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MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
O Reencantamento do Mundo
Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu
Rio de Janeiro
1996
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José Maurício Paiva Andion Arruti
O Reeencantamento do Mundo
Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu
Rio de Janeiro
fevereiro de 1996
O Macaco da Tinta
Resumo ...................................................................................................................... 4
Agradecimentos ........................................................................................................ 5
Conteúdo ................................................................................................................... 7
Apresentação ............................................................................................................ 9
Notas sobre o percurso do autor ao texto. 13
Notas sobre o nome e a pessoa 16
“Brejo dos Padres” é o nome de um pequeno vale de terras úmidas e muito férteis,
localizado em pleno sertão pernambucano. Seu formato alongado, semelhante a um
anfiteatro voltado para as margens do São Francisco, deve-se ao espraiamento de uma das
últimas ramificações do maciço da Borborema que penetra o estado de Pernambuco, onde
onde, ao alcançar as margens daquele rio, ganha o nome de Serra de Tacaratu. Em fins do
século XVIII foram reunidos ali, por obra de padres de uma missão da ordem de São Felipe
Néry, um grupo de índios provenientes de diferentes tribos: ou transferidos de aldeamentos
recém-extintos, ou fugidos da perseguição bandeirante, ou simplesmente recolhidos de sua
perambulação vagabunda. Mesmo antes, segundo o que diz a parca mas orgulhosa história
oficial do município de Tacaratu, quando a missão instalou-se no local, já existia alí uma
maloca indígena denominada Cana Brava, formada pela reunião de índios Pancarus,
Umaus Vouvês e Geritacós, presumivelmente do grupo lingüistico Kariri.
Em 1878, um ato imperial extinguiu esse aldeamento, ocupado então por pouco
mais de 350 índios. Ao extingui-lo, o governo imperial contou com a ajuda de alguns
importantes membros das localidades vizinhas, Tacaratú e Jatobá, para organizar a
redistribuição das terras daquele brejo entre os caboclos que permaneciam ali. Foram
distribuídos, então, pouco menos de 100 lotes familiares suficientes para os caboclos do
Brejo produzirem para suas famílias, crescerem e se misturarem definitiva e livremente à
população local, prosperando em seu próprio interesse e de sua Comarca.
Passados pouco mais de 60 anos, o Serviço de Proteção ao Índio funda no mesmo
vale, denominado ainda Brejo dos Padres, o posto indígena Pankararu, reconhecendo na
população local, de cerca de 1100 habitantes, legítimos remanescentes daqueles antigos
habitantes do aldeamento extinto. Hoje, 55 anos depois, os Pankararu, que as estimativas
oficiais dizem ultrapassar os 5000, não só cresceram e se multiplicaram como tornaram-se
cada vez mais visíveis, no município, no estado e no país, saindo freqüentemente de seu
torrão para apresentam o Toré nas capitais, como forma de reclamarem providências contra
Esta dissertação tem seu ponto de partida marcado por um trabalho coletivo,
desenvolvido no âmbito do Projeto Estudos sobre Terras Indígenas (PETI) do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, ao qual estou ligado de
diferentes maneiras desde 1990, ano em que encerrava minha formação em história e,
através deste projeto, dava início aos meus primeiros contatos com a temática indígena e
com a bibliografia antropológica. Nesse projeto pude participar de discussões baseadas em
farto arquivo documental e da troca de experiências de campo entre os pesquisadores com
trabalhos em andamento, que tinham como foco a questão da territorialização das
sociedades indígenas e sua relação com o poder tutelar.
Tais discussões se empenhavam na criação de uma perspectiva sociológica que
abandonasse um tipo de produção sobre a questão da terra indígena freqüentemente presa à
prática da denúncia, para construir um olhar mais sistemático e não menos político sobre as
questões que envolvem a sua definição, organizando para isso um quadro de referências
tanto sobre os processos legais que levam até ela, quanto sobre as situações concretas a que
as populações étnicas (DESPRES,1975) estão submetidas no território nacional brasileiro.
No momento de minha entrada no projeto, essas discussões se encaminhavam no
sentido da formulação de um tipo de acompanhamento dessas situações segundo o modelo
"atlas". Meu trabalho convergiu então para a leitura e discussão sobre questões
aparentemente técnicas, relacionadas com a definição das formas e problemas na
representação gráfica das áreas indígenas, com a natureza dos recortes regionais que
permitissem uma leitura comum de conjuntos de situações territoriais comparáveis e com a
seleção, organização e compatibilização de uma grande massa de material histórico que
deveria ser trabalhado em equipe. Além disso, em função do recorte regional do Atlas, me
envolvi com as questões mais diretamente relacionadas com a temática indígena no
Nordeste. Neste período compartilhei dos trabalhos de muitos companheiros, que foram em
grande medida absorvidos como parte de minha própria perspectiva e, por isso, difíceis de
serem discriminados. Além da orientação mais geral fornecida por João Pacheco de
Oliveira Filho, que veio a ser meu orientador nesta dissertação, sou tributário também do
Ao longo desta dissertação tornou-se evidente a dificuldade de optar por uma forma
única e padronizada de situar o autor. Muitas vezes situamo-nos na primeira pessoa do
plural, não por encarnarmos o "olhar de águia" ou a "nobreza" própria da objetividade
científica, mas por assumirmos nosso ponto de vista como uma postura política ou analítica
partilhada com outros autores ou, por buscarmos o ponto de vista do leitor, na tentativa de
construir uma narrativa em perspectiva e uma argumentação que pudesse ser compartilhada
por todos estes que estão "de fora" do campo. Em outras passagens a própria dissertação
assume o papel de protagonista, e o autor desaparece sob a terceira pessoa como forma de
PARTE 1: OS DESAPARECIMENTOS
É útil começar explorando a pergunta sobre o que tornou possível que uma
população se tornasse invisível, ou melhor, já que a cegueira está nos olhos e não no
mundo, o que fez com que gerações de homens de ciência e homens de estado pudessem
desconhecer ou não reconhecer, sistematicamente, algumas faixas de realidade, para logo
em seguida reconhecerem-na, por vezes com o alarde das surpreendentes descobertas. Essa
pergunta não desconhece o perigo de se afirmar a existência de continuidades que
atravessam os tempos, sempre prontas a serem simplesmente observadas, sem incidir em
naturalizações grosseiras. Mas reconhecido não existir esse corte radical entre o olho e o
mundo, entre sujeito e objeto, nossa pergunta é sobre como se constrói ou se impede uma
relação entre eles, sobre como o (re) conhecimento é ou deixa de ser possível, sobre a
emergência dos objetos que, nesse ato mesmo de emergir, se tornam sujeitos.
A produção da invisibilidade
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Um dos epítetos atribuídos a Rondon, patrono (quase padroeiro) do indigenismo
oficial brasileiro, “o civilizador da última fronteira” (COUTINHO, 1975), condensa muitos
dos significados atribuídos à ação do SPI. Quando surgiu, em 1910, sua intervenção
privilegiou Santa Catarina, Oeste paulista, Mato Grosso e, a seguir, Amazônia. Seus
objetivos: nacionalização do interior, localização (no sentido de fixação) da mão-de-obra,
abertura de terras e diminuição dos custos da “fronteira”. Seu léxico: grupos isolados,
atração, pacificação, fases de aculturação, assimilação-não-traumática. Criado como
SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais - era
vinculado ao Ministério da Agricultura Indústria e Comércio e tinha como atribuições a
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Como já foi apontado, o olhar “científico” dirigido sobre os índios do Nordeste, até
as primeiras décadas do séc. XX, acompanhava o diagnóstico da extinção desses grupos,
naturalizando uma realidade produzida por decisões estatais, de fundo jurídico, como
veremos mais adiante. E os primeiros acadêmicos ou curiosos que começam a descobrir
nos “remanescentes” daqueles grupos indígenas “extintos” algum interesse acadêmico, o
fazem orientados por uma visão etapista e evolutiva, muito semelhante à descrita acima,
que operava como base ideológica do SPI. Assim, ao final da década de 30 e durante a
década de 40, os homens de ciência que começam a se interessar em produzir descrições a
partir da observação local e direta sobre aqueles “remanescentes”, e não mais apenas a
partir de documentação histórica, procuram neles principalmente curiosidades folclóricas
em rápido desaparecimento, que poderiam ajudar a entender a composição mais ampla do
folclore nordestino e conseqüentemente, parte da cultura nacional. É sob essa inspiração,
além das preocupações de mapeamento lingüístico, que Carlos Estevão de Oliveira, Max
Boudin e Mário Melo visitam e escrevem na década de 1930, pequenos textos sobre os
Pankararu, os Fulni-ô e os Xucurú, publicando artigos circunstanciais com mitos, cantigas,
elementos de parentesco e considerações sobre seu artesanato e algumas festas. Nestes
casos sempre se fez presente a preocupação em distinguir, em meio aos hábitos já
miscigenados aos dos regionais, o que aqueles remanescentes mantinham da cultura
tradicional.
Apesar da década de 1940 já ter assistido ao primeiro surto de emergências étnicas,
de que falaremos mais adiante, ao longo da década de 50 a situação não muda muito.
Continuam surgindo textos principalmente sobre língua e vocabulário, e compilações de
dados dos sécs. XVI e XVII. As descrições de Curt Nimuendajú sobre os Timbira de 1929
são reaproveitadas várias vezes em reanálises e surge o nome de Estevão Pinto que, junto a
outros temas do folclore regional, debruça-se sobre o material histórico, escreve pequenos
trabalhos sobre os Fulni-ô, os Tupiniquim e os Pankararu, e os reúne em dois volumes
dedicados aos “Índios do Nordeste”, sob uma preocupação sempre culturalista. Mais
adiante, nas décadas de 60 e 70, para além das tradicionais compilações de documentos e
Estratégias da conquista
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O avanço da colonização pelo território nunca se deu na forma de uma fronteira, ao
menos como normalmente ela é imaginada - arco que avança de forma progressiva e
definitiva sobre espaços abertos. Pelo contrário, aproximando-se da descrição de Morse
(apud:VELHO,1979) sobre o avanço bandeirante, a conquista do Nordeste também se
caracterizou como um movimento irregular, conjunto sucessivo e desigual de experiências
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O São Francisco começa a ser “subido” depois de vencida a primeira resistência
indígena na sua embocadura, em 1572. Neste período as expedições partiam
principalmente de Pernambuco (década de setenta), Sergipe (década de noventa) e Bahia
(ao longo de todo esse período). Ensaios de penetração que em 1630 foram interrompidos
pela presença holandesa em todo o lado esquerdo do São Francisco, da sua foz até Paulo
Afonso. É só com a restauração pernambucana em 1654 que o avanço colonial português
pelo sertão é encarado de uma forma progressivamente sistemática. Um passo fundamental
para isso foi o apelo da administração portuguesa, em 1667, para que os bandeirantes,
paulistas e baianos, iniciassem a busca de ouro e pedras preciosas São Francisco acima, o
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Entre as quais, aquelas que viriam dar origem à mais poderosa empresa colonial do sertão do São
Francisco, a Casa da Torre. Numa das investidas da Casa da Torre durante as últimas décadas do séc. XVII,
na busca de salitre, pelo interior dos sertões de Rodelas, Paraiba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piaui e até
mesmo do Maranhão, um dos seus mestres auxiliares comandava um exército de 900 homens brancos, 200
índios mansos, 100 mamelucos, 150 escravos e alguns missionários (HOORNAERT,1992).
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Na verdade, a análise da legislação colonial reconhece a captura de escravos indígenas através de duas
formas, a “guerra justa” e o “resgate”, enquanto a história social acrescenta a elas a forma dos “apresamentos
clandestinos” (FARAGE,1991). No Nordeste os resgates existiram principalmente na fase litorânea, servindo
à interação entre colonos e grupos Tupi, enquanto os apresamentos clandestinos foram tão generalizados que
tornaram-se virtualmente incomensuráveis para nós hoje. De qualquer modo, o formato de “guerra justa”
assume aqui um significado mais genérico que o expresso na legislação colonial, ao o concebermos mais
como “estratégia” que como figura jurídica.
Por força da guerra, iam sendo estabelecidos povoados pelo interior das extensas
sesmarias, ou mais além, que serviam como cabeças de ponte para a requisição de novas.
A maioria desses povoados eram constituídos pelas próprias populações apresadas ou
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Nelson Barbalho publicou entre 1982 e 1988 uma coletânea de 16 volumes, com documentos produzidos
entre 1600 e 1828, intitulada Cronologia Pernambucana: subsídios para a história do Agreste e do Sertão, que
será largamente utilizada daqui em diante.
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Em 1710 chegavam à praça do Recife, 15 deles “pertencentes ao quinto de sua majestade”
(BARBALHO,1988:vol.7). Nas décadas seguintes, mesmo depois da escravidão indígena ter sido
formalmente proibida, continuam os registros de guerras contra levantes de aldeias, muitas vezes em aliança
com negros fugidos (BARBALHO,1988:vol.8).
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Parcialmente sobreposta no tempo a esta primeira estratégia, tem lugar a estratégia
de conquista de homens e terras pela conversão. Neste caso, o gentio era encarado como
mão-de-obra livre e administrado por missionários, reunidos em territórios exclusivos
(normalmente uma “légua em quadro”). Eram recorrentes os enfrentamentos entre
fazendeiros e missionários, onde o poder de mobilização de mão-de-obra e terras pelos
religiosos era questionada militar e legalmente. Os jesuítas foram provavelmente os
primeiros a estabelecer aldeamentos no rio São Francisco, na década de 1650, tentando
realizar aí o que já haviam começado a experimentar no Amazonas, nos rios maranhenses e
nos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, isto é, uma experiência de aldeamentos afastados dos
centros coloniais, na tentativa de evitar o fracasso da experiência litorânea. No São
Francisco no entanto isso se mostrou praticamente impossível5, já que o rio era justamente
o eixo da colonização sertaneja (HOORNAERT,1992). Depois deles vieram os
capuchinhos, oratorianos e franciscanos. A empresa missionária dos capuchinhos
organizava-se de forma semelhante a dos jesuítas. Ambos trabalhavam com uma estrutura
de apoio localizada nas cidades do litoral, no caso jesuíta os “colégios” e no caso dos
capuchinhos os “hospícios” e, a partir dessa estrutura permanente, de onde também
retiravam o principal de suas rendas, estendiam sua ação pelo sertão instalando aldeias.
Assim, os capuchinhos franceses, que já haviam se instalado em Olinda (1649) e Recife
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No fim do século XVII, quando os jesuitas iniciam a instalação, no sertão de Rodelas, das missões de
Sorobabé, Curumambá e Acará, a Casa da Torre ordena ao seu sargento-mor e ao capitão da aldeia da
Vargem que expúlsem de lá os jesuitas, o que acontece no mesmo ano da fundação dos aldeamentos
(BARBALHO,1988:vol. 5).
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A atuação dos capuchinhos, como a dos jesuitas, era relativamente independente dos métodos e dos
objetivos estritamente coloniais, por razão de sua vinculação não ao padroado local, mas à Propaganda Fide,
criada para se contrapor às estreitas relações entre ação religiosa e objetivos estatais na América, Ásia e
África (HOORNAERT,1992).
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Acompanhavam ainda outras reformas administrativas no sentido de estreitar o controle administrativo
sobre aquelas terras, como a criação dos “juízes de fora”, ouvidores de comarcas e a subdivisão da Província
de Pernambuco em duas comarcas, uma de mesmo nome e outra denominada Alagoas (idem).
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No último quartel do séc. XVIII a política e a administração estatais passam por
transformações relacionadas ao projeto iluminista imposto por Pombal que produzem eco
na política de conquista colonial. Em função das disputas entre jesuítas e fazendeiros de
um lado (principalmente no Maranhão e Grão Pará), e das tentativas de reordenar as formas
econômicas na colônia de outro, é extinta a escravidão indígena e, em 1775 é retirado o
poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos. Complementando essas medidas e
dando sentido a elas, em 1758 ordena-se a transformação dos aldeamentos em vilas e dos
missionários em párocos e, em 1775, passa-se a incentivar os casamentos mistos, entre
portugueses e índios (FARAGE, 1988, CUNHA,1992 e HOORNAERT, 1992). Tais
emancipações administrativas preparavam a terceira estratégia de conquista, marcada pela
intenção explícita de romper com o isolamento relativo em que os aldeamentos encerravam
os indígenas. Numa tendência oposta, a administração pombalina passa a incentivar e
orientar a ocupação não indígena dos aldeamentos, na tentativa de assimilar física e
culturalmente os índios, criando uma população mais homogênea.
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É numa situação que revela a passagem as estratégias de conversão e de mistura,
que os primeiros registros do etnônimo Pankararu foram localizados, num levantamento
realizado por Hohental (1960). Num relatório do ano de 1702, referente à aldeia de N. S.
do Ó, organizada por missionários jesuítas na Ilha de Sorobabé, rio São Francisco, este
pesquisador encontra a primeira referência ao etnônimo: os “Pancararus” são citados junto
a outros três grupos, os Kararúzes (ou Cararús), os Tacaruba e os Porús. O aldeamento é
bem anterior a esta data e Hohental permite sugerir que os Pancararú e os Porú teriam se
agregado a ele entre 1696 (ano de um outro relatório em que não são citados) e 1702. Mais
tarde, os Pancararú e os Porú, que aparecem novamente associados, são localizados em
outros dois aldeamentos: no do Beato Serafim, em 1846, e no de N. S. de Belém, em 1845,
organizados por capuchinhos italianos nas ilhas da Vargem e do Acará, também no São
Francisco.
Para que ganhe sua real dimensão de território de reunião, de mistura étnica, onde
são reunidos os mais diferentes grupos a fim de tornar mais fácil a produção do “caboclo”,
seria necessário acrescentar que a esta multiplicidade de denominações pode ainda ter se
somado, em função das reiteradas tentativas estatais e missionárias, grupos “brabios” da
Serra Negra, e a essas denominações tenham vindo se somar famílias de grupos hoje
A mecânica do fim
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A lei de terras de 1850 dá início a uma série de alterações na organização do campo
em Pernambuco. Os trabalhos de discriminação das terras públicas são acompanhados das
políticas simultâneas de libertação dos escravos através do fundo de emancipação do
Império, da tentativa de implantação da imigração norte-americana e das remodelações de
um determinado padrão de controle da mão-de-obra rural pobre, realizado na forma de
diferentes tipos de “colônias” que então são criadas, extintas, transformadas, agrupadas,
numa intensa busca da medida exata entre a tutela daquela população, que a ordem
demandava, e a liberação de homens e terras, que o progresso pedia. Por isso, a extinção
dos aldeamentos indígenas no Nordeste, e especificamente em Pernambuco, não pode ser
pensada apenas como desenvolvimento de uma série de ações que poderíamos ordenar
cronologicamente, sob a idéia de uma política indigenista com lógica própria, mas antes,
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Para maior comodidade do leitor, limpeza do texto e facilidade de consúlta, optamos em numerar
sequencialmente os documentos que utilizamos ao longo do texto e relacioná-los numa única lista de
documentos citados ao final do trabalho.
Nos casos dos aldeamentos de Címbres e de Assunção, as suas terras estavam sendo
“esbulhadas” pelas Câmaras Municipais, sendo que o esbulho do aldeamento de Assunção
teria se completado pela ação de um juiz que, “a pretexto de pertencer o terreno da Aldêia
2
Assim, as soluções propostas pelo relatório de 1878 têm o seu próprio contexto, o
quadro mais amplo de idéias que estavam em pleno debate, no Pernambuco do final do séc.
