia.

Dois obstáculos ao trabalho do grupo: não só ele é definitivo, como não é discutido. Ao
atender a demanda de mostrá-lo até a exaustão, o próprio grupo viabiliza a
ultrapassagem do trabalho, tornando-o, para os produtores, vazio e banalizado. Os
mecanismos teatrais acionados não foram colocados em xeque a não ser por aqueles que
os formaram; eles próprios se encarregarão de jogá-los no lixo. Impossível tolerar ad
aternum a chatice eternizada da peça.

Mas não só o meio de teatro complica o leque de opções. O mundo dos trópicos é
dotado de um clima onde não é possível manter mínima neutralidade. O golpe militar de
1964 impõe "questões externas "de reflexão que é preciso incorporar ao trabalho. Ao
artista é negado o direito de iludir-se com qualquer insinuação de aperfeiçoamento mais
direto e intenso dos seus instrumentais. Praticamente não existe tempo social para que
ele retire do interior do seu próprio trabalho a questão. Ela surge imponente e impostora
como exigência exterior e não há como negá-la. Fazê-lo significa existir para divertir e
não para trabalhar, significa a perda da arte e de sua força - local onde o poder deseja
vê-la contida. O riso e a razão são perigosos em todos os sentidos, devem ser usados
com moderação em intimidade com o ambiente. O artista não tem - como o intelectual -
um objeto de trabalho delineado em sua especificidade. Deve construí-lo a cada
20

intervenção. Se o artista não perder-se, não se integrar nesta miragem do todo, é


relegado à ineficácia. Arte (em especial o teatro) e conhecimento mergulham numa
dinâmica cósmica anterior ao sujeito. Qualquer distração é aproveitada para seu
enquadramento como misticismo, enigmática operação infantil, hermetismo... A luta
pelo próprio espaço é a mais sólida permanência. Impõe-se o pensamento sobre o
nacional que é impossibilidade ou não há produção. E a interferência freqüentemente se
dá como materialidade sem mediação. Existe polícia, repressão, cadeia, bem ao redor do
produtor.

O golpe de 1964 provoca uma interrupção na carreira de Os Pequenos Burgueses. Uma


comédia é montada, ninguém sabe ao certo o que fazer e onde, afinal, está. Há uma
incerteza geral sobre a (eventual) rotina de dormir na própria cama - longe de localizar
sujeitos paranóicos, o fato é um dado premente do espaço de circulação da produção.

Diáspora, Inquisição, Tribunal do Santo Ofício, ser ou não serjudeu, odelírio de ser anti-
semita, o sonho de agradar a Hitler. O Oficina monta Andorra, onde a linha produtiva
pode incorporar diretamente Brecht, com consentimento" do autor. A imediatidade
neutraliza o rendimento artístico, realçando a inserção político-social do trabalho. A
montagem permite um primeiro contato forte com o problema do distanciamento do
épico do teatro como pura obra de razão. Só que, por um lado, a passagem é por demais
brusca; por outro, o trabalho não agrada ao Oficina como proposição técnica. O grupo já
foi mais longe do que o ponto em que está este distanciamento mais didático. E, ao final
das contas, ele oferece o risco de suprimir o que era questão. A passagem brusca
representa a percepção de um hiato na ideologia de produção, onde um nexo não foi
explicitado, onde boa parte das perguntas persiste sem encaminhamento. O trabalho não
oferece lógica de continuidade, mas uma modalidade de adiamento.

Enquanto projeto político cultural, Andorra é mais "frente ampla" do que Oficina. Na
conjuntura existente ficou mais difícil ainda a busca de autodefinição artística no
próprio projeto produtivo. No entanto, coordenadas nítidas foram traçadas. Em Os
Pequenos burgueses refutou-se o interesse teatral em representar o povo e suas
desgraças; não se ameaça mais o público pequeno-burguês com o inferno da miséria. Se
há uma opção para dizer algo à platéia, este algo é relacionável a sua própria miséria de
classe. Desconfia-se do caráter de líder revolucionário localizável em entidades tais
como "burguesia nacional" e "pequena burguesia esclarecida", valores mitificados por
21

largos setores culturais da época. A definição é uma escolha do teatro como arte; por
construir, no seu interior, resta a questão política no plano mais integral e interiorizado.
A "falta de público" é objetivada no esforço de formação do público através da
enunciação nítida de suas preocupações. Além disso, eventos culturais variados são
promovidos no Teatro da Rua Jaceguai. Com relação ao problema da dramaturgia, o
Oficina objetivou-o jogando-o num certo afastamento: organização de um concurso de
peças, que não irá resultar nunca em encenação. Se a definição de suas propostas
internas caminha rapidamente, o mesmo não acontece como grupo como lugar artístico-
social. Os problemas gerados em instâncias exteriores devem ser superados - após sua
absorção pelo projeto, de produção.

A atitude política do grupo diante da realidade brasileira será confirmada numa nova
montagem. Sua realização assume alguns contornos derivados de um mecanismo do
grupo: as viagens de trabalho e as viagens ao exterior. Tanto quanto mostra, o Oficina
vê. Neste processo, o grupo estivera quase um ano fora de São Paulo, apresentando-se
pelo país. José Celso Martinez Correa fora à Europa. Para a montagem, foram
dispensados alguns elementos da equipe para "descanso cultural" no exterior (Renato
Borghi e Fernando Peixoto) e atores estranhos foram contratados. Alguém na equipe
tem que exercer sempre alguma liderança, especialmente nos momentos em que mais
claramente o projeto de trabalho se impõe como questão na verdade é apenas um
momentâneo estar à frente "para impulsionar o trabalho. Trata-se do instante em que um
esforço radical de reflexão (também prático) é preço para a continuidade. A
impessoalidade da observação significa dizer que não é possível atribuir a José Celso a
carga de todas as operações; ou não se entende um Oficina que é efetivamente grupo.
Os Pequenos burgueses e Andorra esgotaram a questão moderna e tornaram-se passado.
O projeto produtivo é um vazio a preencher. O detonamento da questão em nova
questão tem que ser procurado inclusive no palco.

