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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO PEDAGÓGICO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLÍTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMA


TENTATIVA DE ALIANÇA COM O INVISÍVEL

VITÓRIA
2001
SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLÍTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMA


TENTATIVA DE ALIANÇA COM O INVISÍVEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação do Centro Pedagógico
da Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para a obtenção do Grau
de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª. Dr.ª Maria Elizabeth Barros
de Barros

VITÓRIA
2001
SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLÍTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMA


TENTATIVA DE ALIANÇA COM O INVISÍVEL

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________________________
PROFª. DR.ª MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS
ORIENTADORA

___________________________________________________
PROFª. DR.ª DENISE MEYRELLES DE JESUS

___________________________________________________
PROFª. DR.ª REGINA DUARTE BENEVIDES DE BARROS

___________________________________________________
PROF. DR. NELSON ANTÔNIO ALVES LUCERO

VITÓRIA, ______ DE ____________________ DE 2001.


Dedico...

à Escola Pública.
AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que, intercessores, possibilitaram a realização deste trabalho, dando


expressão e forma às inquietações.

Especialmente:
 ao espaço público de educação pela oportunidade que me deu de gerir este
trabalho;

 à Maria Elizabeth Barros, amiga muito querida, que, com sua força gigante, sempre
me ensina a apostar nas utopias;

 a Robinson Lima, meu companheiro de tantos anos na construção de caminhos


sempre possíveis;

 à Lierte Gurtler que, com sua amizade, ajudou a construir literalmente cada
palavra deste trabalho;

 à Alina Bonella que cuidou do texto com extrema dedicação e suavidade;

 à Denise Meyrelles que sempre me trazia contribuições inestimáveis em cada


encontro nosso;

 a Nelson Lucero que, em nossas alianças, foi fundamental;

 à Regina Benevides, cúmplice-intercessora em um percurso de muitos anos;

 a todos os integrantes da escola, companheiros de viagem na invenção da educação


escolar;

 aos alunos do Curso de Psicologia da UFES, meus grandes e queridos


intercessores;

 aos meus filhos, Pedro, Bruno e Rafael, pelo cotidiano carinho solidário;

 ao meu doce e amigo pelotão de fuzilamento que provocou o pontapé inicial: Beth
Aragão, Beth Barros e Ana Lúcia Heckert.
...buscando lançar luz sobre o que deve ser entendido por invenção, retomo a
etimologia da palavra latina invenire, que significa encontrar relíquias ou restos
arqueológicos (Stengers, 1983). Tal etimologia indica o caminho a ser seguido: a
invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. Esta é
somente sua fenomenologia, a forma como ela se dá à visibilidade. A invenção
implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no
avesso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de
experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos
inesperado, com a matéria (Kastrup, 1997, p. 210-211).

O fracasso e o sucesso são dois impostores (Jorge Luiz Borges, informação


oral).

Uma prática política que persiga a subversão das subjetividades de


modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes, deve
investir o próprio coração da subjetividade dominante, produzindo
um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la. Isto quer dizer que ao
invés de pretendermos a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à
consciência), temos que retomar o espaço da farsa, produzindo,
inventando subjetividades delirantes que, num embate com a
subjetividade capitalistica, a façam desmoronar (Guattari, 1986, p.
30).

A partir do momento em que há uma relação de poder, há


uma possibilidade de resistência. Jamais somos
aprisionados pelo poder, poderemos sempre modificar
sua dominação em condições determinadas e segundo
uma estratégia precisa (Foucault, 1979, p. 241).
SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................... 9

ABSTRACT ..................................................................................................... 10
.

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11

1 CONSTRUINDO FERRAMENTAS AO AFIAR O TRABALHO: A DIMENSÃO


MICROPOLÍTICA ........................................................................................ 22

1.1 ARQUEOLOGIA OU ESSA CORTINA DE ENUNCIADOS 23


.............................................

1.2 GENEALOGIA E O MENINO-DA-SINETA 38


........................................................

1.3 CONTROLE E VELOCIDADE: PEDAÇOS DO CONTEMPORÂNEO 56


..............................

1.4 SUBJETIVIDADES EM USINAGEM 61


.................................................................

1.5 TUDO É POLÍTICO, AO MESMO TEMPO MACRO E 74


MICROPOLÍTICO ......................

2 A POSITIVIDADE DO FRACASSO ESCOLAR 88


.................................................

2.1 ALGUMAS PAISAGENS DAS APRENDIZAGENS 89


................................................

2.2 FRACASSO ESCOLAR: “CUTUCANDO” AS EXPLICAÇÕES 101


.................................

3 ESCOLA DE MASSA E FRACASSO ESCOLAR 112


................................................

3.1 ESCOLA E LIBERALISMO – E EU COM ISSO? 114


.................................................

3.2 ESCOLA/CAPITALISMO E NEOLIBERALISMO: ECONOMIAS 120


..............................

3.3 ESCOLA-FAMÍLIA-MEDICINA HIGIENISTA – INFÂNCIA, OU O QUARTETO EM 131


“SI”....

3.4 ESCOLA E PRÁTICAS PSI, OU A MENOR DISTÂNCIA POSSÍVEL ENTRE O OLHO E


O UMBIGO
145
...................................................................................................

3.5 ESCOLA E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, OU COM A PALAVRA O PROJETO DE


REALIZAÇÃO HUMANA ............................................................................. 160
4 CORTES E COSTURAS 177
................................................................................

4.1 PESCANDO A REDE: FRACASSO ESCOLAR EM UMA VISADA MICROPOLÍTICA 178


.......

4.2 “MEU MUNDO CAIU! IGUAL ÀQUELA MÚSICA” 187


.............................................

4.3 FRACASSOS E SUCESSOS OU SUCESSOS E FRACASSOS 190


.....................................

4.4 A VIDA PULSA NA ESCOLA 205


.........................................................................

5 AFIRMANDO TRÊS HISTÓRIAS-PROPOSIÇÕES NA ALIANÇA COM O


INVISÍVEL ................................................................................................ 215
.

5.1 O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE 215


...........................................................

5.2 TIRAR PARTIDO... OUSAR E ABUSAR OU “O QUE É DAR CERTO? É NÃO PARAR
DE CUTUCAR” ........................................................................................
219

5.3 PLANTANDO RIZOMA NAS ÁRVORES ........................................................... 233

6 CONCLUSÃO 238
...............................................................................................

7 246

REFERÊNCIAS .....................................................................................
.......
RESUMO

Fracasso escolar é a denominação que tem sido utilizada para fazer referência
ao “insucesso” escolar do aluno, o que, na maioria das vezes, culmina com
reprovação/evasão escolar. Este trabalho procura trazer o fracasso escolar em uma
dimensão micropolítica de análise. Essa dimensão diz respeito ao plano mesmo da
constituição de sujeitos/objetos – o objeto fracasso escolar, sujeito do fracasso. Fazer uma
análise micropolítica em face ao objetivo proposto é adentrar no campos das práticas que,
como tais, constroem e descontroem sujeitos/objetos; não sendo estes, portanto, por nós
concebidos como naturais, com existência a priori. Por meio da micropolítica,
interrogamos os regimes de verdade constituídos. Apontamos alguns acontecimentos que,
ao emergirem em uma intrincada rede, dão visibilidade e dizibilidade à repetência/evasão
escolar. Ao trazermos o discurso liberal, os arranjos capitalísticos em suas economias, a
estreita relação família nuclear higienizada, infância particularizada e tudo isso em uma
genealogia da escola de massas, dizemos desses acontecimentos na emergência do
fracasso escolar, e da Pedagogia que se coloca em íntima relação com a Psicologia.
Percorremos também algumas paisagens da aprendizagem em suas abordagens e
explicações que têm sido construídas em relação ao fracasso escolar. Nesse cenário,
desenhamos dois rostos do fracasso escolar: um liberal, outro neoliberal. O primeiro
vinculado à sociedade disciplinar, o segundo à sociedade de controle. Todos esses
acontecimentos supõem lutas permanentes que desmancham seus contornos dando
passagem a movimentos de resistência, a singularizações, aos movimentos do desejo
revolucionário sempre político. Contemplando o espaço da diferença pura, engendram
experimentações diversificadas, outras produções de sujeito/objeto não reportadas a
modelos (que por muitas vezes aprisionam a expansão de mundos). A partir dessa
ótica/ética de análise, afirmamos que o fracasso escolar pode estar “cutucando” uma
experimentação para além do fracasso/sucesso e dizemos que esse é um funcionamento
que convida à construção de outras práticas. Ao desestabilizar fôrmas delineadas no viés
da subjetivação/objetivação capitalística, ou seja, ao inquietar uma certa aprendizagem,
um certo aprendiz, a educação escolar, uma inteligência, um professor, uma infância, uma
escola... pode estar sinalizando um devir que pede outros encontros. Se o fracasso escolar
é uma produção inscrita em uma possibilidade de vida, para desmanchá-lo, outra
possibilidade de vida terá que ser inventada. Construir saídas é inventar novas entradas,
novos questionamentos e experiências, o que já nos espreita em sua realidade concreta,
real, mesmo que invisível. Se quisermos outras experiências educativas são outras práticas
que devem ser fabricadas na aliança com esses blocos de invisíveis que pedem passagem,
expressão e forma já que vazam, escapam, fogem às modelizações. É preciso inaugurar
outra ética na construção da vida que como tal é abertura à diferença.
ABSTRACT

