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KEITH THOMAS

O HOMEM E O
Mudanças de atitude em relação às
MUNDO NATURAL
plantas e aos animais {1500-1800)
Tradução
João Roberto Martins Filho
Consultor desta edição
Renato Janine Ribeiro
Consultor de termos zoológicos
Márcio Martins
(^OMPANHIADEgoLSO
Copyright © 1983 by K e i t h Thomas
Proibida a venda em. Portugal
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
M a n and the natural world: changing attitudes i n England, 1500-1800
Publicado originalmente pela Penguin Books L t d . Harmondsworth, Midlesex,
Inglaterra
Capa
Jeff Fisher
Revisão
Adriana M o r e t t o
Renato Potenza Rodrigues '
Dados Internacionais de C a t a l o g a ç ã o na P u b l i c a ç ã o (cip)
(Câmara Brasileira do L i v r o , SP, Brasil)
T h o m a s , Keith
O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação
às plantas e aos animais (1500-1800) / Keith T h o m a s ; tradução l o ã o
Roberto Martins Filho ; consultor desta edição Renato lanine
Ribeiro ; consultor de termos z o o l ó g i c o s M á r c i o Martins. — São
Paulo : Companhia das Letras, 2010.
T í t u l o original: M a n and the natural world: changing attitudes
in England, 1500-1800
Bibliografia.
ISBN 978-85-359-1597-6
1. Avaliação da paisagem — Inglaterra — H i s t ó r i a 2. Ecologia
humana — Inglaterra — H i s t ó r i a 3. P e r c e p ç ã o geográfica —
Inglaterra — H i s t ó r i a i . Ribeiro, Renato Janine. i i . Martins,
Márcio. III. Título.
09-13031 CDD- 304.209
í n d i c e para c a t á l o g o sistemático:
1. Inglaterra : Meio ambiente : Ecologia humana : H i s t ó r i a 304.209
2010
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA S C H W A R C Z LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
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VI. O DILEMA HUMANO
A criação do domínio mental da fantasia encon-
tra um paralelo perfeito no estabelecimento de
''reservas'' ou ''parques naturais'' em lugares onde
as exigências da agricultura, das comunicações e
da indústria ameaçam ocasionar mudanças na
face original da terra que logo a tornarão irreco-
nhecível. Uma reserva natural conserva o estado
original que em todas as outras partes foi, para
nosso pesar, sacrificado a necessidade. Todas as coi-
sas, incluindo o que é inútil e mesmo nocivo, nela
podem crescer e proliferar livremente.
Sigmund Freud, Introductory lectures on psycho-
-analysis [Conferências introdutórias sobre a
Psicanálise, parte l l l ] [Standard Edition of the
Complete Psychological Works of Sigmund
Freud, tradução de James Strachey et alii, X V I
(1963), p. 372]
Todavia, se brandimos a espada do extermínio
à medida que avançamos, não temos razão para
lamentar o mal cometido, nem para imaginar,
com o poeta escocês, que "violamos a união social
da natureza" [...]. Devemos apenas refletir que
ao obter, assim, a posse da terra por conquista e ao
defender nossas aquisições pela força, não exercemos
nenhuma prerrogativa exclusiva. Toda espécie que
se expandiu de uma área pequena para um espaço
mais amplo, precisou, de maneira análoga, marcar
seu progresso pela diminuição, senão pelo completo
extermínio, de alguma outra, assim como neces-
sitou conservar o seu terreno mediante uma luta
bem-sucedida contra as invasões de outras plantas
e animais [...]. As espécies mais insignificantes e
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diminutas, quer no reino animal, quer no vegetal, em fins do século X V I I I , contribuíram para destronar muitas
também eliminaram milhares, à medida que se concepções estabelecidas e criar novas sensibilidades, de u m
disseminavam por todo o globo, assim como o leão, tipo que desde então foi-se tornando mais e mais intenso. São
quando pela primeira vez se espalhou pelas regiões \ essas mudanças mais amplas que este último capítulo tentará,
tropicais da Africa. sucintamente, evocar.
Charles Lyell, Principies of geology [Princípios
de geologia, 1830-3], i i , p. 156.
1. C I D A D E O U CAMPO?

E tão horrível as coisas precisarem ser mortas para A primeira grande modificação foi essa que G. M . Trevelyan
que nos alimentemos delas — parece tão perverso. jamais cessou de lamentar: o crescimento das cidades e a inten-
E no entanto temos que fazê-lo — ou morrer nós sificação do que ele chamava "a rígida distinção entre vida
mesmos. urbana e vida rural". E m 1700, mais de três quartos da popu-
Kate Greenaway a Violet Dickinson, 14 de lação britânica ainda viviam no campo; apenas 13%, segundo
julho de 1897; in M . H . Spielmann e G. S. se estimava, residiam em cidades com mais de 5 m i l pessoas.
Layard, Kate Greenaway (1905), p. 190. Por volta de 1800, porém, a proporção urbana elevara-se para
85%, e em 1851 os habitantes das cidades estavam em maio-
N o início deste livro sugerimos que, ao começar o período ria. Além disso, esses agrupamentos urbanos oitocentistas se
moderno, o predomínio do homem sobre o mundo da natureza diferenciavam do campo com maior nitidez que seus primeiros
seria a meta inconteste do esforço humano. Por volta de 1800, predecessores modernos. Antes de terminar o século X V I I I , era
ainda era esse o objetivo da maioria das pessoas — alvo, aliás, que evidente que a Inglaterra se tornara, após a Holanda, o país
pelo menos parecia firmemente ao seu alcance. Entretanto, a essa mais urbanizado da Europa.'
altura tal objetivo já não estava imune a controvérsias. Surgiam Nos tempos da Renascença, a cidade fora sinónimo de civi-
dúvidas e hesitações sobre o lugar do homem na natureza e o lidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das
seu relacionamento com outras espécies. O estudo cuidadoso da florestas e encerrá-los numa cidade era o mesmo que civilizá-
história natural fizera caírem em descrédito muitas das percep- -los. Como dizia u m diálogo elisabetano, um fidalgo criado na
ções antropocêntricas dos tempos anteriores. U m senso maior de cidade seria mais "civilizado" do que um educado no campo.- A
afinidade com a criação animal debihtara as velhas convicções cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto
de que o homem era um ser único. Uma nova preocupação com e da sofisticação. Era a arena da satisfação do homem. Adão fora
os sofrimentos dos animais viera à luz; e, ao invés de continua- colocado em u m jardim, e o Paraíso terrestre associado a flores e
rem destruindo as florestas e derrubando toda árvore sem valor fontes. Mas, quando os homens pensavam no paraíso da salvação,
prático, u m número cada vez maior de pessoas passava a plantar geralmente o visualizavam como uma cidade, a nova Jerusalém.'
árvores e a cultivar flores para pura satisfação emocional. Séculos a fio os muros das cidades simbolizaram tanto a seguran-
Tais processos eram apenas aspectos de uma modificação ça quanto o empreendimento propriamente humano; enxergá-los
muito mais ampla na relação dos ingleses com o mundo da tranquilizava o viajante. Em sua jornada na década de 1530, John
natureza. Faziam parte de todo u m complexo de mudanças que. Leland tecia muitos comentários sobre os prazeres visuais da

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paisagem urbana: o "lindo mercado" de Leeds; as "bonitas ruas" o carvão queimado em começos do período moderno con-
de Exeter; o esplendor de Bewdley, fulgurando "como se fosse de tinha o dobro de enxofre do produto usado hoje em dia- seus
ouro" ao nascer do sol; a "beleza" de Birmingham. Rice Merrick, efeitos eram proporcionalmente letais. A fumaça escurecia o ar
o historiador de Glamorgan na era Tudor, considerava Cardiff sujava as roupas, acabava com as cortinas, matava flores e árvo-
"embelezada por muitas casas amplas e ruas largas", enquanto, res, e corroía a estrutura dos prédios. Nos meados do século
na década de 1690, Celia Fiennes automaticamente sentia prazer X V I I I as estátuas londrinas de alguns dos reis Stuart estavam tão
ao avistar uma "cidade limpa"."* N o século X V I I I , eram frequentes negras que pareciam limpadores de chaminés ou africanos em
as expressões de satisfação com a beleza das praças de Londres e vestes régias.** E m 1700, escrevia Timothy Nourse:
os novos edifícios em Bath ou na Cidade Nova de Edimburgo; e
sabemos que, em 1802, Wordsworth achava que a Terra não tinha Seria interminável avaliar todos os danos que as casas
nada mais belo de se ver do que a cidade de Londres a dormir, sofriam por sua ação, na mobília, nos utensílios de prata,
contemplada da ponte de Westminster. bronze e estanho, nos objetos de vidro [...]. Uma cama
Contudo, já bem antes de 1802, tornara-se lugar-comum de oitenta ou cem libras, depois de alguns anos, devia ser
sustentar que o campo era mais bonito que a cidade. "Ninguém", posta de lado por estar manchada de fumaça [...]. A grande
escrevia W i l l i a m Shenstone em 1748, "preferirá a beleza de uma quantidade de carroças de pó-de-carvão subindo e descen-
rua à de uma relva ou u m bosque; na verdade, os poetas nã o do a cidade nunca para de espalhar, generosamente, a sua
achariam muito tentador o Elísio, se o concebesse como uma preciosa carga nas ruas [...] é por isso que também os rostos
cidade."^ E m parte, essa convicção se devia à deterioração do dos homens e mulheres, se nã o se lavarem e pintarem, logo
ambiente urbano. Encontramos queixas quanto à qualidade do ficam escuros de fuligem.
ar londrino desde o século xiii.^' Nos tempos elisabetanos, o uso
crescente do carvão para fins industriais e domésticos criara u m Sujeira no ar era o mesmo que sujeira nas ruas; e no verão as
sério problema de poluição. A rainha Isabel deixara sua capital, nuvens de poeira levantadas pelas rodas do tráfego sufocavam
em 1578, devido aos "odores fétidos"; e durante séculos a p r i- os passantes e tornavam difícil andar com os olhos abertos.'
meira vista da capital que tinham os viajantes era o ameaçador Igualmente nociva era a poluição causada pelos gases e
manto de smog*Mârgâret Cavendish registra a emoção de seu detritos gerados com a fermentação da cerveja, a tintura de rou-
marido, o realista marquês de Newcastle, quando, retornando pas, a fabricação de goma e de tijolos, e todas as outras indús-
em 1660 de seu exílio forçado, avistou de novo "a fumaça de trias instaladas no meio da cidade. Desde o reinado de Ricardo I I
Londres, que não víamos há tanto tempo". U m poeta de inícios foram baixadas leis, de maneira intermitente, contra a poluição
do século X V I I l escreveu: do Tamisa, e no começo do século XVII registram-se muitos
conflitos a propósito dos efeitos nocivos da indústria urbana.
Assim afastado, eu olho a cidade. Jaime l lançou uma série de éditos [proclamations] contra a polui-
Um grupo de edifícios numa nuvem de fumaça J** ção causada pelos fabricantes de goma londrinos; os moradores
de St. Botolph's, Aldgate, queixavam-se em 1627 dos vapores da
fábrica de alúmen em St. Katherine's, perto da Torre, que esta-
* M i s t u r a de nevoeiro e fumaça. ( N . T.)
** N o original: W h i l e thus retir'd, l on the city look./ A group of buildings
riam envenenando os habitantes, e dos detritos que matavam os
in a cloud of smoke. ( N . T.) peixes no Tamisa; alguns anos depois, o arcebispo Laud proces-

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sava u m cervejeiro de Westminster, por poluir o ar de Londres.'" Em vez de agredir os seus humores
Em 1657, ocorreu um debate parlamentar sobre o cheiro exalado Com cheiros de sujeira e de vapores?^''*
pelas fornalhas de tijolos londrinas. N o reinado de Jorge I I , o
duque de Chandos, residindo em sua nova casa em Cavendish indagava Abraham Cowley. A exposição prolongada àquilo que
Square, viu-se "envenenado pelas fornalhas de tijolos e outros Drayton chamava "os ares odiosos das cidades fumarentas e
odores abomináveis que infectam estas partes"." urbanizadas" acentuava o desejo de luz solar e de "ar fresco"
E notório que a superpopulação tornou Londres insalubre, do campo.'^
mas muitas outras cidades estavam em situação quase igual. Todavia, no pensamento da época, a objeção à vida urbana
Em 1608, os visitantes de Sheffield sabiam que ficariam "meio referia-se menos ao ambiente físico da cidade do que ao com-
sufocados com a fumaça da cidade", ao passo que em 1725 portamento moral de seus habitantes. John Norris escrevia:
u m viajante a Newcastle descobriu que "as nuvens de fumaça
perpétuas pairando no ar faziam tudo parecer tão negro como Seus modos são poluídos como o ar.
em Londres".'- Mesmo em Oxford, o ar era tão r u i m que De ambos sobem nuvens insalubres ,
um antiquário setecentista considerava que os M á r m o r e s de E tingem, de eflúvios ruins os céus da vizinhança.**
Arundel* tinham "sofrido mais em setenta ou oitenta anos ali
que em talvez 2 m i l anos nos países de onde foram trazidos".'^ Como salientava u m dos personagens na obra de Thomas
Inevitavelmente, havia mais peste nas cidades que no campo, e Starkey, Dialogue between Pole and Lupset [Diálogo entre Pole e
um nível mais alto de mortalidade.''' Lupset], em começos da dinastia Tudor havia mais vícios nas
"Imersos em fumaça, aturdidos com perpétuo barulho",'^ cidades e virtudes no campo."* A convenção clássica segundo
não surpreende que os habitantes urbanos viessem a ansiar pelas a qual os moradores do campo eram não apenas mais saudá-
delícias imaginadas da vida rural. E m Londres, os visitantes veis, p o r é m moralmente mais admiráveis que os habitantes da
logo se viam começando a tossir; e muitos inválidos crónicos, cidade, foi tema literário recorrente na literatura inglesa dos
como John Locke, optaram por evitar completamente a cidade, séculos X V I I e X V I I I . Este era exemplificado tanto pelo inocente
para salvar seus pulmões. Sir W i l l i a m Temple era "extrema- guardador de rebanhos da pastoral arcádica quanto pelo vigo-
mente sensível ao bom ar e aos bons odores, o que lhe deu roso lavrador do segundo epodo de Horácio, vivendo existên-
tamanha aversão à Cidade que ele uma vez passou cinco anos cia irrepreensível e independente em satisfeita obscuridade.''^
em Sheen sem a ver". Mesmo o rei Guilherme l l l resolveu morar Tinh a pouca justificativa nos fatos sociais, pois a agricultura
em Kensington por motivos de saúde. foi o setor da economia que se desenvolveu de maneira mais
cruel, os pequenos agricultores declinavam em número, o tra-
Quem, na posse da razão e do olfato,
Com rosas e jasmins não moraria, * N o original: W h o , that has reason, and his smell,/ W o u l d not among
roses and jasmine dwell,/ Rather than ali spirits choke/ W i t h exhalations of
* Trata-se de uma coleção de placas gravadas com inscrições que relatam d i r t and smoke? ( N . T.)
a história da Grécia desde a fundação até 354. Foram adquiridas em 1624 pelo ** N o original: T h e i r manners are polluted like the air,/ From both
conde Arundel, trazidas à Inglaterra e doadas por seu neto à Universidade de unwholesome vapours rise/ A n d blacken w i t h ungrateful steams the neigh-
Oxford em 1667. ( N . T.) bouring skies. ( N . T.)

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balho assalariado era universal, e os vícios da avareza, opressão tornar a suas localidades.^' Entretanto, esses fidalgos sempre
e hipocrisia eram pelo menos tão destacados no campo quanto retornavam ao campo no verão. A duração da estação londrina
na cidade. Mas, uma vez que os lucros rurais eram consumi- iria variar consideravelmente no decorrer dos dois séculos se-
dos na cidade, era nela que se encontravam a sociedade mais guintes, mas a sociedade elegante nunca estava na cidade o ano
sofisticada, as últimas modas e os vícios mais caros. N o campo, V . inteiro.^* O hábito de viver no campo, defendia um ensaísta em
em comparação, as roupas eram mais simples; não se desper- 1620, "tem sido mais comum entre nós que em outras nações; de
diçavam pós e pinturas. Além disso, a vida rural carecia do modo que de certo modo ele tornou-se nosso".-' É certo que as
anonimato que fazia da cidade um cenário melhor para a intriga casas de campo que serviam de refúgio à aristocracia não eram
clandestina. Havia "fornicações e adultérios mais frequentes" cabanas rurais, mas esplêndidas mansões, planejadas para trazer
em Londres que no campo, pensava o economista político a civilização urbana aos arredores do campo. Ainda assim, elas
Charles Davenant.-" Em 1692, vários membros do Parlamento forneciam uma base para um estilo de vida distintamente " r u -
de origem rural chegaram a se opor a uma lei contra os mas- ralizado", entremeado com uma certa dose de política e admi-
cates, sustentando que, se os vendedores ambulantes não mais nistração. "Nesta ilha", escreveu W i l l i a m Blane em 1788, "dada
viessem à porta, então os empregados dos fidalgos rurais teriam a natureza de nosso governo, nenhum homem pode ter impor-
que ser enviados a fazer compras na cidade, onde certamente tância se não passar boa parte de seu tempo no campo."^*^
aprenderiam a libertinagem.^' Entrementes, para outros citadinos o campo ia sendo visto
Em parte, portanto, o apelo do campo era negativo. Ele cada vez mais como lugar de repouso e refrigério. Já no século
oferecia uma fuga dos vícios e afetações urbanos, u m descanso X I I , era costume os ricos cidadãos das grandes cidades manterem
para as tensões dos negócios e um refúgio contra a sujeira, a uma propriedade rural nas cercanias; e no final da Idade Média
fumaça e ruído da cidade. N ã o obstante, a maior parte da peque- a ideia de uma "casa de verão" no campo foi se tornando mais e
na nobreza tinha razões mais positivas para viver no campo. Era mais familiar aos habitantes prósperos das cidades." N o reinado
nas propriedades agrícolas que sua riqueza e prestígio sempre de Jaime I metade dos vereadores de Gloucester possuía casas no
assentaram. N o reinado de Henrique vill, Thomas Starkey la- campo circundante, enquanto em Norwich era raro o magistrado
mentava ser impossível persuadi-la a ter sua residência principal urbano que não tivesse propriedades fora da cidade. Na Londres
na cidade, e deplorava "a grande rudeza e o selvagem costume" da era Tudor a construção de "casas de verão" ou pavilhões ao ar
de morar continuamente no campo. De maneira similar, em livre nos subúrbios rurais e nas aldeias adjacentes tornou-se popu-
1579 outro autor observava que, enquanto em alguns países es- lar entre os mais abastados.^' Com o passar do tempo, muitos dos
trangeiros os fidalgos habitavam "as cidades e burgos mais i m - comerciantes mais ricos de Londres chegaram mesmo a optar no
portantes", "nosso modo inglês" era que eles "fixassem residên- verão por ir diariamente à cidade de um refúgio no campo. "E
cia mais em suas casas no campo"." Na verdade, a aristocracia muito frequente que [os homens de negócios] estabeleçam nesse
dos tempos elisabetanos tendia a passar a maior parte do ano em lugar sua família", escrevia Defoe sobre Epsom, "e tomem o cava-
Londres ou nas cidades maiores da província. A introdução dos lo todas as manhãs para vir a Londres, à Bolsa, à Alameda ou ao
coches particulares no final do século X V I tornou mais fácil via- armazém, voltando a Epsom à noite." Os comerciantes de Bristol,
jar à cidade; e sob os primeiros reis Stuart boa parcela do estrato H u l l e outras cidades maiores seguiam um padrão semelhante.^'
superior da pequena nobreza habitualmente passava o inverno U m abrigo rural era mais saudável e tranquilo; e proporcionava
na cidade, a despeito das tentativas do governo para fazê-la re- maior espaço para jardins e pomares.

