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Discurso aos Tupiniquins

ou Nambas

MARIO PEDROSA

m paises como os nossos, que nao tudo o que a esta pertence — terra, pedras,
chegam esgotados, ainda que opri- arvores, bichos, ideias ou quase ideias que
midos e subdesenvolvidos, no nivel escudam dificilmente das coisas e das gen-
da histOria contemporanea, mas que flutu- tes que com estas convivem, corn estas se
am por sua situacao necessaria sobre a linha misturam cu talvez se completam. Aqui, o
do meridiano major ou francamente mais que é natureza ja é cultura e o que é cultura
abaixo dela, quando se diz que sua arte é pri- ainda é natureza, mas nao se confundem e
mitiva ou popular vale tanto quanto dizer menos ainda se fundem, pois nao se trata do
que é futurista. Nos velhos paises de franca processo triedrico da dialetica, que termina-
civilizacao burguesa nao é assim, e o cami- ria, ainda que provisoriamente, em uma sin-
nho da arte bifurca-se ou trifurca-se, em tese. 0 que aqui acontece é outra coisa, é o
veredas que sobem na escala social para per- nascimento de urn quarto reino mais para
der-se nos vertices das diversas elites que la dos tires tradicionais da natureza, o ani-
se fixam no delta extremo das especializa- o vegetal, o mineral, quer dizer, o reino
goes ou que fluem para baixo como um filete da arte. Esta nao é uma afirmacao tao auda-
d'agua que desaparece no subsolo ou estan- ciosa quanto parece. Para demonstra-lo bas-
ca em charcos. Nunca tantos isrnos cobriram ta levantar a seguinte questao: quem criou
areas tao pequenas, singulares e extrava- a arte? 0 homem. Como? Quando? Toda a
gantes para consumidores tn. () refinados ou historia da arte esti hoje em irremediavel
mais sutis. Nos outros paises aquelas filigra- decadencia ao tentar responder a pergunta.
nas ou ramificacoes chegam como subpro- 0 estado da questa° este agora tanto mais
dutos elitistas das orlas das capitais, dos inextrincavelmente confuso quanta se le-
aeroportos cosmopolitas, dos shoppings ou vanta hoje nas grandes metropoles uma pie-
supermercados e hoteis transnacionais. Fora jade brilhantissima, cultissima, de espfritos
dessas areas ha as oficinas de artesanato, o para proclamar que a arte morreu. Outros,
trabalho nao propriamente assalariado, mas talvez nao menos brilhantes, dizem que nao,
onde se trava o esforco anonimo da criativi- e defendem com unhas e dentes as institui-
dade, da inventividade autentica, quer di- goes dedicadas a promocao da arte. E claro
zer, o esforco para a coletividade. A arte nes- que a arte nao pode morrer porque ninguern
ses rincates tern suas raizes na natureza ou a pode matar, uma vez que esti condiciona-
da nao $6 a historia do homem como tam- de outras coisas das grandes metr6poles, que tomou e toma o mundo dos ricos . do estas sao as que nao mudam, como nao mu-
barn a histOria mesma da natureza. 0 que sabem melhor que ninguem que o "reviva- hemisferio. A historia cultural do Terceiro darn a miseria, a fome, a pobreza, chogas e
acontece e que existem sociedades proplci- lismo" é uma falsa solucao e, conscientes Mundo ja nao sera uma repeticao em raccour- ruinas. Mas 6 por al que passa o futuro. Aqui
as ao desenvolvimento do fenOmeno artis- desta falsa via, eles se lancam na direcao ci da historia recente dos Estados Unidos, esta a opcdo do Terceiro Mundo: urn futuro
tic° e outras que já nao o sao. As grandes contraria ao vanguardismo. Alemanha Ocidental, Franca etc. Ela tern que aberto ou a miseria etema. Necessariamen-
sociedades industriais ou superindustriais Nestas metrepoles pOs-indUstrias, de expulsar de seu seio a mentalidade "desen- te, instintivamente, esse futuro recusa os
do Ocidente, a medida em que se desenvol- avancos tecnolOgicos vertiginosos, as van- volvimentista" que é a barra em que se ap6ia produtos ultramodemos das areas adianta-
vem, cada vez mais movidas por urn meca- guardas artisticas sucedem-se dia a dia, le- o espirito colonialista. Este implica a estili- das da civilizacao "transnacional", que de