XIX, mas que seriam aplicadas apenas parcialmente, com base nos instrumentos legais
gerados pela lei de terras de 1850. Nesta década surge a “Sociedade Auxiliadora da
Agricultura”, que reunirá, com maior ou menor sucesso ao longo do tempo, proprietários e
comerciantes pernambucanos em morosas disputas intra-classe dominante no sentido de
uma modernização do campo. Nessas discussões surgia como fator de ameaça, mas que
podia ser convertido em fonte de recursos, a abolição da escravatura: o temor de ver seus
escravos libertos numa desordem que em seu imaginário sempre remetia ao Haití, era
contrabalançada pela proposta de mobilizarem-se por uma abolição “lenta e gradual”,
através de indenizações com o dinheiro público que, argumentavam, seria convertido na
modernização dos engenhos e na imigração estrangeira (a americana), fundamentais para
sanar a reclamada “falta de braços” e modernizar o campo (BOMPASTOR, 1988)
Na verdade, como nos lembra Bompastor, a abundância de mão-de-obra no campo
tornava os proprietários indiferentes à imigração, que rapidamente fracassou, mas a
retórica da “falta de braços”, converteu-se na conquista das indenizações e na criação de
expedientes que respondiam às
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A concentração desses desaparecimentos num estrito período de tempo pode ser
explicada com o recurso a três alterações de contexto: o impacto da lei de terras de 1850, a
aproximação da abolição e a conseqüente reorganização do controle sobre a população
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As informações que se seguem foram extraidas da leitura de relatórios dos presidentes de província de
Pernambuco, microfilmados na Biblioteca Nacional (código PR-SPR 115. Rolos de 1 a 7, correspondente ao
período de 1838 a 1889).
Memória da violência
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O impacto local da extinção oficial do aldeamento do Brejo dos Padres e do seu
desmembramento em diversos lotes só pode ser alcançado pelo recurso à memória da
população que o habitava. Nela, a extinção da categoria legal “aldeamento” não faz
qualquer sentido e o que marca aquele período de final de século de uma forma mais ou
menos homogênea, alcançando ainda as primeiras décadas deste, numa quase completa
indistinção cronológica, é o que os Pankararu chamam de “as linhas”, em referência à
demarcação física (esta sim, bem concreta) dos lotes que cruzaram toda a extensão do
“Brejo”. Podemos dizer mesmo que é esse registro memorialístico, fonte de diferentes
narrativas de domínio comum, o primeiro elemento produtor de uma “identidade coletiva”.
São as histórias das “linhas”, das expulsões das terras pelo apossamento direto ou pelo
progressivo avanço do gado, das invasões da aldeia pelos “membros” de Tacaratu que
constituem a matéria prima do que Halbwachs (1990) chamou de “comunidade afetiva”.
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Em primeiro lugar, a construção da memória Pankararu tem o efeito mesmo de
desfazer a confortável unidade representada pelo seu próprio etnônimo, tornado designação
oficial pelo órgão indigenista. Se na recriação da aldeia, a designação adotada oficialmente
foi Pancarú (depois Pankararu), todos os mais velhos sabem que seu verdadeiro nome é
“Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de Fulô”, onde cada um desses “sobrenomes”
corresponde a uma das outras principais etnias que compuseram historicamente o grupo. A
composição desses sobrenomes varia um pouco de depoimento para depoimento, mas o
que importa reter é o próprio efeito e significado da existência dessa forma de compor, sob
uma mesma unidade, a memória da diversidade. Guardar esses sobrenomes significou
poder constituir uma unidade política e social sem precisar apagar os germes da diferença,
guardar a memória do quanto são outros, de modo a que fosse possível conceber novas
dispersões, como veremos na segunda parte deste capítulo.
O etnônimo e o grupo social e territorialmente identificado como Pankararu (é a
construção de sua própria memória que nos revela) são uma dentre outras possíveis
cristalizações identitárias (MARCUS,1991) produzidas ao longo do processo de
transfigurações pelo qual os índios do Nordeste têm passado. A unidade “Pankararu” não é
nem o ponto de partida de transformações, sob as quais se possa recuperar formas
ancestrais puras e autênticas, nem simplesmente o ponto de chegada, produto final e
fechado de um processo único de construção social e invenção cultural. Na verdade, uma
cristalização étnica de transformações históricas, ponto de convergência e de dispersão de
outras construções sociais e invenções culturais.
As famílias que saíram de Pankararu, para vir pra cá, foi numa
revolta que houve, um Cavalcanti invadiu Pankararu e amarravam os
índios nas árvores e batiam para eles correrem. E os índios que não
agüentavam muito cacete correram cedo. Os índios corriam com medo...
[...]... Desses aqui mesmo, quando chegou Cavalcanti lá em Pankararu,
bateu neles e tomou tudo que eles tinham. Então, o Zé Carapina saiu
desgostoso, bolando pelo mundo, chegava num pé de pau ficava. Quando
chegaram aqui era tudo mata. (Maria do Carmo Santos, Geripancó.
Transcrito em BRITO,1993)
Depois que o Zé Carapina já estava aqui, ainda na época da
revolta de Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes
aqui no Ouricurí e o Zé Carapina deu apoio a eles. Vieram primeiro
Manuel Carapina, primo do meu avô. Chefe de família, trazia até filho.
Depois chegou João Porsenha de Palmeira dos Índios e a esposa dele
era de Pankararu, era da família Jacinto... (Genésio Miranda da Silva,
Geripancó. Idem)
Teria se constituído então um outro núcleo Pankararu, separado do Brejo por alguns
quilômetros e uma linha divisória estadual, mas mantendo com ele estreitas relações,
inclusive através de trocas matrimoniais. Com o tempo, a essa população passaram a se
somar outros pankararus que fugiam não mais da violência, mas das secas ou da simples
escassez de terras e, pelo que parece, até o momento em que, na segunda metade deste
século, como veremos adiante, esse grupo foi reconhecido pelo órgão indigenista oficial
como um grupo distinto, com direito a uma área indígena e um posto indígena próprios,
sob a designação Geripancó. Essas duas populações não se pensavam como etnias distintas,
3
O sistema de metáforas que descreve essas concentrações, dispersões e
cristalizações étnicas organiza-se segundo o par de categorias de parentesco Troncos
Velhos/Pontas de Rama que traduz para esses grupos a distância entre eles e seus
antepassados, “índios puros”, ou entre grupos mais antigos e mais novos, tanto no que diz
respeito à sua aparência física quanto às suas “tradições”, significando a solução
classificatória para os fenômenos de natureza identitária da “mistura”. Nesse caso, podem
ser considerados parentes os grupos política e territorialmente distintos, através de
ancestrais comuns (reais ou imaginários) ou, de forma muito mais ampla, simplesmente
todos os “índios”, por oposição a todos os “civilizados”, “brancos” ou “brasileiros”. A
oposição, continuidade e complementaridade entre “troncos” e “pontas”, que marca tanto a
relação entre famílias dentro da aldeia Pankararu, quanto entre os Pankararu e outros
grupos, serve como uma forma de pensar o tempo e seus efeitos, não apenas segundo uma
genealógica, mas sobretudo segundo um jogo entre a imagem de laços naturais e
experiências eminentemente históricas.
Trata-se do recurso a uma metáfora própria da tradição judaico-cristã, que já foi
observada entre outros grupos camponeses brasileiros (WOORTMAN, 1994), mas que
diferencia-se no seu uso, entre outros motivos, por não implicar num sistema fixo de
relações hierárquicas, mas antes numa forma de expressar relações entre pares. Assim, na
situação do Brejo dos Padres, os grupos que vieram a se combinar no composto hoje
designado como Pankararu seriam troncos velhos com relação a este último, considerado
como ponta de rama daqueles. Mas quando o contexto envolve os Geripancó, por exemplo,
os Pankararu passam a ser pensados como troncos velhos, já que os Geripancó se
constituíram como um “enxame” deste primeiro grupo, sendo sua designação, ela mesma,
retirada do seu acervo de “sobrenomes”.
Temos então introduzida a outra metáfora: o “enxame”, que dá mobilidade ao par
de metáforas de parentesco tronco/pontas. A noção de enxame está carregada de uma idéia
de movimento, expansão e fracionamento para a constituição de novas unidades e por isso
traduz mais adequadamente o aspecto territorial do fenômeno das emergências. Segundo os
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Se a diversidade é tornada memória através das metáforas do parentesco, a carga
narrativa dessa memória acaba por concentrar-se num único e indistinto, ainda que bastante
largo, período de violências, que se seguiu à implantação das “linhas”. As histórias que
não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos, são fundamentalmente
as histórias de violência e de alienação, da terra e da “pureza”. E, da mesma forma que este
período acabou por concentrar o repertório memorialístico do grupo, dentro deste período
uma personagem assumiu por sua vez o lugar de símbolo do arbítrio dos poderes locais:
Francisco Antônio Cavalcante, chefe local do partido conservador que, na década de 1870,
dominava politicamente toda a região (ALBUQUERQUE,1976), mais conhecido pelos
Pankararu como Cavalcante, administrador direto e, aparentemente extra-oficial, da
instalação das “linhas”.
Aqui era coberto de gente pra iludi os índio, tanto pra caí no
cangaço, tanto... Era o Mané Vito, era o Pedro Catarina... O Mané Vito
era um cabra que ajuntô gente por aqui. Era marinheiro e ajuntô esses
grupos de gente pra andá no cangaço. Se quizesse ir, era na hora.
Sofreram aqui diversos. O Tenente Apitati, era polícia de Tacaratu,
entrou aqui e lutou com muitos índio aqui. Foi quem mais derrotô com
nós. E hoje nós hoje, graças a Deus, tamo liberto. (Mané Bizoro)
Um relato que Carlos Estevão de Oliveira faz de uma história que também me foi
relatada algumas vezes, mas sem as referências cronológicas, dá uma idéia de até onde vão
no tempo os fatos relatados como parte de um mesmo “tempo das linhas”.
5
Aqui cabe um esclarecimento sobre a atuação de Cavalcante no momento da
instalação das linhas que revela mais pontos de contradição entre a história escrita e os
relatos memorialísticos Pankararu. A documentação oficial que foi possível recuperar fala
do loteamento das terras dos antigos aldeamentos sendo realizado por um engenheiro
contratado pelo governo especialmente para isso, cabendo a ele todas as decisões,
decorrentes de sua avaliação técnica. No entanto, a memória Pankararu é totalmente
indiferente à existência deste funcionário e insiste em que as decisões sobre os locais dos
lotes e a escolha dos seus ocupantes teriam sido tomadas por aquele chefe político local,
revelando uma das formas pelas quais decisões de âmbito não só estadual como nacional
podem ser reapropriadas no seu ponto final, no momento de sua efetiva realização, dando-
lhe um novo sentido.
Este confronto entre memória e registro histórico encontra mais pontos de interesse
quando os relatos tratam da morte de Cavalcante. Neste caso, a memória indígena conta
que na época do início das “linhas”, um grupo de índios, acossados pela alienação de suas
terras - que a certa altura não lhes permitia nem mesmo recolher os frutos de suas colheitas
- e por não terem clareza do que significavam “as linhas”, resolvem tomar uma atitude
contra a expropriação. Para isso reúnem-se na mata e, com o auxílio de sua “ciência”, isto
6
Um segundo aspecto que torna importante o relato Pankararu da morte de
Cavalcante é o de compor um duplo ao mito de Tarraxá, que narra justamente a relação
daquela população com seus dominadores. Ao combinarem-se numa mesma imagem, os
relatos sobre Tarraxá e sobre Cavalcante nos fornecem a narrativa aberta, ambígua e,
poderíamos arriscar, dialética, do drama social vivido por aquela população. Para que ele
fique evidente é preciso transcrever na íntegra o mito conforme ele nos foi contado.
A produção da visibilidade
1
No que delimitamos como o contexto de invisibilidade, os grupos, bandos, nações,
populações ou povos indígenas do Nordeste surgem na literatura acadêmica apenas quando
da reunião e comentário de textos e gravuras de antigos missionários e viajantes
(normalmente dos sécs. XVI ao XVIII) na busca de elementos que permitissem reconstituir
antigas repartições geográficas, famílias linguísticas, fragmentos de vocabulários ou ainda
avaliar sua "contribuição" para o avanço colonial (Cf. BALDUS, 1954). É nesse contexto
que o antropólogo Carlos Estevão de Oliveira realiza uma palestra, em julho de 1937, no
Instituto Histórico e Geográfico Pernambucano e comunica, como quem narra uma história
de aventuras e descobertas, sua última visita etnológica ao sertão nordestino
(OLIVEIRA,1943). Ele inicia comentando seu projeto de uma etnologia brasileira e de
como, dentro deste projeto, deparou-se com o problema da raridade de pesquisas sobre a
antropologia indígena do Nordeste , motivo pelo qual teria tomado a iniciativa de realizar
algumas viagens ao sertão (ver também OLIVEIRA,1931), das quais nesta palestra narra a
primeira (não fazendo referência à data).
Conta que, levado um dia a visitar a cachoeira de Itaparica e as obras da Cia
Industrial e Agrícola do Baixo São Francisco, ao final da tarde, teria se encantado com o
efeito do pôr-de-sol sobre as águas do São Francisco e, na "procura de uma elevação que
me proporcionasse a possibilidade de transportar para o 'film' de minha 'Roleflexe' uma
imagem do lindo ocaso que se descortinava diante dos meus olhos", teria feito uma
10
A região Nordeste conforme a utilizamos aqui, segue o recorte proposto por PETI (1993): do norte da
Bahia ao Piauí. O sul da Bahia, Espírito Santo e norte de Minas Gerais fazem parte, segundo esta divisão, de
um outro recorte da ação indigenista e da concentração de áreas indígenas que é distinguido como região
Leste.
2
Antes de mais nada, para tornar-se visível, foi preciso tornar-se simultaneamente
nomeável, isto é, parte do trabalho que permitiu conceber a existência de grupos indígenas
no Nordeste teve que ser investido sobre a própria forma de nomeá-los. A pergunta que
parece ter se imposto àqueles que vieram a realizar a mediação entre aquelas populações e
o órgão indigenista, sua tutela e seus direitos, parece ter sido a de como, afinal, designar
grupos de caboclos que se supõe ter ancestrais indígenas aldeados, sem incorrer na
11
“Indianidade” aqui designa uma determinada forma de ser e de conceber-se “índio”, no sentido genérico do
termo, construída na interação com o órgão tutelar. Associado a uma determinada imagem do que deve vir a
ser “índio”, a “indianidade” é criada basicamente na instituição de aparelhos burocráticos de origem estatal
que criam procedimentos estandartizados para lidar com a diversidade e que acabam por impor a ela o
modelo, tornando-a sob certos aspectos homogênea. É claro que esse movimento entre homogeneidade e
heterogeneidade não é linear e mesmo no interior da padronização existe o movimento no sentido da
diferenciação, de que falaremos ainda neste capítulo. No entanto o conceito de indianidade é de importância
central à análise da relação entre grupos indígenas e aparelho indigenista por dar a reconhecer uma forma
específica e de valor generalizante para essa interação (Cf. OLIVEIRA Fº,1988).
12
Neste caso o vocabulário sociológico e antropológico também aproxima-se do uso vulgar da categoria
(FREEDMAN,1986)
3
Se a construção da categoria de “remanescentes” constitui um contexto semântico
favorável à enunciação da existência daqueles grupos, é preciso apontar agora para o
contexto político que favoreceu a sua visibilização. Como temos tentado apontar, o
indigenismo oficial faz parte de um quadro mais amplo de estratégias de gestão territorial e
controle de população. Ainda que seja uma forma de intervenção dirigida sobre um tipo
específico de população, tal intervenção acompanha as alterações de percurso dos objetivos
1
O primeiro processo de reconhecimento de um grupo indígena no Nordeste é
parcialmente descrito num texto de 1931, de autoria do "capelão militar das tropas
revolucionárias do Norte", pe.. Alfredo Pinto Dâmaso. Neste texto, o autor faz uma defesa
do SPI contra as duras críticas feitas pelo jornal A Noite, do Rio, que o acusava de ser um
serviço de catequese leiga que punha Comte no lugar de Cristo, que desperdiçava grande
quantidade de dinheiro público inutilmente e que só fazia explorar os silvícolas. No artigo,
pe.. Dâmaso dá um depoimento pessoal sobre a utilidade, lisura e humanitarismo do SPI.
Conta que no ano de 1921 ele partiu da cidade de Águas Belas, no sertão pernambucano,
em direção à capital Federal para procurar auxílio junto ao SPI, como "porta-vóz das
queixas e dos gemidos de 500 infelizes patrícios - Os índios Carijós - victimas indefesas de
todas as vilanias da prepotência sertaneja..." (DÂMASO,1931)13. Chegando ao Rio de
Janeiro, procurou imediatamente o escritório do SPI e lá foi recebido pela diretoria e pelos
funcionários "como velho amigo, ou antes como um irmão entre irmãos, separados muito
embora, pela diversidade de credos, mas vinculados pelo mesmo pensamento, pelo mesmo
ideal - A salvação do índio" (idem). Como resultado desse contato e como prova da
falsidade da oposição entre "catequese religiosa" e "catequese militar", teria sido fundado
em 192414, sobre as terras do extinto aldeamento do Ipanema, o Posto Indígena Dantas
Barreto que, "Hoje em dia,... vae sendo um verdadeiro patronato agrícola, dentro de seus
minguados recursos" (idem. Grifos meus.).
Em consequência da intervenção do SPI é desencadeada uma disputa judicial entre
o MAIC (representado pelo inspetor do SPI, Antônio Estigarriba) e o estado de
Pernambuco, na qual o governador pernambucano se apresenta como "árbitro". Nessa
13
Os Carijó de que fala o autor são hoje conhecidos como Fulni-ô, grupo de 2.790 pessoas que ocupa uma
área de aproximadamente 11.500 ha, incluindo a cidade de Águas Belas. Em documentos mais antigos o
grupo dessa região, da Serra do Comunati, próxima ao rio Panema (depois Ipanema), é designado como
Carnijó e aparece ocupando o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em
1705, extinto legalmente em 1861 e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI,1993).
14
Aqui existe uma discordância entre as datas apresentadas pela documentação do SPI, utilizada no Atlas das
Terras Indígenas do Nordeste (PETI,1993) e as informações do texto do Pe. Alfredo Dâmaso. No Atlas
informa-se que o primeiro contato com o SPI teria sido feito em 1925 e o posto indígena instalado em 1928.
15
, Repetindo em 1931 o diagnóstico do autor do relatório sobre os aldeamentos de 1878.
2
Os Fulni-ô até hoje são considerados os que guardam os sinais diacríticos mais
evidentes com relação aos regionais. Como relacionava Max Boudin em 1949, as
diferenças que separavam os Fulni-ô dos sertanejos locais, com quem partilhavam a maior
parte das características culturais e econômicas, eram: A) falarem sempre, salvo raras
exceções, o ia-tê nas suas relações privadas; B) partilharem de características antropofísicas
como o cabelo grosso, preto e liso, parca pilosidade corporal, olhos oblíquos, maçãs
bastante acentuadas, estatura pequena, "cútis bronzeada ou côr grão de trigo" e C)
praticarem uma religião secreta, "diferença que acusa a singularidade da tribo, como
pertencendo a um mundo cultural completamente estranho ao nosso" (BOUDIN,1949).
Tudo isso permitiu que o SPI na década de 1920 os reconhecesse como último
grupo a resistir ao assédio civilizatório na região, o que chama a atenção de etnólogos
contemporâneos como Carlos Estevão de Oliveira, à época, diretor do Museu Goeldi. Em
1931 ele já publicava um artigo sobre o grupo, centrando sua atenção nas suas possíveis
afiliações lingüísticas, mas também fazendo referência ao patrimônio que lhes restou na
forma de uma organização social orientada por crenças religiosas:
16
"Locais" aqui não deve se prender à moldura político administrativa. Nessas primeiras décadas a principal
cidade das redondezas, onde os pankararu frequentavam a feira semanal, ficava não só em outro município
como em outro estado: era Paulo Afonso, na Bahia, que lhes servia como referência econômica e política.