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Mesmo aqueles que viviam mais confusamente durante a esse propósito e equipada com u m grau de luxo completamente
semana podiam se permitir essa invenção dos primeiros tem- desconhecido do habitante comum do campo "
pos modernos, o f i m de semana no campo. E m 1667, Samuel Mesmo quem era pobre demais para se permitir a cabana de
Pepys e sua mulher prenunciaram muitas discussões domésti- fim de semana amda olhava para o campo em busca de ocasional
cas dos séculos seguintes quando decidiram n ã o comprar uma refrigério. John Stow descreveu como, no Dia da Primavera, os
casa no campo, porque isso acarretaria uma responsabilidade londrinos da época elisabetana "passeavam pelos prados amenos
suplementar e os prenderia a u m local específico; em vez disso, e as matas verdes, para rejubilarem o espírito com a beleza e
comprariam u m coche para i r a u m lugar diferente em cada aroma das flores perfumadas, e com a harmonia dos pássaros".
fim de semana. Afinal, eles alugaram, com outro casal, uma Em parte foi o desejo de preservar os campos adjacentes para
vila no campo em Parson's Green. Uma das razões por que o recreação que estava por trás das repetidas tentativas de impe-
incêndio de Londres causou tanto dano em 1666 foi que ele dir novas construções nos subúrbios londrinos." As excursões
eclodiu nas primeiras horas de uma m a n h ã de domingo, quan- ou "perambulações" campestres eram uma forma comum de
do a maioria dos principais comerciantes estava fora para o descanso durante o século X V I I ; e muitas damas da cidade eram
fim de semana.'" E m 1748, u m visitante sueco notou que entre como a sra. Turner, que em julho de 1667 saiu a passeio com
os jardins do mercado a meio caminho entre Fulham e Chelsea amigos nas chapadas de Epsom e, conforme o relato de Pepys,
espalhavam-se grandes casas de tijolos, pertencentes a fidalgos "reuniu u m dos mais lindos ramalhetes que jamais vi em minha
londrinos, que ali vinham às tardes de sábado, buscando vida".'^ E m meados do século X V I I I , os donos de hospedarias,
algum ar campestre; e, em 1754, u m ensaio no Connoisseur vendas de cervejas e estalagens em Hampstead, Chelsea e
ironizava as pequenas vilas de f i m de semana em Turham outras localidades nos limites de Londres podiam sustentar u m
Green e Kentish Town, para as quais os negociantes londrinos florescente negócio fornecendo refeições para os enxames de
se retiravam com suas famílias para o "final e o começo de excursionistas vindos da cidade nos finais de semana.'^
cada semana", embora gastassem boa parte do sábado arru- Até a religião desempenhou sua parte na formação desse
mando os mantimentos e as roupas para a viagem, e quase a novo gosto pela vida rural. "Após a década de 1640", escreve
segunda-feira inteira "despregando, desamarrando, penduran- um historiador literário, "o retiro rural já não era uma simples
do roupa e recolocando as garrafas vazias no porão". "Mesmo defesa contra o mundo corrupto; era u m portão aberto para o
os cidadãos que respiram a fumaça de Londres cinco dias por Paraíso antes da Queda." O campo era retratado como u m lugar
semana o ano todo", observava A r t h u r Young, em 1770, "são mais virtuoso que a cidade; e boa parte da literatura devota do
sitiantes os outros dois dias."" século seguinte exibia o que o poeta John Clare chamava "a
Por essa época, os moradores das cidades já começavam a religião dos campos". Quando caminhava pelo campo — dizia
idealizar a cabana do campo, com seu teto de colmo, sua fuma- o jovem poeta Henry Needier —, "meus pensamentos natural-
ça espiralada e as rosas em redor da porta: aquilo que Uvedale mente tomam u m rumo solene e religioso". Campos e bosques,
Price descreveu como "um dos mais tranquilos e suaves de todos concordava o platónico Peter Sterry, naturalmente desper-
os objetos rurais". E m 1772, a rainha Carlota erigiu sua cabana tavam u m sentido do divino. Mesmo o prosaico Bulstrode
nas matas em Kew; e, em fins do século X V I I I , muitas "pessoas Whitelocke citava "aquele que os autores papistas chamam são
de fortuna" condescenderiam em passar u m f i m de semana ou Francisco" para endossar a tese de que toda folha, planta e urze
outro numa "cabana ornamental", geralmente construída com era u m livro de Deus a proclamar seu poder e bondade.'*

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M u i t o tempo ames de W i l l i a m Cowper e com justificação Itáha que a vida urbana se desenvolveu primeiro. Na Inglaterra
igualmente precária* muitos escritores do século XVII afirma- de inícios do período moderno o gosto pelo campo foi inten-
ram que Deus fizera o campo, o homem a cidade. Os habitantes sificado pelo enorme crescimento de Londres. Mas também
das cidades e vilas, considerava u m pregador jacobiano, "em sua retirou força do que se chamou a "desruralização" das cidades:*»
maior parte só veem as obras dos homens [...] ao passo que os a redução de jardins e pomares, o desaparecimento de árvores e
versados nos campos e matas contemplam, continuamente, as flores e a crescente densidade de edifícios em resposta à pressão
obras de Deus". O quacre W i l l i a m Penn preferia a vida rural, crescente da população.
"pois aí vemos as obras divinas; nas cidades, porém, pouco mais Obviamente, a acentuada tendência a depreciar a vida urba-
há que as obras dos homens". "O campo é tão adorável", escre- na e a encarar o campo como símbolo de inocência repousava
veria em 1928 D . H . Lawrence, "a Inglaterra feita pelo homem numa série de ilusões. Pressupunha a leitura completamente
é tão v i l . " " equivocada das relações sociais rurais que serve de fundamento
Foi, por certo, a intensificação de uma aguda separação a toda pastoral. Os pastores idealizados dos idílios literários,
entre cidade e campo, mais nítida que qualquer coisa que tão populares no início do século X V I I , não guardavam nenhu-
possamos encontrar na Idade Média, o que encorajou esse ma relação com os assalariados agrícolas da Inglaterra Stuart.
anseio sentimental pelos prazeres rurais e a idealização dos Como explicava o dramaturgo em voga, John Fletcher, sua
atrativos espirituais e estéticos do campo. Os mais enlevados peça pastoral, The faithful shepherdess [A pastora leal, anterior a
com as cenas rurais eram citadinos sofisticados como a rainha 1611; encenada na Corte em 1633], não era sobre "pastores as-
Henriqueta Maria, que demorou-se em Wellingborough em salariados, em mantos cinzentos, com cães vira-latas"; ao con-
1628, porque gostava do campo e se divertia com as danças dos trário, os guardadores de rebanho da pastoral eram "tal como
camponeses; ou Samuel Pepys, que em 1667 recordava sua fasci- todos os antigos poetas e os poetas modernos, de discernimen-
nação ao encontrar u m autêntico pastor rural e seu menino nas to, os conceberam: isto é, donos de rebanhos e não assalariados".""
chapadas próximas a Epsom, "com suas meias de lã tricotadas A desigualdade social do campo inglês significava que desapa-
de duas cores e [...] seus sapatos calçados com ferro, tanto nas recera a Arcádia (se é que tenha existido). Mesmo o ideal hora-
pontas como nos calcanhares, além de grandes pregos nas solas ciano do lavrador autossuficiente era inteiramente irrealista:
dos pés, o que era muito bonito". Como observaria o crítico como observou John Evelyn ele jamais podia permanecer "na-
setecentista Hugh Blair, o gosto pela pastoral somente surgiu quele estado desejável, sem as vidas ativas de outros para pro-
depois de crescerem as cidades, pois os homens não ansiaram tegê-lo da rapina, alimentá-lo e supri-lo de pão, roupas e ne-
pelo campo enquanto viveram em termos de familiaridade cessidades decentes". Os moradores do campo não eram mais
cotidiana com ele.'** N ã o é fortuito que tenha nascido o gosto inocentes que os habitantes das cidades. Tampouco eram mais re-
pela villeggiatura — o retiro para uma elegante vila campestre Hgiosos, pois, como salientava John Beale em 1657,
durante a estação de verão'' — na Itália renascentista: pois foi na
embora a vida rural deva ser, com toda a razão, a mais
humilde, mansa e inocente: no entanto, a experiência coti-
* "A paisagem de Olney", observou corretamente Darby, "Assim como de
modo geral o campo inglês, é t ã o artificial quanto qualquer cenário urbano ; diana mostra que onde qualquer ramo de manufatura é
H . C. Darby, " O n the relations o f geography and history", Trans. Institute of realizado, a palavra de Deus tem seu valor; onde o comércio
British Geographers, 19 (1953), 6. não floresce, aí a palavra de Deus não passa de uma canção

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agradável: se de vez em quando é ouvida, raramente, porém, pescador completo] de Walton e de outras obras semelhantes,
é obedecida.*^ pois a pequena nobreza realista derrotada na Guerra Civil fazia
da necessidade virtude, ao exaltar os méritos da vida rural
Os poetas e artistas que alimentavam os novos anelos rurais "Nos 24 anos do reinado de Carlos i " , ao que parece, "foram
preferiam ocultar tais realidades ásperas. A maioria deles pinta- escritos mais poemas sobre a felicidade de uma vida retirada no
va o campo como imune às tensões sociais; ignorava as razões campo que nos 67 anos de Isabel e Jaime i somados"; e o pico
económicas da pequena nobreza para conservar-se no campo e foi atingido entre 1645 e 1655.**^ C o m o retorno de Carlos i i
manifestava extrema relutância a mencionar os aspectos práti- em 1660, os atrativos da vida rural tornaram-se menos óbvios
cos da vida campestre."*'* para os realistas; mas continuaram a valer para outros políti-
Portanto, o culto do campo era, sob vários aspectos, mis- cos mal-sucedidos, e carreiristas frustrados. Muitos dos mais
tificador e escapista. N e m mesmo atestava, necessariamente, conhecidos idílios rurais do século XVII eram mitos compen-
um genuíno desejo de viver fora da cidade, pois, como já se satórios, compostos por ou para essas figuras desconsoladas:
disse com razão, muito do que se escreveu sobre o lavrador Thomas, lorde Fairfax, cujo exílio autoimposto da política, nos
feliz de Horácio era "a arenga convencional de poetas que não anos 1650, em N u n Appleton inspirou Andrew Marvell; ou
seriam apanhados a uma hora de distância da cidade, a menos Bulstrode Whitelocke, que, após escapar ao castigo na época
que o convite de u m mecenas para sua propriedade rural desse da Restauração, retirou-se para Chilton Park, em Wiltshire,
cor política a essa ausência, ou o assédio de u m credor a tor- onde redigiu reflexões sobre a superioridade da vida rural; ou
nasse imperativa".** Certamente ele não impediu que mais e sir W i l l i a m Temple, que se afastou para M o o r Park, Surrey,
mais pessoas se mudassem do campo. Os prazeres, vitalidade e depois de ser riscado da lista dos conselheiros privados em
oportunidades económicas da vida metropolitana eram irresis- 1681, e escreveu o ensaio "Dos jardins de Epicuro"; ou a poetisa
tíveis. Na verdade, foi justamente porque as classes superiores Anne Finch, condessa de Winchilsea, que, tendo-se retirado
georgianas** eram tão apegadas a Londres e Bath que elas escre- com o marido para o campo por não poderem se conciliar com
veram tanto sobre as virtudes campestres. Raramente teciam a Revolução de 1688, compôs poemas exaltando as virtudes da
louvores às cidades, pois era desnecessário.*' obscuridade satisfeita.*^ Como escreveria Shelley, "na solidão,
Boa parte da celebração do campo, além disso, vinha daque- ou nesse estado deserto em que estamos cercados de seres
les que o fracasso político afastara da cidade a contragosto. Isso humanos que, porém, não simpatizam conosco, amamos as
explica a grande voga, na década de 1650, do Complet angler [O flores, a relva, a água e o céu".***
N o entanto, os que iam para o campo por sua própria von-
* U m crítico recente comenta a paisagem campestre ideal descrita na poe-
tade muitas vezes achavam que u m f i m de semana já bastava.
sia inglesa de meados do século X V I I : "não há virtualmente nenhuma m e n ç ã o "Esse estado brutal chamado vida no campo", como o denomi-
a limpar a terra, derrubar árvores, podar, cortar a machadadas, cavar, mondar, nava o terceiro conde de Shaftesbury,*' era por demais maçante
erradicar ervas daninhas, marcar a ferro, castrar, abater, salgar, curtir, fazer para os urbanos sofisticados. "As pessoas de melhor condição,
cerveja, cozinhar, fundir, forjar, moer, cobrir de colmo, fazer cercas e tapu-
constantemente habituadas a muita conversa", observava o
mes, plantar sebes, reparar caminhos e transportar. Quase todas as coisas que
a l g u é m faz no campo constituem tabu"; James Turner, The politics of landscape
quarto lorde N o r t h , logo acham a solidão do campo aborrece-
(Oxford, 1979), p. 165. dora. Quando o jovem John Locke retornou de Oxford para sua
** D o tempo dos primeiros quatro reis Jorge (1714-1830). ( N . T.) casa em Somerset, rapidamente se desiludiu: "Estou no meio de

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um conjunto de mortais que não sabem nada além do preço do nas belezas da natureza e na obra do homem, "ao enfeitar a
trigo e da ovelha, que são incapazes de entreter um assunto terra com belas cidades".'' Mas era cada vez mais frequeme sus-
diverso da engorda de animais ou do cultivo da terra e jamais tentar que a cidade mais bela seria a de maior aparência rural- e
agradecem a Deus por outra coisa senão u m ano fértil ou touci- a desruralização das cidades levou a uma cresceme insatisfação
nho gordo". Havia muitos outros para quem o tempo se arras- com o ambiente urbano. Ebenézer Howard recorria a uma lon-
tava penosamente no campo ou, como o antiquário W i l l i a m ga tradição quando proclamava, na década de 1890, que "cidade
Stukeley, renunciavam inteiramente a viver nele por sentirem e campo precisam estar casados".'* Os ideais da cidade-jardim
falta da conversa de temas literários que tinham em Londres.™ e do cinturão verde mostraram-se duradouros; na verdade
Contudo, com todas as suas falsidades, o crescente senti- como combinar as vantagens sociais e económicas da cidade
mento rural refletia u m anseio autêntico que aumentaria cons- com o ambiente físico do campo continua sendo u m problema
tantemente, tanto em volume como em intensidade, com a ex- candente do planejamento urbano.
pansão das cidades e o crescimento da indústria. Esse anelo se Por volta do século X V I I I , assim, uma combinação de voga
expressou num volume sem precedentes de escritos sobre a na- literária e fatos sociais criara genuína tensão entre o infatigável
tureza e o campo. Desde sua primeira publicação em 1653, The progresso da urbanização e o anseio rural a que um n ú m e r o
compleat angler atingiu aproximadamente quatrocentas edições crescente de pessoas estava sujeito. Tais anelos indicavam cla-
ou impressões diferentes, enquanto The natural history of ramente que não eram poucos os que entendiam que, embora
Selborne [A história natural de Selborne] continua sendo u m dos o mundo da natureza devesse ser domesticado, não devia ser
best-sellers mais estáveis de todos os tempos.^' Nas suas águas completamente dominado e suprimido. Esse antigo ideário
seguiu-se essa longa sequência de obras, como Lark Rise to pastoral sobreviveu moderno mundo industrial adentro. Pode
Candleford [Lark Rise a Candleford] ou A shepherd's life [Ávida de ser visto nas imagens do campo tão utilizadas para anunciar
um pastor], que ainda alimentam a nostalgia rural do morador bens de consumo; e no vago desejo de tantas pessoas de findar
da cidade. Como observou W i l l i a m Hazlitt num ensaio memo- seus dias numa cabana no campo. Por sentimentais que sejam,
rável, "Do amor ao campo" (1814), um elemento essencial dessa tais sensibilidades refletem o desconforto gerado pelo progres-
nostalgia é que os objetos naturais — árvores, flores, animais so da civilização humana; e uma relutância a aceitar a realidade
criados pelo homem e pássaros — são valorizados por suas asso- urbana e industrial que caracteriza a vida moderna.
ciações primeiras: eles trazem de volta lembranças da infância de
uma maneira mais vívida e imediata do que é capaz qualquer ser
humano; os objetos naturais, ao contrário dos humanos, são
percebidos enquanto classes, não como indivíduos; e uma prima-
vera pode ser instantaneamente reconhecida como a mesma
planta que vimos na infância, ao passo que uma pessoa não."
Essa nostalgia t a m b é m tirava forças da crescente repugnân-
cia pela aparência física da cidade. N o século X V I I , quem amava
o campo não odiava, necessariamente, a cidade. "Minha ale-
gria eram os prados, os campos e as cidades", cantava Thomas
Traherne; e John Ray acreditava que Deus tinha igual deleite

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2. L A V O U R A O U T E R R A I N C U K T A ? de hectares] de terra no paxs na verdade 37,3) havia ainda 10
A segunda indicação de mudança nas sensibilidades foi uma milhões de acres [cerca de 4 milhões de hectares] de charnecas
crescente reação contra o ininterrupto avanço das fronteiras montanhas e terra estéril, mais outros 3 milhões [1,2 milhão dê
agrícolas. Isso representava uma notável modificação das atitu- hectares] de florestas, parques e terras comuns.' Tratava-se de
des anteriores. Para os propagandistas agrícolas dos séculos X V I uma estimativa exagerada, mas que mostra como um homem
e X V I I , as charnecas, montanhas e pântanos não lavrados eram inteligente considerava que em sua época ainda persistia a bata-
o símbolo vivo do que merece ser condenado. Eles queriam lha entre homem e natureza; e isso explica por que, no século
X V I I I , a ideologia do aprimoramento estava tão difundida, não
eliminar o feto, o tojo e a giesta; e louvavam o solo que a duras
apenas entre os agricultores profissionais, como Arthur Young,
penas fora "limpo ou conquistado à mata, aos arbustos, giestas
que pretendia transformar "as terras estéreis do reino em cul-
e tufos".' As antigas terras de pastagem juncosas deviam ser
tura" e "cobri-las de nabos, trigos e trevos, ao invés de urzes,
aradas e drenadas; os parques de cervos eram u m desperdício
tojo e fetos", mas t a m b é m entre observadores urbanos, como a
e havia reservas florestais e de caça em demasia. A charneca
escritora Elizabeth Cárter, que achava, em 1769, que a "desgra-
de Hampstead, considerava John Houghton em 1681, era uma
ça" do país estava nos "trechos de terra não lavrada".'^
"vastidão estéril", necessitando urgentemente ser cultivada.^ N o
Aqueles que exortavam a essa atividade pareciam indife-
século X V I , a ênfase recaía no cultivo: o direito consuetudinário,
rentes, por vezes, às desvantagens estéticas do progresso eco-
afirmava sir Edward Coke, conferia à terra arável "preeminên-
nómico. "Suponham carvão em Northampton, Buckingham e
cia e precedência em relação aos prados, pastos, matas, minas Oxfordshire", exclamava Walter Blith em 1649, "que grande
e qualquer outro tipo de solo". N o século x v i i , houve maior benefício para essas regiões!" Arthur Young lamentava igual-
valorização das terras de pastagem.' E m ambos os casos, o mente a "monstruosa proporção" de terras estéreis no Reino
aprimoramento e a exploração agrícolas não eram apenas eco- Unido, e considerava u m "escândalo para a política nacional"
nomicamente desejáveis; constituíam imperativos morais. Deus que as terras de Otmoor (hoje em dia u m refúgio para a vida
criara a terra, declarava o elisabetano sir George Peckham, vegetal e as aves) não tivessem sido divididas e cercadas.^ Mas
"para que ela pudesse, por meio do cultivo e da lavoura, dar tais homens não costumavam situar a utilidade acima da beleza.
coisas necessárias à vida do homem". Ele "concedera a terra ao Para eles, uma paisagem domesticada, habitada e produtiva era
homem para ser cultivada e polida por ele", concordava Edward bela. Faziam seu o antigo ideal clássico, que associava beleza
Hyde, conde de Clarendon. O amanho do solo simbolizava a e fertilidade. Nos séculos X V I e XVI I era sempre o cenário
civilização, ao passo que as "terras agrestes e vazias", "obstruí- fértil e cultivado que os viajantes admiravam. Tal como John
das por moitas [e] urzes", eram "como u m caos disforme". U m Leland, eles gostavam dos "vastos e maravilhosos prados", da
terreno não cultivado, refletia T i m o t h y Nourse em 1700, era "a "boa terra dos trigais", e dos "belos jardins, pomares e lagos".«
suma exata da natureza degenerada".* O melhoramento significava mais comida e emprego, porém
Por toda a primeira fase dos tempos modernos prosseguiu suas vantagens não eram exclusivamente materiais. "Além do
esse labor — empurrando a lavoura colinas acima, recuperando excessivo lucro que você colherá", escrevia sir Richard Weston
charcos, drenando pântanos, convertendo charnecas em solo em 1645, "imagine que prazer para seus olhos e olfato será ver
arável. Todavia, em fins do século X V I I , Gregory K i n g calculava a ruiva charneca transformada em verdejante relva, que produz
que de u m total de 39 milhões de acres [cerca de 16 milhões as mais doces e agradáveis madressilvas." Através do trabalho

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e do investimento, pensava T i m o t h y Nourse, o homem podia nhuma formação era mais admirada que a do quincunce: " É
ehminar o castigo dos abrolhos e das urzes que decorria do grande prazer e encanto", dizia o Lavrador no diálogo de Ralph
Pecado Original, e devolver as charnecas estéreis à sua p r i m i - Austen sobre as árvores frutíferas (1676), "caminhar entre vós,
tiva fertilidade e beleza; em viçosos campos de trigo, prados árvores inúmeras e belas; vendo-vos crescer de maneira tão
verdejantes, árvores vergadas ao peso das frutas e "curiosos formosa e uniforme; vós cresceis em ordem, retas para todas as
bosques e alamedas" refletir-se-ia a "Restauração da Natureza". direções (não importa para onde olhemos)".'-
O labor humano, concordava Thomas Traherne, podia restau- Esmero, simetria e padrões formais sempre foram a maneira
rar "a beleza e a ordem do Éden". John Norden relatava que caracteristicamente humana de indicar a separação entre cultu-
em Harrow, "chegada a época da colheita, os homens podem ra e natureza. Mas a tendência para o cultivo uniforme parece,
contemplar os campos das vizinhanças a se dirigirem com tanto no m í n i m o , ter aumentado no início do período moderno. Com
prazer à foice e à gadanha, com uma abundância tão confortável certeza, John Parkinson considerava em 1629 que os pomares
de todos os tipos de grãos, que o agricultor que espera pelos de seu tempo eram plantados segundo padrões mais formais
frutos da terra não poderá deixar de bater palmas de alegria ao do que nas épocas anteriores." Essa alteração acompanhou a
ver esse vale rir, ver o vale cantar".' mudança no gosto arquitetônico, que passou do gótico para o
Essa paisagem cultivada distinguia-se por suas formas cada clássico. Para os teóricos neoclássicos de fins do século X V I I , era
vez mais regulares. A aradura sempre trouxera simetria; e qual- incontestável que as figuras geométricas intrinsecamente eram
quer lavrador quinhentista teria entendido o encantamento de mais belas que as irregulares. N i n g u é m — exceto os "mais
W i l l i a m Cobbett ao ver u m sulco de cerca de quatrocentos estúpidos que o mais v i l dos animais", segundo Henry More —
metros tão reto como se traçado com u m nível.'° A prática de negaria que u m cubo, tetraedro ou icosaedro são mais belos do
plantar cereais ou vegetais em linhas retas nã o era apenas u m "que qualquer pedra rude e quebrada, a repousar no campo ou
modo eficiente de aproveitar espaços escassos; també m repre- nas estradas".'* Roger N o r t h declarava que na ordem estava a
sentava u m meio agradável de impor a ordem humana ao mun- essência da beleza, "como nas árvores, plantadas geralmente em
do natural desordenado. N o reinado de Henrique V I I I , Richard espaços iguais e em fileiras retas". John Laurence concordava:
Harris teria plantado mais de cem acres com árvores frutíferas "A beleza requer que as sebes estejam corretamente alinhadas
em Teynham, Kent, "de modo tão belo que não somente estão [...] e o que assim será mais agradável ao olhar será, também,
em linha reta, mas parecem ser do mesmo tipo, forma e aparên- mais barato e conveniente; as linhas retas são as mais curtas e
cia, como se tivessem sido feitas do mesmo molde ou forjadas de os edifícios góticos são muitíssimo mais caros do que a majes-
um único padrão". U m topógrafo descobriu posteriormente que tosa simplicidade da arquitetura grega"." As longas e retilíneas
em Kent os pomares e jardins de cerejas eram "graciosamente cercas de arbustos do século XVIII contrastavam acentuadamen-
dispostos em linhas retas"." Os reflorestamentos, determinava te com a irregularidade dispersa dos padrões rurais anteriores.
Walter Blith em 1653, podiam ser quadrados, triangulares, re- Na verdade, os modernos arqueólogos rurais afirmam que, se
tangulares, ovais ou circulares; mas não deviam ser traçados a margem que marca a fronteira de uma mata é perfeitamente
"irregular e confusamente"; uma cerca-viva alinhada era "obje- reta, então é bastante provável que ela seja posterior a 1700.'*
to de prazer". Ervas e flores, concordava Stephen Blake, em Durante todo o século X V I I I e algum tempo ainda, os apri-
1664, deviam ser dispostas em "fileiras uniformes". Simetria e moradores continuaram a louvar essa paisagem uniforme de
regularidade eram traços essenciais da boa agricultura, e ne- opulência e produtividade e a deplorar as vastidões não cultiva-