Scholar failure is the name that has been used to make reference to the
unsuccessful student, what most of the times ends with disapproval and escape from
school. These work tries to analyze the scholar failure in a micropolitic dimension. This
dimension concerns about the institution of subjects/objects – the scholar failure object,
failure subject. To make a micropolitic analysis facing the described goal is to describe
practices that construct and deconstruct subjects/objects; not conceived here as natural
things, with an existence a priori. Through the micropolitic we question the crystallized
truth rules. We will point out some events that, when emerging in an intricated web, will
give visibility and make us able to talk about disapproval/escape school. When we bring
the liberal speech, the capitalistic arrangements in their economics, the close relationship
nuclear higienizated family, particularizated childhood and all these things in a mass
school genealogy, our goal is to link these events to the emerge of the scholar failure and
the pedagogy that is in a close relation with the psychology. We will run also, some
scenery of the learning in their approaches and explanations that have been constructed
about the scholar failure. In this scene we draw two faces: one liberal, one neo-liberal. The
first, linked to disciplinary society, the second linked to the control society. All these
events suppose permanent fights that break their shapes, what gives passage to resistence
movements, from the singularization to the always politic revolutionary wish. Watching
the environment of pure difference come out many experimentation’s, different types of
subject/object, not linked to models (that many times tie the expansion of worlds). From
these analysis we can say that the scholar failure can be “prodding” an experimentation to
beyond of failure/success and we say that this is a kind of movement that invite to a
construction of different practices. To upset drawn shapes in the capitalistic way of
subjetivation/objetivation to disturb some kind of learning, some kinds of student,
education, and intelligence, a teacher, a childhood, a school ... can be pointing some
movements that asks for other encounters, which concept the failure like a way of
potency, not impotency. If scholar failure is a production linked to a way of life, to erase it,
another way of life should be created. To build “ways out” is to construct new ways, new
questions and experiences, thing that are around us, in a real and concrete existence,
invisible, however. If we want another kind of educational experience, we must shape
these new practices with this invisible elements that ask for passage, expression and form
that already escaped, run from “patterns”. To inaugurated other ethic in the construction of
life is na opening to the difference.
INTRODUÇÃO

O trabalho de pesquisa que passamos a relatar foi realizado em uma escola da


rede pública municipal de ensino de Vitória/ES, no turno vespertino, que atende da pré à 8ª
série.

Durante aproximadamente seis meses, estivemos mergulhada no cotidiano


escolar junto aos alunos, professores, pedagogos, serventes, porteiros, bibliotecária,
secretárias, diretora, coordenadora...

Realizamos entrevistas e observações com os integrantes da escola, isoladas


ou conjuntamente, nos diferentes espaços da escola: salas de aula, sala de professores,
portão, secretaria, biblioteca, corredores, refeitório e também durante o recreio, eventos
culturais e comemorativos, horário de planejamento, dentre outros.

Tivemos alguns encontros grupais com alunos, professores, pedagogos,


separados ou simultaneamente, nos quais nos debruçávamos sobre o dia-a-dia marcado por
tantos e tão ricos movimentos.

O presente trabalho traz algumas análises do que foi por nós vivido em
diferentes modulações de intensidades durante esse percurso.

Nosso propósito não foi, pela pesquisa, traçar um perfil dessa escola,
particularizando-a; nem tampouco fazer qualquer juízo de valor. Nosso objetivo foi
investigar alguns movimentos que vão construindo o dia-a-dia escolar – seus objetos,
sujeitos, relações, seus funcionamentos.1 Estivemos atenta especialmente ao denominado
fracasso escolar, no que se encontra naturalizado2 e também desmanchado em seus
contornos.

O leitor, com certeza, irá identificar e/ou desconhecer muito do que aqui será
apresentado, porém nosso intuito, se fosse possível orientar a leitura, é perguntar: o que o

1
Deleuze e Guattari não se referem a um funcionalismo apoiado na harmonia das partes que se integram
homogeneamente. A noção diz respeito à ação de uma máquina em seu caráter produtor, diz do próprio
processo de produção.
2
“Referente à natureza; produzido pela natureza, espontâneo; em que não há trabalho do homem; que segue
a ordem regular das coisas” (Bueno, 1981, p. 765).
presente trabalho põe para funcionar? O que produz? Que inquietações dispara? Quais
seus efeitos?

Objetivamos produzir inquietações a partir desses dos procedimentos ou


formas pelas quais nossas histórias tornam-se verdadeiras. Almejamos exercer a liberdade,
que no viés de Foucault, é o movimento de questionamento das práticas por meio das
quais somos constituídos.

Por prática, entende-se (com Foucault) um corpo de discurso e procedimentos


que constrói sujeitos e objetos fazendo vigorar verdades. Têm (as práticas) caráter
heterogêneo e circunstancial, ou seja, encontram-se práticas diferenciadas, permanentemente
em luta, que são engendradas a partir de condições sócio-histórico-políticas pontuais
(imanentes, contigentes). Sendo construídas e datadas, fazem aparecer objetos e sujeitos
singulares (por muitas vezes tomamo-los como definitivos, essenciais, naturais). Esse
caráter material das práticas nos convida a adentrar nesse campo do que assim é dito, o que
assim é feito (dizer é fazer) para aí encontrarmos as naturalizações objetivas/subjetivas.
Almejamos, portanto, trazer, investigando o que as pessoas fazem, as verdades construídas,
seus efeitos nas lutas que encerram.

As práticas são também anônimas e relativamente autônomas, quer dizer, não


são planejadas ou dirigidas, entretanto pode-se relutar em assenti-las. É aí que se situa o
exercício de liberdade; uma liberdade que é política, pois faz a análise crítica das
subjetivações/objetivações em suas verdades tácitas, possibilitando novas práticas que
expandam mundos.3

Rompendo com uma tradição filosófica que pensa o sujeito como natureza
humana – uma natureza concebida como real ou que deva ser realizada – e o objeto como
um já-dado a ser descoberto pelo sujeito – que também poderia desvelar a verdade contida
em si, explicitamos que sujeito e objeto são construídos ao mesmo tempo pelo o que é o
fazer em relação a eles: pelas práticas.

Foucault (1974, p. 6) enseja “...mostrar como as práticas sociais podem chegar


a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos

3
Expandir mundos significa expandir os limites da vida modelizada.
conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeito e
de sujeitos de conhecimento...”.

Nosso trabalho, ao invés de procurar verdades intrínsecas ao objeto fracasso


escolar, foi um exercício de ir estendendo na superfície as práticas que o reificam, assim
como aquelas outras que rompem seus contornos. Foi um ir conectando-se com a
dispersão de acontecimentos4 em suas múltiplas direções.

Mergulhamos, então, nos interstícios da escola de corpo inteiro, não só de


cabeça. Estávamos ali para o que desse e viesse.

Para tal, todos os dias, levávamos caderno e uma caneta para as anotações. Em
um breve espaço de tempo o caderno já provocava...5

“Falta muito para acabar sua lição?”

“Você já escreveu tudo isso?”

“Que letra bonita!”

“É pra completar o caderno?”

“Um dia vou escrever tanto assim e tão rápido como você!”

Um determinado contorno de escola se fazia nesse momento: o aprendizado da


escrita, o cumprimento da lição, a letra bonita, a boa performance, o futuro.

Todos os dias uns ou outros se preocupavam com nosso dever – assim


chamavam – e interessavam-se pelo andamento dos trabalhos.

“A gente sabe que é difícil fazer um trabalho grande assim!”