Isso é comum por muitas regiões do sertão, mas o que existia de particular nessa relação era a presença de um
destacamento militar reginal nessa cidade, que representando a autoridade federal na área, frequentemente
intervinha em questões mais gravas relacionadas aos Pankararu.
17
A memória do grupo tem registrado com clareza essa visita, quando, segundo contam, "o prof. Carlos" teria
chegado fazendo festa e abraçando a todos em grande alegria, comunicando que seus problemas estavam
resolvidos.
3
Assim, a ação indigenista aplicada a uma situação a princípio excepcional, como a
dos Fulni-ô, dá partida a uma série de reivindicações de comunidades descendentes de
antigos aldeamentos indígenas, entre os anos de 1935 e 1944. A princípio os Fulni-ô e seu
"porta-voz", pe. Dâmaso, auxiliados por Carlos Estevão, servem de mediadores entre os
grupos emergentes e o SPI, mas a seguir, os próprios grupos recém reconhecidos passam a
atuar como mediadores entre o órgão e os futuros grupos, em novas emergências.
É isso que acontece no caso dos Xocó. Mesmo depois de terem migrado em grande
parte para as aldeias dos Kariri no final do séc. XIX, eles mantiveram relações com o
pequeno grupo que permaneceu no local e nunca deixaram de apoiá-los nas reivindicações
que fazia às autoridades pela retomada das antigas terras do grupo, às margens do São
Francisco, no atual município de Porto da Folha (SE). Tais reivindicações, feitas desde o
final do século junto às autoridades locais, às autoridades da capital do estado e até mesmo
através de viagens ao Rio de Janeiro, depois do reconhecimento dos Kariri-Xocó e da
18
Essa descrição esquemática não permite fazer referência à complexidade dessa mobilização, que produziu
um fortíssimo faccionalismo interno, onde parte da comunidade aceita o novo formato político e outra parte
não, optando pela via da mobilização sindical. Esse faccionalismo é forte o bastante para separar famílias,
onde irmãos, pais e filhos, optam por identidades distintas. Como veremos no segundo seguimento desta
dissertação, índio e trabalhador rural podem não ser identidades compatíveis, simplesmente sobrepostas ou
complementares. Elas implicam em opções identitárias de grande investimento pessoal e coletivo. O texto de
Maia (1993) faz longa referência a este conflito, mas não o percebe exatamente desta forma, remetendo-o à
uma diferença entre ênfases dicursivas classista ou étnica. Nesta interpretação cabe aos sindicalistas o
demérito de não compreenderem a importância do discurso étnico. No caso de Soares , essa incompreensão é
tamanha que merece ser citada: "Alguns índios negam a sua identidade étnica verdadeira, apesar de serem
apontados por outros como pertencentes ao grupo Pankararé e seus parentes. Chegam a negar que alguém
seja índio no local e a dizer que 'isto é uma invenção'. " (SOARES,1977. Grifos nossos). Como veremos
(Cap.4), “índio” e “trabalhador rural” são, nesses casos, invenções contrastivas.
1
A trama dessas emergências sugere, e os depoimentos confirmam, que parte do
percurso seguido pelo órgão indigenista no seu reconhecimento de grupos indígenas pelo
Nordeste respeitou caminhos pré-definidos por fluxos tradicionais.
19
Ao final, em anexo, apresentamos uma lista das entrevistas gravadas, com informações básicas sobre os
entrevistados.
Num tempo mais largo que o das histórias de vida, a própria fundação do grupo
Geripancó está ligada a estas viagens de fuga, encontrando-se com a história Pankararu
justamente no momento maior da expropriação das terras do antigo aldeamento.
2
Independente das viagens de trocas rituais, existem notícias de viagens de
representantes dessas comunidades às capitais do estado e até mesmo ao Rio de Janeiro,
em busca de apoio contra os sistemáticos atos de violência e expropriação territorial que
sofriam. O século XIX parece assistir à passagem dos pedidos de missionários em favor
dos índios, para pedidos dos índios em seu próprio nome, através de petições ao Imperador
ou de viagens que realizavam a fim de vê-lo pessoalmente para pedir-lhe sua "paternal
proteção". Dantas et alii (1992) sugerem que a viagem do Imperador à região em meados
do século teria produzido o efeito de dar realidade a uma figura um tanto mítica que lhes
era apresentada como um grande pai, ou mesmo como um padroeiro.
Como lembra Revel (1989), a itinerância do rei não é novidade, fazendo parte,
desde a Alta Idade Média, do repertório de recursos que o soberano tem para conhecer o
reino e se fazer conhecido por ele, reafirmar seus domínios periodicamente, através do
consumo no local dos seus produtos e rendimentos e da reafirmação de seus direitos. No
caso de PedroII, depois da recente Lei de Terras, tornava-se importante sua presença por
toda parte, arbitrando conflitos, regularizando situações de fato, pacificando o espaço
nacional e se fazendo necessário aos seus súditos: "Quando se desloca, o rei delimita o seu
território. Faz o seu reino existir e toma posse dele" (REVEL,1989). A novidade no entanto
Meu pai viajava pro Rio de Janeiro pra resolvê esses problemas e
nunca resolveu, tinha partes que andava até de pé, pra parte de Minas.
De Governador quase a Três Rios andava de pé, pegava carona num
canto e ni outro... Mas nós não, porque graças a Deus agora a coisa
melhorou mais, porque o governo sempre dá uma passagem, uma coisa e
outra... [Viajavam com ele:] o Bernadino Pereira, o Mariano Tiú, Lino
Barros, que tinha o apelido de Lino Cabeludo [risos], o José de Barros
que morava lá dentro do posto, cinco, seis pessoas. Depois viajaram
pra... A primeira comarca pra que eles viajaram foi pra Flores, a
primeira cidade de Pernambuco é Flores, começaram pra lá, pra falar
Nesse circuito, a importância que passa a ter a cidade de Bom Conselho deriva do
seu papel de ponto de convergência de dois circuitos rituais. O efeito de nodosidade
(RAFFESTIN,1993) assumido por aquela cidade é criado pelo fato do seu pároco, o "pe.
Alfredo", ter no seu roteiro de serviços espirituais a cidade vizinha de Águas Belas, onde
localizam-se os Fulni-ô, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu,
Xukuru, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kambiwá e outros. A circulação e a comunicação -
intimamente associados em contextos de pouca especialização das redes de comunicação
(idem)- encontravam naquele ponto geográfico um eixo, um nó, para a articulação do
circuito dos possíveis centros de autoridade (como já tinham sido tentadas as cidades de
Flores e Floresta) e de trocas rituais. Não se tratava de um lugar privilegiado a priori, mas
que foi construído como lugar de reunião, de nodosidade em grande medida contingente,
onde era possível pôr em contato e por isso dar uma dimensão de experiência às narrativas
particulares, da mesma forma que trocar informações sobre mediadores. É através desse nó
que as informações e homens migram de um circuito para o outro, e é a partir dele que
aquele circuito de trocas rituias tornar-se-á o circuito das emergências.
As demandas dos caboclos do Brejo dirigidas ao pe. Dâmaso inicialmente não
falavam na criação de qualquer área de exclusividade que distinguisse entre aqueles que
eram ou não eram índios. A memória de uma ancestralidade indígena servia como fiadora
dos direitos que sabiam ter sobre as terras, mas não implicava desde o início na pretensão
de uma delimitação formal, subordinada a uma unidade identitária e política. Suas
necessidades passavam pela construção de "um travessãozinho pequeno" que cobriria a
extensão de aproximadamente vinte "tarefas" à volta do Brejo e, apesar de se considerarem
participando da mesma comunidade, as famílias que ocupavam as serras não encararam
esta como uma atividade que também lhes interessasse. O fato de partilharem de uma
mesma identidade, de laços de parentesco e dos mesmos cultos não produzia a imaginação
de um grupo fechado de interesses e obediência comuns.
A referência não era um território, mas posses de uso familiar. Não existia um
perímetro circundando um território abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os
marcos do antigo aldeamento), mas a terra sobre a qual se investia um trabalho social, de
base familiar e sobre a qual havia um domínio não legal, mas hereditário. Era desse
domínio que sabiam estar sendo expropriados.
... e aquilo alí, pra sobrevivê uma família de 10 filhos alí com
aquele pé de abóbora... Aí o meu pai foi vendo que aquilo não dava certo
e foi pedindo de um lado e outro, pro governo, uns achava que era certo,
correto aquilo, outros que não era, e foram até que deram o apoio de
confiança quando cercaram. Os índios já não podiam fazer nada mais,
vigiando o bicho à noite, quem plantava um pé de abóbora, outro de
macaxeira, aquilo alí era numa correria danada... Aí ele foi, falou com o
pe.. Alfredo e "fale com o interventor", que era o governo lá de Recife, e
ele foi embora lá pra Recife de pé, porque naquele tempo não tinha
carro... (Antônio Moreno).
3
A referência de Carlos Estevão ao Brejo dos Padres, no texto de 1931, antes
portanto de sua primeira visita à esta comunidade e à de Palmeira dos Índios, deve ser
creditada à existência daquele circuito de trocas que o antropólogo provavelmente viu em
funcionamento durante sua visita à Águas Belas. O "círculo" mítico-religioso que ele supôs
existir e ao qual remete àquelas comunidades é já o anúncio, no seu pronunciamento sobre
o caso Fulni-ô, das suas futuras descobertas de outros grupos indígenas, transmitindo-se
por essa conexão, legitimidade etnológica a outros grupos emergentes. No entanto, como
veremos, a transmissão de legitimidade não se realiza apenas pelo reconhecimento de
semelhanças, mas também pela produção delas. O circuito de trocas que ligava uma série
de comunidades "remanescentes" e que Carlos Estevão de Oliveira declara supor ser um
"círculo" cultural, será o caminho percorrido pela padronização ritual futura das
comunidades segundo a semelhança imputada anteriormente.
Como vimos, o quadro ideológico e estratégico do SPI foi formulado com vistas a
sua atuação junto a grupos indígenas ainda não integrados, muitas vezes arredios,
beligerantes, que era preciso buscar, seduzir através de tradutores e de presentes, em
operações "heróicas" representadas pela máxima formulada por Rondon: "morrer se preciso
for, matar nunca. Esses não eram procedimentos que se adequassem ao contato com índios
Levantar aldeia
1
É a conexão entre esses circuitos que permitirá às lideranças peregrinas assumirem
um papel político ainda mais largo do que aquele que já desempenhavam como
representante de sua comunidade. Além de realizarem o trânsito de informações sobre os
direitos entre os centros de autoridade e seu grupo, passam a atuar como os agentes que
disseminarão as regras da expressão obrigatória da indianidade. Agregam à comunidade
ritual prévia, uma comunidade de direitos, ou melhor, de busca dos direitos, que estará
ligada à construcão do privilégio de um dos seus rituais sobre os outros possíveis.
É novamente João Moreno que depois do reconhecimento dos Pankararu e com
toda a legitimidade que isso lhe dava, passa a desempenhar também esse papel para os
grupos mais diretamente ligados pelos circuitos rituais ao Pankararu.
20
Em um relatório de 1989, para usarmos um exemplo suficientemente próximo, uma funcionária da FUNAI
se dispõe a ir até um grupo emergente para comprovar sua autenticidade atravavés de uma verificação sobre a
existência ou não de artezanato e a qualidade do desempenho do Toré, como se estivesse verificando a
existência de furos nas meias: "...No momento que foram interrogados sobre a dança do toré, se havia dentro
do grupo, alguma forma especial no momento da dança, surgiu um pouco de dúvida e o cacique acaba
dizendo que homens e mulhertes dançam juntos. Quando o grupo de doze pessoas foi dançar o Toré, percebí
que não havia harmonia no som, nem no rítmo da dança e que todas as vestimentas estavão novas."
(SANTANA,1989)
Cada novo ponto nessa rede de emergências podia acionar outras linhas do circuito
de trocas rituais, transformando-o em caminhos da busca de direitos para outras
comunidades. As lideranças que iam buscar direitos num primeiro momento, logo depois
podiam estar transmitindo-os. Assim, por exemplo, depois de reconhecidos como
"remanescentes", os Tuxá, que como os Pankararu tinham originalmente o seu próprio
Toré, são procurados da comunidade da Serra do Umã que, como empecílio no seu
reconhecimento como Atikum, se diziam "fracos no toré". Um grupo de tuxás viaja então
para a Serra do Umã entre 1943 e 1945, para passarem seis meses, ao longo dos quais
reforçaram, ou ensinaram o segredo do Toré aos Atikum. Por sua vez, depois de
devidamente reconhecidos, os próprios Atikum estavam prontos para emprestar sua
legitimidade aos Truká, que os procuram para aprender o Toré depois de ficarem sabendo
dos direitos através dos Tuxá. (GRUNEWALD,1993).
2
O Toré, no entanto, apesar de necessário não é suficiente para o reconhecimento de
uma comunidasde como grupo indígena, que pode continuar sendo obstruído por interesses
locais ou do próprio órgão indigenista oficial, de acordo com a flutuação das verbas ou dos
"Eu quero falar com o sr. porque como agente passa muito tempo
sem ver os parentes, quando agente chega tem que usar qualquer uma
alegria, uma brincadeira pra gente brincar e tal. É a presença que
agente tem que fazer quando encontra um parente com o outro. Tem que
ter uma diversão igualmente como vocês branco." (João Tomás)
O delegado não mostrou maior interesse pelo caso e consentiu que seguissem
viagem. No entanto, isso parecia pouco e João Tomás insistiu:
21
Para este final de década acumúlam-se referências sobre a atuação de um delegado, ou militar do exército
situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemático aos Pankararu. A grafia de seu nome no
entanto, variou bastante de acordo com os informantes, sendo mesmo difícil avaliar se todos os relatos diziam
sobre o mesmo personagem. Assim, talvez este Major do exército, Reni, seja o mesmo delegado de polícia de
Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. Não foi possível, infelizmente, apurar a identidade e filiação
institucional precisa desta (s) personagem (ns).
3
Além do ensino do Toré e da intervenção direta sobre conflitos locais, existe ainda
uma terceira forma desses grupos e de alguns de seus personagens mais destacados
intervirem diretamente na emergência de grupos vizinhos ou aparentados, preenchendo
com o código da indianidade os circuitos de trocas tradicionais: o empréstimo de
legitimidade, ou, segundo o vocabulário de Bourdieu, a transferência de capital simbólico
acumulado, através da simples mediação entre os grupos emergentes e as autoridades locais
ou indigenistas. João Tomás, depois de ter alcançado certa notoriedade entre outros grupos
indígenas e seus mediadores ou opositores diretos com o conflito junto aos Pankararé,
continuou atuando como disseminador do campo de ação indigenista entre os Kambiwá e
os Kapinawá, onde foi necessário apenas apresentar-se às autoridades locais respaldando a
pretensão daqueles grupos ao reconhecimento como "remanescentes". No primeiro caso,
em que já existia uma história de auxílios desde a época do Pe. Alfredo Dâmaso, a ajuda
agora, na década de 1970, não se dava pela apresentação a um mediador que viria a fazer a
relação entre o grupo e o órgão indigenista, mas pela interferência direta do próprio João
Tomás, transformado em mediador, que apresenta-se ao delegado local, que na época
reprimia o Toré Kambiwá, e o faz compreender a possibilidade de repetir o desempenho
obtido junto ao delegado de Glória.
No segundo caso, essa posição de autoridade na representação dos "direitos"
indígenas fica mais evidente. Desta vez é o João Tomás que se vê procurado por
mediadores, um grupo de freiras que atuava junto aos Kambiwá, para ir emprestar
legitimidade ao grupo num comício que seria realizado em praça pública, no município de
Buíque. Em meio aos pronunciamentos de autoridades locais, João Tomás é chamado a
subir ao palanque e se pronunciar sobre a questão da possível demarcação de uma área
indígena no município. Vendo-se numa situação extremamente delicada e que ele mesmo
avaliava como perigosa, assume um tom apaziguador e defende o diálogo entre fazendeiros
e índios, que levasse a um acordo amigável sobre os limites da provável área indígena,
ganhando a simpatia do prefeito local, ao mesmo tempo que confirmando a existência dos
direitos do grupo. Poucos anos depois, a FUNAI começaria a intervir timidamente sobre o
4
Se até aqui a ênfase recaiu na transmissão dos padrões, na atuação dos mediadores e
na comunicação dos “direitos”, cabe-nos agora tentar jogar luz sobre as diferentes formas
de apropriação daquilo que, a princípio, se mostra como canal de homogeneização. Nosso
objetivo será explicitar os vínculos entre algumas das noções apresentadas ao longo deste
... O ritual daqui, ele não pode ser igual aos dos Fulni-ô, aonde
pode ser igual é com Geripancó, o Ouricurí, porque os índios de lá são
daqui, é toda família daqui. Agora, os Pankararé, os Tuxás, os Atikum,
na serra do Umã, os Kambiwá, Trucá, ilha da Assunção, nessas as festas
tem que ser diferentes. Tá certo, tem pessoas de Kambiwá que mora aqui
na aldeia, casado lá mesmo e mora aqui. Um primo meu, o pais dele era
tuxá e a mãe dele era irmã do meu pai. Mas ele como neto da parte de lá,
ele não pode usar a festa de lá aqui. Temos que acompanhar o nosso
ritual daqui. E já andou um antropólogo fazendo esse apanhado das
festas, em 83, 84. Sobre a parte das festas pra vê se eram todas iguais,
porque não pode ser tudo igual, tem que ter uma diferença.
Sobre a analogia entre levantar aldeia e levantar Praiá, por enquanto basta
acrescentar que, sendo conhecido entre os Pankararu como "brincadeira de índio", o Toré
pode ser realizado, a princípio, em muitas e distintas situações e lugares, com diferentes
objetivos: festas religiosas ou profanas, dentro da aldeia ou em cidades, em locais
reservados, como os terreiros, ou em locais públicos, como o saguão do palácio do governo
em Recife. Seu valor, para os Pankararu, está tanto em sua natureza pública quanto em sua
22
Esse ponto, no que ele tem de repercussões para a relação cotidiana entre população indígena e órgão
indigenista será mais explorado no capítulo seguinte. Aqui caberia apenas apontar para a importância desta
associação, já que o mesmo tipo de conexão entre "governo" e poder divino pôde ser descrito para um
contexto radicalmente diferente por João pacheco de Oliveira (1988). Esse autor nos fornece um depoimento
Ticuna que poderia, sem qualquer dificuldade, ser posto na boca de um pankararu: "Naquele tempo eu não
tinha conhecimento porque naquele tempo mesmo não tinha FUNAI (...) De repente a notícia dela estava lá,
do governo que briga por nós, o governo dos índios mesmo. O governo dos índios existia! (...) Todos os
capitães antigos, de primeiro, nunca procuraram elas, aquelas palavras todas, a palavra do governo ou a
palavra de Deus. (...) Quando essa palavra do governo da terra nós não obedecemos, então também não existe
a crença no nosso pai do céu, porque é a mesma coisa" (idem).
23
Essa multiplicidade pode ainda ser estendida por outros planos e contextos, como o do pajé frente ao
quadro político interno à aldeia ou do tronco Pankararu frente a outros troncos.
24
Nesse caso podemos falar numa função meta-ritual, ou meta-religiosa, em homologia à função meta-
linguistica definida por Jakobson (s/d), quando fala da mensagem que visa esclarecer os meios de transmitir a
mensagem, isto é, o código.