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das.'^ "Que pintor", indagava John Laurence em 1716, "pode tortuosos". Celia Fiennes detestava os Peninos e gostava de
esboçar panorama mais elegante e gracioso aos olhos que um descer da chuva da montanha para a luz do sol e o canto dos
velho pessegueiro de Newington carregado de frutos em agos- pássaros. Achava o Distrito dos Lagos "deserto e estéril" e "ter-
to?" W i l l i a m Cobbett detestava as "miseráveis charnecas" perto ríveis" as suas montanhas.^' Na década de 1670, o presidente de
de Marlborough. " N ã o tenho", dizia, "ideia de beleza pitoresca um dos tribunais, N o r t h , observava as "medonhas montanhas"
separada da fertilidade do solo." O jardineiro Samuel Collins do trajeto de Carlisle a Appleby, enquanto em 1697 Ralph
falava por muitos contemporâneos quando dizia, em 1717, que a Thoresby considerava tanto a região da Fronteira quanto o
melhor de todas as flores era a couve-flor; e as afetações dos Distrito dos Lagos repletos de horrores: precipícios ameaçado-
jardineiros-paisagistas recebiam pouco crédito do dr. Johnson, res, ermos horrendos, horríveis quedas d'água, pedras medo-
que odiava conversar de perspectivas e vistas. "O melhor jardim nhas e gargantas terrificantes. N o mesmo espírito, o dr. John-
[dizia ele] é o que produz mais raízes e frutas; e a água mais
son dizia, a propósito das Highlands escocesas, que "uma vista
digna de louvor é a que contém mais peixes.""* "As pessoas em
acostumada a pastagens verdejantes e colheitas batidas pelo
geral", observava W i l l i a m Gilpin em 1791, achavam o campo,
vento sente-se pasma e repelida por essa vasta extensão de este-
em seu estado natural, totalmente desagradável: "há poucos que
rilidade inútil". Infinitamente preferível era a paisagem mais
não prefiram as diligentes cenas de cultivo às maiores produ-
amena e fértil de u m condado como Northamptonshire, que
ções grosseiras da natureza. Geralmente, na verdade, quando
John M o r t o n gabava em 1712: "aqui n ã o existem rochas nuas e
deparamos com a descrição de uma bela região, ouvimos falar
escarpadas, feias e ásperas montanhas, ou vastas matas solitá-
em medas de feno, em campos de trigo ondulantes ou em agri-
rias para esconder e interceptar a visão"."
cultores a arar". Wordsworth pensava o mesmo: "Aos olhos de
milhares e milhares de pessoas", lamentava, "um rico prado, Seria u m erro exagerar a extensão do medo que as pes-
com gado gordo pastando, ou a vista do que elas chamariam soas realmente tinham das montanhas. Os supostos horrores
uma pesada colheita de trigo, vale por todos [...] os Alpes e os dos montes galeses não impediram os botânicos seiscentistas
Pireneus em seu supremo esplendor e beleza"." de escalar a Snowdonia e a Cader Idris,* em busca de novos
E m conformidade com essa atitude, as montanhas impro- espécimes. A verdadeira objeção a montanhas como os Alpes,
dutivas foram tradicionalmente vistas como desprovidas de pensava James Howell em 1621, devia-se menos a serem "altas
atrativos físicos. Supunha-se que fossem lugar de gente incivili- e terríveis" do que a serem inúteis — ao contrário de "nossas
zada, como os zapoletas da Utopia de More, "povo bárbaro, montanhas no País de Gales", que "sempre t ê m algo útil ao
feroz e selvagem, vivendo nas florestas e nas altas montanhas", homem ou aos animais, alguma relva, pelo menos".-' Mas não
ou os rudes galeses do Pembrokeshire elisabetano, que, segun- há como negar que antes de 1700 os contemporâneos mais
do os relatos, "os outros chamam de montanheses".^" Os primei- sofisticados achavam as áreas montanhosas desagradáveis e
ros viajantes modernos geralmente achavam as regiões monta- preferiam, infinitamente, a paisagem domesticada e fértil sobre
nhosas desagradáveis e arriscadas. W i l l i a m Camden considerava a qual o homem estabelecera seu controle.
Radnor "horrenda de se contemplar, em razão dos caminhos
sinuosos e irregulares e das montanhas íngremes", e descreveu
* A Snowdonia é a região montanhosa ao redor do maciço de Snowdon, a
Craven como "áspera por toda a parte e desagradável de se noroeste do País de Gales; u m pouco ao sul se situa o pequeno maciço da Cadeira
olhar, com suas rochas escarpadas, pedras suspensas e caminhos de Idris. Ambos t ê m por volta de m i l metros de altitude máxima. ( N . T.)

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Contudo, antes de terminar o século X V I I I , o gosto mudou fins indispensáveis, criando rios, proporcionando divisas natu-
de forma dramática. N o lugar do jardim formal aparado como rais ou oferecendo lar adequado às cabras.-''
por manicure, que antes fora o ideal da horticultura, desenvol- Tais justificações dos desígnios de Deus foram assumindo
veu-se um estilo caracteristicamente inglês de jardinagem pai- dimensão cada vez mais estética. A "formosura natural" da
sagística, tão informal que às vezes era difícil distingui-lo de u m Terra, declarava em 1690 o adversário mais determinado de
campo não cultivado; e, ainda mais notável, a paisagem agreste Burnet, u m clérigo de Suffolk, Erasmus Warren,
e estéril deixara de ser objeto de aversão para se tornar fonte de
renovação espiritual. "Quais são os cenários da natureza que era feita dessas coisas que a Arte chamaria rudeza; e
elevam a mente ao mais alto grau e produzem uma sensação consiste em assimetrias e selvagem variedade [...]. A aspe-
sublime?", indagava Hug h Blair, lecionando em Edimburgo na reza, fragmentação e confusão multiforme na superfície
década de 1760. " N ã o é a paisagem alegre, o campo florido ou a terrestre, que para o inadvertido podem parecer apenas
cidade florescente, mas a montanha encanecida e o lago solitá-
deselegâncias ou horríveis desfigurações, aos homens de
rio; a velha floresta e a torrente que despenca sobre as rochas."^*
razão apareceriam como as curvas e entalhes e as esculturas
Quanto mais selvagem a cena, maior o seu poder de inspirar
ornamentais que formam os lineamentos da natureza, para
emoção. As montanhas que em meados do século X V I I eram
não dizer seus esplendores.
odiadas como estéreis "deformidades", "verrugas", "furúncu-
los", "monstruosas excrescências", "refugo da terra", "pudenda
Para um deísta como o terceiro conde de Shaftesbury, nã o
da Natureza", tinham-se transformado, cerca de u m século
depois, em objetos da mais elevada admiração estética." somente as montanhas, mas até os desertos tinham "suas bele-
zas peculiares". "O estado selvagem nos deleita", declarava ele
Essa nova atitude ante a natureza selvagem veio primeiro à
luz no quadro da controvérsia teológica. Empenhado em refu- em 1709, "parecemos estar a sós com a Natureza. Vemo-la em
tar a tese de que a Terra degenerara desde a Criação, o clérigo seus recessos mais íntimos."'^
George Hakewill foi levado a defender as montanhas, em 1635, N o final do século X V I I , a difusão da mística da natureza
com o argumento pragmático de sua utilidade e "agradável entre os teólogos e filósofos veio de par com a convicção, de
diversidade". Tal defesa foi desenvolvida pelos teólogos seus uma minoria cada vez mais ampla, de que as montanhas davam
sucessores, querendo provar que toda obra de Deus obedecia a prazer porque ofereciam o ar mais puro e as melhores vistas.
um propósito. As montanhas, escrevia H e n r y More em 1653, O gosto pelo sublime, que se afirmaria mais tarde, já era pre-
podiam "parecer apenas incontáveis tumores e protuberâncias nunciado em 1682 por u m viajante, que confessava sentir "uma
inaturais sobre a face da Terra", mas, se vinha à mente que sem espécie de agradável horror" à vista do Wreki n e dos Montes
elas nã o haveria rios, dificilmente se poderia negar sua utilida- Malvern;* e a crescente associação de montanhas e religião é
de. E m 1681, Thomas Burnet reafirmou, em sua Sacred theory of revelada pelo galês que declarava, em 1686, que o Snowdon
Earth [Teoria sagrada da Terra], a ideia de que o planeta origi- era u m "Paraíso": "Estou certo de que é u m dos lugares mais
nalmente foi liso como u m ovo, até ser rompido e "deformado" próximos ao C é u [Heaven] que existe no mundo".-'
pelo Dilúvio. Na controvérsia que se seguiu, seus oponentes
negaram que a Terra fosse imperfeita de desenho, salientando * Montes situados no oeste da Inglaterra, n ã o chegando a quinhentos
com solene engenhosidade — que as montanhas serviam a
metros de altitude. ( N . T.)
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N o correr do século X V I I I a paixão pelo cenário montanho- espetaculares, considerava sir Richard Colt Hoare em 1786,
so tomou conta do público que gostava de viajar. Pela década "aterrorizariam mesmo u m ateu até fazê-lo crer"."
de 1760, nã o eram poucos os visitantes no Distrito dos Lagos, Essa devoção semirreligiosa perante a paisagem selvagem
na Vale do Wye, na Snowdonia e nas Highlands escocesas em era obviamente u m fenómeno europeu, cujos profetas incluíam
busca de efeitos cénicos excitantes. Quando John Byng escalou Rousseau e Alexandre von Humboldt. Mas os ingleses é que fo-
a Cader Idris em 1784, foi acompanhado por u m guia que trazia ram mais longe no rumo da chamada "divinização da natureza".
turistas à montanha havia quarenta anos; em 1800, Coleridge Foram certamente eles que mais mitificaram o alpinismo, repre-
podia queixar-se de que os Lagos ferviam de turistas durante sentando-o como atividade semirreligiosa. N o início do século
um terço do ano." Os mais aventureiros iam ainda mais longe, XIX, não eram franceses e espanhóis que praticavam botânica e
à Savoia ou à Suíça. E quem permanecia em casa podia comprar buscavam o sublime nos Pireneus, mas ingleses; enquanto na
desenhos e gravuras de cenários de montanha, reproduzidos em Suíça, após a fundação do Clube Alpino em 1857, era sabido, nas
abundância a partir de meados do século. palavras do Alpine Journal, que, "se você encontra um homem
Em fins do século x v i i i , o apreço pela natureza, e particu- nos Alpes, aposte dez contra um que se trata de um universitário,
larmente pela natureza selvagem, se convertera numa espécie oito contra um (digamos) que ele é de Cambridge e quase um
de ato religioso. A natureza não era só bela; era moralmente contra um que é umfellow de uma faculdade"."
benéfica. O valor da terra inculta não era apenas negativo; As explicações para esse novo gosto pela natureza selva-
ela não proporcionava apenas u m lugar de privacidade, uma gem tendem a se concentrar nos melhoramentos operados nas
oportunidade de autoexame e de devaneio íntimo (ideia antiga, comunicações no século X V I I I , que tornaram as montanhas
esta); tinha um papel mais positivo: exercia u m salutar poder mais acessíveis aos moradores das cidades e um pouco menos
espiritual sobre o homem. "Todas as mais nobres convicções e perigosas de escalar. Tal como o aprimoramento das técnicas
confidências da religião", declarava Archibald Alison, "podem de navegação aperfeiçoadas privou Cila e Caribdis de seus ter-
ser adquiridas na escola simples da natureza."'" O sentimento de rores para os marinheiros setecentistas, a facilidade das viagens
pasmo, terror e exultação, antes reservado a Deus, gradualmente tornou as montanhas menos proibitivas aos turistas. Sugeriu-se
ia sendo transposto ao cosmos em constante expansão, revelado mesmo que o apreço pelo cenário sublime "aumentava na mes-
pelos astrónomos, e aos objetos mais sublimes descobertos pelos ma proporção em que subia o número de estradas de pedágio".
exploradores na Terra: montanhas, oceanos, desertos e florestas Melhores vias, melhores cavalos, mais mapas e postes de sinali-
tropicais. Os habitantes de áreas montanhosas deixaram de ser zação tanto explicam quanto refletem o crescimento do turismo.
desprezados por sua barbárie; passaram a ser elogiados por sua Os visitantes dos Lagos multiplicaram-se após 1763, quando o
inocência e simplicidade. As próprias montanhas nã o eram mais primeiro coche venceu a Garganta Shap; e a partir de 1773 havia
repugnantes; tinham-se tornado a forma mais elevada de beleza um serviço regular de coches ligando Londres a Carlisle.'*
natural, sinal da sublimidade divina. "Quanto mais eu ascen- Mas as melhorias nos transportes não explicam realmente
do da natureza animada, dos homens, do gado e dos pássaros o gosto pelas áreas incultas em si, tal como as novas técnicas
comuns das matas e dos campos", escrevia Coleridge em 1803, de aquatinta e litografia não explicam a demanda de livros com
após escalar o Passo de Kirkstone durante uma tempestade, vistas pitorescas. Afinal, escalar os Alpes nã o deixou de ser
"maior se torna em m i m a intensidade do sentimento de vida. perigoso só porque os suíços construíram ferrovias. O maior
[...] 'Deus está em toda a parte', exclamei." As cenas alpinas mais conforto na vida cotidiana tornava as provações mais árduas —

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desde que ocasionais —, mais atraentes para as classes médias efeito, foi na Inglaterra que o campo mais estreitamente se
em férias; um certo grau de risco entrava nos atrativos. aproximava do efeito produzido pelos jardins geométricos do
Uma explicação muito mais plausível, tanto para o novo passado; e foi nela, coerentemente, que a qualidade — oposta
gosto por paisagens agrestes como para a difusão de estilos de — do informalismo exerceu maior apelo estético. Como salien-
jardinagem mais informais, encontramos no progresso da agri- tou um visitante em 1810, o campo inglês era "quadriculado
cultura inglesa. Durante o século X V I I I , mais 2 milhões de acres demais pelos cercamentos para poder ser pitoresco"."
[cerca de 800 m i l hectares] de terra foram postos sob cultivo E claro que o novo gosto em paisagem foi moldado por
regular como terras aráveis ou pastagens; e, apenas no período padrões continentais: os jardins da Itália, a poesia de Horácio e
entre 1760 e 1820, 2,5 milhões de acres [cerca de 1 milhão de Virgílio, as pinturas de Claude Lorrain, Poussin e Salvator Rosa.*
hectares] de solo já lavrado foram divididos em campos uni- Mas foi o progresso agrícola inglês que tornou tais modelos tão
formes por cercamentos aprovados em lei. E m "A excursão" sedutores. Como observava o pioneiro historiador da jardinagem,
(publicado em 1814), Wordsworth meditava: J. C. Loudon, na década de 1830, "o estilo moderno de jardi-
nagem" era "inadequado a países onde o cultivo não era geral".
' Onde quer que o viajante volte seus passos, "Que deleite ou distinção", perguntava ele, "pode ser produzido
. Ele vê as extensões estéreis suprimidas, pelo estilo inglês na Polónia, por exemplo, onde todo o país é uma
floresta e os trechos cultivados apenas umas tantas clareiras, com
Ou desaparecendo?^*
fronteiras silvestres das mais irregulares e pitorescas?" Sua expli-
cação para o surgimento do estilo inglês informal era incisiva:
Para os aprimoradores agrícolas essas mudanças eram puro
ganho. Cobbett, por exemplo, considerava os antigos campos
Na medida em que as terras dedicadas à agricultura na
comuns "muito feios" e louvava a nova e "limpa" paisagem de
Inglaterra foram, mais rápido que em qualquer outro país
cercamentos divididos por sebes. Mas, para os amantes do pito-
da Europa, amplamente cercadas com sebes e arbustos, a
resco, "todo o formalismo dos arbustos, cercas-vivas e divisões
face dos campos aqui, de forma mais rápida que em qual-
retangulares de propriedade" eram, na expressão de W i l l i a m
quer outra parte da Europa, produziu uma aparência que
Gilpin, "repulsivas no mais alto grau".'* Eoi em reação cons- guardava maior semelhança com os sítios rurais traçados
ciente a esse novo padrão agrícola que, desde o início do século no estilo geométrico; e, por essa razão, uma tentativa de
X V I I I , quem ditava a moda na jardinagem paisagística optou por
imitar a irregularidade da natureza ao projetar recantos de
formas cada vez mais naturais: curvas no lugar de linhas retas prazer se fez na Inglaterra, com algumas exceções insig-
e, pela década de 1740, uma sutil inclusão do jardim no campo nificantes, antes que em qualquer outra parte do mundo;
circundante, ao invés de uma nítida distinção entre o cultivado daí, esse estilo ter-se tornado geralmente conhecido como
e o inculto." N ã o foi por acaso que a Inglaterra se celebrizou "jardinagem inglesa"."
por seu estilo "natural", e a jardinagem de paisagismo se tornou
uma das aquisições culturais mais características do país. Com
* Pintor, gravador, poeta e músico italiano (1615-73). Suas telas mais
famosas retratavam cenas de batalhas; na pintura de paisagem acrescentou u m
* N o original: Wheresoe'er the traveller turns his steps,/ H e sees the acento mais realista nos detalhes e deu provas de fantástica imaginação, sendo
barren wilderness erased,/ O r disappearing. ( N . T.) considerado precursor da paisagem romântica . ( N . T.)

310 311
Em 1783 W i l l i a m Marsden recorreu a seus anos de serviço em e bem cultivados", escrevia o poeta George Darley em 1846.
Sumatra na Companhia das índias Orientais, para enfatizar a "Acima de tudo, repletos de rocha cinzenta/"-^^
mesma ideia: A capacidade de extrair prazer de cenas de relativa desola-
ção representou uma importante mudança na percepção huma-
Nos países altamente cultivados, como a Inglaterra, onde na. Inevitavelmente, ela se encontra com maior probabilidade
a propriedade fundiária é toda alinhada, além de limitada entre aqueles que, devido a sua posição social e económica,
e entremeada de muros e sebes, esforçamo-nos por dar a podiam contemplar sem problemas a perspectiva de deixar
nossos jardins [...] o encanto da variedade e da novidade, inculta uma terra que, normalmente, produziria alimento. Essa
imitando o caráter rústico da natureza em irregularidades atitude só podia tornar-se dominante não havendo a ameaça
estudadas. Caminhos sinuosos, matas íngremes, rochas de passar fome. N ã o surpreende que num país pobre como a
escarpadas, quedas d'água: tudo isso é visto como melho- Escócia se dissesse, quando os habitantes passaram a se dedicar
ramentos; e as majestosas alamedas, os canais, os prados à jardinagem paisagística, que eles estavam (em 1790) "pelo
de nossos ancestrais, que permitiam a beleza do contraste, menos meio século atrás dos ingleses".*^* Na própria Inglaterra,
em tempos mais rudes, hoje estão desacreditados. Esses o gosto pelo agreste e pelo irregular seduzia mais os abastados
gostos diferentes não são mero efeito do capricho [...] mas que os pobres, que lutavam pela subsistência, ou os agriculto-
resultam da mudança de circunstâncias. Algué m que ten- res, que ainda batalhavam com a terra. Conforme observou
tasse exibir em Sumatra o estilo moderno e irregular de Archibald Alison cm 1790, as pessoas comuns sempre seguiam
terrenos projetados n ã o chamaria a atenção, pois cenários o estilo mais antigo e formal de jardinagem, e "mesmo os
incultos, visíveis de todos os lados, provavelmente ofusca- homens de melhor gosto", ao cultivarem terras abandonadas ou
riam os seus esforços. Pudesse ele, ao contrário, erigir, em incultas, ainda as cercavam em linhas uniformes e em divisões
meio a essas selvas magníficas, u m dos antiquados parter- regulares, "para expressar mais imediatamente o que eles dese-
res, com seus canais e suas fontes, cuja simetria aprendeu javam ver expresso, sua indústria ou espírito a melhorá-las".*'
a desprezar, sua obra produziria admiração e deleite. U m E compreensível que os que precisavam trabalhar ardua-
jardim de pimenta cultivado na Inglaterra não seria, quan- mente para ganhar a vida relutassem em adotar uma atitude
to à aparência, considerado coisa de extraordinária beleza; mística face às terras selvagens e incultas. O homem que vivia
e seria particularmente criticado por sua uniformidade; no campo "romântico", notava o mesmo observador, tendia a
todavia, em Sumatra, jamais entrei num deles após via- vê-lo segundo uma luz diferente da que servia ao turista em
jar muitas milhas, como geralmente ocorre, através das sua breve visita. Este último conhecia as torrentes (por exem-
matas, que não me visse tocado por uma intensa sensação plo) "somente por sua mansidão ou majestade, as matas por sua
de prazer.*" solenidade, as pedras por sua fealdade ou terror". Mas para o
primeiro
Assim, os jardins formais saíam de voga à medida que mais
o campo era submetido ao cultivo rigoroso e simétrico; e o gos-
* Nisso há u m certo exagero; mas, como nota um estudioso recente, "os
to pela paisagem agreste ou montanhosa era intensificado pelo primeiros jardins informais da Escócia foram decisivamente moldados por
processo inverso. "Deem-me cenários selvagens e bravios de ingleses e gostos ingleses"; A. A. Tait, The landscape garden in Scotland 1735-
montanhas, ao invés de todos esses solares e herdades fechados -;.?5y (Edimburgo, 1980), p. 3.

