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O Cristão e a Cultura

por

Michael Horton

Por vezes os hinos me confundem. Eu me lembro bem, quando garoto,


de ficar confuso com dois hinos populares que me pareciam totalmente
contraditórios. O primeiro era “Aqui não é meu lar, um viajante sou”, e
o outro era “O mundo é do meu Pai”. Se o mundo é do meu Pai, eu
pensava, porque estou apenas passando por ele como viajante?

Mas os hinos não eram a única coisa a confundir no negócio de


relacionar-me como cristão no mundo. Esperava-se dos cristãos que
justificassem tudo nas suas vidas pela sua utilidade espiritual ou
evangelística. No máximo, a educação, atividades, vocações ou buscas
“seculares” eram um mal necessário -- para se ganhar a vida, para ter
com que dar o dízimo e dar para missões. Na pior das hipóteses,
distraíam da vida cristã. Agiam como a canção da Sirene seduzindo
mundaninhos insuspeitos aos recifes da incredulidade e do afastamento
de Deus. Assim, os que queriam ser empresários procuravam empregos
em organizações e agências cristãs. Se descobríssemos um pequeno
Rembrandt num jovem artista da igreja, nós o colocávamos como
responsável pelo quadro de avisos e (se ele fosse realmente bom)
deixávamos que pintasse o batistério. Esperava-se dos nossos cientistas
que promulgassem a causa do criacionismo -- mesmo que a cosmologia
ou as ciências biológicas e antropológicas não fossem suas
especialidades. Dos músicos esperava-se que entrassem (ou formassem)
na banda de louvor ou fizesse uma turnê pelas igrejas do país -- o
tamanho da igreja, claro, dependia do grau de talento do artista.
Através dos anos, temos criado os nossos próprios guetos de artistas,
super estrelas e apresentadores, com versões cristãs de tudo que há no
mundo.

Essas experiências, porém, não se limitam ao nosso tempo e lugar. A


Renascença, e de modo especial, os tempos da Reforma foram reações
ao modo medieval de encarar a vida. Para a igreja medieval, filosofia,
arte, música e ciência se confundiram tanto com a religião que não
dava para distinguir uma da outra. A filosofia não era, na realidade,
filosofia, A Renascença demonstrou como a interpretação da igreja
medieval de Aristóteles e Platão (os favoritos) era diferente dos escritos
daqueles filósofos. Se alguém quisesse ser artista, mais uma vez
procurava-se a igreja para um emprego, como a arte era ferramenta da
pregação ou do ensino da vida e dos tempos de Jesus e seus apóstolos.
E os sofrimentos de Copérnico e Galileu nos lembram do perigo de dizer
mais do que a Bíblia diz sobre teorias científicas específicas.

A Reforma libertou homens e mulheres cristãos para seguir com


dignidade e respeito os seus chamados divinos no mundo, sem ter que
justificar a utilidade desses chamados à igreja ou ao empreendimento
missionário. A vocação era dom da criação. Até mesmo os não cristãos,
como quem carrega a imagem de Deus, possuíam este chamado divino.
Crente e incrédulo eram igualmente responsáveis por desenvolver seu
trabalho com excelência -- um reconhecendo a Deus como autor e alvo
dessa excelência, e o outro servindo a Deus com seus talentos apesar de
sua recusa em reconhecê-lo como doador e alvo de tudo. Em
contraposição à visão monástica do mundo, a Reforma promulgava uma
teologia que abarca o mundo, um dos fatores principais no
desenvolvimento da ciência, da Era Dourada” da arte holandesa e da
literatura inglesa e escocesa, a libertação da igreja da política, a difusão
universal da leitura e da escola pública, e o grito por liberdades civis em
contraposição ao fundo da tirania vigente.

É claro, não existe movimento perfeito -- há envolvida em todos gente


demais parecida conosco! A Reforma não é exceção, com sua parcela de
erros e os disparates de homens e mulheres pecadores. Contudo, os
temas bíblicos por ela recuperados trouxeram de volta ao povo de Deus
um senso de pertencer a este mundo durante o tempo que Deus nos
deu, mas pertencer dentro de , e não como parte do mundo.