Atos de fundação
1
Ao narrar a sua chegada ao Brejo dos Padres, como vimos, Carlos Estevão se
esforça por produzir em seu público o clima e a expectativa de uma descoberta. No entanto,
para alcançar esse efeito, ele tem que inverter, quase ponto a ponto, a ordem dos
acontecimentos, conforme conseguimos recuperá-los através de depoimentos dos
Pankararu. Ele sabe que parte importante do que tinha a dizer só seria ouvido, ou só teria o
impacto que ele desejava, se fosse ordenado de uma forma determinada, que respondia às
O “acaso” de que sua descoberta foi fruto, não foi o da descoberta do ossuário da
Gruta do Padre, mas o seu encontro com outras comunidades de “remanescentes
indígenas”, quando fazia uma das visitas guiadas aos Fulni-ô promovidas pelo pe. Alfredo
Dâmaso. Essa impressão é reforçada quando somos informados pelos Pankararu que este
padre já “dava apoio aos índios” do Brejo dos Padres nesta época e que eles o procuravam
em sua paróquia com regularidade, fazendo pedidos de auxílio contra os fazendeiros que
soltavam o gado sobre suas roças. A descoberta mostra-se, assim, como mais um momento
teatralizado do processo de visibilização daqueles grupos.
Mas não era apenas a descrição dos fatos que passava por uma adequação narrativa.
Os próprios fatos deveriam ser adequados à decrição. Ao descrever os rituais dos
remanescentes Pankararu, Carlos Estevão tem a possibilidade de confirmar suas
considerações do texto de 1931 num movimento inverso, agora citando os Fulni-ô a partir
do Brejo, como forma de emprestar aos Pankararu legitimidade etnológica, através de uma
argumentação circular:
Se não há como negar que a vontade de ver produz a visão e que muitas vezes
aceita-se que as boas razões justifiquem pequenas adequações descritivas, a “magia do
etnógrafo” (OWUSO,1978) neste caso foi um pouco mais longe e, em lugar de adequar
apenas o olho ao modelo, pretendeu também moldar o mundo segundo seus olhos.
O que que ele organizô foi que a nossa classe fazia umas
corrida naquela estrada que desce em frente da igreja e ele achou que
não tava certo, ele disse que era pra fezê uma reserva mais suficiente,
que fosse num terreiro dagente, que fizesse largo, ou caçasse um
lugarzinho no pé da serra, num lugar lá separado da estrada, que passa
gente toda hora. Então que isso agente seguiu, mas na união ninguém
seguiu, foi pocos que seguiram. Então que era pra..., por exemplo, eu
boto eles [os “Praiás”] pra brincá hoje, amanhã o sr. bota alí, depois
botam pro lado de lá. “Aqui tá merecendo eles criarem um limite..., a
regra era ser um terreiro só, mas como eu alcancei aqui tudo com muitos
anos, vocês façam um terreiro no nascente e um no poente e outro aqui
pro sul e outro pro leste. Então se o povo não quizé se uni, fica só os
dois, nascente e poente, e se pegar e aborrecê, fica só um.”. Se nós
tivesse escutado, nós tava aqui..., mas tem uns vinte. (João Binga)
25
Os elementos constituintes do sistema ritual Pankararu serão objeto de análise nos capítulos seguintes,
bastando por hora deixar claro apenas que nele existe um corpo de entidades sobrenaturais denominadas
Encantados, que se manifestam ou através dos seus “zeladores” em situações de culto doméstico, ou através
dos Praiás, nas situações de exercício do Toré. Os Praiá se constituem de dançadores vestidos de saia e
máscara de fibras de croá, encimadas por um disco de tecido e penas localizados na parte posterior da
máscara. Os terreiros são os locais onde se realiza o Toré e que em muitos casos associa-se ao pátio externo
de um agrupamento residencial que tende a coinciodir com o círculo de casas de uma família extensa e
agregados. O Índio Xupunhum ou Índio Mestre Guia é o Encantado mais importante da aldeia, manifestando-
se apenas uma vez por ano e num ritual onde se destacam várias diferenças com relação aos outros Torés e
outros Encantados. Um rápido apanhado de informações sobre esses personagens rituais (em especial as que
não exploradas neste trabalho) estão disponíveis no “Anexo 3: Notas sobre o sistema ritual Pankararu”.
Em 1935 veio o dr. Carlos Estevão para saber das origens daqui
e as pessoas não souberam bem explicar e foram atrás do pajé que
naquela época não era pajé, era sarapó...[Ele e “o outro”] só
representavam quando vinha assim, um representante, que chamavam
eles, eles vinha com arco e fazia a representação deles [...] Tinha
assim... aquela pessoa, mas não representava tanto assim, como tem hoje
o cacique, tinha aquelas pessoas representantes, mas que não faziam
tanta coisa como tão fazendo hoje [...]. Era por família, assim: morria o
capitão, fica com o filho, aí vai passando de filho pra neto, pra bisneto,
vai dependendo também do trabalho da pessoa, se a pessoa trabalhá
importante e todo mundo gosta... aquele será tirado só quando falecê.
Mas se ele não conseguir trabalá dioreito, então ele troca... (Antônio
Moreno)
Para a sua transformação em índios foram criadas então, três figuras de poder que
corresponderiam a uma suposta repartição da vida tribal, mas na verdade refletiam apenas
uma repartição de poder com base no modelo estatal: o cacique (pensado como autoridade
política), o pagé (como autoridade religiosa), o capitão (como autoridade policial) e o
encarregado, conhecido como “chefe de posto”, ou simplesmente “chefe”, responsável
pelo poder tutelar e pela administração da área indígena e sua evolução econômica, e à qual
as outras três autoridades nativas deveriam prestar contas. A escolha do pagé encontrou
uma aparente tradução imediata na figura do “sarapó”, e sua escolha foi mais ou menos
evidente para Carlos Estevão. A escolha da segunda autoridade no entanto, por não
encontrar nenhuma correspondência com o sistema de distribuição de autoridades vigente,
foi atribuída ao próprio “sarapó”: Carlos Estevão pediu que ele escolhesse um homem de
confiança seu para o lugar de cacique. As primeiras adaptações, portanto, no sentido da
construção de uma indianidade, na situação Pankararu, se antecipariam à chegada do
próprio SPI, por ingerências do “dr. Carlos”, em suas primeiras visitas, de 1935 e 1937.
Com a chegada efetiva do SPI, mas ainda sob a orientação de Carlos Estevão, foi
realizada a primeira sucessão daquelas duas autoridades, já muito idosas, e uma “tradição”
de vida curta começava então a ser implantada: no lugar do velho pagé assumiu o seu filho,
ganhando o cargo um caráter hereditário, enquanto para o lugar de cacique, era repetido o
... e aí meu pai ficou como capitão. Qualquer coisa que acontecia
aqui na aldeia, não é que nem hoje, que a coisa tá mais..., que o pessoal
evoluiram muito e a coisa tá mais evoluída.... Assim, quando tinha uma
teima, meu pai ia, apasiguava logo e o branco não sabia. Hoje tá
diferente porque qualquer teiminha que tem, se o chefe não resolve tem
que levar logo pro branco... (Antônio Moreno)
Com isso eram introduzidos os novos elementos que viriam assumir uma
importância fundamental no arranjo de autoridades Pankararu. O atributo que até então
teria dado um vago prestígio àqueles que na comunidade eram responsáveis pelas viagens
em busca dos direitos, isto é, as lideranças peregrinas, ganhava então um novo estatuto,
formal e com atributos até então desconhecidos. Além disso, como ficará mais claro na
segunda parte deste capítulo, as duas adequações ao modelo da indianidade (a etnológica e
a estatal), apesar de pensadas em separado, estavam intimamente ligadas, já que o sistema
de distribuição de terreiros estava associado ao sistema de distribuição de autoridade e a
eleição de uma nova figura de autoridade dava lugar a um critério novo e externo ao
sistema dos terreiros.
2
É pouco depois da fundação do “Posto Indígena Pancararu” que se definirá para a
população local, remanescente e não-remanescente, o significado da transformação dos
caboclos do Brejo em índios Pankararu. Imediatamente após a fundação, entre 1940 e
1941, existiram (pelo que se pode recuperar pela quase nula documentação do período)
dois encarregados, Décio Dantas e Vicente Ferreira Viana, sendo que o primeiro parece ter
origem numa importante família de políticos de Tacaratu, a família Dantas. Sobre eles não
há qualquer registro na memória do grupo, permitindo supor que nem mesmo tenham
ocupado o posto indígena. Mas aproximadamente entre 1941 e 1942, vem ocupar o cargo
Orinculo Castelo Branco Bandeiras, mais conhecido pelo grupo como Castelo Branco,
aparentemente um sargento do exército reformado, que também não deixou quase nenhum
Até então, as relações entre índios e não índios, mesmo em se tratando das
lideranças que se mobilizaram pelo reconhecimento indígena e buscavam ajuda contra a
invasão das roças pelo gado, passavam por uma relação de vizinhança, bastante
mediatizada por relações de afinidade, trocas matrimoniais, laços de compadrio, de
emprego e de clientela. O discurso das lideranças dos posseiros, desde as mais velhas
(ativas durante as décadas de 1940 e 60) até as atuais (sindicalizadas) passa justamente pela
negação da existência do conflito, enumerando para isso os laços sociais e afetivos, as
histórias de namoros, casamentos, mais recentemente o hábito dos jogos de futebol (onde
índios e não-índios não jogam necessariamente em lados opostos), as viagens para a feira
nos mesmos “carros de aluguel” de Tacaratu, os filhos que estudam na mesma escola etc.
26
Pelo que é possível recuperar através da documentação referente ao Posto Indígena Pankararu nos arquivos
do Museu do Índio, Agenor Guedes foi o encarregado seguinte à Castelo Branco e o Santana foi um dos
últimos a ocuparem o cargo, em fins da década de 80, e que realizou a demarcação de 1984. A lacuna de
memória entre esses dois encarregados nesse depoimento é representativa de vários outros depoimentos e dá
uma medida do grande vazio que marcou a presença e atuação normalmente burocratizada dos “chefes de
posto”.
O padrão dominante nas relações locais entre índios e não-índios era então
invertido, e os Pankararu reviviam a história da morte de Cavalcante. Como resposta, os
posseiros passam a recorrer às autoridades de Tacaratu, como o promotor, o prefeito e o
delegado, que eram em muitos casos seus próprios parentes. O território indígena no
entanto, como domínio da União, estava fora da sua esfera de ação e Castelo Branco fazia
valer suas prerrogativas de interventor sobre um território especial. O último
acontecimento que envolve a figura de Castelo Branco demonstra até onde esta
prerrogativa podia ser usada. Esse caso é relatado com minúcias por quase todos os homens
mais idosos da área indígena ou dos posseiros, mesmo que eles não tenham presenciado o
acontecimento, encontrando variações mínimas entre os diferentes narradores. Essa
estabilidade do relato é importante como índice não de uma veracidade, que seria
assegurada pelas diferentes fontes, mas da forma como o relato foi fixado através das
inumeráveis vezes em que já foi repetido, carregado que está do valor de um evento
paradigmático das potencialidades de um conflito eternizado e permanentemente
sublimado por variados laços de dependência. Entre os Pankararu, muitas vezes o relato
ganha um aspecto humorístico, que tira sua graça da inversão das hierarquias vigentes, da
excepcionalidade da realização de um desejo e dos seus detalhes grotescos , numa espécie
de “carnavalização” (no sentido dado ao termo por Baktin) da história de Cavalcante.
O contexto do evento é a busca, por parte dos posseiros, de providências contra o
que consideravam as arbitrariedades de Castelo Branco, junto ao presidente da república,
Getúlio Vargas, depois de terem reconhecido a nulidade da ação das autoridades locais. Em
resposta, a presidência da república simplesmente faz comunicar ao SPI a queixa, que
então a transmite ao Castelo Branco. Nesse ambiente de exasperação, um dos posseiros da
área que havia subescrito a queixa, casado com uma “menina do Brejo”, morador em
Tacaratu e policial destacado no batalhão da localidade de Quixaba, vizinha ao Brejo,
envolve-se numa desavença com um índio e, com a autoridade de policial, confisca e
quebra a faca que o índio portava. O índio faz queixa à Castelo Branco, experimentando
3
A atuação de Castelo branco no sentido de liberar uma violência até então
sublimada resultaria, no entanto, numa ambiguidade fundamental, onde a oposição
declarada entre índios e posseiros não conseguiria se sobrepor e apagar os laços e alianças
pessoais e familiares que cruzavam a fronteira entre as duas categorias. Por um lado, o
27
Odilon Gomes Maurício complementa a narrativa do ponto de vista da cidade explicando que enquando o
delegado foi até a área buscar o soldado e Castelo Branco, o juiz de Petrolândia ficou esperando sua chegada
andando de um lado para o outro da rua "que nem lançadeira" e que, sob a decepção de não vê-lo trazido,
resolve castigar o próprio delegado: "... ele levantou a mão assim no queixo dele, balançou pra lá e pra cá e
disse: 'Eu deveria arrancar-te a farda no meio da rua, mas em todo caso eu vou te dar um jeito'. E mandou ele
pra Santa Maria da Boa Vista, que naquela época a maleita matava até os paus, quanto mais cristão que
chegava assim."(Odilon Gomes Maurício)
[...] João Moreno casou-se com uma prima minha. Ele viuvou e
casou-se com uma moça aí do Bem-querer, prima minha, parente da
gente. [...] A gente onde encontrava dialogava. [...] que era muito amigo
da gente. A gente viajava junto pra Tacaratu, chegava ali no Brejo, ia
subindo e ele alcançava a gente: “Ah, vamo batendo papo”, até chegar
dentro de Tacaratu. Nas demarcações, em cima das demarcações dos
limites com Tacaratu tinha um caboclo por nome Antonio Curinga,
caboclo velho, justamente Zé Coringa, irmão dele era compadre de pai.
Pai era padrinho de João Coringa. (Odilon Gomes Maurício)
Essa situação das alianças que demarcava, em lugar de uma linha de distinção, uma
larga faixa de “mistura”, produz a ambigüidade do engajamento Pankararu no modelo de
relacionamento conflitivo proposto pelo tipo de atuação tutelar de Castelo Branco. No
lugar da franca oposição que supostamente existia entre índios e não-índios, surgem muitas
situações onde a oposição é negada, ou cuja responsabilidade é transferida para um lugar
de autoridade fora do alcance das decisões indígenas.
Como já foi apontado no capítulo anterior, a entrada do órgão, representado como
“governo dos índios”, tem uma leitura por parte dos Pankararu que aproxima-o de uma
certa lógica ou ética religiosa, na qual assume o lugar de “pai”, que restitui os “direitos”
aos seus protegidos, devendo também isentar-lhes do conflito direto. A “luta”, ao contrário
do que ocorre com o vocabulário da militância camponesa (CAMEFORD,1995), não surge
... naquela época a gente não entendia das coisa, quando nós
dizia nós quer então nós caçava força e ia, e todos acompanhava. Mas
agora eu já tô diferente: na hora que nós embalança, temo que jogar a
União de frente, porque eles tão ganhando pra isso. Nós não vamos
deixar um chefe de posto assentado e enfrentar uma questão. Nós não
vamos deixar um delegado assentado na cadeira, e nós morrer aqui, que
se nós morrer aqui aquela questão nossa não vai servir, que nós
morremo. Então o que nós temos que fazer é ele procurar um meio pra
nossa defesa. Eu acho que os índio tão certo, eles não tão errado não. O
problema nosso é querer. E eles tem que dar. Então, eles não ganha nas
costas da gente? Então eles tem que pagar nós também, porque se não
fosse nós eles não ganhava a imensidade... Porque o empregado da
FUNAI ganha bem, os mais fraco a gente sabe. E os mais forte? Então
1
Os encarregados que sucederam Castelo Branco alterariam definição do papel do
encarregado de posto, fazendo da tutela rotina administrativa e estabelecendo um novo
padrão de relacionamento entre índios e não-índios. O primeiro, logo após o conflito,
reverteria inclusive os atos de expulsão de posseiros operados por Castelo Branco,
restituindo suas posses e restaurando parcialmente a ordem vigente. Se a ênfase de Castelo
Branco recaía sobre o território e sobre os problemas relativos à manutenção de suas
fronteiras, dando à administração da área indígena e à tutela um sentido aproximado ao do
exercício do poder soberano -isto é, a produção e controle dos mecanismos de
exclusividade de um espaço e dos bens com origem neste espaço, por uma determinada
população, através de arranjos táticos e diplomáticos, na extensão dos quais poderia
suceder a guerra- a dos encarregados seguintes recaía sobre a produtividade. Os Boletins
Internos do SPI dão pistas sobre a natureza dessa diferença de atuação. Para os
encarregados que lhe sucederam, a ênfase passou a estar na produção de bens e na auto-
sustentação da -como então era encarada- empresa tutelar (Cf. Cap.1/2). Fundamental de
agora em diante passava a ser o governo das coisas (FOUCAULT,1979), no qual suas
iniciativas e resultados passam a ser expressos em termos numéricos. O território é
completamente abstraído e a própria população é encarada como mais um dos itens do
patrimônio indígena, ao surgir como índice contábil: número de homens, de mulheres, de
crianças, nascimentos e mortes.
O afastamento do conflito fica evidenciado pela forma periférica e distanciada
como ele aparece na documentação daí por diante. Assim, em 1945, num relatório de
viagem de Túbal Fialho Vianna, inspetor do SPI enviado à área para inspecionar a
passagem do cargo de encarregado de Agenor da Silva Guedes para Sebastião Francisco da
Nos avisos mensais, esse distanciamento vai ficando claro pela sobreposição de
umas poucas observações pontuais sobre o conflito, entremeadas por informações
sitemáticas sobre a produção do posto. Assim, em 1954, a sumária informação de que
“alguns índios, chefiados pelo descendente de índios Cícero José Barros voltaram a
trabalhar na área em litígio” (grifos meus), recusando-se em obedecer às ordens do posto,
não tem qualquer continuidade nos “Avisos” anteriores e posteriores, onde abundam
notificações sobre a produção e comercialização agropecuária: “fizemos plantio de
coqueiros,..., plantamos 56 mudas de bananeiras, capinamos todos os campos de
fruticultura...” (Grifos meus. DOC.:17).
No início da década de 1940 estava em plena vigência o modelo de ação indigenista
que optava pelo arrendamento das terras, como forma de incrementar o patrimônio
indígena (PERES,1992). Segundo este modelo, “a criação das terras indígenas era
orientada a englobar a maior faixa de terra possível, a fim de que o poder tutelar fosse
exercido sobre um campo social mais abrangente” (idem), isto é, a maior faixa de terra
ocupada, como forma de criar um “mercado fundiário tutelado”. Sob esta perspectiva,
demarcar uma terra com posseiros significa a possibilidade de tutelar uma parte de
população e terras produtivas maior que aquela à qual a sua ação estaria legitimada a
Quadro 5
4000
3000
2000
1000
0
1857 1878 1944 1950 1955 1960 População
1964 1972 1975 1978 1983 1986
(DOCs.: 1; 6; 25; 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34).
Quadro 6
Curvas mensais da "população assistida" pelo posto indígena Pankararu entre os
anos de 1949 e 1964
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
49 50 51 52 53 54
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
61 62 63 64
A questão de método liga-se, assim, a uma questão conceitual: afinal, quem são os
“índios assistidos”? Essa questão desdobra-se em: quem é índio, quem é Pankararu e quem
é da área indígena Pankararu. Não se trata de um problema trivial e o silêncio sobre a
questão na maior parte do tempo coberto pela documentação não deve permitir a
naturalização do recorte suposto. Essas questões surgiram com a própria tentativa de
aplicar sobre a população étnica do Brejo dos Padres o princípio administrativo que
supunha a perfeita identidade entre população e território, pensado como trecho contínuo
de terra, delimitado por uma linha de fronteira. Desde o primeiro momento, a situação
Pankararu impunha a esta lógica de ação o problema de lidar com uma população indígena
externa à área indígena, cuja relação com o seu território não podia ser traduzida em termos
análogos ao da relação entre nação e Estado-nação. Por mais que a administração
indigenista se esforçasse por regular o fluxo de pessoas através de suas fronteiras, este
fluxo se mostrava na prática incontrolável.