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elas servem como para demarcar distintas propriedades, ou cena somente era chamada de "paisagem" [landscape], por recor-
divisões do condado. Tornam-se fronteiras ou marcos divi- dar uma vista [landskip] pintada; era pitoresca porque se parecia
sórios, por meio dos quais se assegura o seu conhecimento com uma pintura. A circulação da arte topográfica, na qual ou
da vizinhança [...]. Mesmo uma circunstância tão insigni- não havia figuras humanas ou não tinham importância, prece-
ficante como a atribuição de nomes particulares contribui deu portanto a apreciação das paisagens rurais e determinou a
em grande medida para tal efeito, pois o uso desses nomes forma que esta assumiu.** Quando Edward Waterhouse louvou
para marcar a situação ou local particulares de tais coisas o campo inglês em 1663, disse que esse contava com "suavidade
naturalmente o leva a considerar as próprias coisas somente de situação em suas vistas, possuindo matas, rios, nascentes e
à luz de seu local ou situação. E com sentimentos muito prados entretecidos"; e quando Celia Fiennes visitou Epsom,
diferentes que ele deve agora visualizar as coisas que antes trinta anos depois, salientou que a perspectiva mostrava "o
apareciam tão plenas de beleza. Elas agora lhe veem à mente campo como vistas, [com] matas, planícies, cercados e grandes
apenas como distinções topográficas e são contempladas lagos". Outros admiravam o cenário montanhês britânico por
com a indiferença que essas qualidades naturalmente pro- verem nele uma vaga aproximação com os bizarros fundos de
duzem. Sua majestade, solenidade, terror etc, são gradual- rocha da pintura da última fase medieval, ou com as paisagens
mente obscurecidos [...] e [...] ele deve contentar-se, afinal, selvagens de Salvator Rosa. Dificilmente se poderia negar que
em passar a vida sem jamais lhes perceber a beleza.** as montanhas eram "algo agradável de se contemplar", afirmava
John Ray, quando "as próprias imagens delas, seus desenhos e
A nova inclinação pela natureza selvagem não era, portanto, vistas são de tal forma estimados".*^
uma vitória da intuição. Tal como a apreciação do jardim pai- Desde pelo menos a década de 1680 havia um mercado
sagístico inglês do início do século X V I I I requeria uma educação estabelecido de pinturas de "vistas" para serem penduradas nas
clássica e algum conhecimento de história e literatura, neces- paredes das casas de classe média. De início, a maioria delas
sários para se captar todas as referências a Horácio e Virgílio provinha da Holanda ou da Itália, mas no decorrer do século
ou as alusões a Poussin e Claude Lorrain, t a m b é m a atração X V I I I o cenário inglês tornou-se objeto de crescente atenção
pela natureza sem a m ã o humana surgiu como algo sofisticado, artística; e o reinado de Jorge I I I presenciou um nível de aqui-
refletindo a aspiração altamente literária e intelectual presente sição sem paralelo na arte paisagística inglesa. Pela década de
nas novas sensibilidades. E verdade que a maior parte das pes- 1780 houve uma torrente de publicações sobre viagens e de
soas, ainda que não educadas, desde tempos imemoriais se sentia guias para as belezas da Inglaterra, adornados por aquatintas
atraída espontaneamente por amplas vistas e perspectivas aber- e panoramas pitorescos a partir de 1775 e de gravuras em aço
tas. John Constable seguramente tinha razão ao dizer: "jamais depois de 1810.*** Essas representações artísticas, quer inglesas
houve uma época, por mais rude e inculta, em que o amor à quer estrangeiras, moldavam os gostos das classes educadas.
paisagem não se tenha manifestado de alguma forma".*' Mas a Seria a reprodução das aquarelas de Paul Sandby de 1747-52 que
apreciação consciente do cenário rural que se desenvolveu de faria das Cataratas do Clyde uma atração turística popular na
modo tão espetacular durante o século X V I I I foi algo diferente, década de 1790; e o apelo inicial do Distrito dos Lagos foi bem
pois dependia do conhecimento prévio da tradição pictórica pouco parodiado no guia de Thomas West (1778), que levava
europeia. O atrativo primeiro do cenário campestre era que ele o turista dos "delicados toques de Claude" em Conistron para
lembrava ao espectador as pinturas paisagísticas. Na realidade, a as "nobres cenas de Poussin" em Windermere, até chegar às

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"estupendas ideias românticas de Salvator Rosa" em Derwent para Constable ou Clare, não podia haver "aprimoradores"; a
Water.*" O próprio Gilbert W h i t e , cuja apreciação direta e não natureza não tinha deformidades e era impossível melhorá-la. A
estilizada do mundo natural é tão notável, não podia livrar- ameaça efetiva estava na difusão incontrolada da agricultura."
-se da influência dos modelos artísticos a ele anteriores. N o Contudo, como reconhecia Wordsworth, muitos se viam
Hampshire rural ele podia se comover com "céus italianos" ou impedidos, pelos defeitos de sua educação ou por sua situação
com "um trecho adoravelmente pitoresco", ou ainda com uma social, de verem a natureza tal como ele a via. Boa parte de sua
cena "merecedora do lápis de u m Rubens".™ oposição em 1844 à projetada ferrovia Kendal-Windermere
N o começo do século XIX, o gosto pela natureza selvagem que, no seu entender, ameaçava inundar o Distrito dos Lagos
há muito tinha superado essa dependência inicial dos modelos com o que ele chamava "todo o Lancashire e n ã o pouca gente
artísticos anteriores, assim como excedera os limites do jardim de Yorkshire", refletia o mesmo pressuposto de que havia
paisagístico mais "informal". Para os românticos, a natureza diferenças sociais de percepção. O sentimento pelo cenário
"melhorada" era a natureza destruída. "O parque de u m fidalgo", r o m â n t i c o n ã o era inerente à espécie humana, insistia ele.
escrevia Constable em 1822, "é minha aversão. N ã o é beleza Era preciso u m longo curso de educação estética para insti-
porque não é natureza"." A "viagem pitoresca" também era sus- lar u m gosto por rochas e montanhas nuas. As classes baixas
peita. Assim como os jardineiros paisagistas procuravam reunir urbanas n ã o podiam encontrar bem algum no acesso imediato
no mesmo espaço todas as belezas naturais e deixar de fora toda aos Lagos. O que precisavam era de u m curso preparatório,
coisa desagradável ou desarmoniosa, os viajantes pitorescos olha- começando com excursões dominicais aos campos das vizi-
vam para a natureza apenas em busca de conformidade com u m nhanças.'*
padrão preconcebido ou modelo aceito de harmonia estética.
Em fins do século X V I I I , portanto, a antiga preferência por
Geralmente viam-se desapontados, pois, como salientava Gilpin,
uma paisagem cultivada e dominada pelo homem conhecia
raramente "um cenário puramente natural" era "corretamente
uma contestação radical. Encorajadas pela sua facilidade para
pitoresco". Sempre havia uma "rudeza" nas obras do mun-
viajar e por não estarem diretamente envolvidas no processo
do natural; ele nunca produzia "uma gema polida"." Mesmo
agrícola, as classes educadas vieram a atribuir importância
Gainsborough confessava que as paisagens inglesas raramente
sem precedentes à contemplação da paisagem e à apreciação do
conseguiam medir-se pelos ideais artísticos: "Com relação a
cenário rural. " N o decorrer dos últimos trinta anos", escrevia
vistas reais da natureza neste país, ele nunca viu algum lugar que
Southey em 1807,
propiciasse u m tema igual às mais pobres imitações de Gasper
ou Claude"." Gilpin não hesitava em proclamar que praticamente
todas as montanhas, lagos e quedas d'água do mundo real exibiam um gosto pelo pitoresco difundiu-se; e passar u m verão
"deformidades" que "um olho adestrado desejaria corrigir".'** viajando é hoje visto como [...] coisa essencial [...]. Enquanto
Conforme notaria Wordsworth, o hábito de comparação servia um dos bandos da moda migra para o litoral, outro escapa
apenas para obscurecer "o espírito do lugar". Para ele, tal como para as montanhas de Gales, os lagos nas províncias do
Norte ou a Escócia; alguns fazem pesquisa mineral, outros
estudam botânica, além dos que colecionam vistas do cam-
* Nesse aspecto, as ruínas do convento de T i n t e r n podiam aceitar algum
melhoramento: "uma picareta judiciosamente usada (mas quem o ousaria?) [...]";
po — todos estudam o pitoresco, uma ciência recente para
W i l l i a m Gilpin, Observations on the Tiver Wye (2' ed., 1789), p. 47. a qual uma nova linguagem foi formada, e para o qual os

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ingleses descobriram u m novo sentido em si mesmos, que meados do século XVII; e no final do século x v i i i ele ganhou
seguramente não tinham os seus pais." maior circulação com os escritos de Rousseau e do autor ale-
mão J. G. Zimmermann, cujas meditações em Solidão gozaram
O notável nesse novo gosto era que o cenário mais admirado de enorme voga em tradução inglesa na década de 1790.*" N o
já não era a paisagem fértil e produtiva, porém a selvagem e século XIX, apreciava-se o cenário selvagem, por proporcionar
romântica. Por isso, haveria um interesse crescente em preser- uma fuga do burburinho crescente das cidades e das fábricas. É
var a natureza inculta como uma indispensável fonte de riqueza revelador que, quando a rainha Vitória se comovia profunda-
espiritual. mente com o cenário natural, era sempre a solidão do lugar que
Esse interesse se compunha de muitos fatores: uma reação destacava como sua principal característica.*' E m 1848, John
estética contra a regularidade e uniformidade da agricultura Stuart M i l l fundamentaria a sua defesa de u m limite à expan-
inglesa; uma aversão aos artifícios do movimento jardinista; são demográfica na necessidade de se preservar pelo menos
o sentimento de que a terra não lavrada, por seu próprio con- algumas áreas onde os homens ainda pudessem ficar a sós. "A
traste com a lavoura, era necessária para dar sentido e defi- solidão, no sentido de se estar frequentemente sozinho", dizia
nição à empresa humana; a preocupação com a liberdade dos ele, era indispensável à satisfação humana. Era
espaços abertos, como símbolo de liberdade humana ("Uma
região inculta é rica em liberdade", refletia Wordsworth); e u m essencial para qualquer aprofundamento de meditação ou
ingrediente de alienação ou falta de simpatia pelas tendências de caráter [...]. A solidão perante a beleza e grandiosidade
dominantes da época; pois, quer pensemos nos antigos eremitas da natureza é o berço de pensamentos e aspirações que não
cristãos, quer nos cistercienses medievais ou em Jean-Jacques são bons somente para o indivíduo — sem eles a sociedade
Rousseau,* a atração da natureza selvagem pode sempre ser dificilmente sobreviveria.
reconhecida como uma emoção essencialmente antissocial.'**
"Nem tampouco", acrescentava,
Talvez o crescimento da população tenha ajudado a fomentar
esse sentimento antissocial. Com efeito, em séculos anteriores
há muita satisfação em contemplar o mundo sem nada deixar
e menos populosos fora convencional considerar o isolamento
à atividade espontânea da natureza; com cada palmo de terra
como u m infortúnio humano: "Para o homem, por natureza",
posto sob cultivo, capaz de produzir alimento para os seres
escreveu Thomas Hobbes, "a solidão é u m inimigo".'' Apenas
humanos; com toda amplidão florida ou pastagem natural
os contemplativos religiosos buscavam o deserto. Mas, na
arada, com todos os quadrúpedes ou pássaros não domesti-
época elisabetana, o culto humanista do indivíduo incentivou cados para uso do homem sendo exterminados como seus
a ideia de que u m retiro temporário da sociedade podia ser rivais no alimento, com toda sebe ou árvore supérflua erra-
positivamente agradável. Além disso, a conveniência espiritual dicada e dificilmente u m último recanto onde u m arbusto ou
de se estar periodicamente sozinho era exaltada por muitos uma flor silvestres pudessem crescer sem serem arrancados
teólogos protestantes no século posterior à Reforma. Isso se como erva daninha, em nome da agricultura aprimorada.*'
tornou u m tema poético cada vez mais frequente, a partir de
É essa necessidade recorrente que sentem os moradores urba-
* O u , é claro, em G . M . Trevelyan. nos de voltar à terra selvagem em busca de regeneração espiri-
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tual, que condicionará mais tarde os movimentos de preserva- de deleite", tendo suas flores copiadas nos bordados das damas;
ção das montanhas e terras incultas e pantanosas, antes de mas agora elas só tinham lugar em hortas.'
serem, todas, tragadas pelo progresso humano. As reservas de Os agricultores traçavam distinções igualmente rígidas en-
cenário — montanhoso ou inculto —, pensava o norte-ameri- tre "culturas", que deviam ser plantadas, e "ervas daninhas" a
cano Charles Eliot em 1896, tinham-se tornado "as catedrais do exterminar. Para o lavrador uma planta daninha era algo obsce-
mundo moderno"." no, o equivalente vegetal do animal nocivo. N o dialeto de
Gloucester, por exemplo, a palavra "imundo" [filthy] aplicava-se
tanto a um homem com piolhos no corpo quanto a um campo
coberto de ervas daninhas. Na silvicultura, era "daninha" a ár-
vore que restasse da mata nativa.' Para os elisabetanos, "o joio, a
cicuta e o fumo da terra" eram "coisas selvagens" que o arado
devia erradicar; "detestáveis labaçóis, grosseiros cardos, keeksies e
carrapichos" não tinham beleza ou utilidade. Aos melhoradores
agrícolas subsequentes, como Walter Blith, repugnavam o tojo,
os fetos, os juncos, a samambaia, a giesta e toda outra "imundície
semelhante".' N o século xviii, o autor agrícola W i l l i a m Ellis
denunciava não apenas a mostardeira-dos-campos, a azeda-brava
("horrível erva daninha"), o joio ("viçosa erva daninha"), a tussi-
lagem ("muito perniciosa"), a "erva-benta negra", a "agulha-de-
-corvo", a cicuta e o "alho-de-vaca" ("planta endiabrada"), como
também a calta silvestre, o arco-íris silvestre, a madressilva e os
3. C O N Q U I S T A O U P R E S E R V A Ç Ã O ?
lírios aquáticos. "As ervas daninhas", sentenciava o esteta Roger
N o r t h , em fins do século X V I I , "não têm beleza".^ Ainda hoje há
A referência de M i l l às flores silvestres leva-nos a outro poucos agricultores a quem agrada ver papoulas no trigo.*
exemplo da mudança de sensibilidade que revalorizou o mundo
Entretanto, os habitantes das cidades, com o estímulo de
da natureza. Os jardinistas sempre fizeram uma clara distinção
artistas, naturalistas e poetas, começavam a considerar belas
entre os exemplares cultivados, que eles apreciavam, e as flores
muitas dessas plantas desprezadas ou detestadas. Os londrinos
"silvestres", as quais desprezavam. O herbanário John Parkinson,
do Seiscentos colhiam epilóbios, dedaleiras e papoulas para
por exemplo, ensinava em 1629 que a escabiosa não era uma flor
"de beleza e respeito" e devia, portanto, ser largada nos cam-
* Essa hierarquia das plantas acompanhava de perto a da sociedade humana.
pos. As caltas simples convinham apenas a fossos, porém cabia
Em 1700, T i m o t h y Nourse considerava que a gente comum devia ser "conside-
cultivar as duplas em jardins. A primavera, que crescia em toda rada como erva daninha ou urtiga ordinária"; enquanto em 1838 J. C. Loudon,
cerca-viva, devia ser deixada à moradia selvagem, "não sendo especialista em jardinagem, explicava que "para comparar plantas a homens,
adequada para u m jardim". Acontecia t a m b é m de determinada consideramos as espécies aborígines como meros seres selvagens, e as espécies
espécie ser rebaixada de uma para outra categoria: a borragem e botânicas [...] como seres civiHzados"; T i m o t h y Nourse, Campania foelix (1700),
p. 16; J. C. Loudon, Arboretum etfuticetum britannicum. (1838), I , p. 216.
a buglossa, explicava Parkinson, já foram cultivadas em "jardins

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decorar suas casas e vasculhavam as matas atrás de plantas que dos com essa finalidade. Mas, em fins do século x v i l os natura-
merecessem ingressar nos jardins urbanos. E m 1657, u m herba- listas já se interessavam pelas plantas em si mesmas. Sob a dinas-
nário notava que alguns jardineiros se encontravam até mesmo tia hanoveriana a botânica estabeleceu-se como um passatempo
com variedades disso que o vulgo chama ervas daninhas; e real- corriqueiro de damas e cavalheiros de classe média. Equipados
mente [acrescentava] há boa parcela de encanto em cada uma com um guia de bolso para a classificação lineana e uma pren-
delas, se atenciosamente observadas". N o Northamptonshire sa portátil para secar as plantas, eles vasculhavam campos e
rural, o jardim da senhora Cantrey na década de 1650 incluía matas buscando novas descobertas. E m fins do século x v i i i ,
escabiosas, candelárias e esporinhas.' Para os naturalistas da multiplicaram-se os tratados sobre as floras locais: em 1800,
segunda fase Stuart, como Robert Sharrock em 1660, mesmo a havia pelo menos quatro deles somente para o Cambridgeshire;
grande cavalinha, uma planta desprezível encontrada em valas e e, pela década de 1850, a maior parte das regiões da Inglaterra
brejos, era de bela constituição. Os artistas do século XVII, como já tivera suas flores silvestres cuidadosamente arroladas por
Henry Peacham e Richard Waller, passavam boa parte do tem- algum devoto naturalista local. E m 1788-9, James Bolton, um
po pintando esmeradas aquarelas de flores e capins silvestres.* tecelão autodidata, dedicou três volumes inteiros aos fungos que
Os boticários sempre acreditaram que muitas plantas silves- cresciam nas cercanias de Halifax, "resultado de mais de vinte
tres desprezadas tinham valor medicinal ("ervas daninhas ou anos de observação". "Os botânicos", comentava Samuel Pegge
capim", lamentava W i l l i a m Turner, eram os nomes que o igno- em 1796, "não admitem que nada se chame erva daninha."'
rante dava a "ervas preciosas").^ A partir do século XVI, os botâni- Enquanto isso, a expansão da influência colonial britânica fora
cos passaram a registrar a localização de flores silvestres. O pri- acompanhada por enorme interesse pelas plantas tropicais, que
meiro tratado de flora local foi o catálogo elaborado por Thomas eram secadas, enviadas para a Inglaterra e reunidas em herbá-
Johnson, em 1632, das plantas que cresciam em Kent e na Char- rios particulares. Quando sir Hans Sloane juntou sua vasta cole-
neca de Hampstead; ele o complementou com um relato de suas ção no começo do século XVIII (conhecida hoje como o Herbário
expedições de coleta de plantas no Sul da Inglaterra. E m 1650, a Sloane, que está no Departamento de História Natural do
Phytologia britannica de W i l l i a m How marcou a primeira tentativa Museu Britânico), ele o fez adquirindo as coleções de inúmeras
de um tratado abrangente da flora da Grã-Bretanha. Já no período pessoas: boticários, comerciantes, capitães de navio, médicos de
elisabetano, vários fidalgos e boticários tinham anotado onde bordo, missionários e naturahstas estrangeiros.'"
podiam ser encontradas plantas silvestres. W i l l i a m Mount traba- Para essas novas sensibilidades até as chamadas "ervas dani-
lhou com a flora de Kent no começo da década de 1580, e Richard nhas" tinham sua beleza. O tojo era inimigo de todo agricultor,
Shanne de Methley (1577-1617) estudou a distribuição das plantas mas corria a anedota de que, quando Lineu (outros dizem que foi
no Norte da Inglaterra. A edição do herbário de Gerard organiza- Dillenius) veio à Inglaterra e viu o tojo pela primeira vez, caiu de
da por Thomas Johnson, em 1633, revela a existência de muitos joelhos e deu graças a Deus por uma planta tão linda." W i l l i a m
boticários e botânicos amadores empenhados na busca de plantas Hanbury, especialista setecentista em jardinagem, achava a urze
raras. E m fins do século x v i l , havia um clube botânico informal muito elegante e via com simpatia a ulmária e até os cardos. O
que se reunia no café do Temple, em Londres.** autor agrícola W i l l i a m Marshall descrevia as flores da amora-
O que levou às primeiras expedições de coleta de plantas foi -preta como tendo uma "beleza impossível de se expressar";
um objetivo essencialmente prático: registrar ervas de utilidade e os jardins reais em Richmond eram notados por seu trecho
medicmal e trazê-las para serem cultivadas em jardins constituí- "rude, cultivado" de tojo e giestas. W i l l i a m Cowper enalteceu a

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graça de um terreno repleto de fetos e tojo, enquanto John Clare Em fins da década de 1830, o jovem Tennyson expressara igual
dedicou muitos poemas à beleza de plantas detestadas pelos lavra- aversão às plantas de estufa, fazendo eco a seus predecessores
dores: a tasna, o milefólio, os juncos, o capim, o capim-cardo, as Gray e Wordsworth:
papoulas dos trigais." Na década de 1830, J. C. Loudon conside-
rava que a urze-branca, o abrunheiro, os fetos e as silvas "teriam, Prefiro a mais vil erva daninha
se introduzidas nas áreas pitorescas de uma residência, efeito dos Que brota em seu monte,
mais encantadores". Os fetos eram bom sinal confiável de solo A pobre ervazinha que germina
pobre, mas James Bolton, em 1785, considerava que "nenhuma Ao pé de sua nativa fonte*
planta é tão singular e bonita". Os vitorianos de classe média
achavam-nos encantadores e preenchiam cada canto ou fresta de "Vivam as ervas daninhas!", escrevia Gerard Manley Hopkins.
suas casas com eles, durante a grande moda dos fetos, que atingiu A partir de 1888, as câmaras locais começaram a aprovar regu-
seu apogeu em meados da década de 1850. "Que efeito", indagava lamentos para a proteção das plantas silvestres."
um propagandista, "podia ser mais agradável [...] aos fatigados Se as ervas nocivas agora tinham amigos, o mesmo valia
habitantes das cidades do que a vista de belos e frondosos fetos para os animais e aves selvagens, contra quem as gerações
por toda a parte, à sua volta e à volta de suas casas?"" anteriores tinham combatido em sua luta pela subsistência.
T a m b é m aqui a nova segurança foi a precondição essencial
Tal como a Perdita de Shakespeare desprezava os "goivos
para haver maior tolerância. Já no início dos tempos moder-
listrados" ("bastardos da natureza"), t a m b é m os românticos —
nos, a Inglaterra se distinguia entre os países europeus por
reagindo ao espírito competitivo que fazia cultivar de preferên-
não ter lobos.** Esse era u m tema de alguma importância e
cia exemplares premiados — tinham mais simpatia pelas flores
que dava enorme satisfação aos ingleses. Fazia a criação de
silvestres comuns, que nas palavras de Ruskin jamais foram
ovelhas exigir menos trabalho, pois os pastores ingleses n ã o
"obrigadas a se exibir com enorme petulância numa exposição
mais tinham de guardar seus rebanhos à noite, como nos
de flores". Para ele, u m jardim de flores era
dias de Aelfric ou de Walter de Henley, ou de encerrá-los
em apriscos de pedra; e isso explica por que na Inglaterra
feio, mesmo quando bem arrumado: uma reunião de criatu- pós-medieval u m pastor geralmente ia atrás de suas ovelhas,
ras infortunadas, mimadas e inchadas além de seu tamanho enquanto na França e na Itália, onde o lobo sobreviveu até o
natural, abafadas e aquecidas para u m crescimento mórbi- século XIX, as ovelhas o seguiam e o pastor, com u m mastim
do; corrompidas por maligna comunicação em cores desar- ou u m cão caça-lobos ao invés de u m simples cão pastor, ia
moniosas e salpicadas; arrancadas do solo que amavam, e do à frente, para protegê-las.'* T a m b é m havia lobos na Irlanda.
qual eram o espírito e a glória, para resplandecer durante Quando no final do século X V I I John D u n t o n passou uma
o prazo de sua atormentada existência entre as misturadas
e incongruentes essências de cada uma delas, em território
* N o original: Better to me the meanest weed/ T h a t blows upon its moun-
que n ã o conhecem e num ar que para elas é veneno.'** tain,/ T h e vilest herb that runs to seed/ Beside its native fountain. ( N . T.)
** O lobo parece ter sobrevivido nos p â n t a n o s do norte do Yorkshire e em
outras regiões altas da Inglaterra até o século X V . Subsistiu na Escócia até fins
* Para o reformista H . S. Salt, u m jardim era simplesmente "um zoológico
do qual se omitiu a crueldade"; The call ofthe wildflower (1922), p. 9. do século X V I I ou, segundo certas tradições, até a década de 1740.