“E depois, a gente vai entrar de férias, e se você tiver alguma dúvida?”

Talvez não percebamos bem o quanto a aprendizagem se efetiva em uma luta


sem fim na qual estão em jogo construções e desconstruções.

4
Deleuze e Guattari dizem que a matéria das coisas é constituída de forças; o modo como essas forças fazem
composições, decompõem-se e criam novos arranjos é que os autores denominam “acontecimento”.
5
A frases que se seguem como as que serão trazidas no decorrer do trabalho, entre aspas e em itálico, são
falas dos diferentes integrantes da escola.
Tornamo-nos muito cúmplice6 em torno do desafio que era para eles começar a
escrever e para nós... começar a escrever também.

Outros7 se continham em fazer comentários, embora, volta e meia, olhares


compridos se lançassem em direção às folhas de papel. O que estaria escrito? Para quê?

Não só o caderno, mas também as falas e outras atitudes de todos estariam em


nossas mãos? Que saber seria esse que passaríamos a deter e eles não? O que faríamos
com tudo isso?

Atualizava-se8 aí uma relação meio incômoda de nossa parte que os sorrisos


não conseguiam esconder. Um incômodo que víamos com bons olhos, pois, nesse
movimento, resistíamos à captura pelos “especialismos”.9

Deteríamos um saber e o sonegaríamos a eles? Um saber que só nós teríamos?

Ainda mais um saber que tratava do que eles “confessavam”?

Saber/não saber, exame, registro, confissão: outro contorno de escola


delineava-se.

O caderno circulava pelos interessados em lê-lo; isso ora era engraçado para
muitos, como se fosse descabido, já que ocupavam outro lugar diferente do nosso, ora essa
era uma prova de que não teríamos nada a esconder. Não precisaria haver segredo. Ou era
uma estratégia que utilizávamos para seduzi-los, aplacando as desconfianças, e assim
colaborariam, desnudando sem preconceitos suas histórias? Esfera pública, esfera privada:
outro esboço que aparecia cotidianamente.

Reiteradas vezes explicamos o teor e o objetivo da pesquisa. Mas, não era


questão de explicar mais, não havia qualquer obscurecimento de sua materialidade; o
caderno com o qual transitava por todos os espaços da escola já produzia.
6
No caso, referimo-nos a cumplicidade entre nós e os alunos das séries iniciais. Durante o percurso do
trabalho, porém, cumplicidades estabeleceram-se menos entre pessoas quaisquer e mais entre movimentos
que apostavam na expansão de mundos.
7
Esses outros se referem aos diferentes integrantes da escola, não só aos alunos.
8
Pôr em ato.
9
Aqui não nos referimos aos especialistas (de formação), mas a um especialismo em nós que nos “autoriza”
a saber o que é melhor para o outro, qual sua verdade, invalidando o saber-fazer desse outro.
Algumas produções ganhavam clara expressão e forma.

Como pauta de reivindicação:

“Escreve aí, tia, precisa de mais divertimento na escola!”

“Já pôs aquela frase que eu disse que tinha que diminuir o tempo de aulas?”

Como lugar de construção de conhecimento:

“Tão legal falar dessas coisas, pensar nelas, estava enferrujada! Agora
falando, pensando me toco de umas coisas interessantes.”

“Gostei muito de ser entrevistada, gostei do papo, a gente aprende muito no


que vai falar, explicar para o outro, dá uns insights!”

A alegria de conversar, trocar idéias e nisso construir outras era constante.


Aliás, muitas vezes em que isso acontecia na escola as pessoas ficavam bastante contentes.

Como lugar de reconhecimento de verdades:

“O menino é assim, sem limites, porque a família não dá base. Pode ver que
no final da pesquisa vai sair isso aí. Não tem outra!”

“Por que você quer pesquisar sobre fracasso escolar? Já se sabe o que causa
esse problema!”

“Isso aí é evidente, só não enxerga quem não quer!”

Como lugar de exercício da censura:

“Não põe isso, não!”

“Agora pára de escrever.”

“Não escreve isso, pelo amor de Deus!”

A censura mais produz do que impede.

Como lugar de desmanchamento de crenças:


“Você sabe a página que escreveu o que eu disse? Volta lá e risca, tem outras
coisas que me toquei outro dia!”

“Tá certo que todo mundo fala essas coisas, mas eu não acho nada disso,
aliás não acho é nada!”

Perguntar pode ter esse caráter de desmanchar evidências.

Como lugar de ameaça:

“Você está vendo muita coisa de mim? Ai, meu Deus! O que você vai dizer da
gente?!”

“Como você vai saber quem disse o quê, se você não anota quem foi?”

A essa questão respondíamos que não nos interessava quem disse, mas o que
está sendo dito e como – ao que a pessoa retrucou: “Que bom! Se eu disser bobagem
ninguém vai saber que fui eu!”

O lugar do especialismo era bastante intensificado, preocupações a esse


respeito foram constantes:

“Falei certo? Era isso que era para falar?”

“Fui bem? Fala a verdade!”

“Não entrevista ele, não, porque ele e burro!”

“Entrevista aquele ali, ele é o melhor aluno da sala.”

“Soube responder direitinho?”

“Eu não entendo disso, não [sobre fracasso escolar], quem sabe te responder
é a supervisora ou a orientadora. Vai lá naquela sala e pergunta pra elas.”

Produção de corpos competentes para falarem da competência/incompetência,


então também produção de corpos incompetentes para construírem saber acerca de ambas –
e que assim se produzem como ambas, isto é, dois. Prosseguimos, desse modo,
classificados, agrupados, produzidos como capazes/incapazes.
Como lugar de reconhecimento profissional:

“Nossa! Até me animei. Ser professora ainda é uma coisa muito legal,
insubstituível.”

“Apesar de tudo, nosso trabalho é muito importante.”

Não era sem encantamento que discorriam em detalhes sobre seus fazeres,
orgulhosos “apesar das dificuldades” (sic). À medida que falavam, seu trabalho parecia
fazer sentido e eles revigoravam-se.

Como lugar de esperança:

“Legal, uma pesquisa, pode vir a ajudar a gente.”

“Alguém de fora vê melhor algumas coisas e pode dar uns toques.”

Outros lugares não menos intensivos o caderno “disparava”: de conversar para


curtir um outro tempo – e não passar o tempo; de falar das coisas da vida, das relações com
filhos, namorados, pais, maridos, das brigas com os amigos, das notícias da TV, da
precarização do trabalho, das dificuldades financeiras, das tarefas domésticas, das alegrias e
decepções, dos planos para o futuro ou da falta de ambos; de se queixar dos tempos
neoliberais, da qualidade total com a intensificação máxima do ritmo de trabalho.

Lugar também de fazer cera, resistindo ao esquadrinhamento espaço-temporal


tão presente no contorno escolar.

Outros delineamentos se traçam, agora dizem do tempo e do espaço que


construímos, aliás, para as entrevistas, diziam ser o tempo escasso, mas inventávamos
pedaços de tempo, aqui, acolá com uma certa alegria moleca, sem dúvida, como o fazem
potente e cotidianamente.

As observações também causavam inquietações nas mesmas direções das


entrevistas:

“Nossa, hoje sou eu a ser observada! Coitada de mim!”

“Pode observar à vontade, já vi que você é uma pessoa amiga.”


“Você depois me fala, tá!”

“Você veio observar a professora, ou a gente?”

O trabalho foi se fazendo nas interseções, entre 10 nós, constituindo-nos,


atravessado pela persistência e pela força do movimento – menino-do-porta-lápis-azul.

***
Todos os dias ao chegar à sala de aula, sentava-se na última carteira da fileira
central – tendo o cuidado de distanciá-la uns setenta centímetros a mais da carteira da
frente. Durante um longo e zeloso tempo, arrumava com especial capricho todos os seus
lápis de cor, canetinhas, borrachas, lápis preto, apontador, régua, corretivo e outros
instrumentos de trabalho em seu vistoso porta-lápis azul de três compartimentos verticais.
Fazia isso até que os dispusesse de forma a agradar-lhe completamente. Seus olhos
brilhavam, seu corpo suando expectativa preparava-se para agir – já agia – era pura
intensidade.

Todos os dias o menino repetia a operação com o mesmo esmero do dia


anterior.

Será hoje? O que será?

E lá íamos nós com o nosso caderno (já não é mais necessário o artifício).

Será hoje? O que será?