Em 1950, o encarregado Coriolando Mendonça consultava a sua Inspetoria sobre a
possibilidade de aceitar o retorno para a área indígena de “índios que daqui se ausentaram
há mais de dez anos” (DOC.:38), antes, portanto, da demarcação da área. A consulta vinha
acompanhada de uma rápida explicação sobre o contexto desses pedidos. Dizia que
“ultimamente, no entanto, têm procurado retornar ao aldeamento dezenas de pessoas que
daqui se ausentaram muito antes de ser criado o posto indígena e que, convidadas pelo
primeiro encarregado, quando da época de sua criação, para retornarem às suas antigas
residências, não aceitaram o convite” (idem). Sua própria opinião sobre os procedimentos a
serem tomados vinham logo a seguir: “Julgo que tais pessoas já se encontram emancipadas
Quadro 7
"Recenceamento [...] dos mestiços de índios pancarús com a raça branca e também
com negros..."
Discriminação por Mestiços de índios Particulares casados com ditos
idades pancaraús mestiços
com brancos e negros
homens mulheres totais homens mulheres totais
menores de 6 286 315 601 - - -
de 7 a 12 242 185 427 3 3 6
de 15 a 20 231 257 488 - - -
de 21 a 40 245 322 567 20 21 41
de 41 a 60 149 163 312 19 20 39
de 61 a 80 42 42 84 4 1 5
de 81 a 90 1 6 7 1 2 3
de 91 a 100 1 1 2 - - -
TOTAIS 1.197 1.291 2.488 47 48 95
(Fonte: DOC.:39)
28
Esse é um problema generalizado por todas as agrovilas que, com a demora na implantação do plano
original da CHESF, criam novas soluções para dar conta da criação de novas famílias com o casamento dos
filhos.
Os Pankararu de hoje são fruto do arbitrário poder tutelar que, através de sucessivas
adequações, ou atos de fundação e rotinização, transformou-os em índios, requisito prévio
de seu exercício. O modelo da indianidade, no entanto, se é útil para delimitar o tipo de
relação em que os grupos indígenas são introduzidos através da tutela, não resolve o
problema das diferenças entre as soluções particulares. Estas, adaptando o modelo a
populações específicas, gera formas originais de arranjos de poder. No coração da
homogeneização emerge novamente a diferença: qual a forma Pankararu da indianidade?
Ou melhor, voltando ao início da formulação, qual o efeito particular que aquelas
sucessivas atualizações, com base em um único modelo, assumiram na situação Pankararu?
Mas ao tentar responder a esta pergunta, impõe-se uma logicamente anterior: quais foram
as formas prévias que lhes serviram como objeto de adaptações?
Arranjos anteriores
1
Uma forma possível de começar essa descrição seria respeitar o roteiro proposto por
aquele que é o texto canônico da antropologia política, a “Introdução” ao volume sobre os
Sistemas Políticos Africanos (EVANS-PRITCHARD & M FORTES,1981). Nele, os
autores, apesar de trabalharem basicamente com a dualidade do com e sem Estado, falam
na verdade de três modelos possíveis: o das sociedades estatais, onde as relações políticas
seriam reguladas por uma organização administrativa; um primeiro tipo de sociedades não
estatais, onde as relações políticas seriam reguladas pelo sistema de linhagens e um
terceiro, onde as relações politicas acompanhariam as relações de parentesco. Neste caso,
os autores diferenciam o “sistema de parentesco” do “sistema de linhagem” por
identificarem no primeiro “a série de relações ligando o indivíduo a outras pessoas e a
unidades sociais particulares através da família bilateral”, característica de sociedades
muito pequenas, nenhuma das quais discutida no livro. A dificuldade de se identificar uma
3
Quanto às figuras de autoridade, só há registro de uma designação especial que
indicaria o desempenho de um papel de autoridade destacado dos demais. Como já
mencionamos, o “sarapó” representava a autoridade moral de base religiosa e não parece
ter exercido outros poderes que os de influência moral e religiosa interna à comunidade.
Sua função precípua era a de zelar pelo principal Encantado da aldeia, o Índio Xupunhum,
ou, como também é conhecido, o Índio Mestre Guia. Este é o único Encantado a ter uma
29
Para uma descrição desta festa ver OLIVEIRA,1943.
4
Assim, não há vestígios de que a organização social e política dos Pankararu
apresentasse, no momento em que se dá o contato com o SPI, uma chefia centralizada que
englobasse seus diferentes núcleos familiares. As unidades familiares, que tenderam a
constituir grupos de residência, ou grupos vicinais, parecem ter tendido a respeitar um tipo
de autoridade que emergia da figura de patriarcas dotados de qualidades especiais,
geralmente associadas a uma combinação variável de poder mágico, valor moral e outras
variáveis como a capacidade de criação de lealdades rituais, da agregação do maior número
de pessoas através de laços familiares e, ou, de trabalho e de crédito, tão importantes nos
períodos de seca. Essas autoridades, no entanto, não exerciam poder governativo ou
repressivo e, como dissemos, não representavam, com exceção do “sarapó”, uma
especialização suficiente ao ponto de ganhar designação especial, exercendo sobretudo o
papel de mediadoras de conflitos entre os próprios pankararu. Nesta organização política
sem cargos de poder específicos ou qualquer hierarquia mais estruturada que a discreta
distribuição de prestígio religioso e o corte básico entre o “sarapó” e os outros “pais de
Praiá”, as disputas eram resolvidas individualmente ou através de acertos entre as famílias
dos envolvidos, com o recurso à violência física, ou àquelas autoridades morais, que agiam
como conselheiros, sem poderes de resolução de conflitos ou punição dos faltosos,
sustentadas apenas no poder de influência sobre as opiniões.
As histórias de caráter acentuadamente míticos de que já lançamos mão confirmam
essa ausência de uma hierarquia de poderes, ou de uma especialização de competências.
Tanto no primeiro mito do Tarraxá, quanto na história da morte de Cavalcante, as decisões
1
Depois de ter criado a figura do pajé, preenchida pelo antigo sarapó, e ter
supervisionado a passagem, dois anos depois, desse cargo e do cacique para seus
sucessores de uma forma que pretendia tornar “tradicional”, o “dr. Carlos” não assistiu à
segunda sucessão daqueles cargos, realizada pelos próprios pankararu. É João Binga, hoje
cacique Pankararu, o principal narrador da história dessa sucessão, na qual ocupou papel de
2
Mais tarde, ao final da década de 1960, seria o próprio João Binga que alcançaria o
cargo, não mais de pajé, mas de cacique, através de uma situação de viagem, em
conseqüência de um desentendimento entre o encarregado de posto e as autoridades tribais.
O desentendimento decorria da repartição da produção agrícola do posto, onde o
encarregado se recusava a entregar uma parte dos produtos para a população, para
convertê-la em renda do posto indígena, em especial a produção de garapa e rapadura.
Parte das lideranças tribais dirigem-se então até a “superintendência” para pedir a
substituição do encarregado. Como de costume, o João Binga encontrava-se entre eles. No
escritório da superintendência, foram feitas as reclamações, mas, como o João Binga
mantinha-se calado, o superintendente perguntou-lhe se aquilo tudo era verdade. “Só a
metade”, respondeu. Para “fazê justiça reta” e não para defender o encarregado, ele explica
que, se alguns não bebiam a garapa do posto sempre ou não a levavam para os filhos, era
porque o produto não era suficiente e não por recusa do “chefe”.
Satisfeito com sua posição, o superintendente encerra a reunião e o chama para
conversar. Diz que, com aquela declaração, tanto o encarregado quanto ele tinham “ganho
pontos”. João Binga aproveita, queixa-se do problema das terras em disputa com os
posseiros, que recentemente tinham queimado o travessão que protegia suas roças do gado
e consegue do superintendente uma ordem por escrito dirigida ao encarregado, exigindo
que requisitasse às polícias de Tacaratu e Petrolândia proteção aos índios, enquanto eles
refizessem o travessão. Caso o encarregado não cumprisse a determinação dentro de seis
dias, como supôs João Binga, ele mesmo deveria mandá-lo para o Rio de Janeiro e estava
autorizado a ir com aquele “documento” até os delegados de Petrolândia e Tacaratu para
fazer a requisição.
Voltando à área, João Binga apresentou o documento ao encarregado, mas não
entregou-o (como ele mesmo frisa na narrativa) e o encarregado se viu obrigado a cumprir
3
O rápido resumo dessas situações de disputa pelos cargos de poder de natureza
estatutária, instituídos pelo órgão indigenista, revela o lugar de destaque de algumas
relações e mecanismos, que ajudam a compreender a relação de ressignificações, mais que
de simples substituição do antigo pelo moderno ou do tradicional pelo burocrático. Desde a
primeira situação de disputa entre João Binga e João Tomás, o “documento”, esse elemento
novo, fruto direto da presença de uma ordem letrada de base burocrática, assume um papel
de destaque nas disputas de poder, tão mais significativo pelo fato da totalidade dos
personagens citados nos relatos acima não serem alfabetizados30. A entrada deste novo
elemento na dinâmica de disputas pelos lugares de poder, a princípio, revela a substituição
ou subordinação das regras anteriores, que passavam basicamente pelas disputas de
lealdades através do exercício ritual, colocando em seu lugar uma titulação abstrata, que
retira o seu poder do fato de ter origem na estrutura estatal, independente de qualquer
consentimento da população a que faz referência.
Por outro lado, esse poder atribuído ao “documento” tem uma forte semelhança
com outros tipos de objetos mágicos, que retiram sua força da performatividade de que são
capazes, ou do fato de carregarem em si, na forma de uma espécie de mana, o poder
daqueles que lhe produziram. A autoridade daquele que possuía o documento, como fica
claro no caso do João Tomás, sustentava-se na crença do poder do documento, antes de
qualquer valor legal com repercussões concretas, que isso pudesse implicar. Não existe
nenhuma legislação ou determinação interna do órgão, que regule a distribuição de
documentos, instituindo pessoas em cargos políticos tribais e, mesmo que ela exisisse, o
fato de não estar de posse do “documento”, no momento da entrevista com o diretor do
30
É digno de nota como alguns desses personagens, notadamente João Tomás e Quitéria ( que como veremos
n capítulo seguinte, encabeçam as facções da área à época de nossas visitas, em 1993 e 94) possuem grossas
pastas com uma série de documentos de origens variadas, relativos a diferentes assuntos, que eles conhecem
de memória, algumas vezes até mesmo sendo capazes de descrever pormenorizadamente os seus conteúdos.
A representação indígena
1
Já no ano de 1980, a pretexto de resolver o problema das terras em litígio com os
posseiros, ou como ele dizia na época, “conseguir a escritura da Carta Régia”, João Binga e
Manuel Oliveira, casado com a irmã do primeiro, faziam muitas viagens às FUNAI's de
Recife e Brasília. Antes de uma delas no entanto, João Binga percorreu a maior parte das
famílias do “Brejo”, recolhendo assinaturas num “documento” cujo conteúdo era
absolutamente desconhecido por aqueles que o assinavam (na sua totalidade não-
alfabetizados), mas que dizia referir-se ao pedido da “Carta Régia”. Desconfiadas com
aquelas sucessivas viagens e com o “documento”, Quitéria e Maria Berta, outras duas
lideranças, que eventualmente participavam das viagens, resolvem verificar a veracidade
das histórias contadas pelo cacique e, acompanhadas de Antônio Moreno, filho do já
falecido João Moreno, vão à Recife, poucas horas depois do cacique e do seu companheiro
partirem para Brasília. Lá, descobrem que as assinaturas recolhidas na verdade legitimavam
um documento de transferência das terras da horta do posto indígena para o nome do
cacique.
As terras, transformadas em horta pelo posto na década de 1940, correspondiam às
terras antes dedicadas à Santo Antônio, padroeiro da área indígena, “dono” da igreja do
Brejo e ocupavam uma das faixas de terra delimitada pelas “linhas”. Antes do SPI apossar-
se dessas terras, eram de usofruto dos zeladores da igreja, que se sucediam
hereditariamente e se faziam responsáveis pela organização das festas religiosas, compra de
31
Igualmente interessante é ver os funcionários do órgão participando plenamente desta magicização do
documento.
2
O fato de exercer forte influência sobre as duas principais lideranças estatutárias do
grupo e de não exercer nenhum cargo formal, somar-se-iam a uma capacidade de
“representação”, que a tornariam cada vez mais visível. Quitéria explora ao máximo, em
seu discurso, o lugar de mulher e de subordinada, estabelecendo um discurso em grande
medida padronizado, mas de grande força dramática. É interessante que, em nossas
conversas, ela tenha citado quase exclusivamente nome de mulheres, ao falar dos
responsáveis pelas fontes de recursos que ela tem conseguido mobilizar ao longo dos
últimos anos, tanto na LBA e na EMATER local, quanto junto ao Museu do Índio, no Rio
de Janeiro, ou junto à Secretaria de Cultura do estado de Pernambuco etc. Pude assistir
também um pouco dessa retórica nos encontros realizados entre as lideranças e as juíza e
promotora de Tacaratu, em situações de negociação sobre o conflito com posseiros.
3
O outro elemento de grande importância, que essas situações nos apresentam, é o
lugar ocupado pelas viagens nessa nova ordem. Elas estão na própria origem do órgão
indigenista na área, como vimos no capítulo anterior, associado à convergência de um
circuito de viagens de trocas rituais e um circuito de viagens de busca dos direitos, já
tradicionais, não fazendo parte, portanto, de um novo estado das coisas em oposição a um
estado anterior; mas, depois de estabelecida a relação tutelar, elas foram bastante alteradas,
tanto em seus circuitos quanto no papel que passaram a desempenhar nos arranjos de poder
tribais.
Em primeiro lugar, as viagens abandonam os circuitos frouxos e relativamente
aleatórios percorridos, em decorrência do surgimento de personagens capazes de garantir a
mediação entre os grupos e autoridades que lhes acessariam “direitos”. Em lugar desses
circuitos variáveis, estabelece-se um desenho fixo, no qual as “centralidades”
(RAFESTIN,1993) são os entrepostos do órgão indigenista, mediador privilegiado e, até
um determinado momento, exclusivo do fluxo dos “direitos”. Agora, os centros de poder
para onde se dirigem as lideranças peregrinas são os escritórios das Inspetorias (mais
tarde, das DR's e, hoje, das ADR's), da própria diretoria do órgão, no Rio de Janeiro e
depois em Brasília, ou no Museu do Índio (RJ), onde foram depositados os “documentos”
de legitimação e registro das posses indígenas. Em segundo lugar, as viagens, que antes
apresentavam-se como uma fonte alternativa de prestígio, compondo mais uma das
variáveis que se agregavam à lógica dos terreiros, tornam-se, com a criação dos cargos de
Estado-pai-patrão
1
A rotinização da tutela teve por efeito também o de agregar à noção de tutor e
empresário à de patrão, justificando a utilização da mão-de-obra indígena com argumentos
administrativo-educacionais emancipatórios. O plano de emancipação dos postos indígenas
Os Pankararu assalariados pelo posto indígena, durante os nove anos a que as folhas
de pagamento depositadas nos arquivos do Museu do Índio dão acesso, faziam parte, na
quase totalidade, daquela lista de lideranças peregrinas que os relatos apontam como
responsáveis pelas buscas dos “direitos”. Por outro lado, alguns dos funcionários não-
Quadro 9
Admissão de funcionários indígenas pela ADR 3 (1971-1987)
4
Pankararú
3
outros
2
0
71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87
À época em que esses dados foram recolhidos (outubro de 1994), do número total
de funcionários, pouco menos de um quarto eram indígenas. Ainda que a concentração de
32
Os quadros que se seguem foram montados a partir da consulta direta aos arquivos do Departamento
Pessoal da FUNAI de Recife.
70
65
60
55
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90
Percebe-se assim que o argumento inicial empregado pelo SPI para justificar essa
prática é desmentido pelo uso de tais empregos, mais como recursos ampliadores da
mobilidade indígena, que como uma suposta capacitação para a autonomização da
administração das áreas, visando sua futura emancipação. Pela falta do número total de
funcionários pankararu fora da 3a DR não é possível avaliar o quanto o caso Pankararu é
especial, mas é possível traçar o perfil dos seus funcionários em área: a grande maioria
deles (17 dos 19) é composto de mulheres e, entre elas, a maioria, de professoras de
primeiro grau, ocupando grande parte das vagas das escolas dentro da área indígena.
Quadro 11
Escolas e Professoras da aldeia Pankarau (1994)
Localização da Subordina No(subord.) das OBS:
escola ção profas
1 “Grupo” do posto FUNAI 5 (FUNAI)
indígena
2 “Grupo” do posto Município 5 (Município)
indígena
3 Serrinha FUNAI 2 (FUNAI), 2
(Município)
4 Espinheiro FUNAI 2 (FUNAI), 2
(Município)
5 Espinheiro Município ?
6 Agreste Convênio 1 (Município) Prédio da FUNAI
7 Saco dos Barros FUNAI 1 (FUNAI), 3 Prédio construído pelo
(Município) Lions Club
8 Tapera Município 2 (município)
9 Carrapateira Município 2 (município)
2
Durante muito tempo, a entrada de um funcionário indígena dependeu apenas de
uma indicação e, assim, era possível que um funcionário mais antigo ou, mais
frequentemente, uma liderança de contato com o órgão, com boa entrada nos seus
escritórios, os solicitasse. Um largo encadeamento de relações de clientela era então
acionado de forma que o preenchimento de um único cargo podia estar alimentando as
relações da liderança dentro da área com as suas lealdades, as relações do chefe de posto
com as lideranças, de funcionários dos escritórios de Recife e Brasília com esses chefes e,
por fim, do órgão com os grupos como um todo. No caso dos Pankararu, segundo relatos
dos próprios funcionários indígenas, a mediadora mais importante na conquista de
empregos, desde que se generalizaram na década de 1980, foi Quitéria. Assim, por
exemplo, o atual chefe de posto dos Kiriri, seu sobrinho, depois de ter viajado ainda
criança com a família para São Paulo, onde permaneceu até 1986, e de onde vinha visitar a
AI anualmente, às vezes passando o período de colheita para auxiliar a família, foi trazido
de volta por uma oferta de emprego de enfermeiro no posto indígena. No caso de outro
sobrinho, hoje chefe de posto na própria AI Pankararu, que Quitéria também trouxe de São
Paulo (neste caso, a sua oscilação entre a AI e São Paulo ocorria em períodos mais curtos,
de cerca de seis meses), o emprego foi conseguido através de uma busca direta em Brasília,
para onde foram juntos atrás de uma vaga em alguma Universidade ou de um emprego, o
que surgisse primeiro. Saiu de lá com o segundo, transformando-se em motorista do posto
indígena.
Em primeiro lugar, é interessante destacar como a generalização do recurso do
emprego na FUNAI tornou-os, até determinado momento, uma fase na “carreira” (no
sentido dado ao termo por GOFFMAN,1980) de um jovem indígena bem sucedido,
assemelhando-se às antigas viagens na busca de direitos, mas que agora assumem uma
Esse capítulo pretende realizar uma reflexão sobre processo ou sobre o complexo de
elementos e relações que constituem um território étnico, nas suas múltiplas, transversas e
conflitantes conjugações dos aspectos jurídicos, ambientais, políticos, míticos, rituais,
históricos etc. Podemos tomar como ponto de partida para isso, como provocação e como
exercício, a frase que ao longo das lutas pela demarcação das terras indígenas tornou-se
uma espécie de emblema, um dazibao impresso em postais, adesivos e publicações
militantes ou simpatizantes da causa indígena: “índio é terra”. Esse dazibao, que penetrou
nosso senso comum e passou a informar nossas análises, não pelo trabalho de observação e
crítica, mas pelas frestas das vontades e pela prática da denúncia, sempre as mais bem
intencionadas, teve o efeito porém de naturalizar, em termos de necessidade, preservação e
equilíbrio, uma relação extremamente complexa. Partiremos portanto, da pergunta: afinal,
o que se diz e o que se faz quando se afirma que índio é terra?