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noite em County Galway, ficou "curiosamente surpreso ao
-chilreiros que mordiscavam os brotos das árvores frutíferas.
ouvir as vacas e ovelhas entrando em seu quarto de dormir.
N o século X V I I I houve u m novo morticínio dos ratos, que
Perguntei por que faziam isso e me disseram que era para
comiam os trigos nos celeiros. N o começo do século X I X o
protegê-las do lobo, que toda noite rondava em busca de
foco deslocou-se novamente e houve uma proliferação de
presa"."
clubes suburbanos de pardais, cujos membros competiam
Na Inglaterra, p o r é m , os lobos cederam lugar às lendas,
para ver quem matava maior n ú m e r o dessas aves.
junto com os detestáveis "vermes" e "serpentes" extermina-
Como mostram os registros paroquiais, a destruição efe-
dos pelos camponeses do N o r t e no século X I I , "* e os "numero-
tuada com base nesses atos parlamentares foi colossal, particu-
sos" leões que o elisabetano W i l l i a m Harrinson acreditava
larmente a partir de fins do século xvii, quando as armas
terem outrora vagado pela Escócia (e contra os quais Beda
foram sendo cada vez mais usadas para matar as aves em pleno
advertira os pastores ingleses para se precaverem)." Mas ou-
voo. E m Tenterden, Kent, por exemplo, mataram-se mais de 2
tros predadores ainda havia. "São tão nocivos e daninhos
m i l gaios na década de 1680. E m Deeping St. James, L i n -
certos animais para a espécie humana", observava u m clérigo
colnshire, foram mortos, em 1779, 4152 pardais. E m Pretbury,
seiscentista, "que é obrigação de toda a humanidade livrar-se
Cheshire, mataram-se 5480 toupeiras. E m N o r t h i l l , Bedford-
desse aborrecimento, do modo mais rápido e efetivo possível,
shire, entre 1666 e 1812, o balanço das vítimas incluía 95
por qualquer meio legal."'" Nos primeiros tempos Tudor a
raposas, 130 texugos, 917 porcos-espinhos e 1018 furões-bra-
campanha foi formulada em termos legislativos. Uma lei do
vos. Quanto aos pardais, a mesma paróquia viu, entre 1764 e
Parlamento, em 1533, mandava as paróquias se equiparem
1774, a destruição de cerca de 14 m i l , mais 3500 ovos. Fre-
com redes para capturar os corvos, as gralhas calvas e as de
quentemente, esses troféus eram expostos nos adros das igrejas
bico vermelho. E m 1566, outro ato legislativo autorizava os
ou pendurados no estábulo — que Gilbert W h i t e chamava "o
fabricários a levantar fundos para pagar certa quantia por
museu do campónio"."
cabeça a todos os que trouxessem corpos de raposa, furão-
E fácil esquecer hoje quanto esforço o homem despendeu
-bravo, doninha, arminho, lontra, porco-espinho, rato, ca-
na guerra contra as espécies que competiam com ele pelos
mundongo, toupeira, gavião, bútio, águia-pescadora, gaio,
recursos da terra. A maior parte das paróquias parece ter con-
corvo e mesmo de martim-pescador. Muitas paróquias conti-
tado com pelo menos u m indivíduo que ganhava a vida caçando
nuaram a remunerar, com base nessas e outras leis, até o sé-
cobras, toupeiras, porcos-espinhos e ratos; e até o próprio rei
culo X I X , a perseguição, por caçadores, deslocando-se de
tinha seu caçador oficial de ratos, que no século X V I I I vestia
certas espécies para outras, conforme as necessidades agríco-
um uniforme especial de lã tecida escarlate e dourado, no qual
las dominantes." N o século X V l , o principal alvo foram as
estavam bordadas figuras de camundongos devorando hastes
gralhas que pilhavam o trigo. Na últim a fase Stuart, a cam-
de trigo." Todo jardineiro destruía as pequenas pestes, e era
panha voltou-se contra os milhafres e corvos, por constituí-
comum os livros sobre jardinagem conterem u m calendário
rem ameaça às aves domésticas e à lavoura; antes, eles foram
como esse, elaborado por John Worlidge em 1668: "Janeiro:
protegidos como indispensáveis para a limpeza da carniça,
colocar armadilhas para destruir animais nocivos. Fevereiro:
mas se tornaram mais vulneráveis quando as autoridades ur-
cace todas as cobras que puder, e destrua as rãs e suas ovas.
banas assumiram a limpeza das ruas e a venda do estrume aos
Março: principal época do ano para a destruição de toupeiras.
lavradores. T a m b é m perseguidos foram os gaios e piscos-
Abril: capturar vermes e lesmas. Maio: eliminar heras. Junho:

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destruir formigas. Julho: matar [...] vespas e moscas". E assim de número.* O mesmo ocorreu com as martas e os furões-bravos
por diante, por todo o ano.'* regularmente exterminados pelos guarda-caças. Por certo '
N o entanto, o prazer, mais que a necessidade, colaborou para mudanças no uso da terra contribuíram mais para a extinção do
a matança de muitas espécies selvagens. Foi pura bravata que levou que a perseguição deliberada. A derrubada de florestas e a drena-
Fulke Greville, na Irlanda de 1580, a escalar uma rocha para "bus- gem de pântanos eliminaram algumas espécies, assim como o
car uma águia em seu ninho", ou que induzia os habitantes do plantio de sebes e a expansão da ocupação humana fizeram cres-
litoral a descer meninos em cestos para atacar os ninhos de aves cer outras." Muito tempo antes do advento dos pesticidas e ferti-
nos penhascos." As viagens de Hawkins e de outros elisabetanos lizantes químicos, a poluição dos rios matava o bárbus, a truta, a
mostravam que a primeira reação dos marinheiros ingleses, ao brema, o leucisco, o gobião, os linguados e outros peixes que nos
depararem com pinguins e outras aves marinhas, que ainda não tempos elisabetanos nadavam no Tamisa londrino; assim como
tinham aprendido a evitar seres humanos, era matá-los indiscri- reduziriam as trintas diferentes espécies de peixes encontradas
minadamente.'* Na Inglaterra, o campo tinha tanta vida selvagem no Trent no segundo período Stuart." O efeito geral da ação
que ninguém se sentia inibido em eliminá-la. Em 1605, Jaime I humana, deliberada ou não, foi efetuar uma dramática diminui-
teria "encontrado grande prazer em caçar cotovias"; ele achava ção da vida selvagem, que antes fora tão rica na Inglaterra.
"tanto ou maior deleite nisso que na caça" ao cervo. Quando lorde A necessidade de medidas artificiais para preservar as es-
Spencer ofereceu um banquete em Althorp para Carlos l , em pécies selvagens das quais o homem dependia para alimento e
1634, o cardápio incluiu combatentes, maçaricos, morinelos, esporte há muito já era considerada. Desde a época medieval,
maçaricos-de-bico-torto, maçaricos pequenos, cisnes, abetouros, parques reais e privados protegiam os animais de caça. À me-
patos selvagens, pavoncinos, garças, cegonhas e inúmeras outras dida que eles se tornavam raros, tinham de ser tratados como
aves selvagens, algumas das quais hoje estão extintas." Gerações animais domésticos. A partir do século X I I I , houve numerosas
de meninos do campo foram estimuladas a praticar o que W i l l i a m tentativas — por meio de estatutos, éditos e leis de caça — para
Ellis denominava o "agradável esporte" de roubar ninhos e des- determinar uma estação limitada e proteger os cervos, gamos,
truir tanto os ovos como os pássaros.'** Arremessar pedras em lontras, lebres, salmões, falcões e aves selvagens durante o
martins-pescadores parece também ter sido uma atividade bem período de procriação.'*** A criação de faisões desenvolveu-se
popular." N o século XVIII, o primeiro impulso de muitos natura-
listas ao verem um pássaro raro era matá-lo.™ Enormes depreda- * Já se sugeriu que houve maior modificação na vida das aves britânicas
ções foram efetuadas para satisfazer a crescente febre de coleções durante os séculos X V I I e X V I I I do que em qualquer outro período comparável de
de ovos e aves empalhadas. tempo; Book of British birds (Reader's Digest and A. A., 1969), p. 9.
** O uso mais antigo do termo "preservação" [em inglês, conservation] (ori-
Por volta de 1800, estavam chegando à extinção muitas espé- ginalmente, ''conservacy") parece ter tido relação com o rio Tamisa. O prefeito e
cies que poucos séculos antes eram das mais numerosas. Quem, os vereadores de Londres eram "guardiões" conservators"] das leis promulgadas
em fins da Idade Médi a para manutençã o do rio, e passaram a ser responsabi-
hoje em dia, já viu um milhafre na Inglaterra? N o entanto, nas
hzados por sua "preservação" ['conservacie"]. O termo "conservacie'', explica u m
cidades do século XVl essas aves eram tão comuns que mergu- comentador de época posterior, "estende-se à conservação [''preservation"] da
lhavam para arrebatar a comida das mãos de uma criança." corrente e dos bancos do rio, bem como dos seus peixes e dos alevinos"; John
Águias, abetardas, açores, falcões dos pântanos, falcões europeus, Stow, A survey ofthe cities of London and Westminster, [Levantamento das cidades
gruas, águias-pescadoras, corvos e bútios também diminuíram de Londres e Westminster], ampliado por John Strype (1720), I , p. 38.

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no início dos tempos Tudor, e por volta de meados do século -escola do início dos tempos Tudor, "mas somente podem
X V I I I já contava com regulamentos estritos para a conservação guiá-lo os que vieram junto com o presente."*" A casa real de
das aves jovens. E m 1773, as estações de caça para os faisões, animais simbolizava o triunfo de seu senhor sobre o mundo
galos silvestres e perdizes assumiram sua feição atual." N o da natureza; alguns reis medievais chegavam a demonstrar sua
período elisabetano, a raposa (como já vimos)* també m ingres- coragem lutando contra seus animais cativos. Posteriormente,
sou nas fileiras das espécies socialmente necessárias, a serem o zoológico tornou-se u m símbolo de conquista colonial, bem
artificialmente protegidas. N o século X V I I , os projetistas que se como de riqueza e status. Mas também proporcionava satisfa-
envolveram com a drenagem dos Eens** tiveram que enfrentar a ção estética; uma das leopardas no Jardim Zoológico da Torre,
objeção de que isso levaria à "matança dos peixes e aves aquáti- dizia John Strype em 1720, era "muito bonita e encantadora
cas". N o século X V I I I , o general Howe chegou mesmo a tentar a de se admirar, deitando-se e brincando ou rolando, capricho-
criação de porcos do mato em Wolmer Eorest, até que os irados samente, de costas quando eu a via"; e os leões eram descritos
habitantes do lugar se revoltaram e os mataram.'* como "os prediletos, deleite das pessoas".*'
Mais notável que a conservação de animais para a caça Com o crescimento da exploração e dos descobrimentos
foram os primeiros indícios da concepção de que as criatu- europeus, a importação de espécies raras, de todas as partes
ras selvagens devem ser preservadas ainda que não tenham do mundo, para casas de bichos privadas assumiu proporção
nenhuma utilidade. Algumas espécies já eram protegidas por sem precedentes. O elisabetano W i l l i a m Harrison escreveu
curiosidade ou prestígio, como os bois brancos selvagens de de "nossos caros e curiosos aviários"; no século X V I I , uma
Chillingham, Holdenby e outros parques privados no século coleção de pássaros multicores tornou-se traço padrão de
X V I , ' ^ e os cisnes "preservados por sua beleza" em Abbotsbury, todo jardim aristocrático, havendo muitos vendedores espe-
Dorset, desde os tempos medievais.'** O privilégio de possuir cializados em espécies exóticas.*' Os ilustradores das vistosas
cisnes era uma marca de alta condição social cuidadosamente obras seiscentistas sobre animais e aves tropicais às vezes
controlada pela Coroa, e os donos dessas aves tinham a maior copiavam espécimes mortos que foram trazidos à Inglaterra
preocupação em proteger a sua propriedade. E m Leconfield, no do estrangeiro, mas, mesmo sem deixarem seus condados
East Riding, os animais dos aldeões foram excluídos dos Eens, natais, já podiam observar exemplares vivos de macacos,
em 1570, por perturbarem a procriação dos gansos selvagens lagartos, tartarugas, búfalos, peixinhos dourados e araras,
apreciados pelo conde de Northumberland." quer nos parques dos fidalgos, quer em casas particulares,
Os animais exóticos sempre foram estimados, como u m quer ainda nas hospedarias e cafés londrinos.*' I n ú m e r o s aris-
presente digno de ser trocado entre governantes e reis. Desde tocratas do período hanoveriano possuíam amplas ménageries,
o século X I I , os reis da Inglaterra colecionaram leões, leopardos com animais e aves raros. O duque de Cumberland conser-
e outros animais ferozes; a casa de animais*** na Torre durou até vava avestruzes no Grande Parque de Windsor, enquanto a
1834. " H á um elefante presenteado ao rei", notava u m mestre- zebra pintada por Stubbs pertencia a Jorge l l l . * *
O público em geral manifestava vivo interesse por ver ani-
* Ver pp. 232-4. ' •. ' mais incomuns, interesse que alguns indivíduos de tino comercial
**_^Região pantanosa do Cambridgeshire. ( N . T.) ' ' '
se dispunham a explorar. As pessoas faziam longas viagens à capi-
CKT T ^ * ^ ° menagerie, t a m b é m traduzido aqui como casa dos bichos.
tal, relatava o elisabetano Thomas Muffet, para terem a oportu-

390 391
nidade de comprar assentos para uma exibição de elefantes, leões
A ideia atual do equilíbrio da natureza teve, portanto, base
ou rinocerontes. Em 1560, os alunos de Eton deram dinheiro teológica, antes de ganhar fundamento científico. Foi a crença
para ver "um camelo no Colégio", enquanto em 1653 Daniel na perfeição do desígnio divino que precedeu e sustentou o con-
Fleming, vindo de Westmorland a Londres, pagou quatro pence ceito da cadeia ecológica, sendo perigoso remover qualquer u m
"para ver o dromedário". E m 1623, sir Simonds D'Ewes viu em de seus elos. A argumentação do desígnio continha forte impli-
Londres um elefante "que veio da Espanha". Algum tempo depois, cação conservacionista, pois ensinava que mesmo as espécies
no mesmo século, o ministro* Guilford foi a chacota do público aparentemente mais nocivas serviam a algum propósito humano
porque esqueceu sua dignidade a ponto de montar um rinoceron- indispensável. N o século X V I I I , a maior parte dos cientistas e
te que um empresário exibia com fins comerciais. "As exibições de teólogos defendia, coerentemente, que todas as espécies da cria-
criaturas selvagens", admitia o devoto Richard Baxter, eram "de- ção tinham u m papel necessário a desempenhar na economia da
sejáveis e louváveis."*' Nas cidades de província um zoológico natureza.*** Ao mesmo tempo, alguns deles estavam se tornando
ambulante sempre tinha a certeza de ter grande público, embora mais e mais conscientes de que a perseguição do homem real-
muitas vezes os animais corressem riscos. Em Dublin, no ano de mente podia eliminar espécies particulares, possibilidade essa
1682, poucas pessoas conseguiram permissão para ver o elefante, que as gerações anteriores sempre haviam negado.*'^
"em razão dos altos preços cobrados"; e, quando o animal foi mor- Desse modo, uma combinação de teologia e utilidade fun-
to num incêndio acidental, seu proprietário teve de requerer uma damentou a convicção, cada vez mais difusa, de que as criaturas
fileira de mosqueteiros para guardar a carcaça até que o esqueleto selvagens deviam, dentro de certos limites, ser conservadas.
estivesse pronto para exibição. E m Londres, em 1720, outro ele- Quando o movimento pela proteção das aves selvagens ganhou
fante morreu após ser mostrado em público, seus distúrbios tendo forças, no século XIX, ele deu maior ênfase às funções indispen-
sido "agravados pela grande quantidade de cerveja que os especta- sáveis (comer vermes e controlar insetos e outros bichos noci-
dores continuamente lhe ofereciam".** vos) desempenhadas mesmo por aquelas espécies consideradas
mais perniciosas. Gaios, pegas, piscos-chilreiros e formigas
N ã o havia, assim, nada de novo na conservação artificial
eram todos úteis à sua maneira, e portanto era errado matá-los.
de criaturas ornamentais ou incomuns, ou no apreço por aves e
Como dizia o adágio de Somersetshire: " N ã o fosse o tordo e
animais exóticos criados para passatempo e exibição. Recentes,
a corruíra, a aranha teria vencido o homem". Fiel a essa ideia,
porém, eram as restrições à eliminação de qualquer bicho sel-
lorde Erskine escreveu em seu poema de 1818, "The Farmer's
vagem, ornamental ou não. "Debatemos [nas] escolas", escrevia
Vision" [A visão do agricultor]: ,
John Bulwer em 1653, "se seria legítimo o homem destruir
(tendo condições para tanto) qualquer tipo de criatura divina, Nesse instante faço um voto solene
ainda que apenas as espécies de sapos e aranhas, porque isso
Jamais erguer a mão contra uma gralha*
seria eliminar um dos elos da cadeia divina, uma nota de sua
harmonia."*^ A continuidade de todas as espécies seguramente Quando as aves marinhas ganharam proteção legislativa,
fazia parte do plano de Deus. em 1869, argumentou-se que eram necessárias para guiar

* N o original, Lord Keeper; o guarda dos selos do rei, função nobre e * N o original: Instam this solemn oath l took/ N o hand shall rise against
importante. (R . J. R.) a rook. ( N . T.) '

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os marinheiros e mostrar aos pescadores onde estavam os "Abençoado seja o nome do Senhor Jesus contra a destruição de
arenques."' passarinhos", exclamava Christopher Smart."
Mas, a partir do século XVTI, argumentos menos utilitá- Boa parte desses escritos setecentistas, contrários à cruel-
rios a favor da preservação de espécies selvagens passaram a dade para com as aves selvagens, tinha caráter nitidamente
ser apresentados. Sir Matthew Hale exortava à misericórdia e antropomórfico. Os poetas lamentavam a aflição da ave-mãe
compaixão para com as criaturas selvagens, tendo em vista as cujos ovos eram roubados por escolares maldosos, ou cuja prole
"admiráveis capacidades de vida e sensação [...] nas aves e bichos era exterminada por esportistas impiedosos.
[...]. Todos os homens no mundo n ã o serão capazes de conferir
tal vida a nenhum deles, nem de restituir a vida e a sensação Ouve-se outra vez a arma assassina,
que lhes foi tirada". John Locke julgava errado desperdiçar a E o grito penetrante da ave-mãe,
comida que poderia sustentar uma criatura selvagem, mesmo Que chora noite adentro a prole diminuída [...]'**
os pássaros do céu; e no século X V I I I tornou-se marca de sensi-
bilidade humana atirar migalhas às aves selvagens no inverno." Os poetas também tendiam a favorecer algumas espécies
Os ornitófilos continuaram a capturar e vender todo tipo de selvagens em detrimento de outras. O pardal atraía menos
espécie silvestre, mas tal atividade encontrava crescente oposi- compaixão que o tordo; não por acaso, foi o aprisionamento de
ção. Era lugar-comum, entre os autores seiscentistas, que todo um tordo-de-papo-roxo numa gaiola que pôs o C é u de Blake
pássaro preso preferiria as agruras da liberdade ao mais ameno
"em fúria". Contudo, a veemência das críticas poéticas à cruel-
cativeiro;" e no período hanoveriano a ideia de que é cruel apa-
dade com os pássaros selvagens de todos os tipos aumentou
nhar pássaros selvagens em armadilhas, aparar suas asas, cortar
nitidamente a partir de meados do século X V I I — e teve efeito
sua língua e confiná-los em gaiolas tornou-se tema frequente de
incalculável sobre as sensibilidades de classe média. Muitos
lamentação poética. Por volta de 1735, segundo o autor de The
moralistas ensinavam, agora, que apenas a autodefesa justifi-
bird-fancier^s recreation [Passatempo do ornitófilo], era preciso
cava a destruição de espécies selvagens. Deus exigia bondade
refutar a "objeção comum, que alguns homens austeros (afetan-
para com todas as criaturas vivas, e os homens n ã o tinham
do mais humanidade que o resto de seus semelhantes) erguem
direito a matar a águia no topo da montanha." A morte do
contra o confinamento de pássaros de canto em gaiolas". Dois
anos depois, u m "amante das aves" protestava contra a prática albatroz traria punição ao Velho Marinheiro de Coleridge.
de cegar tentilhões para mantê-los em cativeiro. N o final do Boa parcela dos sentimentos subsequentes foram antecipados
século, moralistas e estetas concordavam em que o canto de por obras como o Dialogue of birds [Diálogo de pássaros, 1653],
um pássaro engaiolado não podia proporcionar prazer." As aves de Margaret Cavendish, ou The complaints of the birds andfowls
selvagens eram símbolo da liberdade dos ingleses, e mesmo of Heaven to their Creator for the oppressions and violences most
os aviários estavam sujeitos a críticas. Como disse lorde John nations on the Earth do offer them [As queixas dos pássaros e aves
Russell aos Comuns, nos anos 1820: " N ã o foi das barras de do C é u a seu Criador pelas opressões e violências que a maior
uma prisão que soaram as notas da liberdade inglesa; para ter parte das nações da Terra lhes impõem, 1683], de Thomas
alguma graça e encanto elas precisam ter algo de [...] selvagem
em sua composição".'* Críticas análogas foram dirigidas contra * N o original: Again the slaughtering gun is heard,/ And wildly screams the
caçar aves em ninhos e atirar em pássaros selvagens por esporte. parent bird./ A l i night she mourns her lessen'd brood.