A pressão de justificar a arte, ciência e a diversão em termos do


seu valor espiritual ou sua utilidade evangelística acaba
prejudicando tanto o dom da criação quanto o dom do Evangelho,
desvalorizando o primeiro e distorcendo, no processo, o segundo.
Por exemplo, “música cristã” é freqüentemente uma desculpa para
artistas inferiores conseguir vencer numa sub cultura cristã que imita o
brilho e glamour do entretenimento secular, inclusive suas próprias
cerimônias de premiação e seu ambiente de super estrelato. Pode ser
que essa não seja a intenção por parte de muitos artistas que querem
contribuir ao cenário da música cristã contemporânea, mas a indústria
acaba produzindo, na maioria, imitações nada criativas, repetitivas,
superficiais da música popular. Produzir música em conformidade com
os gostos anestesiados duma cultura consumista já é ruim; imitar a arte
comercializada é desperdiçar os talentos, a não ser que se esteja
escrevendo para o rádio e a televisão. Trivializa tanto a arte quanto a
religião. Não quero com isso condenar todos os artistas cristãos, pois há
muitos musical e liricamente sofisticados o bastante que integram uma
compreensão séria da mensagem bíblica com um estilo musical criativo.
Também não quero que sejamos “esnobes” musicais que confundem
seu gosto particular com a Palavra revelada de Deus. Afinal de contas,
freqüentemente “a verdade está escrita nas paredes do metrô”, o
equivalente arquitetônico da música popular. É esta uma das razões
pelas quais eu aprecio a música popular de vez em quando, em parte
porque é agradável e traz lembranças de tempos passados. Mas é uma
forma inferior, dirigida comercialmente (noutras palavras,
financeiramente) que se rebela contra os padrões mais altos da
expressão artística.

Essas pressões, porém, para se criar versões distintamente “cristãs” de


tudo no mundo (ou seja, na criação), pressupõem que exista algo
essencialmente errado com a criação -- e essa é uma pressuposição
teológica que tem influência muito maior na formação das atitudes
evangélicas em todas essas esferas do que geralmente se admite.
Examinaremos essa posição básica nos próximos capítulos.

Permita-me dizer de início que este livro não é uma análise sofisticada
da base teológica de uma visão cristã do mundo ou da natureza das
artes, ciências, filosofia e assim por diante. É para o leitor geral,
especialmente para aqueles crentes que lutam com uma sub cultura
que abafa ao invés de encorajar seus impulsos e suas ambições
divinamente dotadas. Nesse sentido, é um livro pastoral. É oferecido
com esperança de que os teólogos aprendam mais sobre outras
disciplinas e que cristãos nessas outras disciplinas se ancorem mais
firmemente sobre a teologia bíblica antes de tentar “integrar” sua fé e
vida. Mas não obstante a posição do leitor em relação a esses tópicos --
seja ele um esteta de muita cultura ou uma mãe cristã que quer saber
se sua filha pode cursar com segurança uma universidade secular --
haverá poucos desafios às idéias prevalecentes no mundo evangélico e
aqui e ali algo em que pensar um pouco mais.

Para iniciar, quero definir alguns termos, Primeiro, estarei usando o


termo “cultura” no seu senso mais amplo, referindo-me tanto à cultura
popular (esportes, política, ensino público, música popular e diversões,
etc. e a alta cultura ( horticultura, academicismo, música clássica,
ópera, literatura, ciências, etc.). Uma definição útil e abrangente de
“cultura” para nossa discussão pode ser “a atividade humana que
intenciona o uso, prazer e enriquecimento da sociedade”. Segundo, por
“igreja” estou dizendo a igreja institucional, -- “onde a Palavra de Deus é
pregada e os sacramentos são administrados corretamente”, como
diziam os reformadores. Quando, por exemplo, se diz que a igreja não
deve confundir sua missão com as esferas da política, arte, ciência, etc.,
não se está sugerindo que os cristãos como indivíduos devessem
abandonar esses campos (muito pelo contrário), mas que a igreja como
instituição deve observar a sua missão divinamente ordenada. Essa
igreja institucional deve ser entendida como expressão visível do corpo
universal de Cristo através de todos os séculos e em todo lugar. A igreja
institucional recebeu a comissão única de pregar a Palavra e fazer
discípulos, Meu emprego da palavra “igreja”, portanto, não é apenas
uma referência ao corpo coletivo de cristãos individuais, mas ao
organismo vivo fundado por Cristo, ao qual foi confiado o seu próprio
ministério pessoal.
Fonte: Extraído da Introdução do excelente livro “O Cristão e a
Cultura”, de Michael Horton, publicado pela Cultura Cristã. Clique aqui
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