nismo intern° inexoravel em sua continua vadas por uma necessidade premente de zagao do automOvel e seus complementos futuro s6 apresenta a aparencia. Efetivamen-
expansao, que subordina todas as classes a mudar o produto para contentar uma dien- que vao ate o vestir, a casa, o viver, a decora- te, o que ela nos propoe como futuro sao na
seu frenetic° ritmo tecnolOgico e mercantil, tela que nao gosta em geral de investir no já gao, a recreacao. Para o seu desenvolvimen- realidade variantes do status quo que o im-
castram as colmeias de toda criatividade e visto, como os artistas, principalmente Jo- to, a Tanzania preferiu o ensinamento da perialismo trata de defender por todos os
tiram qualquer oportunidade aos homens yens, tampouco gostam de repetir o que se China; Saigon, o de Washington. 0 simbolo meios, inclusive a guerra. A Unica arte sus-
de vocagao ainda desinteressada e especu- esta fazendo. Nao é mudanga de estilo, como do progresso daquela foi a estrada de ferro, cetivel de renascimento, quer dizer, de en-
lativa para resistir a corrente de forca que nas grandes epocas, o que se verifica no do- o desta foi o bordel. Sao estas opgoes funda- contrar continuidades culturais imprevisi-
conduz tudo e todos vertiginosamente a mini° das artes plasticas, é antes a estiliza- mentais. Pela lentidao mesma do seu desen- veis ou nao suspeitadas, nao pode resultar
voragem do mercado capitalista. Chama-se gao ou o processo de modemizagoes que se volvimento, a arte dos nossos paises jã nao de ideias abstratas, deduzidas do progresso
arta, sob este condicionamento, algo como comemora todos os anos nas feiras e sail:5es podera repetir a evolugao dos paises indus- permanente do cosmopolitismo multina-
uma relativamente nova profissao ou oficio de automOveis nas grandes capitais da Eu- trializados. A civilizagao burguesa imperia- cional. No entanto, é desta derivacao abstra-
que traduz objetos sui generis que agradam ropa e America. lista este num beco sem saida. Deste beco ta que se nutre o processo da sucessao obri-
a vista ou ocupam recintos fechados de urn Nos paises da periferia, na faixa do sub- nao temos que participar — as bugres das gateria das vanguardas já aqui analisadas.
modo caprichoso ou mesmo sedutor, quer desenvolvimento, as vanguardas tambem baixas latitudes e adjacencias. 0 mapa das escolas, ismos e estilos que se
dizer, nao em funcao utilitaria direta, como aparecem, mas aqui seu prop6sito seria an- As populacoes destituidas da America sucederam a partir, digamos, da pop art
mesa, armario, urinol. Ha -bastante clientes tes o de afirmar-se como up to date. Elas tern, Latina carregam consigo urn passado que anglo-americana, indica a origem derivada
para consumo destas coisas. Enquanto haja entretanto, os olhos postos nas irresistiveis nunca lhes foi possivel sobrepujar ou sequer dessas sucessoes.
clientes pan compra-la esta "arte" existe. E mudangas ditadas pela lei da civilizagao do exprimir, quer dizer, faze-lo teoricamente; A tarefa criativa da humanidade comega
daro que se fazem muitas promocoes para consumo pelo consumo, quer dizer, a dos porque tal expressao nos chega em livros na a mudar de latitude. Avanca agora para as
que o distinto comercio prossiga; pan isto grandes mercados. Por isto nossos artistas major parte deformados ou disfarcados nas areas mais amplas e mais dispersas do Ter-
superabundam galerias, museus, bienais, "de vanguarda" estao sempre correndo atras mas historiografias de origem metropolita- ceiro Mundo. A miseria, a fome, a pobreza
trienais etc. E sintomatico que esta ativida- para alcancar a ultimissima novidade. Esta na. As vivencias e experiencias destes povos podem conduzir ao desespero suas popula-
de esteja hoje submetida a vastissima indUs- corrida — as estatisticas o demonstram cada nao sao as mesmas dos povos do norte. Sao goes (assim o cr'e e disto adverte a sua gente
tria da publicidade, que a protege e assegu- vez mais — é uma va e triste ilusao. Os paises muito diferentes, ainda que suas aspiracoes o presidente do Banco Mundial, o senhor