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Tryon.'' Muitas pessoas que tinham caçado pássaros ou pilhado exclusivamente inglês, pois, embora demorasse muito a atingir
ninhos em sua juventude depois sofriam ataques de remorso. A as classes médias da Itália e da Espanha,* o gosto pela história
conversão do quacre John Woolman datava da época em que, natural difundiu-se bastante na França e na Alemanha; na
ainda criança, ele atirou uma pedra e matou a fêmea de u m verdade, era u m visitante alemão que, em 1738, recomendava
tordo e então se deu conta, horrorizado, de que se nã o matas- a botânica aos fidalgos rurais da Inglaterra, como uma alter-
se també m os tordozinhos eles morreriam de fome. Quando nativa saudável aos livros e à garrafa.*' Mas em nenhuma parte
menino, Thomas Bewick atirava pedras em piscos-chilreiros, a história natural tornou-se mais popular que na Inglaterra.
até o dia em que matou um deles, depois do que jamais repetiu Como ressalta u m especialista de nossos dias: "A flora e a fauna
esse feito. Byron acertou uma aguiazinha, que morreu; nunca das Ilhas Britânicas foram talvez mais intensamente estudadas
mais voltou a fazê-lo. John Wilkes ficou chocado com o cos- que as de qualquer outra região comparável".*'
tume italiano de matar passarinhos para proteger as vinhas.''^ São bem conhecidas as realizações dos grandes naturalistas
Embora o século X I X depois viesse a ser lembrado como a ingleses durante esses séculos. Mas nem sempre é lembrado que,
época das grandes battues* a prática de matar aves por esporte a partir do período Tudor, quase todos esses cientistas pionei-
tinha-se tornado questão controversa. " U m abetouro foi morto ros foram assistidos por inúmeros auxiliares e correspondentes
e comido em Keswick por u m jovem de Cambridge", escrevia amadores hoje esquecidos. Seus nomes podem ser encontrados
Robert Southey, e "por essa morte o condeno mentalmente toda nos herbários dos tempos Tudor e Stuart ou nas histórias natu-
vez que penso nele." Os ornitólogos passaram a conter o ímpeto rais dos condados de fins do século X V I I . E m sua Natural history
de matar u m espécime raro assim que o avistavam, deixando de of Northamptonshire [História natural de Northamptonshire,
lado as armas para trocá-las por óculos de alcance e, posterior- 1712], por exemplo, o reverendo John Morton confessa o quanto
mente, máquinas fotográficas.*" depende, em cada estágio, de informação fornecida pela pequena
nobreza e o clero locais. Ele consulta o escritório do "genero-
Foi das pessoas que estudavam aves por passatempo ou
so sir Matthew Dudley", em Clapton, as aves empalhadas do
curiosidade que surgiu a campanha pela preservação; e foram
capitão Saunders de Brixworth, "o belo aviário do nobre sr.
os naturalistas que pressionaram para se aprovar uma série de
Mansell de Cosgrave" e o conhecimento botânico de muitos
atos legislativos que, a partir de 1869, proporcionaram nível
cada vez maior de proteção legal às aves selvagens.*' Isso foi o
resultado de vários séculos de crescente interesse no mundo da * E m 1701, Jezreel Jones, funcionário da Sociedade Real, relatava que em
natureza. Desde o século X V I I , o estudo de aves, moluscos, fun- Cadiz "levantei suspeitas de estudar bruxaria e necromancia, ou de ser louco,
em algumas pessoas que me observaram perseguindo borboletas, coletando
gos, borboletas, algas marinhas, fósseis, flores e animais selva- plantas ou fazendo outras coisas perfeitamente legais". E m 1788, o conde de
gens se firmara como uma recreação de classe média. Fidalgos, Bristol considerou que na Espanha a história natural era "até aqui — vierge
clérigos e gente da cidade (incluindo suas esposas) voltaram-se — parfaitement Pucelle" [em francês no original: "virgem, perfeita donzela"];
em n ú m e r o crescente para o mundo da natureza, por curiosi- e, cinquenta anos depois, Richard Ford confirmava que a Espanha era "pouco
mais que uma terra incógnita [em latim no original] para os naturalistas,
dade, prazer ou satisfação emocional. Tal movimento não foi
geólogos e todos os outros ramos de istas e ólogos". Ver The sloane herbarium,
compilado por James Britten, J. E. Dandy (org., 1958), p. 144; W i l l i a m S.
Childe-Pemberton, The Earl Bishop (s. d.), i l , p. 407; Richard Ford, Gatherings
E m francês no original: caçada com batedores; em sentido figurado,
pode significar t a m b é m m a t a n ç a ou chacina. ( N . T.) from Spain (1846), p. 268.

396 397
outros moradores do condado/'* Numa fase posterior do século de negociantes de insetos, vendedores de conchas, caçadores e
XVIII, as obras de Thomas Pennant revelam o nome de diversos
secadores de borboletas etc.".*' Os objetivos da história natural,
estudiosos amadores de história natural. Os clérigos tinham
no início do período moderno, excediam em muito as neces-
condições particularmente boas para tais estudos. Os auxiliares
sidades práticas, derivando de uma combinação de impulso
e correspondentes clericais de John Ray incluíam Lewis Stevens,
religioso, curiosidade intelectual e prazer estético. Foi a religião
especialista em algas marinhas e em plantas da Cornualha;
que ensinou que o mundo natural era o livro de Deus, e seu
Matthew Dodsworth, reitor de Sessay, Yorkshire, que trabalhava
estudo u m atalho para a compreensão da sabedoria divina. Para
com fetos; W i l l i a m Stonestreet, reitor de st. Stephen Walbrook,
Henry Power, autor de Experimental philosophy [Filosofia expe-
dono de grande coleção de conchas; Samuel Langley beneficiado
rimental, 1664], a contemplação do mundo da natureza era urn
de Tamworth, que forneceu informações sobre os eperlanos;
dever moral, uma espécie de homenagem devida ao Criador: "E
o reverendo Adam Buddle, autoridade em musgos; e W i l l i a m
um tributo que devemos pagar-Lhe por sermos homens". Um
Derham, vigário de Upminster, Essex, que colecionava insetos
século depois, Thomas Pennant concordava em que o f i m bási-
e rãs, dissecava vermes e peixes e observava cuidadosamente as
co da história natural era "exaltar nossa veneração para com o
aves na construção de seus ninhos.*' A notável sensibilidade e os
Todo-Poderoso",*** enquanto George Edwards audaciosamente
dons literários do cura de Hampshire, Gilbert White, assegura-
dedicava seu Natural history of birds [História natural das aves,
ram sua imortalidade, mas vale lembrar que no século XVin ele
1743-51] a Deus, sem mais.
era apenas um, dentre inúmeros clérigos rurais, que ocupavam
o tempo registrando os eventos da natureza e a passagem das A esse impulso moral acrescentou-se a pressão mais persis-
estações. tente da moda e do prazer. O século X V I I I assistiu à populariza-
ção da história natural por autores que escreviam no vernáculo
As mulheres de classe média, que dispunham de u m grau e não em latim, e que visavam tanto divertir quanto instruir. Na
comparável de lazer, t a m b é m observaram muito. O dr. Robert França, catálogos de bibliotecas revelam que o Spectacle de la
Plot citava Madame Offley, "dama que tem excelente habi- nature [Espetáculo da natureza, 1732] do padre Pluche e a
lidade na conservação de pássaros"; e John Ray foi auxiliado Histoire naturelle [História natural, 1749-1804] do conde de
em assuntos botânicos pela sra. Ward, "uma nobre dama" de Buffon tiveram maior voga que os próprios escritos de Voltaire.
Guisborough, em Cleveland. Em 1750, u m quarto dos assi- Na Inglaterra, autores populares de história natural, como John
nantes do English Moths and Butterflies [Mariposas e borboletas H i l l , Oliver Goldsmith, Thomas Pennant e W i l l i a m Bingley
inglesas], de Benjamin Wilke , era mulher. As Botanical tahles gozaram de sucesso semelhante; Peter Collinson achava em
[Tabelas botânicas, 1785?], de Bute, foram compostas "somente 1747 que as obras sobre história natural "são as que mais vendem
para a diversão do belo sexo". Em fins do século x v i i i , muitas na Inglaterra".*'' Essa tradição de escritos populares sobre botâ-
mulheres já tinham publicado obras sobre botânica.** nica e zoologia estava fadada a uma longa história subsequente.
Por certo, parte dessa atividade tinha sentido utilitário. Na Inglaterra vitoriana, o livro Commm objects of the country
Os médicos conservavam seu interesse no uso medicinal das [Coisas comuns do campo, 1858], do reverendo J. G. Wood
plantas; os entomologistas estudavam insetos a fim de aprender vendeu 100 mil cópias numa semana, enquanto Eliza Brightwen,
como destruir pestes resistentes. Mas não foi a preocupação com autora de obras como Glimpses into plant life [Vislumbres da vida
a utilidade que incentivou o que lorde Chesterfield, em 1748, das plantas, 1898], Wild nature won by kindness [A natureza sel-
chamou — pejorativamente — de "bandos numerosos e frívolos vagem vencida pela bondade, 1890] e Inmates of my house and
398
399
garden [Hóspedes de minha casa e jardim, 1895], atribuía a sua cinco, todas as borboletas inglesas hoje conhecidas já tinham
popularidade a "esse amor pela natureza animada que está entra- sido registradas.'*
nhado nos corações ingleses".'" A Inglaterra setecentista também Boa parte dessa atividade obedecia a um desejo de posse
tinha artistas que se especializaram em temas de história na- pamas competiam entre si para superar as grandes coleções
tural, como Eleazar Albin, Moses Harris, W i l l i a m Lewin e de conchas, plantas e insetos reunidas por aristocratas como
Thomas Bewick. Suas meticulosas pinturas de borboletas e ara- as duquesas de Beaufort e de Portland. Algumas compravam
nhas, de pássaros e ovos de aves, da flora e fauna de todo o tipo lagartas de gente pobre e as criavam para aumentar suas
apareciam em caras estampas coloridas para um mercado de lu-
coleções de borboletas.'' Nas décadas de 1730 e 1740, a moda
xo, bem como em gravuras branco e preto para consumo m.ais
das conchas gerou inúmeras coleções privadas: The univeisal
amplo.''
conchologist [O conquiliologista universal, 1784], de Thomas
A procura de tais mercadorias revelava que a história M a r t y n , oferece uma bela lista de coleções particulares, desde
natural tinha-se tornado u m tema altamente em voga. "Temos a da condessa de Bute até as menores. Esses conjuntos privados
numerosos membros da alta e pequena nobreza que conhecem muitas vezes não tinham o rigor classificatório das coleções
muito bem as plantas", escrevia Peter Collinson em 1755." didáticas formadas por autênticos cientistas, mas mostravam
A moda intensificou-se com a ascensão de Jorge l l l , que u m como entrara em voga o interesse pela história natural. Em
c o n t e m p o r â n e o depois descreveu como "um dos botânicos 1739, u m homem em visita a Charmouth, Dorset, descobriu
mais científicos da Europa" e cujo ministro, o conde de Bute, que u m trabalhador agrícola local tinha reunido uma ampla
certamente foi mais bem-sucedido como botânico que como coleção de fósseis.'*
político.* A história natural, declarava The Criticai Review em Dessa maneira, a Inglaterra passou a ser uma meca para os
1763, tornara-se "o estudo predileto de nossos tempos". N o naturalistas e ilustradores botânicos estrangeiros. Proporcionou
ano seguinte, u m manual relatava que multidões se dirigiam a Lineu um séquito maior do que ele jamais teve na Suécia e
a Margate para coletar seixos, conchas e algas marinhas, ao hospedou seus compatriotas Daniel Solander (1736-82), que se
passo que em Freshwater, na ilha de W i g h t , os penhascos eram tornou curador do Departamento de História Natural do Museu
visitados por excursionistas desejosos de ver o grande n ú m e r o Britânico, e James Dryander (1748-1810), nomeado bibliotecário
de aves exóticas que ali c o n s t r u í a m seus ninhos todos os anos. da Sociedade Real. O alemão J. J. Dillenius (1687-1747) veio
E m 1776, o botânico W i l l i a m Curtis podia se vangloriar de para Oxford e tornou-se seu primeiro professor de botânica.
que "homens do outro extremo da cidade o visitam em seus Quando J.J. Audubon produziu seu vasto BÍ7'ds of America [Aves
coches para solicitar aulas particulares" sobre sua matéria." da América] (1826-38), não foi nos Estados Unidos, mas em
O século XVIII viu nascerem esses clubes e sociedades para o Edimburgo e Londres que publicou a obra; dos 180 assinantes
estudo de história natural e botânica de campo, que haveriam por ele enumerados em 1831, somente dezoito não eram britâni-
de se tornar traço tã o característico na vida da província da cos, concentrando-se 29 apenas na região de Manchester.''
Inglaterra vitoriana. Por volta de 1800, com exceção apenas de Foi nesses anos, quando a história natural não se tinha
profissionalizado e ainda era um hobby de amadores, que se
engendraram as sensibilidades que depois culminariam na
* O terceiro conde de Bute (1713-92) p ô s f i m à Guerra dos Sete Anos
(1763); pouco depois, impopular devido a seu autoritarismo, demitiu-se do legislação de fins do século XIX e de todo o século XX para a
cargo. ( N . T.) preservação da natureza e a proteção de espécies selvagens.
400 401
Com efeito, esses aspectos do mundo natural então em voga vagens, na matança de pássaros, na erradicação de ervas dani-
foram precisamente os que as gerações anteriores depreciavam nhas. E m "A excursão", Wordsworth escrevia:
ou mesmo procuravam eliminar. Como notava u m comenta-
dor, em 1704, o conhecedor conservava cuidadosamente "aque- Choro quando vejo a face mais negra
las criaturas que os outros diligentemente destroem",'** como Dessa grande mudança; e ali, esse insulto
t a m b é m cultivava com perseverança as plantas que os demais Feito à natureza, veja como obriga
arrancavam como ervas daninhas. Naturalistas mantinham A potência furiosa a justificar-se;
zoológicos privados de espécies vivas que podiam observar, Sim., a vingar seus direitos violados [...]**'*
e fidalgos de mentalidade científica criavam reservas para
animais que outros viam como inúteis ou mesmo nocivos. E m N o início do século X V I I I , Joseph Addison notava que
Dalkeith, a duquesa de Buccleuch introduziu o esquilo verme- "os elementos de uma bela paisagem" não "eram sempre os
lho por volta de 1772, numa época em que ele parecia estar à mais proveitosos para sua maravilha".**' E m fins do século, a
beira da extinção na Escócia. Na Virgínia, Thomas Jefferson maioria dos estetas passara a encarar o ideal clássico de u n i ã o
tencionava que seu jardim fosse asilo para toda espécie de entre a beleza e a utilidade como cada vez mais difícil de se
animal selvagem. Na década de 1790, o ministro evangélico alcançar. "Onde quer que o homem apareça com suas ferra-
Rowland H i l l considerava crueldade destruir os sapos. "Em mentas", escrevia W i l l i a m G i l p i n , que se proclamara espe-
minha residência de campo tentei mesmo construir-lhes u m
cialista no pitoresco, "a deformidade segue sua trilha. Sua pá
refúgio e o chamei de sapário."''' Na mesma década, John Byng
e arado, sua sebe e seus sulcos, cometem abusos chocantes na
lamentava a matança de gralhas, esquilos e pássaros de canto.
simplicidade e elegância da paisagem." A Inglaterra, achava
Se a perseguição continuasse, achava ele, toda a raça das aves
ele, seria "mais bonita em estado natural do que num estado
seria extinta pelos agricultores e jardineiros: "os campos são
de cultivo [...]. A regularidade dos trigais é repulsiva e a cor
privados de uma beleza fundamental; e o homem contemplati-
do trigo, especialmente na colheita, destoa de todas as outras
vo perde uma satisfação essencial". E m Blenheim, pelo menos,
o duque de Marlborough proibira seu empregado de perturbar coisas". D o ponto de vista moral, o cultivo era agradável. N o
os pássaros que faziam ninho nos arbustos, embora tivessem aspecto pictórico, despertava aversão.*" Seu c o n t e m p o r â n e o
permissão para matar os que transpusessem o muro e entras- Archibald Alison concordava: as paisagens eram desfiguradas
sem no jardim da cozinha.**" pelas obras do homem, fossem "os planos de manufaturas",
"a regularidade dos cercamentos" ou "as tentativas de melho-
Esse, em microcosmo, era o problema com que deveria
deparar todo preservacionista posterior. Como conservar a rias". A triste verdade, na expressão de W i l l i a m M i t f o r d
natureza selvagem e ao mesmo tempo mantê-la afastada do em 1824, era que "o cultivo do solo, necessário para suprir
jardim da cozinha? E m fins do século X V I I I , com efeito, as as necessidades humanas, é altamente adverso à beleza da
exigências conflitantes da utilidade e da beleza, da produção e paisagem".***
do consumo, do corpo e do espírito, pareciam mais irreconci-
liáveis que nunca. Muitas pessoas sensíveis já não encontravam * N o original: I grieve, when on the darker side/ O f this great change I
prazer no crescimento das cidades, na destruição dos bosques, look; and there behold/ Such outrage done to nature as compels/ T h e i n d i g -
na expansão da agricultura, na eliminação dos predadores sel- n a m power to justify herself;/ Yea, to avenge her violated rights [...] ( N . T.)

402 403
Até mesmo o novo tipo de animais de criação nada tinha,
nada mesmo, de estético. Criar ovelhas à maneira de Robert ^.•V?^ AA P ^ ; ' ° ^ « , " ^ ° f ™ ° de fato engendrou essa sensi-
bilidade cmdida, da qual sofremos até hoje. O útil e produtivo
Bakewell, considerava Uvedale Price, era pensar apenas em
provavelmente seria feio e repulsivo. Tal atitude tinha uma
"sua disposição a produzir gordura nas partes mais lucrati- longa pre-historia: os poetas e artistas sempre foram seletivos
vas" — "ideia de beleza muito material e de invernista". A quanto as atividades humanas que escolhem n a t - . - . r^;^^
concepção que tinham os pintores ou poetas de um belo touro H M v j n i c m para pintar como
ou porco era bastante diferente da de u m criador.**' Quanto belas ou enobrecedoras; e, como vimos, não era novo o protesto
às árvores, "o olho pitoresco", afirmava Gilpin, "desdenha as contra a poluição industrial.* Mas realmente não havia prece-
noções estreitas de u m madeireiro". Os reflorestamentos com dentes para o tom das queixas do final do século xviii sobre o
coníferas de crescimento rápido eram vistos com maus olhos efeito desfigurador das novas edificações, estradas, canais, e do
por todos os apreciadores de paisagens. Uvedale Price achava turismo e da indústria. Essas queixas não eram unânimes, pois
monótonos os lariços, e criticava grandes plantações que não alguns contemporâneos consideravam as fábricas e fornalhas
se harmonizavam com os arredores. Wordsworth criticava sublimes e inspiradoras."" Mas elas foram se generalizando cada
os abetos e lariços escoceses que desfiguravam o Distrito dos vez mais, e jamais cessaram. Os escritores e artistas modernos
Lagos: lamentável "manufatura vegetal".*** As sebes uniformes e ainda não tiveram sucesso em criar u m novo modelo estético
retangulares dos cercamentos impostos por lei atraíram críticas de uma paisagem industrial ideal, ao mesmo tempo agradável e
análogas. Embora muito práticas, e esteticamente semelhantes produtiva, para substituir a velha imagem da paysage riant.''^**
à regularidade da arquitetura do período georgiano, elas pare- Contudo, a ironia estava em que os gostos educados dos
ciam enfadonhamente desumanas e monótonas. Para H u m p h r y estetas tinham sido pagos pelos mesmos processos que eles
Repton, cercas retas, árvores podadas e animais confinados afetavam deplorar. A família Hoare, que tornou Stourhead
eram "objetos para lucro, e não beleza".**' tão requintada, era de banqueiros londrinos que deviam ter
Inevitavelmente, houve algumas tentativas desesperadas de auxiliado a financiar muito da expansão urbana. Os Dudleys
reunir utilidade e beleza. Plantios frequentes podiam transfor- podiam se permitir a beleza de Himley, com suas árvores, par-
mar toda uma propriedade "em uma espécie de jardim", pensava ques e lagos, porque suas fundições acabaram com a paisagem
Addison. "Por que [não] empilhar todo o feno em forma de de Staffordshire mais para o leste.'' O esteta Richard Payne
pirâmide", indagava o requintado W i l l i a m Shenstone, "e esco- Knight era neto de u m fabricante de ferro de Shropshire.
lher os locais onde pudessem ficar mais agradáveis?" Mas nfer- Esses homens raramente permitiam que suas sensibilidades
me ornée* e outros experimentos similares da agricultura esté- estéticas estorvassem o processo produtivo. N o século e meio
tica de meados do século X V I I I resultaram, sistematicamente,
* G . M . Trevelyan escreveu que sob os primeiros reis Stuart "era belo o
em fracasso comercial.***' Como escrevia W i l l i a m Marshall, em
que mais rendia"; somente nos tempos modernos a beleza e a economia entra-
1796: "O homem de negócios e o homem de gosto raramente ram em conflito; England under the Stiiarts (20" ed., 1947, p. 30; ver acima, pp.
estão unidos na mesma pessoa". Ornamento e lucro, concordava 16-8), Mas a reação dos londrinos da época de Jaime l aos gases das fábricas de
Repton, eram "incompatíveis".**'' alúmen, aos odores das fornalhas de tijolos e à poluição do Tamisa pelos cur-
tidores (v. pp. 347-8) sugere que a concepção que Trevelyan tinha da primeira
fase Stuart era excessivamente otimista.
* E m francês no original: granja enfeitada. ( N . T.) ** E m francês no original: paisagem risonha. ( N . T.)