A questão do fracasso escolar há muito vem ocupando os debates no campo da


educação, em particular da educação pública formal.

Fracasso escolar é a denominação que tem sido utilizada para fazer referência
ao “insucesso” escolar do aluno. Dificuldades na aprendizagem formal, desinteresse no
processo de escolarização, indisciplina, dificuldade em responder adequadamente às
exigências escolares, baixas notas, conceitos deficientes que culminam muitas vezes com
a reprovação e ou evasão, são características que traduzem o fracasso escolar que têm sido

10
Deleuze e Guattari afirmam que o entre não é algo localizável no espaço, é um movimento transversal que
corta esse espaço de cabo a rabo. Ao estudarmos Rizoma, sua definição aparecerá mais precisa.
mais apontadas pelos profissionais da escola e demais especialistas que trabalham o
assunto – e por que não dizer também por familiares e outros segmentos da comunidade?

Nesse panorama, alguns elementos têm sido responsabilizados: a criança e sua


personalidade e/ou seu organismo, a estrutura familiar, a organização escolar, a
competência do professor, a política educacional, a cultura e ou a classe social às quais o
aluno pertence, as metodologias de ensino, o conteúdo da aprendizagem, os textos
escolares, as medidas técnico-administrativas, dentre outros.

Explicações de natureza econômica, social, médica, psicológica, política,


cultural e propriamente pedagógica têm sido convocadas para trazer luz aos estudos sobre
o tema. Tem-se apelado tanto para fatores intra como extra-escolares na tentativa de serem
encontradas respostas para o alarmante quadro de fracasso na educação pública formal.

O trabalho ora apresentado também parte da preocupação com o fracasso


escolar, mas visa a tomar outra direção de investigação e análise, enveredando por outros
caminhos menos percorridos, formulando outras questões, portanto, outras possíveis
produções/efeitos para os inúmeros acontecimentos/impasses que habitam a escola.

Primeiramente, é importante esclarecer que não desqualificamos quaisquer dos


procedimentos mencionados acima. Nossa intenção (dentre outras), ao tomarmos outra
direção, é retornarmos a eles – sem de fato termos saído – e debruçarmo-nos sobre as
práticas que como tais têm forjado contornos bem definidos ao assim tornado objeto de
fracasso escolar. Esse é, acima de tudo, uma prática.

Perguntas e outros procedimentos que objetivam definir o fracasso escolar,


sua(s) causa(s) e os possíveis responsáveis pelo “quadro” acabam por produzi-lo
efetivamente, naturalizando-o como um objeto preciso portador de uma verdade
intrínseca. Também constroem o aluno fracassado e o bem-sucedido, o reprovado e o
aprovado (assim como o professor, o pedagogo, a servente, a escola), situando e fixando
cada qual em um lugar traçando um certo destino que se quer inexorável para cada um.

Ao buscarem incansavelmente pelas causas, pelos porquês do fracasso, não


discutem a própria produção do objeto e como isso ocorre no nosso cotidiano mais
simplório.
Ao apelarem ao responsável, como efeito, ora nos isentam de qualquer relação
com a questão, ora nos incrementam impotência ou culpa. De um jeito ou de outro,
continuamos a produção do fracasso/sucesso, seu (re)conhecimento, sua (re)confirmação
por meio de perguntas desveladoras e respostas explicativas.

Esse modo de existência tem marcado nossa experimentação de nós mesmos,


de nossas relações com os outros, com a vida. Classifica-nos, hierarquiza-nos,
individualiza-nos, portanto, e, sendo assim, convida-nos a voltarmos ao nosso interior (e
ao dos objetos), ao reduto de nossa mais pura verdade intimizada. Egocentrados nos
“esquecemos” de nos surpreender com essa engenhosa maquinaria de produção de estilos
de vida e de ousar desconhecê-la.

O fracasso escolar não foi por nós concebido como um objeto natural com
existência a priori. Não procuramos, por meio da pesquisa, buscar respostas explicativas
que nos trouxessem a verdade nele contida. Ressaltamos também que não visamos a
analisar, pelas interpretações, “os sujeitos” que falavam, nem saber quem falava, tampouco,
como já dissemos, individualizar a escola ou qualquer dos seus segmentos ou integrantes,
responsabilizando-os e ou culpabilizando-os pelo fracasso escolar.

Ainda é importante esclarecer que a questão do fracasso escolar, a nosso ver,


não se resume ao campo educacional formal ou não, à legislação educacional, à
pedagogia, à instituição escolar, ao fazer dos professores... Não é um objeto de
propriedade desses, mas consideramos que cartografar11 práticas relacionadas com ele em
uma unidade escolar poderia nos dar algumas armas para nossa revolta no próprio seio das
práticas.

Nosso trabalho, então, caminhou na direção de cartografar o que se põe em


funcionamento no fazer escolar: o que é produzido? Que efeitos? Que sujeitos e objetos
são construídos? Que práticas objetivam o fracasso escolar? Como? Com que contornos?
E as possibilidades de novas práticas já existentes nesse entorno? Enfim, como o fracasso
escolar é engendrado?

11
Cartografia é a inteligibilidade da paisagem em seus acidentes e mutações. Ela acompanha os movimentos
invisíveis e imprevisíveis que vão transformando a paisagem vigente. Ser cartógrafo significa acompanhar
os meandros de tais processos e valorizar as mutações.
Em relação a essa última indagação, prosseguimos: que outras práticas
ensejamos incrementar que rompam com o estilo de vida intimizado, classificatório,
hierarquizado que concebe e divide a vida num caso de fracasso ou de sucesso, que
fragiliza nossa potência de expansão de mundos, de criação de territórios existenciais, 12 já
que os concebe como naturais, essenciais, definitivos, desejáveis e não como contingentes,
circunstanciais, portanto, provisórios?

Enveredamos pelo cotidiano escolar nos deixando afetar13 na utopia14 de


construirmos experimentações que não aprisionem a riqueza dos movimentos que
emergem no cotidiano escolar em lugares dicotômicos de fracasso ou de sucesso.

Se quisermos outras experiências educativas, e isso tem-se mostrado bastante


consensual, são outras práticas que devem ser produzidas inaugurando uma outra ética.
Isso não só é possível como já nos espreita em sua realidade invisível, mas concreta e real.

12
Territórios existenciais são entendidos como um conjunto de crenças, valores, relações sociais, falas,
comportamentos que Deleuze e Guattari chamam de matérias existenciais. Desterritorialização é o
movimento de desmanchamento de territórios formados; nova territorialização é a produção de outros
territórios e reterritorializações é a sobrecodificação daquele território constituído e abalado pela
desterritorialização.
13
Afeto é utilizado por Deleuze para denominar um estado de corpo em que a potência de agir é favorecida
ou bloqueada, diminuída ou aumentada. “A afecção é um estado do corpo, é a potência que tem um corpo
vivo de se agenciar, se ligar, se compor com algo que vem de fora” (Benevides de Barros, 1994, p. 253).
14
(U)topos: fora de lugar.
1 CONSTRUINDO FERRAMENTAS AO AFIAR O TRABALHO: A DIMENSÃO
MICROPOLÍTICA

Neste segmento, traremos algumas ferramentas que utilizamos no trabalho.


Lançamos mão ora de uma, ora de outra, em nosso próprio roubo.15

Alguns nomes serão especialmente citados: Michel Foucault, Gilles Deleuze,16


Félix Guattari. Gostaríamos, entretanto, que fossem localizados menos por uma suposta
identidade dos autores e das obras e mais pelo que “puseram a funcionar”.

Pensando de outro modo, inquietam com a agudeza, força e radicalidade de


suas afirmações, dando-nos uma dimensão política não dissociada de uma ética de respeito
pela vida.

Transitando por diferentes campos do saber, forçam o pensamento em sua


capacidade de disrupção, colocando-se a serviço da vida em sua potência criadora e isso a
partir do “mal-estar” que no cotidiano por vezes nos espreita.

O maio de 68 francês tem seus nomes como representantes do “espírito” da


época. Esse período condensou fluxos sociais que traziam a necessidade de repensar a
relação entre política e subjetividade; um desejo de politização do cotidiano, de trazer os
movimentos de esquerda para reflexão, de novos enfrentamentos não só de classe, mas
raciais, sexuais, de gerações, enfim, de possibilidades de produções especialmente fora da
lógica capitalista.

Participando ativamente de inúmeros movimentos sociais, acreditava que os


intelectuais não poderiam e não deveriam falar em nome dos outros, mas aliarem-se para
as lutas junto a estes no embate dos problemas concretos.