ra seu progresso e sua persistencia. Aqui, e pobres e subdesenvolvidos ja nao podem sejam contemporaneas. Na verdade, a qua- McNamara), mas elas nao estao contagiadas
definitivamente, a velha arte perdeu sua alcangar o avanco dos ricos. Esta disparida- lidade da vida, como se diz hoje no jargao o bastante pelos poderosos complexos s ado-
autonomia existencial e naturalmente espi- de verifica-se tambern no campo da arte. politico da Europa (Franca), difere da de nos- masoquistas que reinam na sociedade da
ritual. E nao ha que chorar por ism; tentar Aqui, igualmente, a quantidade se transfor- sos povos, como o pisco do vinho. Os pobres riqueza, da prosperidade, da saturacao cul-
restaura-la é uma tarefa anacronica, conde- ma em qualidade. Na fase historica em que da America Latina vivem e convivem corn os tural para serem levadas ac suicidio coleti-
nada de antemao como uma das muitas res- estamos vivendo, o Terceiro Mundo, para escombros e as cheiros inconfortiveis do vo. E mais lOgico que se espere delas algo
tauragees das quais a hist6ria da arte ainda nao marginalizar-se de todo, para nao der- passado. Os ultramodemismos e alguns de mais positivo para arremeter-se contra o sta-
recente conhece tantos epis6dios fracassa- rapar na estrada do contemporaneo, tern seus progressos, de molde comumente ame- tus quo. Existe mesmo em process°, em an-
dos. Os artistas, os criticos, estetas e ate so- que construir seu prOprio caminho de de- ricano, estao umbilicalmente vinculados a damento urn pouco por toda pane, um pro-
ciOlogos, condutores do mundo das artes e senvolvimento, e forcosamente diferente do nossas favelas e barriadas. 0 paradoxo é que jeto a realizar, condicao sine qua non para

COMA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS CRITICA DE ARTE NO BRASIL: TEMATICAS CONTEMPORANEAS
499 DISCORSO AOS TUPINIOUINS OU NAMBAS - MARIO PEDROSA DISCORSO AOS TUPINIQUINS OU NAMBAS - MARIO PEDROSA
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conceber o futuro, ou seja, manter aberta Marinelli sobre a guerra da Etiopia "a perfei- champ se havia feito na cabega, sob a forma de gozo ao espetaculo da destruicao dos
para todos uma perspectiva desimpedida de ta revelagao da arta pela arte", o coroamen- de uma estrela. E impossivel nao evocar as negros da Abissinia sob os bombardeios ae-
desenvolvimento historic°. 0 que é isto se- to de sua suprema palavra de ordem: Fiat art, velhas palavras de Benjamin, em face das reos dos fascistas italianos, palidos precur-
nao uma revolugao. A unica realmente sus- pereat mundus. Comentando este alto pensa- experiencias revulsivas destes ultral6gicos sores dos bombardeios supermodemos dos
cetivel de mobilizar os povos da maiona da mento da estetica fascista, Benjamin alcan- niilistas da "arte corporal": "Tomou-se [a hu- americanos contra os vietnamitas de nossos
humanidade. A anica positivamente conce- ca tal acuidade que suas palavras de entao, manidadel bastante estranha a si mes- dias. Nos artistas de agora, as atavismos que
bivel como a tarefa hist6rica do vigesimo 1936, sac) de uma atualidade espantosa: ma para [...] viver sua propria destruigao pensam sobre eles, sejam alemaes, austria-
primeiro seculo. como um gozo estetico de propria destrui- cos, italianos, americanos, franceses, sao tao
Somente dentro deste contexto univer- "Ao tempo de Homer°, a humanidade se cao como urn gozo estetico de primeira or- complicados que escapam a analise. Nao se
sal sera possivel pensar no engendramento oferecia em espetaculo aos deuses do deaf'. E logo a figura de Rudolf Schwarzko- oferecem aos outros como espetaculo como
de uma nova arte. Sera esta uma das faces Olimpo; ela se fez agora seu prOprio espe- gler nos vem a mente: urn ano mais mogo que faziam Marinetti e seus fascistas: se dao a si
mais vitais deste prisma revolucionario em taculo. Tornou-se ela bastante estranha a si seu emulo italiano quando morreu (1969), mesmos, pois seu corp6 é seu objeto, o obje-
gestacao nas entranhas convulsas dos povos mesma para conseguir viver sua pr6pria este jovem artista austriaco, arrebatado por to de sua busca. A destruicao volta-se con-