404 405
seguinte essas sensibilidades privadas seriam satisfeitas com a Assim, em 1654, um cordeiro e u m leão vivendo em amizade
criação de reservas especiais, jardins paisagísticos, cinturões um com o outro foram exibidos publicamente em Londres; e
verdes e santuários animais: oásis artificiais ou vislumbres* de em 1831, numa das pontes londrinas, um empresário expunha
um mundo idealizado, cuja própria existência sublinhava sua animais reconciliados: gatos, ratos e camundongos numa gaio-
oposição fundamental com os valores essenciais da sociedade
la, falcões e passarinhos em outra.' Em seu romance utopista
em seu cotidiano.
Millenium hall [Saguão do milénio, 1762], Elizabeth Montagu e
Sarah Scott descreviam u m santuário onde o homem não mais
era "um destruidor impiedoso", e os animais viviam sem serem
molestados.* A construção de santuários privados por fidalgos
do período hanoveriano, para a conservação de animais e pás-
saros, foi seguida — no final do século XIX — pela fundação de
sociedades de proteção à fauna que fizeram bem-sucedida cam-
panha pela proteção legal a muitas formas antes desprezadas de
vida selvagem. Em tempos mais recentes, até o perigoso tigre
indiano seria protegido.'
T a m b é m foi questionada a autoridade humana sobre os
animais domésticos. Tal como muitos pensadores setecentistas,
entre eles Rousseau, acreditavam que a civilização corrompe-
ra o homem natural, muitos naturalistas seguiam Buffon na
crença de que a domesticação, longe de aprimorar os animais,
4. M O R T E O U M E R C Ê ?
simplesmente os degradara. Oliver Goldsmith escrevia:
N ã o apenas as sensibilidades estéticas foram agredidas pela
conquista humana da natureza. T a m b é m surgiram objeções E m todos os países, à medida que o homem se civiliza
morais, particularmente à subjugação dos bichos. A medida e aperfeiçoa, as fileiras inferiores dos animais são o p r i -
que diminuía a ameaça representada pelos animais selvagens, o midas e degradadas. Reduzidas à escravidão ou tratadas
direito do homem a eliminar criaturas selvagens das quais nada como rebeldes, todas as suas sociedades são dissolvidas
tinha a temer era cada vez mais questionado. Sempre fizera e os talentos que possuem, desfeitos. Suas débeis artes
parte do ideal milenarista cristão a crença em que os animais rapidamente desaparecem e nada resta a n ã o ser os ins-
selvagens u m dia perderiam a ferocidade e tornariam a viver, tintos solitários ou aqueles hábitos estranhos que rece-
como no Eden, em paz com o homem.' Nas feiras, era comum bem da educação humana.
se exibirem barracas que anunciavam essa idade de ouro por vir.

* N o original, peepshows: exibição de pequenos quadros ou objetos vistos * Os animais, contudo, eram apenas espécies nativas. As p r o p r i e t á r i a s do
através de uma lente encaixada n u m pequeno orifício; o mesmo que "cinemi- santuári o consideravam cruel e inútil aprisionar leões e tigres n u m zoológico
nha". ( N . T.) completamente diverso de seu elemento nativo.

406 401
Os animais domesticados eram como os aborígines outrora que o Pecado Original inaugurara a era carnívora, e a liber-
orgulhosos, desmoralizados por seus conquistadores europeus.* dade de comer carne que Deus concedera a N o é fora apenas
Nos séculos XIX e xx, muitos defensores dos direitos animais a renovação de uma permissão anterior.'" Os comentadores
insistiram em que os zoológicos e ménageries ofendiam a digni- discutiam se a alimentação com carne fora permitida porque a
dade natural de seus hóspedes. Até manter animais de estima- constituição do homem tinha degenerado, e portanto requeria
ção era degradante e devia ser proibido.' novas formas de nutrição, ou porque o cultivo do solo, ao qual
Todavia, a crítica à domesticação de animais ia ainda mais ele fora condenado, exigia alimentação mais forte, ou ainda
fundo. Com efeito, uma vez aceito que os animais deviam ser porque as frutas e ervas das quais se alimentara no Eden
tratados com gentileza, era inevitável que aumentasse a repulsa ; haviam perdido em qualidade." Mas todos concordavam em
a matá-los para comer. A tradição de que o homem fora origi- que a alimentação carnívora simbolizava a condição decaída
nalmente vegetariano era antiga e universal. Talvez ela reflita do homem. "Deus permite que tiremos as vidas de nossos
a prática efetiva de nossos ancestrais remotos, pois os macacos semelhantes para comer sua carne", afirmava Richard Baxter
são basicamente vegetarianos e foi provavelmente com o apa- em 1691, "a f i m de mostrar o que o pecado introduziu no
recimento de uma economia caçadora que ocorreu a mudança mundo."" A morte de animais brutos para suprir as necessi-
para a alimentação carnívora.* A sua expressão em boa parte dades do homem pecador podia ser transformada, mesmo, em
da literatura grega e romana garantiu sua transmissão para paradigma da Expiação de Cristo."
a Inglaterra do início dos tempos modernos. "De raízes, não Enquanto isso, a permissão de comer carne era vista como
de animais, eles se alimentavam", cantava a poetisa Katherine concessão à fraqueza do homem, não como u m mandamento.
Philips, referindo-se, no século XVII, à Idade de Ouro.' Para os autores pagãos Séneca e Porfírio, a abstinência volun-
O vegetarianismo foi também estimulado pelo ensinamento tária de carne simbolizava o triunfo do espírito sobre o corpo;
cristão, pois todos os teólogos concordavam em que o homem vários cristãos austeros da Idade Média renunciaram delibera-
não fora originalmente carnívoro. N o Eden, escrevia Alexander damente à carne pela mesma razão (o peixe permaneceu aceitá-
vel, em parte porque era exangue, em parte por não ser gerado
Pope,
pelo ato sexual).'* Na Inglaterra seiscentista, ainda havia alguns
desses ascetas que renunciavam à carne para vencer a matéria,
O homem aos bichos se juntava, coinquilinos das trevas;
tal como o futuro projetista de minas, Thomas Bushell, que
[...]
na década de 1620 viveu três anos numa tenda, com uma die-
A morte não lhe dava a vestimenta e tampouco o alimento.^*
ta de ervas, azeite, mostarda e mel, ou a sra. Traske, mulher
de John Traske, o judaísta, que se absteve de carne e bebeu
Muitos comentadores da Bíblia defendiam que somente após
somente água durante sete anos, no reinado de Carlos l , ou
o Dilúvio os humanos tornaram-se carnívoros; no período
o ranter John Robins, que no início dos anos 1650 exigia que
de desorientação que se seguiu à Queda, eles permaneceram
seus discípulos se abstivessem de "carne e bebidas"." N o sécu-
herbívoros.'' Outros, notando que Abel era pastor, sugeriam
lo XVIII e inícios do XIX, houve sectários, influenciados pelo
místico alemão Boehme e pelo livro Serious call [Grave apelo,
* N o original: M a n walk'd w i t h beast, joint tenant o f the shade;/ [...]/ N o 1738], de W i l l i a m Law, que, ao lado de alguns southcottianos
murder cloth'd h i m , and no murder fed. ( N . T.) ,

408 409
e swedenborguianos* seguiam regime igualmente austero de tite esteja muito aguçado", observava um manual de etiqueta à
abstinência de alimentação animal.'* mesa, de meados do século XIX, "a visão de muita carne fume-
Considerável ansiedade també m era gerada pela proibição gando em seu molho é suficiente para matá-lo por completo."
de ingerir sangue, presente no Antigo Testamento {Génesis, I X , O evangélico Zachary Macaulay, pai do historiador,* encarava
4). Essa norma não podia ser desprezada como fazendo parte da a preferência por carne mal passada como um pecado mortal,
agora obsoleta lei cerimonial judaica, pois a proibição fora repe- comparável a fumar ou passar a m a n h ã na cama."
tida nos Atos dos Apóstolos (xv, 20; X X I , 25). Ela perdurou entre Contudo, mais notável do que essa inibição quanto ao
os primeiros cristãos e sobreviveu na Igreja oriental. Alguns sangue foi o aparecimento, na Inglaterra de meados do século
comentadores do início do período moderno procuraram inter- X V I I , de indivíduos que rejeitavam a carne, não por ser mal
pretá-la alegoricamente ou como uma injunção contra a cruel-
cozida ou por motivos ascéticos, mas por considerarem erra-
dade desnecessária ou o consumo de animais vivos." Mas outros
do matar animais. U m dos "erros" sectários enumerados por
a tomaram literalmente e até pelo menos a década de 1730 o
Thomas Edwards em 1646 foi a doutrina de que era proibido
tema ocasionou intensa controvérsia clerical."* Na Inglaterra
matar qualquer criatura legítima; ele citava o exemplo de u m
Stuart havia inúmeras "pessoas sensíveis e curiosas", particular-
pedreiro de Hackney, de nome Marshall, seguidor do familista
mente entre as seitas da Guerra Civil, que se recusavam — por
Giles Randall, que achava "ilegítimo tirar a vida de qualquer
motivos de consciência — a comer morcelas embebidas em mo-
criatura, pois ela era dádiva de Deus"." E m Ickenham, perto de
lho ou sangue. T a m b é m os escoceses teciam objeções religiosas
Uxbridge, o místico Roger Crab, ex-chapeleiro em Chesham,
às morcelas." N e m todos partilhavam tais escrúpulos, pois
Samuel Pepys notava em 1667 que o sr. Andrews, negociante de desde cerca de 1641 sustentara ser pecado comer carne, não só
madeira, gostava de comer carne crua e "só o fazia com prazer, porque fortalecia a lascívia humana, mas por ser produzida por
se o sangue escorresse pelos talhos"; e no século X V I I I os ingleses "açougueiros sangrentos", que destruíam seus "semelhantes".
tinham, entre os visitantes estrangeiros, a fama de servir bifes Ele tinha u m discípulo, o capitão Norwood, que morreu ao
mal passados.'" Mas os gostos estavam mudando. O sangue, tentar seguir seu regime frugal; possivelmente foi outro segui-
dizia Nathaniel Lardner em 1762, era "imundo e altamente dor que apareceu em Yorkshire, em 1674, vestido de branco
desagradável [...] jamais é levado, só ou em companhia de outras e alegando ter bebido somente água e comido apenas raízes
coisas, à mesa das pessoas educadas". N o começo dos tempos nos quatorze anos anteriores.'' E m 1691, o proprietário de
vitorianos, os papéis tinham-se invertido. Eram agora os viajan- terras de Waterford, Robert Cook, que vivera algum tempo
tes ingleses no exterior que manifestavam asco pela carne mal na Inglaterra, publicou u m artigo em defesa do regime "pita-
cozida dos restaurantes continentais. "A menos que nosso ape- górico", que ele seguia por motivos de consciência, recusando
qualquer roupa ou alimento proveniente de animais.'*
* Southcottianos: seguidores de Joanna Southcott (1750-1814), fanática O vegetariano mais notável nessa tradição sectária foi o
religiosa que acreditava ter poderes sobrenaturais, escreveu e ditou profe- behmeísta** Thomas Tryon, cujo ponto de vista sobre os animais
cias rimadas. Swedenborguianos: seguidores do cientista, filósofo e teólogo
Emanuel Swedberg — ou Swedenborg — (1688-1772). Davam mais valor às
virtudes do clérigo e à c o m u n h ã o de Deus que aos dogmas ficando, assim, sob * Thomas Babington Macaulay, ver I n t r o d u ç ã o . ( N . T.)
suspeita da Igreja. ( N . T.) ** Behmen: deus ou génio persa que protege os trabalhos do campo. ( N . T.)

410 411
já examinamos* E m 1657, Tryon renunciou à carne e ao peixe coléricos, ferozes e cruéis em seus temperamentos do que os que
e se recusou a vestir couro. Rejeitava a alimentação carnívora vivem basicamente de vegetais"."
em parte por considerar que ela introduzia u m elemento animal Em fins do século xvii, era amplamente debatido o direito
no corpo, dando ao homem uma "natureza lupina, canina", em humano de matar animais para sua alimentação. Os ensinamen-
parte por considerá-la insalubre, mas, principalmente, por se tos vegetarianos de Plutarco e Porfírio eram bastante conheci-
opor a "matar e oprimir nossos semelhantes [fellow-creatures]". dos das pessoas cultas, enquanto as objeções morais de Pitágoras
Os animais, dizia, portavam a imagem de seu criador e tinham à alimentação baseada na carne (fundadas em sua crença no
o direito de serem tratados conforme o preceito áureo ("fazer parentesco de toda a natureza animal) ganharam ampla difusão
aos outros como desejamos que nos façam"). Ele desenvolveu através de sucessivas traduções das Metamorfoses de Ovídio. E m
seus pontos de vista numa série notável de tratados que, embo- sua versão de 1700, Dryden interpolou as sonoras linhas
ra publicados nas duas últimas décadas do século XVII, davam
continuidade à autêntica tradição do Interregno. Ele não con- Não tires a vida que não te é dado oferecer:
denava apenas a crueldade para com os animais, mas també m Todas as coisas têm. o mesmo direito a viver.-"^*
a escravidão negra, as manobras militares, o código criminal, o
tratamento cruel dos insanos, e mesmo a prática de fazer todas Além das objeções de consciência à alimentação carnívora,
as pessoas se portarem como se fossem naturalmente destras. havia considerações de cunho mais prático. Cientistas de fins
Ele aconselhava seus leitores a serem moderados no consumo do século XVII como Walter Charleton, John Ray e John Wallys
de carne, ao invés de abandoná-la por completo, mas sua p r ó - estavam bastante impressionados pela ideia de que a anatomia
pria prática era inequívoca e ele conseguiu converter inúmeras do homem, particularmente os dentes e os intestinos, mostrava
pessoas tanto durante sua vida como postumamente (entre as que ele não foi originalmente planejado para ser carnívoro." Esse
quais Aphra Behn e Benjamin Franklin).'' O notável em seus argumento veio a fornecer um argumento a mais para a tese de
argumentos é que eles revelam que a velha tradição de louvar que comer carne não era "natural". Muitos autores científicos
a carne sangrenta por supostamente tornar os homens viris e sentiam também, bastante razoavelmente, que a pesada dieta
corajosos acabara produzindo a inevitável reação. Para Tryon, a de carne, ideal de todo inglês, era nitidamente insalubre. Como
adoção da comida animal após a Queda está ligada ao início das dizia u m deles, em 1721: " É a terrível mistura de almas [...] de
querelas e guerras entre os homens. Era importante "impedir o tantos milhares de animais, destruídos para agradar a um deles,
crescimento de toda ferocidade, ódio e violência na própria raiz". que gera essa tremenda guerra no sangue que tornou este último
O vegetarianismo era, para ele, u m meio de refrear a agressão, presa de tantas indisposições, a ponto de frustrar a perícia dos
de vencer "um espírito tumultuado e invejoso".'* Tal argumento mais doutos médicos". Uma dieta simples manteria o sangue
teria ampla aceitação, uma vez que geralmente se admitia que a livre de "fluidos nocivos" e conduziria a uma vida mais longa."'
alimentação afetava o caráter. Conforme dizia u m naturalista John Evelyn escreveu um tratado provando que era possível
do século XVIII: "Os homens vulgares e ignorantes, quando "viver de saudáveis verduras, mais tempo e com mais felicidade",
mimados com uma variedade de comida animal, são muito mais

* N o original: Take not away the lite you cannot give:/ For ali things have
* Ver pp. 219, 241-2. an equal right to live. ( N . T.)

412
413
e o naturalista Edward Bancroft concordou que "não apenas a preferível à "morte e assassinato de animais", enquanto sir Isaac
P
humanidade, mas o interesse próprio, conspiram para nos dispor Newton teria notado uma "assustadora contradição" entre aceitar
pelo menos a reduzir a quantidade de alimento animal que, no que os animais podiam sentir e fazê-los sofrer. "Ele aceitava com
presente, devoramos com tamanha avidez". Em 1780, o filósofo relutância o bárbaro costume de nos alimentarmos do sangue e
Adam Ferguson recuperou a saúde seguindo "um método de dieta da carne de seres como nós." "Hoje matamos um porco", escreveu
pitagórica"." A noção de que a carne não era saudável inscreveu- o reverendo Robert Meeke em seu diário de 1692, "ouvi seus gri-
-se, assim, no centro de boa parte dos ensinamentos vegetarianos tos em meu escritório — muitas criaturas morrem por nós, mas o
posteriores. O caldo de carne, conforme se argumentaria, matou homem pecador merece mais do que ninguém a morte."'*
mais gente que Napoleão; e nenhum vegetariano tinha problemas Nos poemas de Margaret Cavendish, nos anos 1650, o cozi-
respiratórios." mento da carne tornou-se símbolo de morte e crueldade, como
Nas décadas de 1730 e 1740, o argumento da saúde foi inten- ao descrever uma batalha, na qual
samente propagado pelo influente médico George Cheyne, que
chegara a pesar 32 "pedras" [duzentos quilos] e cuja proposta de bichos e homens descansam no seu sangue, esmagados,
dieta era "nunca ingerir alimento animal, mais de uma vez por Como se um cuca francês os tivesse picado, num guisado.
dia", e beber "quase nada acima de u m quartilho de vinho ou, no Ou com seu sangue cozinhasse gelatina
máximo, não mais que u m quarto, de vez em quando". Cheyne Para fazer um molho dos despojos*
não defendia uma renúncia completa à carne: tal mudança não
seria "natural, [seria] contrária à ordem da providência e, em Matar criaturas para alimento, sugeria ela, era absolutamente
certo grau, imoral". Mas ele se confessava incapaz "de achar injusto:
grande diferença, com base na razão natural e na equidade [...]
entre se alimentar de carne humana e comer carne dos seres Como se Deus fizesse os seres só para alimento.
brutos, exceto a que vem do costume e do exemplo". "Presenciar Não para outro fim lhes desse vida e sentimento;
as convulsões, agonias e torturas de u m pobre semelhante [...] a [...]
morrer para saciar a luxúria [...] exige coração de pedra e grande E as criaturas todas só para o bem humano
dose de crueldade e ferocidade."" 35**
Fossem feitas, aos desígnios do tirano.-
Mas alguns corações estavam longe de serem duros. E m
1548, John Foxe, o futuro martirologista escrevera que "tal é a Por certo, esses sentimentos não impediam a duquesa de apreciar
minha disposição que mal posso passar pelos matadouros onde os um rosbife, assim como ocorria com seu herdeiro poético, James
animais são abatidos sem que minha mente se afaste, com uma Thomson, que em 1728 incluiu uma seção recomendando uma
sensação de dor". U m século depois, sir Matthew Hale confessa-
va que a visão de uma ovelha pastando sempre o fazia sentir que
* N o original: beasts and men both i n their blood lay masht,/ As i f that a
Deus com certeza pretendera "um tipo mais inocente de comida French cook had them minc'd, so hasht,/ O r w i t h their blood a jelly b o i l / T o
para o homem". "Estou convencido de que comer carne é legí- make a bouillon of the spoil. ( N . T.) , •
timo", escrevia o idoso Richard Baxter, "embora toda a minha ** N o original: As i f that G o d made creatures for mans meat,/ T o give
vida isso tenha ocorrido, como se contra a minha natureza, com them life and sense for man to eat;/ [...]/ A n d that ali creatures for his sake
algum pesar." John Ray concordava em que uma dieta vegetal era alone/ Was made for h i m to tyrannise upon. ( N . T.)