15
Roubo: “...roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como” (Deleuze & Parnet,
1977, p. 13), é fazer uma colagem – dadaísta – é produzir um duplo que, segundo Machado (1990, p. 16)
“...significa desembaraçar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo
sistema”.
16
Deleuze & Guattari (1977, p. 24), ao se referirem à sua parceria com Guattari disseram: “...nós éramos
senão dois, mas o que contava para nós era menos trabalhar juntos que o fato estranho de trabalhar entre
dois. Deixamos de ser ‘autor’. E este entre-os-dois remetia a outras pessoas diferentes de um lado e do outro.
O deserto crescia mas se populando cada vez mais”.
Sintonizados com a turbulência do tempo em que viviam puderam fazer sérias
críticas aos modos de vida modelizados, dando expressão e forma ao que se anunciava.

Não desejavam seguidores, ao contrário, apostavam na criação exercida a


partir da diferença, não subordinando esta à identidade, à representação; uma diferença
que nos arranca de nós mesmos e nos faz outros. Apostavam nos roubos. Trazem reflexões
que são colocadas a serviço de quem delas se apropriaram, não para imitá-los e sim para
produzir outras criações, combinando forças de formas diversas.

Seus escritos não têm qualquer exigência ou compromisso de uma identidade


lógica a ser reconhecida. Mudam de plano, ou melhor, funcionam por planos, por espaços
de incômodos e para a produção de conhecimento exercem seus próprios roubos.

Roubaram de Bergson, Spinoza, Nietzsche, Canguilhem, Kant, Proust, Platão,


Kafka, Marx, Descartes... e “se roubaram entre si”. Não são também uníssonos, algumas
diferenças podem ser constatadas, mas delas não nos ocupamos. O que nos interessa, nos
três, em nosso próprio roubo, é a cumplicidade entre nós em produzir outras possibilidades
de vida. O que nos afeta, aumentando nossa potência, é esse movimento que se aliança 17
com o invisível.

1.1 ARQUEOLOGIA OU ESSA CORTINA DE ENUNCIADOS

Vamos “...ver um pouco para que serve essa análise que, por uma decisão
muito solene, batizei Arqueologia” (Foucault, 1972, p. 167).

A Arqueologia analisa as coisas ditas precisamente porque foram ditas.


Procura apreender cada momento do discurso em sua emergência como acontecimento e,
ainda, pergunta-se sobre os efeitos de verdade que são produzidos no discurso. Interessa-

17
Aliança no sentido de pacto, o que nos faz roubar em Deleuze & e Guattari (1997 , p. 28): “O feiticeiro
está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo”. Anômalo como a “ponta da
desterritorialização”.
se, então, pela emergência18 das práticas produzidas em um determinado estado de forças
em luta.

A pesquisa da origem visaria a “...tirar todas as máscaras para desvelar uma


identidade primeira” (Foucault, 1979, p. 17). Para a Arqueologia, só há máscaras; nenhum
rosto a ser revelado. A Arqueologia faz a história dos saberes sendo a ciência uma das
formas que tem sido privilegiada como o modo de construção do conhecimento.

Deleuze, ao comentar Foucault, fala-nos do saber com precisão e simplicidade.


O saber seria a produção de uma forma de “ver e dizer” o mundo, é a combinação dos
“dizíveis e visíveis” de uma formação histórica, 19 assim requer uma análise de superfície –
aqui entendida como vasta dimensão e não de pouca profundidade. O objeto de estudo na
Arqueologia é o campo de saber.

A escola, como um meio institucional, traduz-se em uma forma – forma escola


– em relação a outras formas (prisão, hospital, asilo, quartel...) assim é uma maneira de ver
e fazer ver os alunos, professores, funcionários... delimitando um campo de visibilidade. O
discurso pedagógico (não só ele), por sua vez, é uma maneira de falar e fazer falar a
educação – campo de dizibilidade. A visibilidade, para Foucault, é qualquer forma de
sensibilidade, qualquer dispositivo20 de percepção (o exame na Pedagogia, por exemplo).
A Arqueologia, então, faz um arquivo audiovisual desse falar e ver que constitui o saber.

Para haver saber, é necessária a existência da uma formação discursiva21

O que vem a ser discurso?

18
Assim destrói toda a idéia de fundamento. A história é vista como uma população de acontecimentos
dispersos, como multiplicidades de práticas e não como sucessão linear ou rompimentos em profundidade.
Escusa as noções de influência, desenvolvimento e evolução histórica.
19
A formação histórica ou estrato histórico ou simplesmente estrato são feitos de coisas e palavras, de ver e
falar, de visível e dizível em um espaço e momento singular.
20
Dispositivo é uma rede que se estabelece entre elementos de um conjunto heterogêneo constituído de discursos,
instituições, leis, regulamentos... “Entre esses elementos, discursivos ou não, há um tipo de jogo, com mudanças
de posição e modificação de funções. Esta rede, que poderíamos chamar rede do poder, deve ser analisada como
algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizada aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca
é apropriada como uma riqueza ou um saber. Então, a que atende um dispositivo? A uma função estratégia
(dominante) principalmente a responder a uma urgência” (Lucero & Barros, 2000a, p. 29).
21
Nem todo discurso, ou prática discursiva, configura um saber; só as formações discursivas o fazem.
Discurso não é performance verbal, não é tratado como um conjunto de
signos, de elementos significantes que, como tais, atrelam-se a conteúdos ou a
representações. Discursos não são, então, signos de outra coisa a ser interpretada, na busca
de uma significação original, melhor, oculta. Também não se situam entre, mediando a
realidade e a língua.

Uma análise de discursos, embora estes se utilizem de signos, não se situa no


campo da análise lingüística (semiótica), nem psicológica, e sim como uma análise
histórico-política, não cabendo aí a procura da veracidade ou da falsidade de um discurso,
mas o que ele produz como prática que é: prática histórico-política.

Os discursos configuram-se num conjunto polêmico de jogos estratégicos. São


acontecimentos dispersos, múltiplos, localizados, descontínuos, anônimos, relativamente
autônomos produtores de sujeitos/objetos – é uma prática.

Os discursos médico, higienista, pedagógico, liberal, psicológico, psiquiátrico,


etc., por exemplo, sobre o fracasso escolar, é que criam o fracasso escolar ao dele falarem,
do modo como falam e com “o que” falam. O caráter de “acontecimento” do discurso por
meio de alguns procedimentos presentes em toda sociedade será conjurado em função
dessa

...espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas


ditas, do surgir de todos esses enunciados, tudo o que possa haver aí de
violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de
perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado (Foucault,
1996, p. 50).

Os procedimentos de exclusão22 que têm sido adotados nesse movimento de


esquiva são: a interdição, a separação e a vontade de verdade. Foucault (1996) designa-os
como procedimentos23 internos de controle ao próprio discurso.

A interdição estabelece que não é qualquer um que pode falar de qualquer


coisa, que não se tem o direito de dizer tudo, nem de fazê-lo em qualquer circunstância. A

22
Exclusão aqui tem um sentido de inclusão no lugar forjado do não verdadeiro.
23
Além desses procedimentos internos ao discurso, Foucault descreve também os procedimentos de controle
externo: o comentário, o autor e as disciplinas. Cada disciplina – Pedagogia, Psicologia, por exemplo –
estabelece-se como unidade. Mesmo que revejam conceitos, métodos... não resvalam em seu foco objetal,
instrumental e técnico. Isso é estar “no verdadeiro”, inscrito em uma teoria. O acaso é aí desinvestido.
separação alude à rejeição; discursos são desconsiderados, não ouvidos como palavras
verdadeiras (discursos da criança, do louco...).

A vontade de verdade separa o discurso verdadeiro do falso; os dois


mecanismos descritos são atravessados pela vontade de verdade, procedimento
privilegiado da exclusão.

Um terceiro grupo de procedimentos se refere à seleção dos sujeitos que


falam, sua rarefação que se traduz em: nem todos podem ter acesso ao discurso, só o terão
se forem considerados qualificados.

O procedimento ritual

...define gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto


de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia
suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se
dirigem, o limite de seu valor de coerção (Foucault, 1996, p. 39).

O sistema de ensino é uma ritualização da palavra “...que determina para os


sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos”
(Foucault, 1996, p. 39).