que Fanon chamou os "danados da terra". destruicao como urn gozo estetico de pri- seus impulsos autodestrutivos e narcisicos, tra eles mesmos, contra o que nao sao em
Puro visionarismo? Da no mesmo. E talvez meira ordem". inconformado com os determinismos atavi- seu ser mesmo; pura autodestruigao, é esta
um ponto de partida metodologicamente cos da vontade de ser, iniciou uma sane de que se cid em espetaculo — e espetaculo que
necessario para abarcar em sua totalidade a Uma geragao depois do fil6sofo, quando atos de agressao ao pr6prio corpo e acaba por pretende ser edificante. Querem edificar pela
vasta problematica apocaliptica da divisao uma segunda guerra imperialista passou, cortar o penis, imolado a obscuras ideias (ou autodestruicao. 0 ato estetico, que sempre
dos povos do planeta entre o imperialism°, mais devastadora ainda que a primeira, a purgas?) pelas quais se matou. Estes atos de negaram, transforma-se em ato moral. Como
seus satelites e acaudilhados, tacitamente arte continuou sua carreira inexoravel para agressao ao corpo, objeto de adoracao, de qualificar tais acaes? Como testemunho de
mancomunados para defender, em altima o ocaso, ainda que esta can - eira nao se fizes- repulsa e oclio, abrem a sane de noes que urn condicionamento cultural final, sem aber-
instancia, por todos os meios, o status quo, e se linearmente e sim aos tropecoes, corn ful- querem ser edificantes para a familia da tura, nem existencial, transcendental. 0 ci-
a imensa maioria dos outros, de preferencia gurantes espasmos revolucionarios, que "arte corp6rea". Seria simples demais, alern do da pretensa revolucao fecha-se sobre si
de ragas nao-brancas, condenados como por dada e o surrealismo anunciaram e Marcel de injusto, identificar formalmente eeste- mesmo. E o que resulta é uma regressao pa-
uma maldicao biblica a fome e ao atraso. Duchamp, a sua maneira, incorruptivel e tica" destes artistas, cujo pensamento expli- tetica sem retorno: decadencia. Aceitam a
Quem esquece esse dilema preliminar nao laica, acentua nos momentos do antivatici- cit° é negar toda estetica, corn a atitude tao morte como inevitavel, em nome da satura-
pode falai-. Ja está mobilizado pelo outro lado, nio e da contestagao perrnanente. Conscien- claramente sadica de Marinetti e seus segui- gao cultural e da irracionalidade invencivel
pelo lado de cima. Já se colocou, mesmo que cia nao profetica, mas no fundo sisternatica dores. He uma diferenga substancial entre os da vida. Chegam ao cut de sac perfeito. Entre-
nao saiba, na outra perspectiva de que nos da negatividade, ele preside a evolucao es- Marinetti de entao e os artistas da "arte cor- tanto, abaixo da linha do hemisferio saturado
fala Samir Amin. tetica -nao-estetica do seculo. Atras dele poral" de hoje. Naqueles, os determinantes de riqueza, de progresso e de cultura, germi-
Daqui se pode entender a profunda dife- vem os artistas de hoje, com suas proclamas sadicos predominavam e Marinetti cantava na a vida. Uma arte nova ameaga brotar.
renga entre o que ainda se conhece pot arte revolucionarias. Urn deles comeca pot refa-
no hemisferio dos ricos e imperiais e o que zer sua descoberta do ready made, mas subs-
pode ou deve surgir em nossos mundos titui o primeiro exemplo historic°, "o urinol",
deserdados. pelo corpo vivo e belo de seu proprio mode-
A arte, na medida em que existia entre lo: é Pierre [Piero] Manzoni, que morreu aos
os burgueses imperialistas, é cada vez mais 30 anos, em 1965, nao se sabe de que. De si
um claro capricho, de luxo, estetizante, que mesmo? Depois, da mesma famiia, chegam
se consome a si mesmo, indiferente a tudo o os protagonistas da "arte corporal".
mais. Estudando o panorama da arte de seu Como que amparando-se ainda no mes-
tempo, em pleno triunfo do fascismo, Wal- tre incomparavel e distante, atacam-se ao
ter Benjamin via no manifesto futurista de prOprio corpo, invocando a tonsura que Du-

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