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dieta vegetal em The seasons [As estações].'* Mas ainda que essas inclementes, impiedosos, cruéis, rudes, sinistros, ríspidos, du-
passagens indicassem sentimento poético e não uma convicção ros, [...] intratáveis"; e os epítetos repetiam-se constantemente.
autêntica, elas traíam a existência de um claro desconforto. Os Os açougueiros levavam "uma vida sebosa matando animais",
argumentos de Margareth Cavendish reaparecem em 1721, quan- dizia u m pregador do último período Stuart.*-' E m 1716, John
do um autor médico anónimo denuncia a prática de abater ani- Gay exortava os pedestres nas ruas londrinas a
mais como o exercício de uma tirania sobre as criaturas de Deus:
"E verdade que o homem é o senhor da criação; assim como u m Fugir da tina sebosa do rude açougueiro,
chefe de família: mas que senhor devora seus próprios súditos? Homens de mãos tintas da nódoa infame do sangue.
Ou que pai se regala com os próprios filhos e empregados?"." N o Sempre os primeiros no comboio dos algozes*
século X V I I I , comer carne era frequentemente descrito como u m
ato "terrível, repugnante", que só o longo hábito tornara familiar. "Tirar a vida de animais, a fim de convertê-los em comida", re-
Dificilmente se poderia condenar os canibais da Guiana, dizia fletia o filósofo David Hartley em 1748, "faz grande violência aos
Edward Bancroft em 1769, uma vez que eles eram meras vítimas princípios de bondade e compaixão. Isso deriva da frequente
de u m costume semelhante ao que permitia aos ingleses "exa- frieza e crueldade encontrada entre aquelas pessoas cuja profis-
minar sem horror involuntário as carcaças mutiladas de animais são as envolve na destruição da vida animal, bem como do des-
inofensivos, expostos em um mercado londrino". Richard Ford conforto sentido pelos outros ao contemplar o abate de animais."
diria o mesmo dos espanhóis e de suas touradas: "Eles se resigna- "O ofício de u m açougueiro", concordavam Adam Smith, "é
ram pelo hábito, assim como nós fizemos diante dos sangrentos função brutal e odiosa."*' Nos tempos vitorianos, a classe dos
açougues que desfiguram nossas alegres ruas e que, vistos pela matadores de animais era frequentemente mencionada pelos i n -
primeira vez, seriam inexprimivelmente repugnantes".'** vestigadores sociais como, de todas, a mais desmoralizada.** N ã o
Os açougueiros, logicamente, despertavam suspeita, não ape- surpreende que se acreditasse amplamente, no início do período
nas pelo ruído, cheiro, sangue e poluição envolvidos em suas moderno, que os açougueiros não devessem servir no júri de
atividades, mas t a m b é m devido a uma aversão generalizada ao casos capitais, devido às suas inclinações cruéis. Aparentemente
próprio ato de matar. Na Utopia de More, os escravos faziam o não havia nenhum fundamento legal para tal noção, mas ela foi
abate; aos homens livres nem mesmo se permitia presenciá-lo, sustentada durante os séculos X V I I e X V I I I por inúmeros comen-
temendo-se que a misericórdia humana fosse destruída." Na tadores que deviam ter melhor conhecimento.*'
época medieval e no início dos tempos modernos, as autorida- N o princípio do século X V I I I , portanto, todos os argumen-
des civis procuraram impedir o abate de animais em locais pú- tos que haveriam de embasar o vegetarianismo moderno já
blicos. Viam os matadouros como u m problema, e com fre- estavam presentes: o abate de animais não somente tinha u m
quência tentaram situá-los para fora dos muros da cidade.*" Os efeito brutalizador sobre o caráter humano como o consumo
açougueiros tornaram-se objeto de preconceitos não muito d i - de carne fazia mal à saúde; fisiologicamente não era natural;
ferentes dos relacionados ao carrasco público. Seu negócio era tornava os homens cruéis e ferozes; e infligia indescritível
"odioso", considerava W i l l i a m Vaughan em 1608. Eles manu-
seavam carne crua que, dizia-se, todas as outras pessoas consi-
* N o original: T o shun the surly butcher's greasy tray,/ Butchers, whose
deravam demasiado repugnante tocar.*' N u m dicionário poético
hands are dy'd w i t h blood's foul stain,/ A n d always foremost i n the hangman's
de 1657, eram descritos como "sebosos, sangrentos, assassinos.
tran. ( N . T ) ,v : • . r y i ' • ' •

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sofrimento às criaturas nossas irmãs. E m fins do século, esses natureza, 1811], forneceu a base para Vindication of natural diet
argumentos foram complementados por u m de fundo económi- [Defesa da dieta natural, 1812], do poeta Shelley.*'^* E m Salford,
co: a criação de animais era uma forma dispendiosa de agricul- no ano de 1809, os Cristãos da Bíblia foram fundados como um
tura, se comparada com o cultivo da terra, que produzia muito ramo cismático dos swedenborguianos por W i l l i a m Cowherd
mais alimento por acre.** (1763-1816) que, influenciado por argumentos que combinavam
De início, o vegetarianismo ganhou apenas uns poucos o humanitarismo e a preocupação com a saúde física, a busca de
adeptos temporários, tal como James Boswell, convertido quando religião gnóstica e a aversão aos hábitos sociais de beber vinho
tinha dezesseis anos pelo pitagórico escocês, John Williamson de e fazer alarido, fez do vegetarianismo condição de ingresso
Moffat, ou o futuro lorde Chesterfield, que, fazendo a faculda- e conseguiu trezentos membros.'" Entre eles estaria o livre-
de em T r i n i t y Hall em 1714, renunciou à carne durante algum -cambista e reformista parlamentar, Joseph Brotherton (1783-
tempo, muito impressionado com a oração de Pitágoras que leu -1857), cuja mulher escreveu Vegetable cookery [Culinária vegetal,
nas Metamorfoses de Ovídio.*' Benjamin Lay, quacre de Essex que 1821]. Foi t a m b é m Cowherd quem converteu W i l l i a m Metcalfe
emigrou para Filadélfia em 1731, possuía consciência tão sensível (1788-1862), que conduziu u m ramo da igreja a Filadélfia, onde
que não comia nenhum alimento, nem vestia qualquer roupa, por sua vez converteu, em 1830, Sylvester Graham (1794-1851),
obtidos às custas da vida animal (ou, ainda, às expensas do traba- que haveria de se tornar o apóstolo da reforma alimentar nos
lho escravo). O futuro ministro escocês, James Gillies, defendia a Estados Unidos do século XIX, devendo muito às obras de
doutrina convencional de que era ilegítimo matar animais, exceto W i l l i a m Lambe e outros autores ingleses do período."
por necessidade, mas, estudante em Aberdeen na década de 1770,
Na década de 1790, o vegetarianismo tinha tonalidades mar-
ele a levou à sua conclusão lógica: descobrindo que podia viver
cadamente radicais. Ritson gostava de ser tratado por "Cidadão
sem comida animal, ele a abandonou por completo.*^
Ritson", enquanto Oswald morreu lutando pelos jacobinos
Desde cerca de 1790, desenvolveu-se u m movimento vege- contra a rebelião da Vendeia. Richard Philips (1767-1840), que
tariano altamente articulado. Seus representantes mais proe- renunciara à carne com base em motivos humanitários por
minentes incluíam o antiquário Joseph Ritson (1752-1803), volta de 1780, foi republicano e fundou o Leicester Herald para
convertido por volta de 1772 pela leitura das reflexões de defender os direitos do homem. Foi preso em 1793 por vender
Bernard Mandeville sobre o abate de animais em The fable of o livro de T o m Paine e, embora feito cavaleiro em 1808, con-
the bees [A fábula das abelhas, 1714] e que depois publicou An servou suas simpatias radicais, dedicando u m de seus livros, em
essay on abstinence from animal food as a moral duty [Ensaio sobre 1826, a "Simon Bolívar, o Libertador"." O vegetarianismo pos-
a abstinência de comida animal como u m dever moral, 1802];
suía nesse período u m toque milenarista. Prometendo extirpar
o escocês radical John Oswald, autor de The cry of nature [O
da natureza humana a ferocidade ele atacava "a raiz de todos os
clamor da natureza, 1791], que aprendera o vegetarianismo
corn os hindus, quando serviu com u m regimento da Escócia
na índia; o impressor de Yorkshire, George Nicholson (1760- * N ó s podemos ter dúvidas quanto à seriedade da conversão de Shelley ao
-1825); e o médico londrino W i l l i a m Lambe (1765-1847), que "sistema pitagórico", se consideramos o tom de um convite dirigido em 1812
por sua mulher a uma amiga: "Com os cumprimentos da sra. Shelley à sra.
se tornou vegetariano por volta de 1807 e por sua vez conver-
Nugent, esperando ter o prazer de sua companhia ao jantar, às 17 horas, pois
teu seu paciente John Frank Newton, cujo livro posterior, em uma galinha está sendo preparada para sua refeição"; The letters ofPercy Bysshe
defesa de um regime vegetal, The return to nature [O retorno à Shelley, Roger Ingpen (org.), I (1909), 284n.

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inales", na opinião de Shelley; e W i l l i a m Lambe afirmava que, a carne, eu lhe respondo que tal visão não é tão repulsiva à
se os homens renunciassem a se alimentar de carne, não haveria natureza, mas à estima e ao bom-gosto. O que Deus per-
mais guerras. Para os convertidos, comer carne era "horrível", mite comer, a natureza permite matar e preparar; nem ela
"selvagem", "nada natural"; e eles estavam convictos de que viria se rebela mais ante a morte de um boi que o corte do feno
o tempo em que os carnívoros irregenerados perceberiam o seu ou do trigo. Mais ainda, enfim, dado que tudo foi feito para
erro." Mas boa parte do ímpeto subsistiu após o período de uso humano [...] ela nos dá liberdade para matar todas as
fermentação revolucionária. E m 1847, foi fundada a Sociedade coisas que possam contribuir à manutenção de nossa vida
Vegetariana da Grã-Bretanha, porém cinquenta anos depois o ou para preservar e restaurar nossa saúde."
n ú m e r o de seus membros não ultrapassava 5 mil.'*
Os primeiros vegetarianos exerceram, assim, pequeno apelo Por volta do final do século X V I I I , o argumento de que os
junto às massas. Sua inspiração era frequentemente literária, animais foram feitos somente para o uso do homem ainda era
muitos deles alegando terem sido convertidos pela leitura dos formulado, mas já não conseguia assentimento geral. M u i t o em
argumentos de Pitágoras ou Plutarco. Eles escreviam num tem- breve, ele desapareceria quase por completo.
po em que a carne era ainda, para muitas pessoas, u m precioso Intrépidos, muitos pensadores utilitários continuaram a
bem de luxo e, consequentemente, símbolo de posição social. defender que matar animais para alimento humano era total-
Atacando o rosbife eles se voltavam contra u m símbolo nacional mente lógico com a benevolência e virtude, desde que os bichos
apreciado, bem como contra o peso da opinião médica, que con- fossem cuidadosamente assistidos enquanto vivos, e mortos
tinuava a insistir que a ingestão de alguma carne era necessária com o m í n i m o de crueldade. Os animais, insistiam eles, não
à saúde humana. Sua causa foi também perturbada pela associa- eram capazes de antever sua morte, e não sentiam terror. Se
ção com grupos dissidentes, que obviamente não estavam em não fossem abatidos para alimento, dizia John Lawrence em
moda junto à elite. E verdade que vários tipos de religião esti- 1798, eles povoariam a Terra em excesso; assim, "em i n ú m e -
veram representados entre os primeiros vegetarianos: Thomas ros casos" era "um ato de misericórdia tirar suas vidas". Além
Forster (1789-1860) era católico; Lewis Gompertz, judeu; e disso, como salientava o não conformista Philip Doddridge,
Joseph Ritson, ateu. Mas seitas heterodoxas como os quacres, muitas pessoas sobreviviam criando e vendendo gado; o que
os Cristãos da Bíblia, os swedenborguianos e os behmeístas aconteceria com sua existência se o costume de comer carne
(depois teosofistas) eram desproporcionalmente salientes entre fosse, subitamente abandonado?'*
eles. Inevitavelmente, portanto, os "pitagóricos" tendiam a ser
Mas já não bastava dizer que vacas e ovelhas jamais teriam
vistos por seus contemporâneos como maníacos e excêntricos.
sido criadas por Deus se não se destinassem a ser mortas, pois,
N ã o obstante, eles representaram u m notável desafio à como observara o dr. Johnson em 1776, "a questão é saber se os
prática costumeira, para a qual o pensamento dominante já animais que suportam tais sofrimentos de vários tipos, para o
não tinha resposta pronta. Nos tempos elisabetanos, fora fácil serviço e o entretenimento do homem, aceitariam a vida sob os
Thomas Muffet refutar os vegetarianos clássicos invocando os termos em que a levam"." N o século XVIII, os defensores da ali-
ensinamentos antropocêntricos da época: mentação carnívora viram-se crescentemente forçados a retor-
nar ao mandato do Antigo Testamento. O direito de matar para
Enquanto Plutarco aponta como é repulsivo ver açouguei- comer, ressaltava Francis Hutcheson, era "tão contrário à mise-
ros e cozinheiros salpicados de sangue matando e limpando ricórdia natural do coração humano que não se pode pensar que

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uma autorização expressa por meio de revelação fosse supérflua". râneo sobre Joseph Ritson, "seguir o seu plano de abstinência
Sem a autoridade explícita das Escrituras, considerava W i l l i a m era absurdo, e quase impossível; todavia, certamente é uma
Paley, o direito do homem a matar animais para alimento seria desagradável necessidade o que nos leva a fazer parte de um sis-
de difícil justificação, senão impossível. Desde a década de 1680, tema no qual [...] o poderoso existe oprimindo o fraco".*' John
quando Thomas Tryon questionara a legitimidade de comer
Tweddell (1769-99), erudito em cultura clássica de Cambridge
carne, os defensores do status quo fundamentavam sua defesa
que renunciou à carne como alimento, por razões de consciên-
no precedente bíblico.'** Mas, num mundo leigo, os argumentos
cia, declarava-se "persuadido de que não temos outro direito,
baseados somente nas Escrituras mostrar-se-iam cada vez menos
senão o do mais forte, para sacrificar a nossos monstruosos
eficazes. Como sensatamente observou Hutcheson, se havia for-
apetites os corpos de coisas vivas, de cujas qualidades e rela-
ça no argumento humanitário contra a alimentação carnívora,
ções somos ignorantes".*' N ã o surpreende que os vegetarianos
então qualquer autorização a matar, pela via da revelação, pare-
tivessem tanta confiança em que as idades futuras viriam a
ceria inacreditável.''^
compartilhar sua convicção de que a alimentação carnívora é
Tudo o que restava era a visão hobbesiana, justificando
que a espécie humana fizesse todo o necessário à sua sobre- uma abominável barbaridade.
vivência. Os direitos que os seres brutos tinham sobre nós, Entretanto, eles mostravam desprezo pelo sentimentalis-
declarava Espinosa, nós tínhamos sobre eles. A objeção ao abate mo dos que aceitavam comer mas não matar, particularmente
de animais "baseava-se em superstição vazia e em feminina quando conheciam o animal em questão. Conforme observava
brandura, e não na justa razão". A civilização seria impossível Mandeville em 1714, agora havia muitos comedores de carne
se a humanidade agisse com justiça frente à natureza; o homem que se mostrariam relutantes em torcer o pescoço de uma
não podia sobreviver sem ser um predador.*" Era esse o argu- galinha. Quando o segundo duque de Montagu conversava
mento que superara os escrúpulos de lorde Chesterfield quanto com u m visitante em Boughton, passou correndo u m rebanho
a comer carne. "Depois de séria reflexão, tornei-me convencido de ovelhas. "O duque admirou a graça, a simplicidade, a ino-
de sua legitimidade, partindo da ordem geral da natureza, que cência dos animais", mas confessou que "quando por acaso via
instituiu universalmente a pilhagem do mais fraco como u m de alguém matando u m deles, voltava a cabeça e não podia supor-
seus princípios básicos." "A filosofia", salientava David Hartley, tar a visão." Era essa a farsa denunciada pelo poeta Nathaniel
"recentemente descobriu tão inumeráveis ordens de pequenos Bloomfield:
animais em partes da dieta antes consideradas vazias de vida, e
tamanha extensão de vida no reino vegetal, que parecemos viver Bem pode aquele que come a carne do cordeiro
sob a perpétua necessidade, quer de destruir as vidas de algu-
[...]
mas das criaturas, quer de perecermos nós mesmos." A natureza
Alardear sua humanidade, dizendo: "Minhas mãos
toda, concordava Erasmus Darwin, era "um enorme matadou-
Jamais mataram um cordeiro"; e censurar como crime
ro". De qualquer modo, o homem era uma espécie superior e
O ofício cruel e necessário do açougueiro.''"^*
seus interesses deviam v i r em primeiro lugar.*'
O realismo brutal dessa visão chocava-se agudamente com
* N o original: W e l l might he who eats the flesh of lambs/ [...]/ Boast his
os princípios de benevolência e boa índole ao qual era agora humanity, and say " M y hand/ Ne'er slew a lamb"; and censure as a crime/ T h e
hábito fazer protestos de louvor. Como escreveu u m contempo- butcher's cruel, necessary trade. ( N . T.)

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Em 1756, Gilbert W h i te plantou quatro tílias em Selborne 5. C O N C L U S Ã O
entre sua casa e o terreno fronteiro de um açougue, "para escon-
O constrangimento diante da alimentação carnívora for-
der da vista o sangue e a sujeira". Sua ação expressava u m esforço
nece, assim, u m exemplo da maneira pela qual, em fins do sé-
crescente, não de abolir os matadouros, mas de escondê-los do
culo X V I I I , um n ú m e r o crescente de pessoas chegou a conside-
olhar público. O dr. Johnson, que tinha "uma espécie de horror
rar o predomínio do homem sobre a natureza como u m dado
às matanças", dizia "recear que houvesse matadouros em mais
cada vez mais oposto às suas sensibilidades morais e estéticas.
ruas de Londres do que supomos". Já na Inglaterra elisabetana
Tal era o dilema humano: como reconciliar as exigências físi-
havia pessoas "sensíveis" demais para poderem ver animais sendo
cas da civilização com os novos sentimentos e valores que essa
abatidos. Por volta de 1714 Mandeville podia escrever, sobre a
mesma civilização tinha engendrado. Diz-se, com demasiada
crescente aversão à matança de animais, que "nesse comporta-
mento, parece-me, há algo próximo a uma consciência culpada".*' frequência, que as sensibilidades e a moral são mera ideologia:
N o passado fora hábito servir leitões, vacas, lebres e coelhos à uma racionalização conveniente do mundo tal como ele é. Mas,
mesa acompanhados de suas cabeças, mas ao se chegar ao final no início do período moderno, a verdade era quase o oposto,
do século XVIII parece ter havido uma tendência crescente a pois, por uma lógica inexorável, emergiram aos poucos atitudes
ocultar os traços mais reconhecíveis da criatura abatida. "Os ani- face ao mundo natural essencialmente incompatíveis com a
mais usados para alimento", escrevia W i l l i a m Hazlitt em 1826, direção em que se movia a sociedade inglesa. O crescimento das
"devem ser ou bastante pequenos para passarem despercebidos, cidades conduziu a u m novo anseio pelo campo. O progresso da
ou então [...] não devemos deixar que a forma exposta nos reprove lavoura fomentou u m gosto por ervas daninhas, montanhas e
a gula e a crueldade. Detesto ver u m coelho costurado, ou uma natureza nã o dominada. A recém-descoberta segurança diante
lebre trazida à mesa na forma que exibia quando viva."** Matar dos animais selvagens produziu u m empenho cada vez maior
animais para comida agora era uma atividade diante da qual um em proteger aves e conservar as criaturas selvagens no seu es-
número cada vez maior de pessoas sentia-se esquivo ou embara- tado natural. A independência económica face à energia animal
çado. A ocultação dos matadouros ao olhar público tornou-se um e o isolamento urbano em relação aos bichos de criação nutri-
recurso necessário para evitar um choque excessivamente forte ram atitudes difíceis, senão impossíveis, de se conciliar com a
entre a realidade material e as sensibilidades privadas. exploração dos animais que dava o sustento à maior parte das
pessoas. Doravante, uma visão cada vez mais sentimental dos
animais enquanto bichos de estimação e objetos de contempla-
ção iria acomodar-se mal com a sombria realidade de um mun-
do no qual a eliminação das "pestes" e a criação de animais
para abate ia-se tornando cada dia mais eficiente. Oliver Gold-
smith escrevia, de seus contemporâneos, que "eles se apiedam e
se ahmentam dos objetos de sua compaixão".' O mesmo podia
ser dito das crianças de hoje que, alimentadas por uma dieta de
carne e protegidas por uma medicina desenvolvida através de
experimentos com animais, levam, não obstante, bichinhos de
pelúcia para a cama e prodigam afeição a cordeiros e póneis.

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Para os adultos, os parques naturais e as áreas preservadas cum- didas opiniões diferentes. Mas a defesa da preservação do
prem uma função que não é diferente da que os bichos de pelú- cenário natural e da vida selvagem, da fauna e da flora
cia têm para as crianças; são fantasias que cultuam os valores inglesas, pode se basear em motivos que visam apenas ao
mediante os quais a sociedade, como um todo, não tem condi- bem-estar dos seres humanos, e são somente tais argu-
ções de viver. mentos que pretendo apresentar. Preservar a vida dos
Por volta de 1800, o confiante antropocentrismo da Ingla- pássaros do campo é uma exigência que atende ao inte-
terra Tudor tinha dado lugar a u m estado de espírito muito resse espiritual da raça humana, mais particularmente de
mais confuso. O mundo não podia mais ser visto como feito sua parte inglesa, que encontra tanta alegria em observar
somente para o homem, e as rígidas barreiras entre a humani- e ouvir as aves.*
dade e outras formas de vida haviam sido bastante afrouxadas.
Durante os levantes religiosos das décadas de 1640 e 1650 as Como sugeria Trevelyan, não era só para o bem das próprias
pessoas se chocaram, ouvindo sectários — como o ra^í^r Jacob criaturas, mas em benefício do homem, que os pássaros e ani-
Bauthumley — dizer que "Deus está em todas as criaturas, mais seriam protegidos em santuários e em parques de vida
homens e animais, peixes e aves, e tudo o que é verde".' Mas, selvagem. Em 1969, as Nações Unidas e a União Internacional
em forma secularizada, esse tipo de panteísmo iria generalizar- pela Preservação da Natureza definiam "preservação" como "o
-se durante o século xvill, ao se insistir em que todos os ele- uso racional do meio ambiente a fim de alcançar a mais elevada
mentos da criação têm direito à vida; e que a própria natureza qualidade de vida para a humanidade".'
tem valor espiritual intrínseco. N e m todos acreditavam, agora, Mas, já no início dos tempos modernos, havia algumas
que a espécie humana é a única sagrada. Alguns românticos pessoas — talvez supersensíveis — que estavam dispostas a
preferiam a visão mística outrora condenada de que "toda erva ir mais adiante. Para elas, era cada vez mais difícil aceitar a
daninha é santa e cada arbusto é divino". Conforme a expressão primazia das necessidades humanas, quando isso exigia i n f l i -
de W i l l i a m Blake: "Tudo o que vive é sagrado".'* gir dor a animais domésticos, ou eliminar espécies inteiras de
Por certo, a maioria das pessoas, na prática, tal como o p r ó - animais selvagens. E m tempos mais recentes essas dificuldades
prio G. M . Trevelyan, mantinha fé na primazia dos interesses foram amplamente percebidas. Hoje há autores que se referem
humanos, ainda que lamentando o efeito do progresso material ao extermínio do lobo como um "pogrom" ou "holocausto";" e
sobre o mundo da natureza. periódicos jurídicos que trazem artigos discutindo se as árvores
têm, ou não, direitos.'
Saber se as árvores ou os animais devem ser conservados Assim, o começo do período moderno gerou sentimen-
"por seus próprios méritos" [escrevia Trevelyan] é uma tos que tornariam cada vez mais difícil os homens manterem
questão interessante, a respeito da qual podem ser defen- os métodos implacáveis que garantiram a dominação de sua
espécie. Por u m lado, eles viram um aumento incalculável do
conforto, bem-estar e felicidade materiais dos seres humanos;
* Embora Coleridge mais tarde viesse a apontar "a confusão vaga e impre-
por outro lado, davam-se conta de uma impiedosa exploração
cisa [mistyl e n ã o mística [mystic], de Deus com o M u n d o e o correlato culto
a natureza" como "o traç o das obras poéticas de W o r d s w o r t h , que mais desa- de outras formas de vida animada. Havia, dessa maneira, u m
grada, por doentio, e que denuncio, por contagioso"; Collected letters of Samuel conflito crescente entre as novas sensibilidades e os fundamen-
laylor Coleridge, Earl Leslie Griggs (org.), Oxford, 1956-71, cap. v, p. 95. tos materiais da sociedade humana. Uma combinação de com-
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promisso e ocultamento impediu até agora que tal conflito fosse
plenamente resolvido. É possível afirmar ser essa uma das con-
tradições sobre as quais assenta a civilização moderna. Sobre as
suas consequências finais, tudo o que podemos é especular.
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