O procedimento “sociedades de discurso” alude à que um discurso é


produzido, veiculado, conservado, apenas por um determinado grupo de pessoas e em
espaço fechado. O “segredo” que se possui qualifica sujeitos, dando-lhes – só a eles –
acesso ao discurso. O sistema de ensino é uma qualificação e uma fixação dos papéis para
os sujeitos que falam.

O procedimento “doutrina” liga os indivíduos a um certo tipo de discurso e


lhes proíbe todos os outros e liga também os indivíduos entre si, fazendo com que se
reconheçam nela como iguais. O sistema de ensino é a constituição de um grupo
doutrinário difuso.

Por fim, o procedimento “apropriação social” dos discursos é definido por


Foucault (1996, p. 43-44) tomando a questão da educação.

Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças


ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter
acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que
permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância,
pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.

O sistema de ensino é uma distribuição e uma apropriação do discurso com


seus poderes e seus saberes.

Ensaiando uma definição de discurso, temos:

...é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas


no tempo de no espaço, que definiram, em uma época dada, e para uma
determinada área social, econômica, geográfica, ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 1972, p. 142).

A unidade de um discurso não seria estabelecida nem por seu objeto de


investigação, nem pela coerência e ou permanência do campo conceitual utilizado, nem
pelo tema abordado, nem tampouco pelo tipo ou estilo de enunciado que encerra.

Por exemplo, o objeto educação escolar, não sendo considerado aqui como
possuidor de uma verdade intrínseca, como portador de uma existência a priori, leva-nos a
formular que não podemos reconhecê-lo como uma unidade com identidade atemporal.
Articulam-se sim, em seu nome, discursos que devem se passar por seus.

Por sua vez, em relação à coerência e ou permanência do campo conceitual


como sendo o que possibilitaria o estabelecimento da unidade de um discurso, parece-nos
que essa condição é falsa, já que o campo conceitual se modifica substancialmente: ora
conceitos são descartados, ora criam-se novos, ora transformam-se para outras produções.

Com vistas à temática, poderíamos trazer, à guisa de esclarecimento, o tema


qualidade na educação. Imediatamente, abre-se diante de nós um leque de conceitos,
estratégias, objetos, princípios tão diversos que seria impossível qualquer unidade.

Quanto ao tipo ou estilo de enunciado, existem modalidades muito diversas e


móveis em cada discurso, o que também nos impossibilitaria encontrar aí qualquer
princípio de unidade. Os discursos atualizados no espaço escolar, por exemplo, utilizam
metáforas, descrições, regulamentos institucionais, estatísticas, exame e registro...
O que faria, então, a unidade de um discurso? Segundo Foucault (1972, p. 51-
52), são determinados jogos de regras ou regras de formação ou ainda regularidades em
um sistema de dispersão enunciativa

No caso em que se pudesse descrever, entre um certo número de


enunciados, semelhante sistema de dispersão, no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), dir-se-á, por convenção, que se trata
de uma formação discursiva [...]. Chamar-se-á regras de formação às
condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição
(objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As
regras de formação são condições de existência (mas também de
coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em
uma repartição discursiva dada.

Quando a Arqueologia descreve uma formação discursiva determinada em


seus quatro níveis (objeto, conceito, enunciado, tema), suas regras de formação, aquilo que
está sendo definido é um saber. Ainda Foucault (1972, p. 220) assevera:

A este conjunto de elementos formados de maneira regular por uma


prática discursiva e que são indispensáveis à constituição de uma
ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar,
pode-se chamar de SABER.

Foucault (1972) define os discursos no seu jogo de regras singular e raro,


condição de sua emergência; busca os próprios discursos como práticas que obedecem a
regras. Pergunta-se: como apareceu um determinado discurso e não outro em seu lugar?
Qual é essa singular existência que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte?

As formações discursivas se referem ao enunciável; mas Foucault (1972)


assinala também domínios não discursivos, a saber: instituições, acontecimentos políticos,
práticas e processos econômicos. À Arqueologia interessa fazer aparecer as relações entre
domínios discursivos e práticas não discursivas. As práticas discursivas e não discursivas
estão relacionadas por pressuposição recíproca e assim não param de entrar em contato,
são heterogênas, mas não param de referirem-se.

Mas o que é o enunciado?


O discurso engloba um conjunto de enunciados múltiplos, dispersos,
descontínuos, localizados... Mas não engloba enunciados quaisquer e sim aqueles que
provém da formação discursiva considerada.

O discurso pedagógico, por exemplo, tem um grupo de enunciados regulares


que o constitui – e não outros – embora não só a Pedagogia tenha alguns desses
enunciados, outras práticas discursivas também os possuem. Regulamentos disciplinares
são enunciados do discurso pedagógico, jurídico, médico...

Uma “sineta” não é um enunciado, mas o é, se tocada em intervalos regulares


de tempo na escola.

As explicações dadas ao fracasso escolar, o portão fechado da escola


cotidianamente, a divisão arquitetural em compartimentos destinados a diferentes funções
hierárquicas da escola, as diferentes salas de aula com o número da série estampado nas
portas, os métodos de avaliação, os regulamentos disciplinares, a rotina de
compartimentação do tempo, das matérias, das tarefas, a ordenação das falas no conselho
de classe e o que cabe a cada um dizer, a explicação que a professora dá à mãe do aluno
sobre a indolência deste, um quadro em forma de gráfico apontando o rendimento de
determinada turma afixado no mural, os porrolhos 24 lançados no teto do banheiro... são
enunciados.

A frase proferida pela professora “João é incompetente” evidencia um


enunciado que deve ser descrito em sua singular existência, no jogo de sua instância, ou
seja, tem lugar e data. A mesma frase escrita em uma obra literária de meio século atrás
configuraria um enunciado distinto a ser descrito em outra paisagem discursiva
configurada.

A análise da função enunciativa não pode ser considerada uma análise das
proposições (lógica), nem das frases (gramática). Duas proposições podem ser
consideradas iguais dentro da lógica mas configurarem enunciados distintos exatamente
pelo caráter singular dos últimos em contraposição à análise geral estrutural que a lógica
persegue.

24
Porrolhos: massa feita de papel higiênico e água.
A relação entre o enunciado e o que é enunciado é de ordem diversa da relação
entre uma proposição e seu referente; o princípio da verificabilidade não se aplica ao
enunciado.

Em relação à frase, podemos afirmar que não há também equivalência. Sempre


que uma frase é formalizada, enunciados aí se presentificam, mas há enunciados que não
se apresentam de forma frásica e que não dependem dos elementos lingüísticos
constituintes da frase. Os enunciados não se definem pelos caracteres gramaticais da frase.

Por meio das frases, do que é falado e escrito, podemos extrair os enunciados
desde que não nos detenhamos em seus elementos constituintes. Na leitura de Deleuze
sobre Foucault, seria necessário rachar as frases, as proposições, as palavras para delas
extrair os enunciados. Estes não se esgotam na língua ou no sentido.

Ainda Foucault (1972) procura fazer a distinção entre o enunciado e o ato


ilocutório (ou ato ilocucionário) de que falam os filósofos da Escola de Oxford – filosofia
analítica inglesa. Eles afirmam que “dizer algo é fazer algo”. No caso dos atos
ilocucionários, agimos ao informar, ordenar, prevenir, avisar, que se constituem em
proferimentos carregados de força convencional.

Não há dúvida de que o ato ilocutório enuncia, mas Foucault (1972, p. 105)
adverte que não eqüivale a ele, já que é preciso mais de um enunciado para efetuá-lo

Como se o enunciado fosse mais frágil, menos carregado de


determinações, menos fortemente estruturado, mais onipotente que
todas essas figuras [proposição, frase, ato ilocutório] [...] [o
enunciado] nunca passa de suporte ou substância acidental: na análise
lógica, é o que ‘resta’ quando se extraiu e definiu a estrutura de
proposição; para análise gramatical, é a série de elementos lingüísticos
na qual pode-se reconhecer ou não a forma de uma frase; para a
análise dos atos de linguagem, aparece como o corpo visível no qual se
manifestam.

Seria mais conveniente falar em função enunciativa, caracterizando-a como


uma função de existência. Função porque faz aparecer, faz existir com conteúdos
concretos no espaço e no tempo e de modo singular, tais ou quais conjuntos de signos.
Função porque relaciona os signos aos efeitos objetivantes e não os signos às coisas
mesmas.
Um enunciado não existe isoladamente, independentemente; situa-se em um
campo interligado a outros enunciados, está aberto à repetição, à transformação, à
reativação. Na esteira dessa visão, o próprio “sujeito que diz” já é condição do exercício da
função enunciativa. Não é o sujeito que enuncia, trata-se na Arqueologia de um “diz-se”.