Os Inimigos marca a passagem produtiva de Os Pequenos Burgueses para O rei da vela.


O enriquecimento conceitual do programa da peça indica o nível de procura que está
sendo mantido. Não é só reflexo de uma grande produção, considerando-se o tipo de
material reunido. Há um imenso esforço para informar a análise com dados mais
pertinentes, de restrita circulação em termos de Brasil. Assumir a própria platéia
significa um diálogo crítico-intelectual que, se não pode ser sustentado ainda no interior
do espetáculo, deve ser forçado no plano do verbo para nortear a codificação : ... o que
22

propomos ao público é um ato simples: que ele, além de ouvir, veja. O palco não deve
ser considerado como uma caixa mágica na qual os atores pisarão para dizer frases
extraordinárias; o palco é a moldura de uma sociedade e os personagens são seus
homens.

A colocação de um personagem num determinado local da cena não corresponde a um


estado de alma; ela indica, concretamente, a atitude assumida pelo personagem em
relação aos outros e frente aos fatos."

O texto observa ainda que o espetáculo não está acabado" e incita o público a formular
perguntas, levando-as ao conhecimento do grupo - para que este possa caminhar no
sentido da procura de uma nova emoção, uma emoção que tire o espectador de si
mesmo, imponha sua definição a partir dos outros membros de sua sociedade.

José Celso M. Correa comenta e divulga o trabalho com 'dicas" precisas: refere-se ao
problema do "tempo" de montagem estipulado pelo produtor (um mês e meio)
determinando em parte a escolha de autor já conhecido, a falta de um número suficiente
de atores com domínio do Método (para viabilizar, inclusive, uma pretendida
ultrapassagem em direção a Brecht), o uso de procedimentos da pop-art para provocar o
estranhamento de objetos cotidianos, a concepção do cenário como referência narrativa,
o emprego de painéis e cenários para romper a individualização das situações e seu
congelamento no passado.

A crítica divide-se, confusa, entre diversas posições. Tende a dominar, no entanto, a


posição da lei que prevê normas para encenação divorciadas da existência do "diretor" e
de sua "concepção" de espetáculo, solicitando-se maior respeito às palavras, ao texto e
ao autor - sobretudo que não se cometa o grave crime de matar um personagem que
permanecia vivo "no papel". Assim, alguns proclamam a injustiça cometida ao texto,
que foi desvirtuado", apesar de ser visto de uma forma geral como medíocre. Como se o
trabalho teatral fosse algo relacionado com um religioso processo de dar espírito às
palavras do autor. Ainda estes - e mais alguns outros - apontam o equívoco essencial do
diretor (talvez positivo, errar para aprender!), que misturou Brecht e Stanislavski
(inconciliáveis) arbitrariamente e produziu uma cena ambígua, confusa, atravancada,
indefinida, empastelada. Mesmo os que combatem o texto como chatissimo consideram
o espetáculo contraditório nas suas opções. O cenário não explicita corretamente as
23

situações vividas pelos personagens e os recursos paralelos aumentam a dispersão-


confissão. Com freqüência Os Pequenos burgueses é citado como espécie de super-ego,
fantasma da ópera, saudade profunda. O fato é que a critica não consegue mais
"efetivamente" ver o que acontece à sua frente, transporta para a cena a confusão de sua
própria cabeça, retrocede à melancólica lembrança de uma outra montagem em que tudo
parecia fácil e não consegue discutir com pertinência. Um critico como D'Aversa, como
uma vivência e uma formação bastante amplas, consegue ao mesmo tempo enxergar um
diretor "em transição" e condenar a falta de respeito ao falecido autor. Luiza Barreto
Leite - talvez por ter vivenciado no palco uma certa sintonia de questão - será a partir
daqui a critica mais lúcida, ao menos quase sempre. Revela neste caso a apreensão mais
lúcida no jornalismo, mas não consegue descortiná-la integralmente, situá-la como
transitoriedade. E alguma coisa fora do lugar deveria ser percebida pela critica (nem que
fosse a sua própria idéia), considerando-se a 'trilogia" Os Pequenos burgueses, Andorra,
Os inimigos. No caso da última crítica citada, sua principal vantagem consiste em
perceber em termos teatrais a continuidade existente entre o "stanislavskiano" e o
"brechtiano". Só que ninguém procura se dar conta que os dois já estavam mortos e
enterrados e que, afinal, subsiste em tudo um "projeto-Brasil". Também não se percebe
o ridículo das leis exteriores numa época em que a única 'tei" admissível (se é que é lei)
é a lei construída no interior da produção. O exemplo do construtivismo nas artes
plásticas (mantendo com freqüência contato com a área do teatro) nunca foi cogitado
para ilustrar um pouco mais as análises. Nenhuma polêmica verdadeira, produtiva, surge
a propósito da montagem, de seu possível alcance "brasileiro" enquanto técnica ou
tipicidade.

