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Desejo do analista: do horror ao saber ao amor ao saber∗

Flávia Albuquerque
Psicanalista
Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise - RJ

Tomando a partir de Lacan1 de que o desejo do analista é o que, em última instância,


opera numa análise, – e que esta só se dá sob transferência – ao falar do desejo do analista
supõe-se uma espécie de continuidade ao desejo do analisante. Mas poderíamos relacionar um
ao outro? O que se sabe é que o desejo do paciente toma consistência em seu encontro com o
desejo do analista. Neste ponto, a importância de se estar avisado de que o analista se
encontra numa análise não como sujeito, mas como objeto não pode ser posta de lado. O
analista é aí instalado como semblante de objeto a, ou seja, não como significante mas como
causa de desejo. O que implica num lugar de saber sem sujeito.
O que se atesta é que há o ‘não se sabe’ fundamental, de que se trata, segundo Lacan
em seu seminário da transferência, “daquilo que o sujeito tem, realmente, em si mesmo, do
que ele demanda ser, não apenas ter”.2 É necessário um ‘não saber’ para que o inconsciente
seja tocado, e embora o paciente nada queira saber do seu sintoma, há algo que o move a
saber, do contrário a busca pela análise não se daria. O analisante se dirige a um analista por
uma aposta de que o saber existe e está num outro. O saber do seu próprio desejo. Como se o
analista soubesse o que fazer com o seu sintoma, com os restos de real. Assim se faz
necessário questionar: E o que deve saber o analista? Lacan é pontual em seu texto Variantes
do tratamento-padrão dizendo que o que ele deve saber é ignorar o que ele sabe.3 Eis a douta
ignorância.
O desejo carrega sempre algo de epistemológico. É preciso que o saber venha ocupar o
lugar do gozo. E uma conseqüência do próprio discurso freudiano é não excluir seu inventor
dos que falam de um lugar que ignoram. A Psicanálise vem a ser o amor à verdade... do
sujeito. Verdade que só pode ser semi-dita por se tratar da verdade do sexo que escapa ao


Trabalho apresentado no I Colóquio de Psicanálise – A Transferência e o Desejo do Analista
1
LACAN, Jacques Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista in Escritos p. 868
2
LACAN, Jacques O Seminário Livro 8: a transferência p. 45
3
LACAN, Jacques Variantes do tratamento-padrão in Escritos p. 351
sujeito e que funda o inconsciente. Serge Cottet4 vai dizer que a paixão de Freud pela origem,
o desejo da verdade que caracteriza a ética freudiana, se choca com a paixão pela ignorância
que a clínica põe em evidência. O percurso de uma análise revela um saber muito particular, o
saber inconsciente. Um saber não sabido mas pelo qual nossos atos e pensamentos se
encontram governados.
O desejo do analista opera para que a necessidade passe por algo do discurso,
deixando, assim, de ser puramente necessidade e se transforme em demanda que é sempre de
amor. Afinal, é pelo amor que se acede ao desejo! É endereçando o amor ao saber na figura
do analista que o sujeito elabora um saber que se sustenta no significante. Mas que gênero de
amor é esse? Na excitação característica da paixão, na narrativa, o que está em jogo é um
encontro – faltoso por excelência. Este amor assinala a irrupção catastrófica de um real que se
vive, e em tais condições... se verbaliza.
Como nem tudo da necessidade pode ser abarcado pela demanda, algo resta. E o que
resta é o desejo! E desejo é sobretudo desejo de desejo. E o desejo do analista – algo que pode
ser circunscrito, talvez jamais nomeado – é mais do que qualquer outro desejo, desejo de
desejo. Desejo que é desejo de nada. É o desejo no vazio a ser sempre reconstruído, a se fazer
borda. E o analista é a testemunha deste vazio, desta perda, desta falta. O analista é aquele que
aponta incessantemente a falta. Fazer análise implica necessariamente em perder, sair de um
discurso e se apropriar de outro, Outro do inconsciente, fazer sintoma, se questionar. Afinal, é
na falta que o sujeito pode desejar. É a partir da falta que o sujeito se endereça ao outro.
Freud deu plenos poderes à palavra para, em suas falhas – que de falhas nada têm –,
indicar ao sujeito o significante que o aliena e provoca a sua dor. A análise é uma
possibilidade ao campo da linguagem, a via que possibilita a elaboração de uma história que é
muito cara ao sujeito: a história da própria existência. É na fala que algo da verdade
enigmática do sujeito pode ser elaborada. Mas a psicanálise não é um desejo de ato, não é um
furor da cura. Afinal, não tem o psicanalista horror ao ato?
O analista não tem por objetivo suspender o sintoma, curar... pois lá onde há o sintoma
está o sujeito, e onde está o sujeito há o desejo. Portanto o sintoma não foi feito para ser
curado mas para fazer bom uso dele. Isto faz da Psicanálise não uma doutrina de ideal, mas
algo que faz o sujeito usufruir a oportunidade de escolha. O desejo do analista chama o sujeito
à ordem do seu desejo, até então adormecido. Faz surgir um homem de desejo numa