Outro aspecto que merece consideração – e que já citamos de passagem – é a


lei de raridade enunciativa ou “a lei de sua pobreza”. Os enunciados são raros, sempre
apresentam uma emissão de singularidades, o que os coloca também em oposição às
frases, pois estas podemos conceber quantas quisermos. O caráter de raridade traduz-se
pelas indagações: como aparecer um determinado enunciado e não outros em seu lugar?
Por que tão pouco pode ser dito em relação aos possíveis? Por que tão pouco pode ser dito
em relação ao fracasso escolar? Que outros possíveis?

A função enunciativa exclui outras formas de enunciação, não no sentido de


repressão, de recalque, de verdade escondida a ser revelada. Essa exclusão remete ao que
esta fora, para além de determinada formação discursiva. O domínio enunciativo do
discurso está inteiro em sua própria superfície, “...tudo é real no enunciado e nele toda a
realidade se manifesta” (Deleuze, 1988, p. 29). Nada é considerado oculto nesse domínio,
entretanto “É necessário uma certa conversão de olhar e das atitudes para poder
reconhecê-lo e considerá-lo nele próprio” (Foucault, 1972, p. 204).

Que tudo seja sempre dito, em cada época, talvez seja esse o maior
princípio histórico de Foucault: atrás da cortina nada há para se ver,
mais seria ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou
pedestal, pois nada há atrás ou embaixo (Deleuze, 1988, p. 63).

Acreditamos que podemos, agora, sem maiores problemas, dizer que o objeto
fracasso escolar não preexiste a si mesmo. Ele existe sob condições positivas da função
enunciativa.

A partir do cotidiano escolar e de posse da estratégia metodológica sinalizada


pela Arqueologia com as “categorias” de saber, discurso, enunciado, convertemos o olhar
para as práticas discursivas e não discursivas que constroem o fracasso escolar.
Cartografaremos esse “diz-se” e esse “vê-se” em relação ao fracasso escolar, seus modos
de funcionamento – efeitos que provocam. Investigaremos os microssaberes que regulam
as práticas escolares produzindo sujeito/objeto.
Enunciados, pesados em sua materialidade invisível num imenso espaço de
dispersão, davam o tom da respiração nos interstícios dos encontros que nos constituíam.

As entrevistas, os momentos grupais, as observações – todos de caráter não


estruturado – abarcaram questões sobre os modos de experimentação da realidade escolar
cotidiana em toda a sua complexidade.

Por experimentação, afastando-nos da visão fenomenológica e antropológica,


entendemos a correlação entre campos de saber (formação dos saberes especialmente em
relação ao fracasso escolar), tipos de normatividade (referindo-se aos sistemas de poder
que regulam as práticas escolares ligadas ao fracasso escolar) e formas de subjetividade
(formas pelas quais os indivíduos se reconhecem como sujeitos do fracasso escolar).

Perseguindo, então, o campo enunciativo, interessou-nos indagar se já tinham


ouvido falar, lido, pensado, conversado... sobre “fracasso escolar”. O quê? De que forma?
Interessava também investigar o que tinham a dizer, o que achavam relevante ou não dizer,
como diziam, a que verdades se referiam, se havia desconfiança ou descrédito no que
vinham dizendo sobre essas verdades. O que faziam a respeito? Que efeitos? O que mais,
ou de diferente fazer? Para quê? Que ações “não autorizadas” podiam apontar? Como se
materializavam seus efeitos? Que formas de reconhecimento do fracasso/sucesso escolar
acionavam? Como?

Interessava-nos também cartografar as visibilidades – no sentido que Deleuze


dá a Foucault, ou seja, o que essa forma escola dava a ver e a ser vista. Dois processos
(visibilidade e dizibilidade) extremamente intricados, a passar um pelo outro.

Procuramos situar o fracasso escolar num espaço discursivo mais geral. A


Pedagogia está nesse espaço, assim como também discursos médicos, jurídicos, morais,
econômicos, psicológicos... lembrando que a Arqueologia privilegia inter-relações
discursivas.

Segundo Benevides de Barros (1994, p. 294), domínios vão se formando sobre


o território-escola

...o professor instaura o domínio de um corpo pedagogizado; o médico,


o domínio de um corpo medicalizado; em continuidade, o psicólogo
instaura o domínio de um corpo a ser classificado, diagnosticado; o
assistente social, um corpo-família a ser controlado, ‘orientado’; o
fonoaudiólogo, um corpo a ser corretamente comunicado, etc.

Essas demandas, segundo ainda Benevides de Barros (1994, p. 294), não são
“necessidades” que determinam ações; são, antes, produzidas historicamente como
domínios de saber-poder. “Ao se instituírem como necessidades obscurecem pontos de
emergência, criando a idéia de que sempre estiveram lá”.

É no domínio do poder que agora vamos adentrar ainda com Foucault (apud
Deleuze, 1988, p. 89):“...se procuramos determinar um corpus de frases e de textos para
deles extrair enunciados, só podemos fazê-lo designando os focos de poder (e de
resistência) dos quais esses corpus dependem”.

Vejamos algumas produções da função enunciativa:

“Em todo lugar tem gente competente e incompetente, não adianta.”

“A pessoa é que tem que querer mudar, está nas mãos do aluno, é uma coisa
individual.”

“Não aprende porque a auto-estima está baixa, precisa se autovalorizar.”

“Os meninos tem que refletir, falar deles e nós orientamos para eles se auto-
avaliarem.”

“É da natureza da criança, de cada um.”

“Esses meninos não querem nada, são é muito preguiçosos, não raciocinam
de preguiça.”

“Depois vão se queixar no futuro e perceber que a escola é tudo na vida da


gente, sem escola não vai ser alguém na vida.”

“É problema de inteligência fraca.”

“São problemas do social.”


“Eu sou inteligente, sabe por que? Porque já nasci pensando!” “Eu
também.”

“Se tem uma na sala que fica de preguiça, o resto fica também.”

“É muito legal ver a criança progredir nas séries.”

“A aprovação automática não é legal. Como ele vai passar para a 5ª série,
por exemplo, se ele não aprendeu o conteúdo da 4ª?”

“Criança pequena já é burra, se passar de ano sem saber, fica mais burra
ainda.”

“Estudar serve para saber contar dinheiro e o moço da padaria não


enganar.”

“Não é que esse menino tenha problema de inteligência, ele é só mais lento.”

“Estudar é bom para a memória.”

“O professor quando é fraco não consegue nada com o aluno.”

“Estudar é bom para aprender um monte de coisas para quando perguntarem


pra gente, a gente saber responder; como no show do milhão.”

“Escola não é só para passar conteúdo de quadro-negro e giz; é para


construir cidadania, a consciência crítica.”

“Essas crianças não têm condição de refletir sobre a realidade; nós que temos
que passar isso para elas.”

“Sabe como é ‘aborrescente’, são instáveis e inconseqüentes.”

“Coordenador é bom porque vigia, separa as brigas pra gente aprender a ser
uma pessoa de verdade.”

“A gente podia conversar sobre os assuntos da vida, essa coisa chata de


cidadania, de crítica, que temos que ficar sério criticando tudo, nem podemos nos
divertir.”
“Tinha que mandar nossos pais olharem nossos cadernos, brigarem com a
gente quando a gente não faz o dever.”

“A família é responsável por isso, se ela é bem estruturada a criança aprende


e se comporta bem.”

“Dever é ruim quando a gente não sabe.”

“Prova é bom quando a gente acerta tudo; a gente quando erra fica
humilhado.”

“A gente nasce só sem saber, nem burro nem inteligente, na escola é que a
gente vai ficar ou burro ou inteligente.”

“Não adianta dizer que a escola serve pra gente aprender. Eu não quero ir
para a escola, porque eu não sei.”

Assim vão se produzindo rostos de criança, aluno, aprendiz, professor, escola,


família, aprendizagem, ensino... delimitados num campo enunciativo que afirma inter-
relações discursivas entre Pedagogia, Psicologia, Medicina, Psiquiatria, Biologia,
Jurisprudência.

Discursos sobre a criança constituem infâncias-não-conscientizadas-em-


desenvolvimento. Afirmam que devem ser acompanhadas, vigiadas durante todo o tempo
e em qualquer pedaço de espaço. Vigiadas e regadas – já que sementes.