O principal diretor do Oficina estava materializando no palco a passagem mais


importante da história da cena no pais. O "mito" ou projeto de reproduzir a realidade
nos palcos, como espelho' ou mesmo consciência da encenação, estava indo pelos ares.
A questão teatral começava a ser questão do ideológico e do imaginário. Colocava-se
progressivamente em xeque as leituras mais avançadas sobre o país como representação.
O ato de injetar conhecimento (técnico e histórico) na cena, inchando-a, denunciava sua
condição de consciência impossível acerca de si e do próprio real como construção. O
Oficina trabalhara para dominar o palco como encenação; construiu um certo palco; a
minúcia do trabalho revelou-o como delírio. O que Os Inimigos pretende antes de mais
nada é o tracejado em cena aberta de uma construção senhora de si e arbitrária. Neste
24

sentido produtivo, critério mais aceitável de verdade, tanto a escolha como a


manipulação do texto foram grandes achados. A história, com sua ironia incômoda,
registra a estréia do trabalho no TBC, em 1966, aos dez anos, portanto, da morte de um
ilustre desconhecido chamado Bertolt Brecht. Ao respeitável público só resta aguardar,
no desconhecimento, a explosão. Verdadeira perfídia, diga-se, por parte daqueles que
encenaram Os pequenos burgueses.

De uma compreensão autóctone de Stanislaviski passara-se a uma abordagem tropical,


furiosa, de Bertolt Brecht em Máximo Górki como saída eficiente para um primeiro
momento. Num projeto produtivo que é contínuo como questão, que ousa manipular em
momentos diferentes o mesmo autor através de combinações diversas dos mesmos
teóricos. Como era possível não perceber?

Ao mesmo tempo em que o Oficina se apresenta com Os inimigos, espécie de


meditação cênica de José Celso, o grupo prepara uma nova montagem. Nos jornais as
colunas especializadas discutem a obra que estão vendo. Espaços razoáveis são usados
nos diários para "cobrir" a produção e informar sobre os projetos da companhia. Num
texto de divulgação usado por periódicos de diversas capitais, fica nítida a atitude
ofensiva do grupo em termos culturais: criou-se um Departamento de Popularização do
Teatro (Etty Frazer e Paulo Villaça), cujos esforços se dirigem para a venda de
espetáculos a sociedades, colégios, clubes, fábricas; optou-se definitivamente pelo
trabalho com repertório dentro de um mais ou menos rigoroso planejamento (há algum
tempo os programas citamos textos a montar, com certa margem de escolha e previsão,
ao lado do "repertório" - as montagens "anteriores"); um novo trabalho está sendo
encaminhado, mesmo com as viagens de integrantes do grupo, pensando-se em Eugênio
Kusnet para protagonista, José Celso como diretor, Flávio Império como cenógrafo,
músicas de Eins Eichler adaptadas por Chico Buarque... o texto é Galileu Galilei.
Muitas promoções culturais são anunciadas e realizadas.

No mês de maio de 1966 o grupo está no Rio de Janeiro, no Teatro Municipal, e, ao que
tudo indica, está com o processo de montagem de Galileu Gailei bastante adiantado em
São Paulo, em vias de estrear. Sua temporada começará no TBC e Joe Kantor também
participa desta produção. Num grupo que chegou a um momento produtivo altamente
tensionado, tendente à ultrapassagem da ruptura moderna, cercado pela diluição (no
sistema de arte) de suas propostas num ralo mingau, optar por Galileu Galilei e montar
25

o texto num clima febril é motivo para indagação. Parece evidente que este texto, tantas
vezes reescrito por seu autor e tão rigorosamente sintonizado com uma temática cujos
contornos tendem a invalidar a discussão (a autonomia da ciência e do artista no espaço
social; a apropriação utilitária-conservadora pelo poder, em diferentes instâncias, das
construções mais inquietantes do espírito humano; a possibilidade de ruptura com as
instâncias castradoras e da opção integral pelo lado do povo), apresenta no seu conteúdo
o claro desejo do grupo de combater-denunciar às claras a pulverização que ele próprio
sofre. O sentido claro de "oportunidade" que Brecht teve na sua elaboração original
impregna a própria forma cênica insinuada pelo texto, como mostra Bernard Dort em
diversos textos, qualificável como "híbrida", intermediária entre os opostos que Brecht
designava como "aristotélico e épico", seus mais importantes conceitos produtivos. A
sedução do tema encerra um perigo claro de fuga ao momento artístico venciado no
Oficina: cristalização num texto "ideal" da escritura cênica manipulada na última
montagem, em especial na direção de cena. O risco é uma adequação "por demais
afirmativa", solucionadora do dilema do palco.

Não é de espantar a situação: nem é impertinente tentar perceber a possibilidade de


perda do movimento produtivo mais radical do grupo. Considere-se o papel que o
Oficina está desempenhando e a atmosfera que o cerca. O referencial de uma possível
tradição esgotara-se em Os Pequenos burgueses; o grupo seguira à frente sem plena
discussão das suas intervenções, sem embate e sem novas referências a não ser o
esforço pela sua paralisação. Irá, no entanto, construir a tradição, a polêmica e o espaço
mais favorável ao seu trabalho por suas próprias mãos - no dia 31 de março de 1966 um
incêndio destrói o Teatro da Rua Jaceguai e queima a subida ao palco de Galileu
Galilei, cuja estréia era aguardada para breve no TBC.