Um território Semântico
É justamente na associação entre corpo e terra, isto é, nas metáforas que buscam
compreender o espaço através de sua associação ao "corpo da terra" e que, através de
analogias bio-médicas, suprem a necessidade de uma aparência científica, que Rafestin
(1986) encontra as bases representacionais de uma antropologia do espaço, assim como
também as razões de seus limites. A grande barreira para seu real avanço estaria, segundo
ele, na insistência por parte dos geógrafos em ignorar a necessidade epistemológica de criar
distinções mais rigorosas entre as noções de espaço, território e territorialidade. Ignorância
esta que se sustentaria na crença de que o mundo se ordena segundo um arranjo de objetos
independentes do espírito ou, como diria Latour (1994), na lei constitucional da
modernidade que separa em pólos opostos e absolutamente distintos, sujeito e objeto. Para
reconciliar tais pólos, mais que para superar tal oposição, Rafestin recicla a metáfora do
33
A versão marxista deste debate, da qual Soja oferece um largo panorama, substantivamente não tem lugar
aqui, mas os termos em que ela de desenvolve guardam algum interesse. Não devemos nos enganar com a
aparência bizantina que podem assumir as discussões acerca da localização do espaço na base ou na super-
estrutura social, de sua caracterização como determinação, substrato ou reflexo das relações sociais de
produção. A cada disciplina, seu próprio fetichismo. De alguma forma, essa busca de uma última instância
pode estar presente também nas mais elaboradas construções etnográficas, ainda que nestes casos a última
instância não seria econômica, como no marxismo, mas de parentesco ou cosmológica, de maneira que,
pensada em sua suposta imutabilidade, confude-se com a própria definição ontológica do grupo em questão.
Teremos um exemplo adiante.
34
A fora certas discordâncias, a noção de “arranjo territorial” pode ser vista como uma tentativa de gerar a
contrapartida espacial para o que João Pacheco de Oliveira (1988) definiu como “situações históricas”, num
avanço sobre a categoria de “situação social” de Gluckman (1987).
Geografia Jurídica.
1
Do ponto de vista jurídico, a geografia Pankararu, em primeiro lugar, um arranjo
geométrico feito sobre um espaço vazio, baseado legislação imperial instituída pela
mediação da Igreja, na sua forma missionária. Nesse arranjo, o espaço é tomado como um
plano em branco, onde é pontuado um centro, escolhido de forma mais ou menos aleatória,
tomando como referência o sistema de hierarquia dos lugares estabelecido pela ordem
missionária, o cemitério ciado pela Missão, mais do que qualquer sistema de lugares
nativo, ao qual aliás, não se faz referência. Desse centro são estendidas quatro linhas
imaginárias em direção aos pontos cardeais. Ao completarem uma légua cada, essas linhas
são cortadas perpendicularmente por outras quatro linhas que formam então um quadrado
perfeito e que dão forma à terra indígena Pankararú, segundo a memória que estes
mantêm da doação imperial de uma sesmaria à missão religiosa que aldeou seus
antepassados durante os séculos XVIII e XIX. A única notícia ofial da presença de um
2
Quando da primeira intervenção local do órgão indigenista, em 1940, no entanto, os
limites da terra reivindicada não foram respeitados. No trabalho de demarcação, em que a
atuação indígena, como de regra (PERES,1992), restringiu-se a termos puramente técnicos,
servindo mais como redutora de custos que como participação efetiva no processo, o
3
Essa rápida descrição da situação jurídica da terra Pankararu parece suficiente para
demonstrar a necessidade de uma distinção operacional entre terra e área (LEITE,1993)
que nos permita continuar pensando a geografia jurídica sem confundir o domínio indígena
com sua realidade estritamente legal. Algumas vezes o acompanhamento da situação de
uma terra indígena através da massa documental, ao mesmo tempo redundante e lacunar
produzida pela FUNAI, esbarra na dificuldade de distingüir as múltiplas dimensões do
território indígena. A distinção analítica entre área e terra permite discriminar o conjunto
de atos administrativos do órgão indigenista, operadores da definição e da gestão de um
determinado recorte administrativo sobre o espaço, do conjunto de eventos que se operam
naquele recorte espacial ou que tem impacto físico sobre ele, incluíndo a arena de conflitos
políticos pela re-definição de seus limites e dos limites daqueles atos administrativos.
Assim, no caso Pankararu, como em muitos outros35, existem diferentes propostas de
limites, difrentes situações no processo administrativo que desenham áreas distintas do
ponto de vista jurídico e que podem mesmo ser fisicamente descontínuas, sobrepostas ou
paralelas quanto ao seu encaminhamento. O que lhes dá unidade, entretanto é o fato de
estarem referidas a uma mesma realidade sociológica, a terra indígena36.
Na situação Pankararu, uma única terra é dividida em duas áreas, que têm existência
em diferentes propostas legais e que, como veremos a seguir, acabam ganhando uma
realidade política inesperada, mas sem compor em nenhum momento com os interesses dos
citados posseiros. É justamente no seu ponto de sobreposição que se localiza a área crítica
35
Conferir, por exemplo, o resumo em forma de listagem apresentado no ATLAS DAS TERRAS
INDÍGENAS DO NORDESTE, onde é possível perceber a existência de três áreas correspondentes a uma
mesma terra Geripancó, duas para a terra Tuxá, três para a terra Potiguara, duas para a terra Tapeba, três para
a terra Tingui-Botó e cinco para a terra Xukuru-Kariri.
36
Muitas vezes os processos jurídicos dos quais as áreas dependem se desenrolam em ritmos alternados,
sendo influenciados pelo andamento uns dos outros, assim como pelas pressões do grupo por esse ou aquele
direito ainda não reconhecido. Dessa forma, os conflitos reais orientam os processos legais que, por sua vez,
informam as pretensões dos grupos e assim a delimitação da terra e a definição do arranjo territorial
propriamente dito.
Geografia Ecológica.
1
A repartição ecológica da região sertaneja onde se localiza a área indígena
Pankararu não é imediatamente classificável segundo as diferentes tipologias de regiões
naturais. Como chamaram a atenção Andrade e Madureira (1981), as regiões internas ao
estado de Pernambuco precisam ser compreendidas com relação ao processo histórico de
penetração econômica a que já fizemos referência.
Num primeiro momento, que chega até meados do Império, o estado de
Pernambuco era repartido em apenas duas regiões bem definidas, a de mata, dedicada à
produção de açúcar e a de sertão, dedicada à pecuária, ainda que desde sempre fosse
possível identificar pequenas "ilhas" de utilização diversificada do solo. Essa repartição
dual orientou também os traços gerais da distribuição da mão-de-obra, na primeira
concentrando-se o uso de escravos negros e na segunda, a exploração da mão-de-obra
juridicamente livre, com grande presença indígena. Tardiamente, no entanto, com a
intensificação da exploração agrícola da Serra da Borborema e com o avanço dos meios de
comunicação durante o século XIX, foram favorecidos os cultivo de mandioca, algodão,
37
"À proporção que se torna mais povoada e que a área agrícola ou de pecuária semi-intensiva se expande
para o oeste, o agreste cresce em detrimento do sertão. A microrregião de Arco Verde por exemplo, que em
1968, ao ser estabelecida, era considerada sertaneja, a partir de 1978, ao serem criadas as mesorregiões, foi
considerada de agreste. Dentro de alguns anos certamente, a microrregião do Alto Pajeú também será
transferida para o agreste, isto porque as regiòes não são naturais, mas o resultado da ação da sociedade e do
seu processo de evolução" (ANDRADE & MADUREIRA,1981).
3
Apeasar da designação "Brejo dos Padres" referir-se históricamente a toda a área do
aldeamento, o brejo é um recorte ecológico retangular no interior daquele quadrado
jurídico. Ao ultrapassar os contrafortes da serra que dão forma ao anfiteatro "verdejante", o
quadrado da área de 14290 ha inclui também outras duas regiões ecologicamente distintas,
uma ao sul e outra ao norte do Brejo. Para distinguí-las entre si nos referiremos a elas daqui
por diante como as seções norte, centro (o Brejo) e sul (figura 5). Ainda que esta não seja
uma categoria nativa, nem administrativa, a diferenciação entre essas três seções (o termo
foi escolhido por falta de outro melhor) é muito nítida para os Pankararu e para o órgão
indigenista, como ficará claro ao longo dessas geografias. Por enquanto destacaremos
apenas suas configurações ecológicas diferenciadas.
Na seção central, que compõe o retângulo irregular mais profundo do anfiteatro,
encontramos a paisagem que o relato acima descreve: uma terra bastante úmida e escura,
alimentada por quatro fontes d'água que nascem na cabeceira dos contrafortes e que , antes
das obras de canalização realizadas ao longo da última década, formavam um pequeno rio
que escorria até a estreita saída desse anfiteatro, procurando desembocar, quando a seca
permitia, no São Francisco. Uma região rica em fruteiras, em especial as mangueiras,
goiabeiras e pinhas, que podem complementar a renda familiar de seus moradores em
épocas menos secas. Como a qualidade do solo permite plantar de tudo, desde o milho e os
diferentes tipos de feijão até a cana, introduzida ali em inícios do século passado e que por
muito tempo alimentou pequenos engenhos de índios, não-índios (Cf. Capítulo 1/1) e do
SPI (Cf. Capítulo 2/1) na fabricação de "mel", garapa e rapadura.
Geografia Mítica.
1
Os limites da área indígena Pankararu são normalmente designados pelos próprios
índios como "trilho", "trilha", "linha", ou "círculo". Segundo uma perspectiva tradicional e
corrente, o desenho da área é um grande círculo que tem por centro o cemitério do Brejo
dos Padres, de onde parte uma linha de uma légua em raio. Esta forma de designar a área se
mantém, ainda que progressivamente venha se popularizando o conhecimento dos
documentos oficiais que demarcam a área como um quadrado.
Essa distorção da percepção espacial foi explorada num trabalho recente (Ribeiro,
1992) como expressão direta de um aspecto da cosmologia Pankararu, expressão de suas
estruturas de pensamento. O referido trabalho descreve a narrativa de uma índia que
explica a área a partir de sua repartição em três círculos concêntricos, onde o menor
corresponderia ao mesmo tempo ao centro geográfico da área e ao conjunto de moradores
2
Neste caso, a opção em tomar a cultura como texto significou trabalhá-la como
artefato, congelando as narrativas para apreende-las apenas a partir de uma análise sintática
de seus componentes, desconhecendo sua qualidade pragmática, fundamental para suas
transformações semânticas, que são, então, desconsideradas. Mas não se trata de um debate
entre posições simplesmente alternativas, opções teóricas inocentes, já que as
considerações que a autora tece podem ser contraditas se considerarmos tais narrativas não
como textos, mas como enunciados ou discursos, estes sim, indissociáveis dos sujeitos de
enunciação e de seus jogos de posição. Como acontece no caso de Ribeiro, a opção pela
metáfora do texto pode levar ao apagamento do lugar dos sujeitos produtores e ao
hipertrofiamento do sujeito leitor, que então domina aquele universo de significados como
um exegeta domina um único texto. Ao contrário dos exegetas, no entanto, o etnógrafo
antes de decifrar, repartir em pares de oposição e hierarquizar o "texto" cultural, é obrigado
a investir no trabalho prévio e fundamental de "estabelecer o texto", a partir da reunião de
3
Pois bem, para a entrada de um antropólogo numa área indígena no Brasil é
necessária uma autorização da FUNAI que, após fazer uma consulta ao CNPq e aprovar a
entrada do antropólogo (processo que dura de quatro a seis meses), comunica
imediatamento a visita ao respectivo posto indígena, orientando seu encarregado na
recepção e acompanhamento do pesquisador. No caso Pankararu isso significa que o
antropólogo é introduzido na área através da aldeia central do Brejo dos Padres, onde
localizam-se o PI e as lideranças de maior destaque hoje. Ainda que o relato de Ribeiro não
faça qualquer referência a isso, esse foi necessariamente o seu itinerário de "entrada em
campo". Na minha primeira visita, no entanto, depois de uma avaliação feita com base nas
escassas informações que possuía acerca do conflito fundiário que iria encontrar e das
posições que os agentes do órgão indigenista vinham tomando nele, optei por evitar o
itinerário oficial. Em lugar de entrar em campo através do seu núcleo político-
administrativo, cheguei a ele por suas bordas, entrando em contato primeiro com as aldeias
mais afastadas do centro, para progressivamente alcançar suas lideranças mais centrais,
conseguindo finalmente, através delas, autorização para permanência no Brejo. Sofria
também, apesar de todos os “sinais de alerta epistemológicos”, da expectativa de guardar-
me num lugar “fora” do jogo faccional, pelo recurso de tentar entrar na “área” da forma
mais independente possível das mediações já estabelecidas. A ilusão do meio termo era
possível porque estava trabalhando inicialmente com uma imagem de faccionalismo
definido em termos bem nítidos, onde grupos de interesses aproximam-se de grupos
corporados. Na situação Pankararu, no entanto, o dilema faccional operava por
mecanismos mais discretos. Mesmo assim a estratégia adotada teve sua validade ao
permitir-me uma maior clareza e controle sobre os compromissos em que ia me enredando.
O seu maior efeito prático foi o de me fazer disponível num mercado de alianças, onde as
diferentes posições internas à aldeia, ou externas a ela,entre os posseiros e “posseiros
Tais narrativas não são apenas expressão de concepções abstratas sobre o universo,
atualização de estruturas mentais ou versões pretensamente objetivas de um fato passado,
mas são, sobretudo, discursos sobre o território e a etnicidade. Desencontros entre
diferentes concepções do ser Pankararu, que definem papéis nas lutas por classificações,
lutas por se fazer ver e fazer crer, por dar a conhecer e se fazer reconhecer, por impor a
definição legítima das divisões do mundo social e com isso fazer e desfazer grupos
(BOURDIEU,1989). Organizam o espaço e estabelecem projetos, já que um território é
criado também graças a um fenômeno de transação entre o passado e o devir
1
Como já fizemos referência, os pankararu se distribuem basicamente segundo duas
classificações, os troncos e as aldeias, ambas relacionadas à organização das famílias,
histórica no caso da primeira e espacial no caso da segunda. A classificação dos grupos de
famílias em status diferentes através da sua ligação a "troncos" familiares que se dividem
entre os "antigos" e os "recentes", não corresponde a qualquer produção de segmentações,
classes ou linhagens, já que ela opera uma dicotomia básica entre aqueles que descendem
de índios "puros" e aqueles que descendem de índios "misturados" ou "braiados", em
referência a uma forma de organização que é mais histórica que estrutural. Por isso, essa
distinção não chega nem a pôr em risco a identidade indígena dessas famílias de troncos
mais novos, já que participam plenamente da repartição da terra, dos rituais e da
organização política, nem a criar uma forma de organização da sociedade que tenha
repercussão sobre as relações cotidianas ou de parentesco, ficando seu uso relacionado à
(des)classificação de alguém ou de algum grupo familiar em ocasiões de oposição
especialmente acirrada. A própria distinção entre as famílias de cada tronco não é muito
clara e surge como mais um objeto de disputas: ao perguntarmos sobre as famílias que
seriam de tronco velho, quase sempre recebe-se respostas imediatas, que relacionam
vagamente duas ou três bem conhecidas, mas ao perguntarmos sobre as famílias que seriam
mais novas o assunto torna-se delicado, podendo algumas vezes implicar num interdito (ao
menos para um observador externo), por estar quase sempre associado ao lugar dos
"negros" (Cf. cap.4).
2
Abaixo dos "troncos" está a família, que é a classificação social que funciona
cotidianamente, definindo aqueles a quem se pede ajuda, a quem se acompanha nas
Não se trata de uma repartição por segmentação, onde uma designação maior
conteria designações menores, progressivamente concêntricas. Também não existem outras
categorias para a identificação dos recortes e pertencimentos espaciais além das aldeias,
nem uma hierarquia dos recortes. As unidades que hoje são designadas como aldeias não se
distinguem tanto em função de fronteiras territoriais quanto a partir de uma série de laços
de respeito e lealdades, a princípio bastante discretos, que as aproximam mais da imagem
de áreas de gravidade de núcleos relativamente móveis. Como os laços de aliança, respeito,
lealdade e frequência ritual variam no tempo ou segundo as avaliações feitas pelos
informantes, a distinção entre as aldeias, quando procuramos um desenho mais detalhado
Quadro 12
Incidência das designações de aldeias e suas variações de população segundo quatro
censos.
POPULAÇÃO
ALDEIAS
Déc. de 1950 1974 1975 1984
(DOC.:45) (DOC.:46) (DOC.:31) (DOC.:42)
Brejo dos 1236 1245 1244 1329
Padres
Olaria - 116 116 -
Saco dos - 158 158 522
Barros
Bem-querer - 100 100 175
Caldeirão - 21 21 16
Caxeado - 21 - 26
Saco do Romão - 68 68 -
Serrinha 316 220 220 271
Macaco - 120 120 -
Espinheiro - 141 141 362
Barrocão - 81 81 95
Logradouro - 40 17 175
Cardoso - - 23 -
Tapera 260 93 93 173
Carrapateira - 40 40 237
Agreste - 44 44 128
total 1812 2508 2486 3509
Quadro 13
Lista de lideranças Pankararu a partir do Brejo em agosto de 1993
Nome Aldeia lealdade Seção
Abílio Barros Pebão “acompanha o Centro
pajé”
Fernando Miguel dos Ciriaco “acompanha o Centro
Santos pajé”
José Monteiro dos Ciriaco “acompanha o Centro
Santos pajé”
Marcelino Izidoro da Saco dos “acompanha o Centro
Silva Barros pajé”
Júlio Izidoro da Silva Olaria “acompanha o Centro
pajé”
Miguel Monteiro dos Ospresios (o próprio pajé) Centro
Santos
Denésio Antônio dos “cidade livre” “acompanha o fora da área
Santos pajé” indígena
3
Voltando à repartição mais simplificada das aldeias que conseguimos montar com o
auxílio de índios de diferentes localizações, observamos que, se destacarmos os desenhos
das três seções, conseguimos um efeito que podemos considerar como da projeção da
experiência histórica sobre a organização espacial.
Quadro 14
2500
2000
1500
1000
500
0
déc. de 40 Seção
1975 Seção
1984 Seção Centro
Norte
Sul
1
A duplicidade da versão do mito colonial não responde apenas a discordâncias entre
registros de memória, mas é resultado de uma determinada correlação de forças no presente
e de um determinado projeto para o futuro, que procura justificação no passado. Para que
essa transação entre passado, interesses presentes e devir fique mais clara, é necessário
combinar as diferentes geografias vistas até agora com uma quinta geografia, marcada pela
disputa na definição espacial dos recursos sociais e materiais disponíveis em área,
representados pela ação do órgão indigenista oficial, mas também pela atuação direta ou
indireta de outras agências governamentais e não-governamentais.