4
COTTET, Serge Freud e o Desejo do Psicanalista p. 189
civilização que tende a mortificar, suspender o que é do desejo, renunciar as pulsões como
conseqüência de uma moral em que a covardia da renúncia prevalece.
O inventor da psicanálise parte do pensamento inconsciente e chega no desejo. Lemos
o desejo de Freud a partir de sua demanda: pedindo ao paciente que recorde, fale. É sempre
rumo ao desejo que o analista avança ao lidar com o analisante, o analista solicita o sujeito –
sujeito do inconsciente, sujeito do desejo – e não responde ao eu que nada quer saber disso. O
desejo do analista é a função, sob transferência, que faz com que o sujeito se reconheça
dividido, barrado, ou seja, vítima do seu desejo. A divisão do sujeito é o produto do preço que
ele paga pela sua renúncia ao gozo. Renúncia esta que é a fonte da crueldade que o neurótico
pratica contra si mesmo.
Pode-se dizer que o desejo do analista é uma referência ao campo do Outro. Tomando
do princípio de que o desejo é o desejo do outro. Se trata de desejo do desejante, não do
desejável. É preciso um terceiro para que se possa desejar. O analisante passa a comportar o
desejo de reconhecimento desse Outro ao seu próprio desejo tomando o analista não só como
‘sujeito suposto saber’, mas ‘sujeito suposto desejo’, alguém que supostamente porta o
enigma do desejo. O analisante se sujeita assim ao desejo do analista, através do amor de
transferência, para poder aceder ao seu próprio desejo. Ao ignorar seu desejo, se deparando
com a falta fundamental, se submete àquele que acredita poder responder sobre o que, pra ele,
se faz enigma. O analista vem a ocupar este lugar de terceiro que faz emergir o que é do Outro
do inconsciente, para além do eu. O sujeito, ao final de uma análise supõe se reconhecer como
causa de desejo e não como desejável, é o momento em que o sujeito se desfaz de suas
paixões – aprendendo a amar, segundo Lacan, considerando a falta –, e de seu ódio – outra
face do amor –, implicando num des-ser, num luto de ser do analista que ‘convida’ ao
paciente a reunir-se a ele neste lugar.
Assim, o desejo do analista, função operante sob o amor de transferência, viabiliza a
passagem do horror ao saber ao amor ao saber. Eis o lugar da razão de ser da experiência
analítica: no desejo do próprio Freud que inventou a Psicanálise e no desejo do analista que a
reinventa a cada caso na sua clínica repetindo o ato de Freud sem alguma outra garantia de ser
analista, a não ser pela transmissão de seu desejo.
Bibliografia:

ASSOUN, Paul-Laurent O Olhar e a Voz: Lições Psicanalíticas Sobre o Olhar e a Voz. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
COTTET, Serge Freud e o Desejo do Psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.
LACAN, Jacques. Intervenção sobre a transferência in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
_______________ Variantes do tratamento-padrão in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
_______________ Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista in Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998.
_______________ O Seminário Livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
_______________ O Seminário Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da
Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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