A tentação é optar, na análise, pelo valor místico do fogo como purificador. Na verdade
trata-se de uma situação menos alentadora e mais melancólica: os deuses já morreram
ou baniram o mundo de suas lembranças, estamos entregues ao puro acaso como
história. O processo cultural se faz como sintonia entre o trabalho teimoso de alguns e o
fluxo histórico cego, lance de dados. Para superar a crise geral que o incêndio provoca,
é organizada a primeira grande retrospectiva. O alcance do empreendimento é muito
mais profundo do que uma simples política de repertório ou recuperação de reveses .
Premido pelas circunstâncias, o grupo tem que pensar produtivamente para dizer o que é
- promovendo sua reestruturação. Pode inclusive alargar os contatos na área cultural,
26

explicitando relações com o cinema, a música, as artes plásticas. Dimensionar a


importância produtiva do Oficina diante do sistema de arte que o cerca não é operação
difícil, basta ver o tratamento ministrado pela imprensa ao incêndio, durante o ano de
1966, nos setores reservados ao comentário do teatro. A princípio, ele é excelente
notícia; pretexto para calorosos pronunciamentos. Depois, quando a pura manchete
"esfria", surge apenas como referência meramente esclarecedora, complementar, para
falar-se sobre suas remontagens e movimentação (a retrospectiva aparece como algo
"normal", coisa do Teatro). Os fatos culturais constituem sem dúvida uma sucessão sem
lógica interna; quem quiser ou precisar, que a pense.

Obviamente o I Festival Retrospectivo vai além da mecânica remontagem para ganhar


dinheiro. Aos jornais, José Celso Martinez Correa demonstra as linhas de reflexão do
grupo no interior do precário em que foi subitamente lançado. Repensou-se cada
trabalho com o ritmo do fogo; a composição da cena se faz com o auxilio de diversos
elementos da classe, inclusive com empréstimo de adereços, objetos de cena, figurinos -
na sua maior parte, ou foram destruídos ou não foram conservados. Há realmente uma
mobilização geral em torno do grupo, mas como fruto do afeto, do respeito, da
solidariedade, das práticas institucionais. De qualquer forma, o grupo enfrenta sozinho a
questão do seu trabalho neste primeiro momento do precário sem que isto signifique
isolamento político-social. Alguns laços se consolidam, outros são repensados, outros
são estabelecidos. Ao pensar anos depois sua própria história, o Oficina-Samba afirma
que a visão de conjunto oferecida pela retrospectiva levou a uma auto-crítica, após a
liquidação no incêndio, das pretensões de origem. Preparou-se, segundo o grupo, o
terreno para a revolução estética e cultural. Vida é morte, morte ao teatro, morte à vida:
de O rei da vela o Oficina chegará a Gracias senor.

Em l967 inaugura-se a nova sala da Rua Jaceguai. Um artigo de jornal já associara há


pouco A vida impressa em dólar e Os pequenos burgueses ao comunismo estulto. Agora
ocaso é mais grave, deseja-se o completo colapso nacional em meio ao deboche e à
negação... Um texto que foi provável esboço ou roteiro de montagem - que deve ser
comparado ao texto publicado no programa de Quatro num quarto e ao de Os Pequenos
burgueses já citados - deve ser usado como depoimento fundamental para situar o grupo
e seu projeto no panorama teatral. E assinado por José Celso. Prevê para o trabalho, em
tópicos sintéticos, diversas considerações. Sobre a estrutura econômica, política, social,
ideológica, super-estrutural, estética, sexual; a metalinguagem da peça ("o que foi dito
27

pelo autor através das metáforas, o que foi dito através do autor "O MUNDO QUE FOI
FALADO POR ELE"); o autor como biografia, fases, projeto existencial - sentido
formal político - ideológico; o estilo do teatro. Cita-se Maiakovski, Meyerhold e "os
russos do começo do século até o stanilismo", Artaud; o teatro moderno e as outras
formas de arte; "O Teatro da Crueldade - O Teatro de Estádio; Oswald -Stanislavski". A
estrutura econômica é qualificada como tendo um sentido final político ("TODO
TEATRO É POLÍTICO... PORQUE PRESSUPÕE UMA AÇÃO COMUM DA
PLATÉIA... ESTA ASSISTE COMO GRUPO E ELE QUE VALORIZA O TEXTO").

Com relação ao trabalho prático, fixa-se a consciência moral, melodramática, de


Belarmino e Cesarina, a contradição de um tempo morto (da história do Brasil) com o
pseudo-movimento de tudo - não acontece nada (a revista, a fenit, a ópera). O espaço e
o tempo da História são associados a referências precisas. No primeiro caso, três
espaços: o da cúpula brasileira ( a cidade que aparentemente mais cresce no mundo com
seus miseráveis e sua velhice prematura - A FEIRA DE AMOSTRA FALSA E DE
PAPELÃO"),o da Ilha Pop ("Made in States, o Rio com sua alienação inconseqüente -
A PSEUDO FESTIVIDADE DA PRAÇA TIRADENTES"), o cenário do falido que
logo será ocupado pelo seu ladrão ("A TRAGICIDADE INÚTIL DA OPERA A
CONSCIÊNCIA MELODRAMÁTICA DA OPERA"). No caso do segundo, pensa-se
num tempo que vai e vem rápido: de trabalho e ascensão em 'Time is Money" no
primeiro ato; voraz, de desespero na ilha ("enrabação, fissuração"); melodramático e
trágico. Sincronicamente existiria o tempo morto dos slides (marginais) e a oposição
dos que estão de fora; não existiria ação interior, a não ser nos personagens alienados
(pseudo movimento da história - "Abelardo entra no mundo do Capital, onde o Capital é
impossível").