2
Até esta década a principal estrada próxima à área indígena era a que levava da
antiga Petrolândia até Tacaratu e que cruzava quase toda a seção norte no sentido leste-
oeste. Isso não só facilitava deslocamentos como fazia dessa seção uma porta de entrada
3
Boa parte desses recursos surgidos na última década não têm origem nem são
mediados pela FUNAI, mas são alcançados diretamente pelas lideranças indígenas em mais
uma das variações do que chamamos de “busca dos direitos”. Com a ampliação do número
de agências governamentais e não governamentais na região foi possível ampliar ainda
mais a noção de “direitos” e o campo de atuação das “lideranças peregrinas”. As viagens
que passam a ser feitas, então, apesar de estarem sempre vinculadas ao conflito fundiário,
não buscam mais exclusivamente soluções fundiárias, nem apenas os empregos na FUNAI,
mas também o apoio de outras agências na forma de projetos de desenvolvimento
38
A criação desses projetos, suas argumentações, planos de aplicação, áreas priorisadas e sua aplicaçaõ real
são matéria ainda de reflexão. Pelo que se pode perceber através do caso Pankararu, esses planos podem: A)
se transformar em simples distribuição de gêneros e ferramentas (segundo critérios que, como veremos, vão
alimentar faccionalismos internos); B) não chegar ao conhecimento das autoridades indígenas, que afirmam
ter uma idéia muito vaga de sua existência e aplicação; C) chegar ao conhecimento das autoridades
indígenas, que nesse caso se queixam dos chefes indígenas por usarem as verbas para outros fins e,
finalmente, D) combinar todas as alternativas acima.
39
As novas formas de organização política dos grupos indígenas, que se sobrepõem imperfeitamente e
alteraram as relações políticas fundadas na etnia e no cacicado, constituem um campo de investigação de
grande importância, ainda que quase completamente inexplorado. No caso do Nordeste em particular, parece
existir uma grande comunicação entre essas novas formas de organização e a experiência de mobilização
política do campesinato, transformada nos últimos anos com a intervenção estatal através do Projeto
Nordeste, na forma do PAPP, o que acaba nos remetendo para outro universo bibliográfico: Novaes (1994),
Machado (1987) e Chalout (1986).
40
Estas não significam, porém, grande autonomia com relação à FUNAI, ao menos até o momento, já que foi
o próprio escritório do órgão de Recife que designou um funcionário especialmente para orientar os grupos
na montagem das referidas associações. Como resultado está havendo uma multiplicação dessas associações
não só entre as áreas indígenas, mas também dentro de cada uma delas, o que no caso Pankararu, como
veremos, tem servido como novo repertório faccional.
41
Nada disso foi conseguido ainda e o administrador regional da FUNAI vem tentando, através de sucessivas
conversas, convencer João Tomás e as outras lideranças que o acompanham de que este projeto é inviável.
Sem ter a dimensão exata de todos os elementos implicados nesta ruptura, o administrador tem argumentado
que se os recursos da FUNAI são poucos para um posto, a situação ficaria pior com dois. Até a minha última
visita à área ele ainda não tinha conseguido demover as lideranças do Entre-Serras de seus objetivos e
continuava adiando qualquer tipo de procedimento.
Geografia ritual
1
O desencantamento está relacionado a dois problemas de descontinuidade dos
signos étnicos aparentemente estanques, mas que revelam sua relação no desenho desta
última geografia, definida pelos recentes rearranajos de um espaço mágico. Ambos
emergem do contexto de mudanças regionais a que fizemos referência nas páginas
anteriores, ligados às recentes conquistas materiais e intelectuais do grupo, que o tornaram
progressivamente mais visível. O primeiro destes problemas surge com a construção da
UHE de Itaparica e com a transformação da sua cachoeira numa grande barragem, que
42
Antes do segredo da aldeia estar depositado na cachoeira de Itaparica, os seus Encantados tinham morada
nas cachoeiras de Paulo Afonso, de onde já teriam se tranferido quando elas foram totalmente esgotadas em
seu potencial mágico com as sucessivas barragens.
3
Recentemente a repartição em três seções ganhou realidade no plano ritual. O
surgimento de um novo terreiro na Tapera, poucos anos depois da separação do Entre-
Serras, em 1992, veio complicar e sedimentar o quadro faccional. Depois de um conflito no
interior daquele que era o único Terreiro da seção sul, parte das suas famílias parou de
frequentá-lo. Nesta mesma época estava morando temporariamente na área a filha de uma
... Eu tava no meio e não ia querer proteger nem uma parte e nem
outra porque eu ia desgostar no outro terreiro de cá da Serra mais da
metade do povo daqui. Então que eu como um líder que eles queria, eu
não trabalhava dessa forma desgostando o povo. Trabalhava com que
Por outro lado, a criação daquele Terreiro tinha o efeito de uma revigoração da vida
ritual da sua seção e como sua autoridade não dependia exatamente destes rearranjos entre
Terreiros, era simpático às mudanças.
A freqüência dos Torés nesse novo Terreiro cresceu tanto que praticamente
inviabilizou a realização de outros Torés no terreiro concorrente. Um acordo entre eles, no
entanto, firmou que nos casos em que fosse para o pagamento de promessas o novo
Terreiro teria que interromper suas “brincadeiras” para a realização do Toré no antigo. Mas
essa sobreposição de um Terreiro ao outro significava também, e era aí que as lideranças
do Brejo sustentavam a oposição ao seu surgimento, a precedência de um Toré com
“instruções” de outra aldeia dentro da área indígena Pankararu. Em função disso as
lideranças do Brejo tentaram obrigar a expulsão do casal vindo de fora. Não conseguiriam,
43
O fato de não ter sido possível dedicar espaço a este grupo ritual, ao longo deste trabalho não faz justiça à
importância que assume em termos de regulação moral e de criação de novas linhas de afiliação e lealdades
que vem se combinar com as desenhadas pelo Toré. Isso só reforça a interpretação em termos de arranjo, já
que levar em conta esse agrupamento ritual, que não é excludente com relação a outros, poderia significar o
desenho talvez de uma nova geografia ritual, abrindo nossa observação para outras formas e relações de
territorialização Pankararu.
5
Um elemento básico ao qual é necessário voltar para que fique clara a sua
importância está relacionado ao que foi apresentado, por esta razão, como uma primeira
geografia. Na base das questões abordadas ao longo de toda esta dissertação, mas mais
intensamente neste capítulo, está a noção de territorialização, entendida em referência ao
processo de atribuição de uma base teritorial fixa a uma determinada sociedade e à
transformação, com isso, do que era apenas mais um dos diferentes princípios
organizadores da sociedade, embutido ou mesclado a outros, num princípio hegemônico
(OLIVEIRA Fo.,1993).
É esse processo de enquadramento numa moldura territorial, criada de forma
arbitrária com relação à sociedade sobre a qual é aplicada, que constitui um ponto chave
Topologia
Aqui tá uma aldeia aberta, entra quem quer que seja. Aqui não
tem mais um decô [decoro] que nem os Fulni-ô. Nos Fulni-ô, chegô lá na
cancela: "Que é que vocês qué?" Aí você volta. Entra se dissé o que vai
vê, o que vai buscá. Mas aqui?! Aberto pro lado do Bem-Querê, aberto
pro lado de Petrolândia, aberto pra tudo, entra quem qué. [P: O sr. acha
que cercá a área toda podia ser uma solução?] Podia, porque tinha
respeito. E morá porteiro em cada porteira: "Que que você qué fazê lá
dentro?". Mas tem uma estrada de Petrolândia pra Tacaratu, aí fica sem
jeito também né. Podia tê uma área separada... Mas não tem solução
mais não. Aqui só quando..., sei lá, só quando Deus mandá mesmo, ou
então emancipá esse povo e a polícia tomá conta... (João de Páscoa)
Desterritorializações e reterritorializações
1
A construção da UHE de Itaparica inundou uma área de 834 km2, atingindo direta
ou indiretamente 40.000 pessoas ao fazer desaparecer as cidades de Petrolândia, Itacuruba
(PE), Rodelas, povoado de Barra do Tarraxil em Chorocó, Glória (BA) e outros 23 núcleos
rurais, áreas agriculturáveis e ilhas (Pólo Sindical/CEDI - Políticas Públicas e
Desenvolvimento Regional, 1993). Com relação ao Município de Petrolândia a área
inundada foi de 14.310 ha (8,9% do município) e a população atingida foi de 6.400 pessoas
(46% da população rural e 27% da população total do município), das quais 1.342 famílias
foram reassentadas entre a cidade de Nova Petrolândia (226) e as 16 agrovilas (1.116) de
um projeto de irrigação que ainda espera conclusão. O projeto das agrovilas abrange uma
área de 5.712ha, divididos em 1723 lotes que variam de 1,5 a 6 ha e divide-se em dois sub-
projetos: Barreiras, com 2.682 ha dividos em 809 lotes, distribuídos por 10 agrovilas e Icó
Mandantes, com área de 3.030 ha dividida em 914 lotes, distribuídos em 16 agrovilas
(idem).
Esta nova realidade tem se mostrado um dos maiores desafios do sindicalismo
local, que concentra aí grande parte de seu esforço de articulação, na criação do seu próprio
pessoal técnico especializado, na negociação de prazos para o cronograma de implantação
dos projetos etc. Assim, além de significar a reterritorialização de populações camponesas
e ribeirinhas, onde estas tiveram suas unidades de exercício ritual, dominação social e
organização política fragmentadas, as agrovilas representam também uma transformação
nas técnicas agrícolas, na estratégia sindical e na relação dos próprios trabalhadores rurais
com o sindicato, a cada dia com maiores responsabilidades pela administração dos
projetos.
Nas agrovilas foram assentados aqueles que possuíam propriedades ou que
simplesmente trabalhavam em terras atingidas pelo lago, seja como diaristas, meeiros,
rendeiros etc. Isso fez com que muitos dos Pankararu que trabalhavam na beira do rio
durante os períodos em que a área indígena mais sofria com a seca (Cf. a discussão sobre a
categoria de "assistidos" do Capítulo 2/1), recebessem também seus lotes nas agrovilas. O
44
O desenvolvimento da agricultura irrigada levou à formação de aglomerados de trabalhadores temporários
em certos trechos irrigados, formando verdadeiros "bairros rurais", como na periferia de Barreiros, onde em
1985 foram cadastradas pela CHESF para o plano de desocupação, 288 famílias (PANDOLF,1986).
3
A segunda situação de saída dos Pankararu da área indígena se dá através do
processo de escolarização dos seus jovens. Depois de completarem a primeira fase do
primeiro grau nas escolas existentes dentro da área indígena, os jovens Pankararu têm que
sair para completar os estudos nas cidades próximas. Levando em conta apenas os números
45
As citações retiradas de matérias de jornais aparecerão sucedidas do código "PER:" seguido da data de
publicação. Sua referência completa pode ser recuperada ao final desta dissertação, na lista das Notícias de
Periódicos consultadas.
Mais adiante,
Uma semana depois, o assunto também ocuparia uma página inteira do jornal
Diário de Pernambuco, sob o título Índios voltam à tribo com medo de morrer e, em letras
menores, Pankararus que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência
urbana. A matéria falava das dificuldades da área indígena envolvida no conflito, mas
insistia em que os Pankararus estariam voltando em levas e acrescentava
5
Trabalhar com a heterogeneidade das relações sociais não é,
assim, uma questão descritiva, uma mania de antropólogo com o rigor
do empírico, mas a condição de possibilidade de constituir um campo de
questões a serem examinadas, uma problemática. (GARCIA JR,1989)
1
Num texto de 1984, Maria R. de Carvalho se propunha “apreender a identidade dos
povos indígenas do Nordeste fundamentalmente da perspectiva do território, fator
considerado indispensável à sua integridade física e socio-cultural”. Apesar de não
partilharmos dos seus pressupostos, segundo os quais o território é um meio da integridade
sócio-cultural47, neste texto há ao menos uma sugestão de análise que consideramos
extremamente feliz quando aplicada à situação Pankararu: um dos caminhos que levam do
território à identidade passa pelos “direitos”, pensados como inerentes à situação de índios.
Isso nos levaria à uma dicotomia feita não em termos propriamente étnicos, mas de
indianidade. O corte não está entre Pankararu e brasileiro, negro, Xucuru ou outros rótulos
46
Neste caso nos inspiramos em perspecitivas denominadas como "micro-história" e histórias de vida, ainda
que também adequando suas pretensões e pressupostos.
47
Segundo a autora, uma das condições do território indígena exercer suas funções de meio da integridade
socio-cultural é a sua natureza jurídica de propriedade estatal sob a posse de “povos que o partilham
comunalmente”. Isso tornaria a propriedade privada objetivamente inviável e assim seria assegurada a
inalienabilidade dos territórios e o respeito às culturas das comunidades indígenas. Segundo este raciocínio, a
função fundamental do território indígena passa pelo impedimento que ele representaria ao processo de
transformação da terra indígena em mercadoria. Esse não será um ponto abordado nesta dissertação, mas a
situação Pankararu coloca um problema básico para essa série de encadeamentos lógicos. Nela o
impedimento da propriedade privada não é impedimento para a fragmentação das posses nem para a
transformação da terra em mercadoria, já que se não há propriedade privada, há um intenso mercado de
posses entre os indígenas, assegurado, legitimado e regulado pelo posto indígena, que representa o próprio
Estado e que não só reconhece as transações como as documenta. Como qualquer outro mercado, este
também produz desníveis sociais e econômicos, acúmulos nas mãos de alguns e um número crescente de
2
Vejamos o segundo tema da "aldeia aberta", revelado pelas distinções categóricas
que impõem fronteiras identitárias dentro do próprio território político-administrativo
indígena. A primeira destas distinções emerge com a reelaboração da experiência histórica
da mistura com os "negros"48 ex-escravos, que foram implantados no antigo aldeamento do
Brejo dos Padres (Capítulo 1/1), junto com as “linhas” e que deixaram marcas físicas,
distinções sociais e religiosas não muito claras ao visitante, mas que servem de elemento
importante nas disputas faccionais.
Esse foi um assunto particularmente difícil de abordar em detalhe junto a qualquer
dos informantes com os quais realizei entrevistas, sendo-me vedado, portanto, enquanto
tema na construção de genealogias. Mas, como veremos, não é no plano a que pode dar
conta a reconstrução objetiva dos laços de descendência que a distinção entre índios e
negros ganha expressividade. Essa distinção, na maioria das vezes surge como acusação
em momentos críticos de desafio político ou em disputas por recursos e é praticamente
apenas como vocabulário faccional que seu emprego ganha sentido, mas sempre um
sentido genérico e, portanto, maleável. As acusações reciprocas de “negro” não se prestam
a uma resolução objetiva, que pudesse solucionar definitivamente a disputa, já que
nenhuma das partes está segura de sua “pureza”. Nem é possível aos Pankararu desenhar
um limite claro no interior do seu sistema ritual, entre heranças diferenciadas.
48
Talvez não seja supérfluo lembrar que, ao contrário do contexto urbano, em muitas situações rurais, entre
elas a que serve de contexto aos Pankararu, o peso pejorativo no uso da distinção de cor ou raça recai sobre
“negro” em lugar de “preto”.
49
Poderíamos pensar essas categorias como índices, no sentido semiológico proposto por Pierce (1972), em
que um índice é um signo que se encontra ele próprio em contiguidade com o objeto denotado (por oposição
ao símbolo que refere-se a alguma coisa por força de uma regra e ao ícone, que relaciona-se com seu objeto
por partilhar com ele uma mesma qualidade ou uma mesma configuração), mas o fato das designações com
que trabalhamos serem índices não só do lugar ocupado pelo referente, mas também daquele que enuncia,
5
Existem também os posseiros potenciais, isto é, sujeitos ou famílias que estão na
parte da área que não foi homologada, mas que ainda é pretendida pelo grupo, podendo por
isso serem alcançados pela fronteira dicotomizadora. Dentre eles existem os de inserção
categórica duvidosa, cuja "indianidade" ainda tem que ser negociada (trabalharei com
essas duas situações mais a frente) e os que são "registrados no posto", isto é, que
alcançaram o estatuto jurídico de índios, com os direitos a que ele dá acesso, por vias que
não passam necessariamente por uma negociação relativa ao pertencimento ou à
identidade, mas pela troca de interesses diretamente com o responsável no momento pelo
"registro" e cuja legitimidade está permanentemente em questão.
A entrevista com José João do Nascimento, um dos posseiros expúlsos em 1992 do
Brejinho dos Correias, seção sul, é rica em exemplos nesse sentido, ele mesmo
assim como da situação em que ambos estão colocados, acaba por aproxima-los da figura lingüística do
Você sabe que alí não tem índio legítimo, a maioria ali é tudo
assinado. Eu mesmo conheço um rapaz branco dos olhos azuis, do Bem
Querer e assinado por índio. (José João do Nascimento)
Como prova disso passa a enumerar aquelas famílias que hoje só são indígenas
porque seus pais "se assinaram" como índios poucas décadas atrás, independente de
qualquer relação de parentesco com a aldeia, em contraste com sua família, que de ambos
os lados tem relações de parentesco com os índios, mas ficou de fora. De um lado, Tereza,
irmã de sua mãe, nascida no Bem-Quer, era casada com Laurentino Barros, "índio do
Brejo", e por isso, todos os seus filhos (portanto, “primo-irmãos” do João) são "assinados
como índios". Seu pai também, mesmo sendo natural de Alagoas, se considerava e era
considerado "parente" do atual vice-chefe de posto, através de um parente comum da aldeia
de Geripancó. O próprio João José, por sua vez, tem um filho índio, com uma das meninas
que namorou no Brejo dos Padres e que hoje é casada com um índio amigo seu, com quem
"trocava dias" de trabalho. Hoje seu amigo e sua ex-namorada moram no próprio Brejinho
dos Correias, numa das áreas retiradas dos posseiros. Acrescenta ainda que, além das terras
de que foi retirado no Brejinho do Correias, ele tem um terreno no Olho D'água do Julião,
na seção norte, dentro da área não homologada, na qual cria cinco ou seis cabeças de gado,
e das quais quem cuida é um outro rapaz "assinado como índio", parente de criação dele (o
avô do rapaz foi criado por sua família), morador do Bem-Querer, onde toda a sua
parentela é de posseiros.
Esse no entanto, não é um discurso exclusivamente comprometido com a posição
de um excluído da área. Os mesmos elementos são encontrados também numa parte dos
depoimentos indígenas, ainda que com os sinais invertidos. Neles, tais casos surgem como
demonstração da conversão de valores operada nas relações entre índios e brancos em
função da emergência dos direitos indígenas, enfatizando, assim, a distância e não
apagando-a.
shifter descrito por Jakobson (s/d), ou até mesmo por ultrapassá-la na quantidade de informações agregadas.
50
Que obrigam a muitos pais de família irem buscar parte de sua renda familiar em trabalhos temporários ou
permanentes nas cidades próximas, enquanto suas esposas e filhos cuidam da roça e da criação, que dessa
forma passa a representar a complementação e não mais o principal da renda familiar.
51
Em que o enfrentamento com posseiros ou com outros indígenas impuseram o deslocamento de famílias
para fora da área, como foi o caso do conflito de 1982, em que seis famílias indígenas foram expulsas da
"Marreca", depois de terem tentado ocupar terrenos dos quais outros posseiros já haviam sido expulsos.
52
Além dessas vantagens, declaradas por aqueles que eram beneficiários dos "direitos", conheci também os
argumentos daqueles que se consideram vítimas desse "direitos". Entre os posseiros é corrente a
interpretação, de que a distribuição de "carteirinhas" para pessoas de fora da aldeia serviria como estratégia
de aumento do número de "índios assistidos" pelo posto indígena, que retiraria disso maior peso político.
1
O encaminhamento jurídico do conflito entre "grupo Pankararu" e "posseiros" do
Caldeirão e Bem Querer, resultou na ordem de retirada de 12 famílias de posseiros da área
em litígio. Justamente as famílias mais combativas, entre elas a do ex-presidente do
sindicato dos trabalhadores rurais de Petrolândia que era também representante local da
CUT-Rural e candidato a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Imediatamente o sindicato de trabalhadores rurais de Petrolândia, ao qual a quase
totalidade dos posseiros é filiada, entre outros entraves à execução dessa decisão judicial,
pediu um laudo antropológico sobre a identidade étnica de Nivaldo, um dos doze da lista,
filho de índia Pankararu e neto de uma antiga liderança indígena, que trabalhou muitos
anos no PIN Pankararu e cuja família é considerada um dos "troncos velhos" da aldeia.