A relação com o público é explicitada num desejo de atingir aplausos pela superação do
próprio público: "O inconsciente do ator, de nós, atores, deve ser trazido à tona e
devemos dar à cena, à peça os sentidos mais universais e brasileiros que ela puder ter."
Justifica-se o projeto com uma conceituação da consciência e do alcance da experiência
estética:

A consciência acede ao real não pelo seu desenvolvimento' interno, mas pela prática.
pelo encontro do outro que si mesmo, através do trabalho, da ação - e todas as ações são
feitas no sentido de manterem este mesmo museu de cera.
28

NÓS NÃO VAMOS DAR UMA CONCLUSÃO À PEÇA - NÃO SEREMOS OS


JUÍZES - VAMOS LER DE UMA DETERMINADA MANEIRA E PERMITIR QUE
OS ESPECTADORES LEIAM DE SUA MANEIRA! A peça deve continuar nos
espectadores.. seu poder corrosivo deve continuar, por isso a carga de inconsciente e a
cara afetiva deve ser grande - não uma aula - mas uma REPRESENTAÇÃO - de mundo
- uma leitura de mundo em termos AFETIVOS, DRAMÁTICOS, EMOCIONAIS, seu
MUNDO TRANSFORMADO... LIDO... a consciência está em relação a uma mesma
estrutura... ela é ridícula por que nós já conseguimos vê-la inteira... Mas é um cadáver
que não conseguimos destruir e no qual a todo instante caímos"(...)

"Uma metáfora destinada a confirmar o caráter de ação inútil que hoje sentimos no que
fazemos e a necessidade ideológica ou real de se encontrar uma outra saida...

SISTEMA BRASILEIRO."
(Foram realizadas algumas correções da datilografia e da
gramática para tornar o texto mais claro. Não foram
reproduzidos grifos e sinais diversos.)

Uma bibliografia básica é indicada para cada etapa de trabalho. História e política são
remetidas a Caio Prado Júnior, Lêoncio Basbaum, Edgard Carone, Celso Furtado, R.
Debray, Che Guevara. Para a nova crítica (teatro) são relacionados Dubroviski,
Altbusser (Pour Marx) e Bernard Dort. Para a questão mesma do espetáculo, além da
lista bastante ampla de e sobre Oswald de Andrade, são indicados Meyerhold a Artaud.

As indicações do esboço são ampliadas, explicitadas, na "histórica" entrevista concedida


a Tite de Lemos e no Manifesto Oficina (publicado em um dos programas da peça, de
montagem posterior à ida à Europa), além, é claro, de sua radicalização como imagem
cênica mesmo no palco . Ate certo ponto dilui-se a noção da platéia existente no esboço
- com a constatação de que ela não é um grupo, nem reage como grupo, é tecida a
questão da bofetada. Salve-se quem puder, trata-se de uma explosão. Imaginária, cênica,
teatral, revolucionária. Gerou problemas no interior do grupo, da classe, no espaço da
crítica e, lógico, no plano do poder propriamente dito. A Censura começou sua ação
apreendendo o sorvete de D. Cesarina, o cacete do boneco. Terminou proibindo a
encenação, depois liberada por ação judicial. Acusações diversas apontam a cena:
pornografia, ataque aos bens morais supremos da nação, cópia de espetáculos
estrangeiros (!).
29

Bernard Dort é o crítico que apresenta a peça no programa francês (convites recebidos
para Nancy, Paris, Florença). Observa que o poder da provocação do espetáculo não
provém da situação histórica que enfoca, mas do seu tratamento cênico, tratamento
como representação - O Oficina levou até as últimas conseqüências, a seu ver, as
insinuações de Oswald associáveis a Marinetti e ao dadaísmo. O Brasil no palco é mais
que cadáver, é farsa de cadáver. A montagem é massacre total levado às últimas
conseqüências, com o épico, o teatro de variedades, a opereta, a ópera sendo parodiados.
Uma espécie de escalada no deboche teatral em que a história do Brasil é comédia
histórica monstruosa. "Esta comédia farsa de um Brasil em transe é também uma
maneira de terminar com a estéril imitação do teatro ocidental, de fazer tábua rasa.
Estamos aqui diante não de uma tranqüila tentativa de fundar um teatro folclórico e
nacional (como era o espetáculo brasileiro apresentado em Nancy e Paris há dois anos:
"Morte e Vida Severina") mas de um apelo raivoso e desesperado por um outro teatro:
um teatro de insurreição."

O texto do crítico indica uma relação produtiva que ainda não foi explicitada além de
sua constatação - o cinema-novo, a música popular (tropicalismo), a poesia possuem
manifestações com o mesmo sentido geral, na mesma época. Pode-se dizer hoje que
todos sofrem naquele momento o mesmo tipo de pressão, sendo menor o seu efeito
apenas no caso do cinema.

Nos jornais nacionais o sentido geral da crítica é perceptível por amostragem:

"...assistimos a uma espetáculo barroco, repleto de invenções menores, rico em


sugestões e indicações, luxurioso de complacências cênicas onde tudo era aproximativo,
agradável e bonitinho... Uma direção sem definição crítica onde a fácil irreverência
servia para esconder real falta de coragem: (...) é muito mais cômodo ironizar e caçoar
de um vício político do que denunciá-lo, fazer de um fascista um palhaço em vez de
mostrar sua permanência na atual contingência política (...) Um espetáculo ad usum
delphini..." (AlbertoD'Aversa - Diário de São Paulo. S.P. 3/1/1967. Em P.S. o crítico
sugere bolsas de estudo para os jovens da classe em Botucatu, Campo Grande e
Petrolina).

"Nunca assistimos no Brasil a um espetáculo tão prenhe de intenções, com uma exegese
que não se prende aos elementos óbvios, mas busca a sua validade na obra inteira de
30

Oswald e numa meditação sobre todo o teatro moderno e a realidade do país. Talvez a
explicitação excessiva tenha sufocado a espontaneidade e diluído o ritmo, e por isso a
montagem se comunica aqui e ali, sem atingir a platéia como impacto vivo e contínuo,
como nos sugere a leitura do texto, de uma rapidez quase vertiginosa. (Sábato Magaldi -
Jornal da Tarde. S.P. 3/10/1967)

"... apesar de tudo, a peça cansa. E por demais explicativa, demasiadamente -


manifesto", tem considerações exaustivamente longas para ser uma boa peça de teatro.
Uma boa peça tem que prender o espectador e não cansá-lo... E depois, há em tudo um
mau gosto generalizado..." (Regina Helana - A Gazeta. S.P. 3/10/1967)

"Nunca julgaríamos, por exemplo, que a carga de sexualidade de O rei da vela fosse
considerada algum dia insuficiente, necessitando de explicitação e reforço. No entanto,
é o que acaba de acontecer. O ideal de encenação de José Celso Martinez Correa é ir
sempre um pouco mais além do texto, ser mais Oswald de Andrade do que o próprio
Oswald de Andrade.(...) A espinafração... pode ser definida como o método por
excelência do novo espetáculo do Oficina(...)

O rei da vela é cheia de altos e baixos: o público ora fica preso ao espetáculo, ora parece
perder por completo o contacto com acena... oscilação (que) não chega a ter no caso
maior importância porque o talento de Oswald não é de equilíbrio, de homogeneidade...
Nem tudo é bom em O rei da vela. Mas o que é bom é muito bom." (Décio de Almeida
Prado. O Estado de São Paulo. S.P. 20/10/1967)

"O diretor... construiu um espetáculo intenso e ativo à altura do texto de Oswald de


Andrade, deixando margem para o dramaturgo ser visto e ouvido . E sua virtude básica
está em não ter procurado ‘mudar’ o que foi feito assim, numa concepção artesanal
formal, em contraponto com o insólito da realidade fixada pelo dramaturgo. Martinez
Correa tentou encontrou a dinâmica correspondente entre ação e pensamento, realizando
um espetáculo vivo, não só ativo como atuante. Sua mise-en scène é como uma coisa
que corre, como um fogo pelo rastilho de pólvora.

... é a sua realização mais autêntica, porque..., tentando desfazer-se das influências,
absorve-as e mais que isso, transforma-as em criação própria. O Rei da vela é um
espetáculo expressivo, merecedor de nosso aplauso mais amplo." (Van Jafa - Correio do
Manhã. R. J. / /1967.)
31

"Adotando recursos extremamente variados, inspirados em fontes tão diversas como o


circo, a revista, a ópera, o encenador conseguiu criar um conjunto de uma organicidade
impecável, onde todos os elementos entram no jogo e participam intimamente ao
espírito da empostação.

Não creio... que o caminho que o Oficina abre com O rei da vela seja o único possível
para o teatro brasileiro de hoje. A importância e o impacto dessa produção não
invalidam nem as experiências anteriores do próprio grupo paulista, nem o trabalho que
está sendo feito por outras empresas... Há em nosso teatro lugar para muitos tipos de
experiência que exprimam, de muitas maneiras, a realidade brasileira. E, positivamente
não é só através de agressão que essa realidade pode ser captada. Usadas por mãos
menos competentes e talentosas do que as de José Celso Martinez Correa e dos seus
companheiros, ou aplicadas a um texto diferente, na sua essência, de O Rei da Vela, as
técnicas aqui postas em funcionamento poderão levar a resultados simplesmente
ridículos." (Yan Michalski Jornal do Brasil. R.J. / / .

A crítica carioca Luiza Barreto Leite, no texto "Oswald, Oficina e o tempo", publicado
em seu livro Teatro e criatividade" (edição SNT -Funarte) observa principalmente que a
montagem se inscreve no interior de um ciclo juvenil que opta pela violência da
linguagem e cita procedimentos que, acredita. teriam sido úteis: certos cortes e
reduções. Suas observações prendem-se a uma refutação (ingênua) de um pontos
centrais do trabalho como linguagem: solicitam uma vinculação ao sentido. A uma
negação, portanto, da própria antropofagia, afinal. Refere-se ainda a um certo estilo de
Oswald" que teria sido contaminado por um certo tropicalismo carioca... Mas tem uma
intuição mínima, embora vaga, de estar diante de algo de certa significação, ao afirmar
mesmo que será um problema para o grupo a escolha de um novo texto, a opção para
um novo espetáculo. Como nota ao texto, acrescenta que a peça, sem dúvida a mais
discutida montagem de sua própria época, após a apresentação no exterior foi recebida
'como uma espécie de lixo".

Um texto ensaístico celebrizou-se como anátema a O rei da vela e suas decorrências


previsíveis ou imaginárias:

'Reconhecer a eventual viabilidade estética de um teatro agressivo e violento, assim


como os motivos freqüentemente justos da sua manifestação, não implica acreditar,
32

desde logo, no seu valor geral e na sua eficácia necessária, no sentido de abalar o
conformismo de amplas parcelas do público. A violência pode certamente funcionar e
tem funcionado no caso de peças e encenações excelentes ou ao menos interessantes. O
mérito de José Celso no terreno artístico é indiscutível. Mas fazer da violência o
princípio supremo, em vez de apenas elemento num contexto estético válido, afigura-se
contraditório e irracional." (ROSENFELD. A. in Texto/Contexto. S.P. Editora
Perspectiva. 1969. pp 55/56)

CONCLUSÃO

A análise poderia deter-se aqui. Ao leitor atento, interessado em teatro, a obrigação de


estabelecer as decorrências. E julgá-las. Raro trabalho de reflexão.