Nivaldo nasceu no Brejo dos Padres e saiu de lá ainda criança, quando seus pais se
transferiram das terras da família da mãe para trabalhar e morar nas terras da família do
pai, um posseiro do Bem Querer.
53
Agradeço às pesquisadoras Rita Costa e Silvia Martins por terem me recebido tão gentilmente e terem
perdido parte do seu tempo na tentativa de traçar um perfil da área e das lideranças que, enfim, lhes parecia
muito confuso.
4
Tudo isso faz do seu Marcelino Viana um personagem muito conhecido, bem aceito
e, sob certos aspectos, necessário na área indígena. Mas afinal, ele é índio ou posseiro? A
definição identitária do sr Marcelino é extremamente delicada e é justamente aí que a sua
relação com os seus vizinhos torna-se tensa em função de duas graves falhas na
reciprocidade. A primeira se dá quando os recursos da FUNAI alcançam a área e são
distribuídos entre seus vizinhos, sem que ele seja contemplado. A segunda e mais
fundamental, está nas ameaças que correm na forma de boatos, sobre a sua expulsão da
área, quando a proposta total da terra indígena for aceita, tornando-o então legalmente um
posseiro. O importante é que a correção dessas falhas dependeria de um ato formal de que
já falamos em outras situações: o fornecimento de uma "carteirinha de índio", emitida pela
FUNAI. Ter uma carteirinha a princípio não mudaria o padrão de suas relações locais, mas
funcionaria como a contrapartida daqueles dons, tornaria perfeita a troca e romperia com a
distinção, de fundo mais jurídico que cultural ou afetivo, entre ele e seus vizinhos,
tornando-o um legítimo usufruidor das eventuais distribuições do órgão oficial e
5
As situações do Nivaldo e do sr. Marcelino tornam-se interessantes pelo contraste
nos termos em que foram negociadas, nos mediadores envolvidos, no tempo de resolução e
na sua própria solução, permitindo-nos uma visão um pouco mais complexa dos elementos
envolvidos na definição da identidade dos sujeitos que habitam o espaço da mistura. O
contraste entre essas duas situações e sua inteligibilidade deve ter como ponto de partida
alguns dos elementos descritos pelo arranjo territorial. Por isso, primeiro uma breve
retomada da situação na seção sul.
Ao realizar o acordo de 1987, as lideranças do Brejo delimitam como seu território
apenas os 8100 ha demarcados na década de 1940, centrando sua disputa na expulsão dos
posseiros do Bem-Querer, Caldeirão e Caxeado. Não existe portanto, a possibilidade do
arranjo sugerido pelo sindicato, segundo o qual poderia-se evitar a extensão da área ao sul,
com a conquista da área reivindicada ao norte. Isto porque, por um lado, tal proposta
desconhecia as repartições internas à própria área e tomava o território como um espaço
vazio, sobre o qual seria possível mover livremente a população. De outro lado, a própria
A construção do contraste
1
Num primeiro momento, as famílias atingidas pela demarcação da área indígena se
auto-designavam “condôminos” de propriedades que percorriam uma cadeia dominial
iniciada no Garcia D´Ávila da Casa da Torre em fins do século XVIII e que os atingia por
mecanismos de partilha e herança. Neste caso a situação de "poprietários" sempre foi
evidenciada e as primeiras tentativas de negociação sempre foram intermediadas por
autoridades locais, com os quais mantinham relações de parentesco. Seja através da
descrição das relações de patronagem que mantinham com os Pakararu, seja através da
demonstração da relação que mantinham com aquelas autoridades, o discurso das antigas
lideranças dos posseiros, surgidas naquele primeiro momento, é marcado pela tentativa de
delimitação de uma diferença que é de status social e de comportamento, cabendo aos
índios o tradicional lugar de cachaceiros, traiçoeiros, preguiçosos etc. No trecho que se
segue uma das maiores lideranças deste período conta parte do périplo que foi necessário
para conseguir as certidões de propriedade das terras ainda hoje em litígio. Meu interesse
neste depoimento, no entanto, está na forma pela qual ele ainda manifesta uma forma de
distinção, todo o tempo sublinhada.
2
No sub-médio São Francisco o sidicalismo mais combativo cresce como
conseqüência do conflito determinado pela expulsão dos camponeses da área de influência
da UHE de Itaparica. Sua construção foi aprovada em 1975, tendo como previsão do
54
Na verdade as obras só se encerraram em 1987 e as comportas acabaram de ser fechadas em 1988.
55
Na verdade o termo mediadores não é utilizado pela autora, que pensa a atuação dessas pastorais em
termos de “vanguarda”, retirando daí uma série de problemáticas particulares a este tipo de análise e que lhe
dão um forte teor evolucionista, como o dilema analítico e ideológico, apresentado como problema histórico e
sociológico, da dicotomia "vanguardas"/"espontaneismo" camponês (PANDOLF,1986).
3
Ao contrário do sindicalismo rural pernambucano da Zona da Mata, de longa
tradição em mobilização política com reivindicações trabalhistas, o sindicalismo no sertão
do sub-médio São Francisco, até meados da década de 1960, desempenhava funções
exclusivamente assistênciais e, de fato, foi apenas com a ameaça de despossessão gerada
pela construção da UHE de Itaparica e a conseqüente subida do lago formado por sua
barragem que esse sindicalismo passou a desempenhar um papel combativo.
A relação entre ameaça e mobilização, no entanto, não é natural, ela está
estreitamente vinculada a um trabalho de revalorização de suas bases e particularidades
... Uma das coisas que eu tinha atenção era de ver quais seriam
as que eram consideradas líderanças e não líderes...Porque toda a
comunidade tem gente com jeito para várias coisas, um tem pra festa, um
tem pra dança, um tem pra isso, pra aquilo, então o grupo era um grupo
variado, era os que dançavam, os que rezavam, por isso que tinham as
danças de São Gonçalo, as corridas de cavalo, essas coisas. Sempre tem
umas pessoas que organizam e eu trabalhava com as lideranças dos
diversos dons... Eu colocava nesses termos: que Deus deu dons a cada
um e cada deveria desenvolver os seus dons, então cada um apresentava
o que gostava mais de fazer, esse era o grupo...quer dizer não era
questão política nem nada. Era em cima do que eles gostavam de fazer e
a partir dali se refletia o que fazer. Sempre em cima de atividades
concretas, relacionando isso com o que queriam mudar ou não, ali ou em
outra situação. E articulava. Por exemplo, o grupo de reisado que havia
aqui, ia preparar o reisado lá da volta do Moxotó, o outro ia preparar a
novena [...]. aproveitando os pontos de convergência...[...]
...E então pegava esse grupo que tinha uma tradição, pessoas
idosas que traziam aquilo com toda a garra, então pegava esse grupo e
56
Josefa Alves Lopes de Barros, natural de Alagoas, cerca de cinquenta anos, mais conhecida nos círculos
sindicais e entre a população camponesa local como Josefina ou Fina, no início da década de 1960, recém
ordenada freira, fazia parte dos quadros da pastoral de Petrolândia. Depois de ter passado por cursos de
formação teológica e sociológica em São Paulo e em Recife, onde formou-se como assistente social, Josefina
começaria a desenvolver um trabalho de aplicação das idéias da Teologia da Libertação a partir do incentivo
à formação de comunidades de base, num método que se aproximava mais da perspectiva da Comissão
Pastoral da Terra (da Bahia) do que daquele que as dioceses locais de então esperavam. Isso fez com que ela
se chocasse diretamente com a orientação do Bispado de Pernambuco, à qual estava subordinada. Depois de
uma série de desentendimentos entre ela e o pároco de Tacaratu, decorrente de seu trabalho junto à população
local, ela seria afastada daquela diocese e mais tarde se desligaria da Igreja, como forma de voltar à sua
militância. Depois deste desligamento Josefia se instalaria na região, primeiro de uma forma extremamente
precária, sem salário fixo e vivendo basicamente de doações dos camponeses, para formação dos "quadros"
do Pólo Sindical. Hoje Josefina exerce a função de assessora do Pólo e de outras entidades sindicais rurais.
4
Uma série de condições especiais, que se somaram as apontadas acima, permitiram
que aquele conjunto de famílias de posseiros litigantes com a área indígena se tornasse um
importante (talvez o mais importante) núcleo de militantes deste novo sindicalismo.
Condições que ajudam a explicar um pouco da conflitante relação entre grupos indígenas e
o sindicalismo rural de toda esta larga região do São Francisco.
Uma marca fundamental do movimento camponês local sempre foi a grande
heterogeneidade das relações de produção vigentes na região antes das alterações
provocadas pela UHE: pequenos proprietários, posseiros, parceiros, arrendatários e
assalariados. Neste quadro coube pouca capacidade de mobilização àqueles que não eram
proprietários ou tinham a posse da sua terra de trabalho, sempre integralmente absorvidos
pelo processo de trabalho, do qual não tinham o controle (PANDOLFI,1986). Isso
funcionou como um critério de seleção para aqueles que se tornariam lideranças do STR e
do próprio Pólo Sindical. O fato das terras indígenas não terem sido atingidas pelo lago,
privilegiou aquelas famílias de posseiros ao coloca-los numa situação em que,
simultaneamente, estavam na luta pela reposição das parcelas alagadas, mas não tinham
sofrido o grande impacto desmobilizador que consistiu na transferência para as agrovilas,
já mantinham suas moradas, grupos de vizinhança e núcleo de mobilização dentro da área
indígena.
Associada a esta adequação sociológica, aquelas famílias de posseiros
radicalizariam o seu distanciamento com relação aos "índios" por meio da constituição de
um discurso específico sobre a "luta" e do lugar nele ocupado pelo Estado. Esse discurso
têm forte sustentação numa determinada configuração social das relações de poder locais,
em que as relações de dependência e parceria anteriores à construção da barragem de
Itaparica não opunham pequenos a grandes proprietários, nem supunha sempre a oposição
entre a propriedade e a não-propriedade da terra como foco das relações de poder. Muitas
vezes a dependência se estabelecia entre proprietários e não-proprietários dos meios de
produção, em especial das bombas de irrigação, que depois da UHE perderiam sua
Utilização da terra
Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985)
1975 1985
Sertão do S. Petrolândia Sertão do S. Petrolândia
Francisco Francisco
Total = 100% 888323 23643 969020 16280
Lavoura % 9,1 21,6 14,1 28,8
Pastagem % 79,7 52,3 22,5 21,5
Matas/Florestas 3,7 4,4 49,8 33,9
%
Não utilizadas % 8,2 21,5 13,5 15,7
(Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44)
Relações de trabalho
Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985)
1975 1985
Sertão do S. Petrolândia Sertão do S. Petrolândia
Francisco Francisco
População total 65688 5688 89060 4002
Não-assalariado 58911 5284 72198 3653
57
Em 1991 eles se distribuíam da seguinte forma: 1 membro da direção da CUT-PE; 1 presidente do PT
local; 1 vereador pelo PT; 1 diretor de uma Associação de Irrigação, entre outras participações de menor
destaque.
Assim, apesar das coincidências no que diz respeito aos problemas com a seca, com
a implantação de políticas e serviços públicos e outras questões muitas vezes abordadas
pelas lideranças indígenas e sindicais, não é possível sobrepor as categorias índio e
trabalhador rural, a não ser que uma delas perca todo seu conteúdo identitário e passe a
apontar apenas um pertencimento categorial. Isso fica claro nas situações criadas pelos
sucessivos encontros promovidos pelo Fórum da Seca:
Existe, portanto, uma distinção entre índios que estão "dentro" da área indígena e
índios que estão "fora", cabendo a estes uma maior autonomia para participarem das
"questões mais gerais". Os Pankararu que têm uma tal autonomia estão em geral , em uma
das situações de desterritorialização e reterritorializações que descrevi, mas no que diz
respeito especificamente à participação em questões capitaneadas pelo STR, estes índios se
concentram nas agrovilas. Isso nos abre, finalmente, uma última área de investimento com
relação ao que chamei de políticas de identidade. Se a situação biográfica do sr. Marcelino
Vianna ajuda a compreender como funciona a micropolítica do ser e não ser quando as
categorias em oposição são "índio" e "posseiro", no coração mesmo da área indígena, a
seguir procuro dar inteligibilidade a esta micropolítica quando as categorias em oposição
são "índio" e "trabalhador rural", na fronteira mais distante deste território topológico,
numa área de gravidade quase zero.
Se os cenários de desterritorialização descritos anteriormente permitem uma visão
genérica e sincrônica dos espaços de dispersão e distinção, este último fôlego investe sobre
uma visão pessoal e diacrônica da formação de um destes espaços58, sobre o aspecto
vivido destas fissuras identitárias.
1
Dona Dedé, ou Maria José de Souza, é um dos principais símbolos que o sindicato
e os posseiros têm para argumentar sobre a artificialidade do conflito criado entre os
Pankararu e eles. Ela, índia legítima, é uma das lideranças sindicais mais antigas e ativas so
STR de Petrolândia, líder das mulheres trabalhadoras rurais. Sua mãe era da família de
58
Ao lado das agrovilas, a favela Real Parque, no Morumbi (SP), consiste num outro espaço sobre o qual
seria fundamental um investimento etnográfico. Um investimento sobre esta outra reterritorialização, que
fizesse justiça a complexidade da situação, no entanto, mostrou-se inadaptável aos limites desta dissertação.
É significativo no entanto que dona Dedé se refira apenas "a dois senhor", isto é à
sua lealdade por um lado à identidade de "filha de Maria" e de outro à de liderança sindical.
A sua relação com a área indígena é constante mas de outra natureza. Todos os seus
exemplos sobre sua relação com a aldeia são relacionados à festividades ou eventos
religiosos.
2
No plano político no entanto essas reconversões não parecem mais possíveis.
Durante o Fórum da Seca, realizado em Ouricurí, em meados de 1992, em que dona Dedé
participou como representante do sindicato de Petrolândia, os organizadores a procuraram
dizendo que o Fórum estava sem representação indígena, numa sugestão de que ela
assumisse esse papel. Apesar de confirmar ser índia, respondeu que estava lá como
representante dos trabalhadores rurais e não tinha sido eleita pelos índios
3
Para dona Dedé é confuso o jogo de exclusões e inclusões de que participa. Não
parece claro para ela que "trabalhador rural" possa ser uma categoria identitária
correspondente e concorrente com a de "índio". Essa ambigüidade da sua situação permite
aos dirigentes sindicais utilizarem a sua imagem como um exemplo do artificialismo que
caracterizaria o que, segundo eles, a FUNAI e a imprensa chamam de conflito. A
"manipulação", portanto, é de mão dupla. No caso de dona Dedé fica claro que as relações
que mantém com a área indígena restringem-se à seção norte, onde mantém boas relações
com as lideranças, em especial com dona Hilda. Com relação à seção centro, onde se
localiza o conflito com posseiros que participam diretamente do sindicato, suas relações
são mais próximas às de evitação.
Nem mesmo em situações em que estavam empenhadas nos mesmos objetivos,
como ocorreu na época em que ela e Quitéria freqüentavam a prefeitura reivindicando a
inclusão de mulheres nas frentes de emergência, elas se reuniram a pretexto de reforçar as
reivindicações. Por outro lado, se em seu discurso o uso do "nós" e do "eles" oscila
constantemente, referindo-se ora a índios, ora a trabalhadores rurais, ao fim fica claro que
ele pende com maior intensidade para um desses lados.
Eu acho que num divia tê deixado criar raiz... daquele povo do Bem-
Querer e Caldeirão, antes... [...] Porque agora, despejá todo mundo sem tê pra
onde ir..., sem direitos humanos, se o índio tem diretos humanos agente
também tem. Eu falo isso pra eles mesmos... Não sei não... Essa parte me dói
muito. Já imaginou aquele bocado de criança na rua... Eu não sou contra que
eles saia que eu sei que é dos índios, mas eu fico triste é com o modo que eles
qué..., como diz assim, despejado, né.
Dona Dedé torna viva a distinção analítica que procuramos construir entre
"pertencimento" e "identidade": por pertencimento, as formas pelas quais as classificações
sociais e culturais fornecem um quadro de referência e de possibilidades de inclusão
classificatória, círculos mais ou menos frouxos de reconhecimento, de semelhanças e
afinidades objetivas, enquanto por identidade nomearíamos as formas pelas quais essas
classificações são acionadas politicamente, transformando o simples recorte classificatório
*
Porque todo ato de criação de identidade é um ato político, ao mesmo tempo, toda
ação política envolve a criação e reificação de identidades. Se os processos de construção
dos sujeitos coletivos criam classificações sociais, tais classificações se apropriam de
recortes existentes tanto no mundo visível, constituído de espaços e recursos limitados,
quanto num mundo invisível, mas nem por isso menos efetivo, como as genealogias
obscuras, os mitos sempre reinterpretados, ou nos sentimentos individuais. A mágica da
política está justamente na capacidade de agenciar tais sentimentos, imagens e
controvérsias de forma a construir realidade. Para isso são necessários rituais, simbologias
e cerimoniais que estão sempre confrontando pertencimentos sociais distintos e, neste
confronto, dando um conteúdo ao processo identitário, situando-o para além do que poderia
ser reduzido às fórmulas confortáveis da oposição entre formas contrastivas, ou dos
cálculos manipulatórios. Esta etnografia da trama histórica, dos arranjos territoriais e do
processo identitário que dão conteúdo ao etnônimo Pankararu, procurou apreender,
articular e explicitar esta complexidade, sem dúvida reduzindo-a, para torná-la inteligível,
mas buscando, sobretudo, captura-la em seu movimento.
... os caboclos velhos foram do lado de lá dessa serra, que tem outra entre serras que
eles chamam Quixaba Grande, aí os caboclos (acho que tiveram uma ciência) foram pro
mato e disseram "Vamos fazê garapa azeda, comprar um litro de cachaça, um pouco de
fumo e bebê uma juremada..."
(O velho meu avô correu daqui. Meia noite ele vinha arrancá mandioca que tava
grande, aí quando tava acabando de enche o aió aí o povo escutava que os que era dono
dizia: "Ei, peraí que nós vamos lhe matá!"...)
Aí quando tava tudo pronto, aí juntô os doze caboclo, doze índio, e disseram: "Nós
não qué mulhé pra nós, só qué nós homens..", aí ficou cada um batendo seu cachimbo,
cantaram, cantaram e aí os caboclos foram pra Quixaba Grande e foram bebê a Santa
Maria, quando acabaram de bebê, foram esperar pelo efeito e, quando o efeito chegou, eles
recordaram e disseram: "Pronto, nós tamos perdidos, os home estão com aquela medição
com falsidade, o caboclo não fica alí nem perto, ele vai ter que saír dali...", "É mesmo",
disse, "É, disse porque vi.".
Aí o Cavalcante tava morando em Petrolândia, e os caboclos disse: "Mas e aí, o que
é que nós faz?", "Mexe a jurema prá nós vê", Fizeram pensamento bem feito e de lá nem
voltaram pra casa. O caboclo disse: "Nós só ganha se matá o Cavalcante. Já tamos perdido,
é matá ou morrê. Vamos chegá lá antes mesmo dele mijá.". E foram direto pra Petrolândia
e foram batê na porta: "Cavalcante, Cavalcante, tá doirmindo? Acorda!". Aí as filhas dele
veio pra atendê e eles pediram: "A sra. faz o favor de chamá ele que nós tem uma história
pra contá pra ele.". Quando ele chegou, dois caboclo pegaram ele e perguntaram: "Escuta,
que negócio é aquele das terras?", ele disse: "O negócio é esse mesmo.". Aí eles pegô logo
na abertura dele.
[P: Matô o Cavalcante?]... Matô. Quando acabaram e os índios vinha, chegaram
aqui na estrada pra lá, fez uma puchada aqui e na entrada pra Piranhas, em vez de ter
corrido pra cá, pra própria Quixaba Grande, que não tem rio, só pedra e areia, mato,