No entanto, certos dados precisam ser acrescentados - com um sentido conclusivo, mas
não definitivo - e algumas conexões internas, que atravessaram de ponta a ponta o texto,
trazidas um pouco mais à tona. Em princípio deve ser focalizada a relação com as
montagens estabelecida pela crítica teatral, esta espécie de profundo "não estou
entendendo" capaz de vaiar e aplaudir. Enquanto espaço social de trabalho (que é
concedido e não criado) ela foi vista - independentemente de méritos, valores e anseios
pessoais - como sintonia normativa do sistema de arte (questões sem processo e
discussão). Sua ação abrange o jogo dos processos produtivos, no qual pode interferir
como espécie de "juiz" de questões. Atinge a relação palco-platéia, querendo ou não, ao
lidar com os processos e ao levantar - para pôr em circulação nos textos -apreciações
autorizadas (especializadas) em torno da produção. Dentro da área de trabalho teatral, o
elemento institucional que dispõe de maior poder para interferir, em termos imediatos,
na atmosfera que a envolve, como circulação de idéias, é o crítico. A posteridade
sempre poderá provar ou não a sua razão - não importa. A sua intervenção ficou
registrada naquilo que era o presente. Os prováveis efeitos não se pode abolir. A critica
faz parte do quadro cultural vigente e é levada a ocupar nele um papel que não pode
controlar.

No caso brasileiro foi apontada a peculiaridade deste mecanismo como opacidade diante
dos processos, projetos e questões - situação que não pode ser estendida a toda realidade
da arte no mundo capitalista. O critico pode, no mercado de arte, ser colocado no papel
33

de sintonia normativa inerente ao trabalho e agir num sentido produtivo. O processo


histórico-cultural brasileiro não deixa esta saída, no entanto, ao alcance fácil da mente
ou da mão. Mesmo numa época em que o teatro estava sendo "descoberto", surgindo
como modernidade, com grandes intelectuais (dotados de formação e informação)
atuando no jornalismo, a confusão é a tônica que arrasta tudo o que é feito para
irremediável diluição. Quando o crítico percebe questões, projetos produtivos ou
processos, é levado a tentar explicitá-lo com referências ou associações arbitrárias
(identifica-se a questão com outro processo e vice-versa, realiza-se uma leitura
sustentada pelo gosto, aplica-se um corpo rígido de normas e noções...).

Às vezes o crítico propõe outra montagem, a seu ver mais correta. Ou vincula o
percebido a adjetivos tronitroantes , fazendo da peça exemplar raro, digno do museu ou
do lixo, impedindo a sua inteligência com a submersão no deslumbramento ou horror.
Ou aplica sempre a tudo e a todos regras e noções que erigiu sozinho em sistema, sem
nunca se dar ao trabalho de conter suas pretensões.

Inventariar a crítica a O rei da vela - cujas amostras mais significativas foram


reproduzidas - auxilia a localização no palco brasileiro do momento em que a
contemporaneidade foi inventada e banida. Não por "culpa" das partes eventualmente
envolvidas - trata-se de um processo mais além de articulação histórica do processo
cultural.

A montagem acirrou de forma violenta e decisiva o atrito produtivo existente no interior


do grupo. E o ano da saída de Etty Frazer. Ainda no espaço cultural de vigência de O rei
da vela, fora do grupo José Celso monta Roda Viva. Fernando Peixoto monta Poder
Negro. A peça que, sem o Oficina, relaciona-se mais diretamente com o projeto
produtivo subjacente a O rei da vela, é proibida em todo o território nacional, após
acidentada carreira de denúncias, agressões, pancadarias fascistas, manifestações de
grupos páramilitares de combate ao comunismo. A crítica levanta-se contra a
montagem, o senso comum é a afirmação de que este tipo de trabalho não só não está ao
lado do povo, como é pura provocação, gratuidade, delírio pessoal, "desbunde". Como
se o teatro fosse vida mesmo, antes de ser questão teatral, gerando-se na vida toda e
qualquer questão. Quer dizer: a ruptura moderna não foi digerida, acreditou-se piamente
na primeira e mais superficial imagem da cena. Inviabiliza-se, assim, qualquer projeto
contemporâneo. O espaço de trabalho é exigüo, marcado rigidamente como cena, o ar é
34

rarefeito, solicita cuidadosa empostação para a emissão da voz. Em lugar de incorporar


o moderno, o sistema cultural promoveu sua diluição naquilo que lhe era anterior e nem
era tradição. Talvez fosse possível, numa análise mais ampla, delinear o jogo de poder e
o pleno significado, como poder, da estagnaçáo.~7

No interior de uma opção pelo teatro que tornou-se visceral e apaixonada, Calileu
Galilei é desesperada tentativa de retrocesso. O palco explodira e não se delineou o
encaminhamento desta questão, dadas as circunstâncias em que ocorreu. Galileu Galilei
era projeto antigo, preocupação técnica anterior ao próprio incêndio. Possível retorno-
exorcismo da nova ameaça do precário.

Os tempos não são favoráveis e parecem sugerir que precisam de heróis para que se
imponha o terror da estagnação. O Ato Institucional número 5 e Galileu se encontram
em cena aberta. O "carnaval do povo" acontece por trás das grades. A montagem é
grande sucesso, mas sucesso num espaço que se tornou impossibilidade plena. O
precário é a ordem, sem sentido produtivo. Enquanto a platéia delira o delírio da
indústria cultural, a critica 'vai se recolhendo ao estrito limite de conservação do poder.

Mantendo o esquema de incorporar o clima como questão mesmo de sobrevivência, o


Oficina busca a continuidade do seu trabalho na montagem de Na Selva das Cidades.
Noite após noite quebram o palco, mais no sentido literal do que no sentido produtivo
que se esboçara. Não existe mais uma solução adiante para a produção. O público
compra eufórico o lixo vendido com o programa. O Oficina sai de cena para tentar ver,
fora do palco, a possibilidade de sua própria continuação no trabalho teatral.

Os impasses mais nítidos no interior do grupo tendem a ser resolvidos. Fernando


Peixoto dirige a montagem de Dou Juan, de Molière, texto que era há muito tempo
indicado nos programas como possível próxima montagem. De uma forma quase
patética, tenta-se a conciliação em cena das inconciliáveis concepções produtivas,
radicais divergências. O ano de 1970 marca a saída de Fernando Peixoto e Itala Nandi.
O trabalho com Living Theatre e Lobos. O "ano do silêncio".

Talvez fosse possível encontrar mais uma vez a continuidade do projeto de trabalho.
Nova retrospectiva comemora os dez anos do grupo, que faz uma grande viagem pelo
país (utropia). Trabalha-se com Os Pequenos burgueses, O rei da vela e Galileu Galilei,
buscando encadeamento de questão, e num novo trabalho que permanece muito tempo
35

sem nome ou com vários nomes, durante sua elaboração. Em 1972, após fracassar o
projeto de vida comunitária, Gracias senor estréia no Rio.

Até que ponto é possível afirmar a pertinência da montagem no projeto produtivo do


grupo? Até que ponto se pode negar que o Oficina ingressou ele próprio, em 1970, no
processo de diluição das suas radicalidades culturais? Perguntas vinculadas à dinâmica
dos anos setenta, a mesma história como outra história...

Pensar o Oficina nos anos setenta é operação que envolve outro intrincado de
indagações. Sem considerar, talvez, alguns "encenadores independentes" (Amir Haddad,
por exemplo) ou grupos vinculados de forma direta ao Oficina (Capanema, Ananke, Pão
e Circo), seria possível localizar no período um processo de recalque de Oficina, como
diluição de suas soluções produtivas radicais (ao menos as mais antigas)? Seria possível
afirmar, por exemplo, que certos setores mais próximos das conceituações próprias do
Arena teriam sido levados, neste movimento de diluição, a reconhecer alguns elementos
(mesmo banais) que outrora qualificaram como estetizantes? A cena vigente seria por
acaso a diluição a crítica do moderno em diversas vertentes'? Existiria vinculação entre
este pseudo palco moderno e a racionalidade técnica construída pela TV? O próprio
grupo Oficina não teria sido levado a absorver, por anexação simples, para preservar
certa margem de 'irreverência maldita", velhos temas que descartou ao ultrapassar as
referências tomadas ao Arena? O que seria a obsessão do estádio, a ideologia da
participação, a mística da liberação do corpo como espaços-limites à ideologia de
consumo?

Não se deduza deste trabalho qualquer elemento para a construção de heróis ou vilões.
Não há tragédia na história, apenas um certo movimento de teatro. Os que cruzam a
cena são personagens circunstanciais com tarefas específicas e essenciais à encenação,
mas transitórias. Cada um registra sua própria fala, com seus próprios recursos, na
memória do observador. O importante ainda é que o observador aplique sua razão ao
que vê para atingir o entendimento.

É possível afirmar que o Oficina defrontou-se com a possibilidade da ruptura


contemporânea como decorrência de seu trabalho específico. Lançou mão,
antropofagicamente, de Brecht-Stanislavski, Artaud e Orotowski para denunciar,
debochadamente, a impossibilidade da cena como construção (Satanislavski) - tentando
36

levar adiante o seu próprio trabalho. É possível afirmar também que os resultados
atingidos começaram a ser objeto do esforço (direto) de neutralização de sua
radicalidade, promovido pelo sistema de arte, já a partir de O rei da vela -já que este
sistema, antes, não conseguira realizar seu desejo de imobilizar o trabalho do grupo. É
possível afirmar ainda que a questão contemporânea não chegou a marcar de forma
clara o espaço teatral - subsistiu no ar como caricatura.

O movimento de teatro da história é a comédia, por isso não há o herói trágico. Sequer
humilde. A cada dia um ator ou grupo descobre novamente os textos de Stanislavski e
esforça-se em ensaios para extrair uma 'importante encenação". As montagens em cena
esforçam-se para reconhecer a quarta parede, alcançar uma atuação "verdadeira", passar
uma "mensagem".

Os palcos são estreitos e o mesmo se passa com as cabeças. Não há qualquer


movimento. E desde que nossos astros contentam-se com este lugar, nas coxias e
camarins eles próprios comentam sorrindo que afinal um teatro recente, tão libertino e
temido, foi só contorção física, agressão, histeria, expressão corporal...

"Bien des arts ont leur science ou au moins ses quelques lignes de force.
A présent, c'est le tour du théâtre.
Mais pour que cette scien e trouve un terrain favorable pour naitre et se développer, il
faut que l'art théâtral ait enfin pris une claire conscience de lui-même et se désolidarise
de tous les éléments accessoires; il faut mener la théâtralisation du théâtre jusqu 'au bout
avec fermeté.
Le théâtre est le théâtre.
Il est temps de faire sienne cette simple verité." (Alexandre Talrov - 1915/1920)

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