Produz-se aí também a divisão identitária e hierarquizada entre criança e


adulto, professor e aluno e, a partir disso, quem está autorizado a falar sobre o quê, com
quem onde e de que modo. Divisões que se quer conservar na então forjada identidade
pessoal ou funcional, evitando, afastando para longe o que possa escapar ou perturbar.

Produção antes de tudo do individual, melhor dizendo, das individualizações,


um modo de existência que classifica, hierarquiza, dicotomiza, fixa, por isso individualiza
“indivíduos”, grupos, instituições, funções, etc.

Aciona-se também a razão como a única via legítima na aquisição do


conhecimento e que dá a este o estatuto de via de desvelamento das verdades da vida. A
inteligência privilegiada vem rapidamente fazer contornos de uma aprendizagem que aí se
configura.

Assim, a razão se coloca como veículo mediador entre o sujeito e o mundo dos
objetos, ambos considerados com existência a priori privilegiando ainda a ação do
primeiro sobre o segundo. Sujeito egocentrado, auto-referido, a ser auto-refletido, auto-
investigado, auto-investido, auto-regulado. O apelo ao “auto” recheia os espaços escolares.
Sujeito intimizado pela função psicológico-pedagógica.

A preguiça, a indolência vem delimitar o campo enunciativo como aquilo que,


porque irracional, impede o bom desenvolvimento – bom aqui se referindo à norma. 25
Explicação há muito bem-aceita em discursos político-econômicos como no carcerário que
trazem inclusive a idéia do contágio (discurso médico-higienista).

Em relação à aprendizagem, os enunciados pedagógicos produzem que só se


aprende as coisas em níveis sucessivos, portanto criam a necessidade dos estágios,
conformados em níveis e idade.

Por sua vez, o tempo é considerado uma coleção de períodos sucessivos nos
quais se define uma normalidade aquisitiva. Esclarecendo, a norma é um conceito
descritivo apoiado na racionalidade. As reflexões, peça importante no discurso pedagógico
(e não só dele), colocam a tarefa de julgar pela norma. Julgar positivo ou negativamente
em função do critério de normalidade. A consciência reflexiva se efetiva sob princípios de
evolução e totalizações.

Assim, situa-se o aluno (e o professor, e o pedagogo, e a servente) – já que a


tarefa é situar, ora no atraso, ora no avanço e medidas de aceleração são instituídas.

A aprendizagem é produzida como acumulações de conteúdos específicos


estabelecidos e os problemas de aprendizagem se referem à dobradinha
tempo/acumulação. Tempo de trabalho ou de preguiça, maior ou menor armazenamento de
conteúdos. Às vezes a aprendizagem é associada à prontidão para resolver problemas (de
solução já prevista).
25
É um mecanismo regulador que compara, diferencia, hierarquiza. Produz comportamentos e sentimentos,
instituindo verdades. Tem seu fundamento histórico-político nos Estados modernos dos séculos XVIII e
XIX. Podemos dizer que uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder
centrada na vida.
Outras vezes a aprendizagem vem vinculada à conscientização da realidade
social por parte do aluno e à sua aquisição de cidadania, produzindo aí outra dicotomia:
esclarecidos e alienados.

O saber vai também sendo engendrado como uma mercadoria que se possui ou
não com efeitos imediatos de produção e fixação no lugar do fracasso ou do sucesso.

Produz-se a escola como esse lugar de formar cidadão, garantir futuro,


construir “alguém”. Materializa-se, então, o ninguém e o alguém, os com futuro e os sem
futuro.

Outro campo enunciativo apontado nos remete ao acoplamento família-escola.


A família como lugar de origem dos problemas de comportamento/aprendizagem,
caracterizando um discurso psiquiátrico-pedagógico-higienista.

Enfim, pretendemos aqui trazer o que significa rachar palavras e frases para
delas extrair os enunciados. Não desejamos situar as formações discursivas em sua
especificidade. Ensejamos apenas traçar um panorama de rede onde seus fios foram sendo
puxados até para evidenciar esse conjunto disperso que caracteriza a própria rede.

Gostaríamos de salientar, no momento, que as afirmativas feitas pelos


integrantes da escola não mostravam significativas hesitações ou dúvidas; quase sempre
eram de caráter explicativo (acerca do fracasso escolar) apoiadas em relações de causa-
efeito apontando responsáveis. Como se, ao afirmarem, dessem conta da realidade do
fracasso em sua face oculta... colocando-se assim no lugar do sucesso. Alguns buscavam
em nós o reconhecimento desse lugar de saber que ocupavam: o de trazerem verdades em
nome da pesquisa (embora não fosse isso o solicitado)... efeitos do modo de existência que
tem marcado nossa experimentação da vida, desse “nós mesmos”.

Por enquanto, reiteramos, mas “...se procurarmos determinar um corpus de


frases e de textos para deles extrair enunciados, só podemos fazê-lo designando os focos
de poder (e de resistência) dos quais esses corpus depende” (Deleuze, 1988, p. 89).
1.2 GENEALOGIA E O MENINO-DA-SINETA

A investigação genealógica aponta uma questão importante para a própria


Arqueologia: a de explicar como apareceu um determinado saber por meio de condições
imanentes a ele. O saber não é resultado ou efeito do poder, é ele próprio uma peça da
relação de poder. Indaga-se na Genealogia sobre o porquê de um saber. “Não há relação de
poder sem a constituição, correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e
não constitua ao mesmo tempo, relação de poder” (Foucault, 1977a, p. 30).

A cortina de enunciados a qual nos referimos, são jogos estratégicos, são


exercícios permanentes de relação poder/saber. As formações discursivas são articulações
poder/saber.

A Genealogia – termo nietzschiano – é uma análise histórica das condições


políticas de possibilidades dos discursos em seus efeitos de verdade. Investiga a
emergência, o ponto de surgimento no cenário de forças em luta.

Ninguém é responsável por uma emergência, ela sempre se produz no


interstício. “O que se encontra no começo das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (Foucault, 1979, p. 18).

A microfísica do poder (ou focos moleculares de poder) contrapõe-se às


análises tanto da ciência como da Filosofia política que, ao trabalharem o poder, o fazem
deslizar ao Estado. Já a Genealogia volta sua atenção para esses pontos difusos, dispersos,
móveis, singulares por onde passa o poder.

O poder, antes de tudo, não é propriedade de quem quer que seja, não é algo
que se possua ou não, mais ou menos, não há um lugar privado, fonte do poder, ele exerce-
se, funciona incitando, suscitando, produzindo.

O mapa de relações de forças de cada formação histórica pode ser denominado


de diagrama; noção bastante utilizada por Deleuze ao referir-se às relações de poder em
Foucault. O diagrama ou formação diagramática é um distribuição de singularidades, não
sendo, portanto, estável. Se o poder é força, é informe, diferente do saber, que assume
formas bem circunscritas, o que, aliás, o caracteriza como saber.
Poder é estratégia e seus efeitos são atribuídos “...a disposição, a manobras, a
táticas, a técnicas, a funcionamentos” (Foucault, 1977a, p. 29). Como prática produz
realidade e verdade.

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, com a


multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas
e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte... (Foucault,
1977b, p. 88).
Ainda, se é relação de força, é luta permanente, já que uma força se caracteriza
por estar sempre em relação a outras forças. Supõe permanentemente resistência, aqui
concebida não como uma força externa que se coloca contra o poder, ela é ação na própria
relação de poder. Assim, as práticas de dominação nunca estão descoladas das práticas de
revolta. Do mesmo modo que não se considera “o” lugar do poder, também em relação à
resistência, diz-se de pontos móveis, difusos, transitórios que se distribuem por todo
campo social.

Deleuze (1988, p. 96) explicita:

...com efeito um diagrama de forças apresenta ao lado das (ou antes ‘face
às’) singularidades de poder que correspondem às suas relações.
Singularidades de resistência, os ‘pontos, nós, focos’ que se efetuam por
sua vez sobre os extratos, mas de maneira a tornar possível a mudança.
Essa concepção de poder tem algumas implicações imediatas, por exemplo,
em relação à divisão sociopolítica em duas classes sociais no tocante à detenção do poder.

O autor não nega a existência das classes e de suas lutas, mas as insere em um
panorama microfísico de poder, no qual compartilham uma determinada função
diagramática. Diluem-se, assim, suas rígidas fronteiras em relação aos modos de
existência incitados. A tecnologia do poder passa por todos, através de todos, entre todos.

A Genealogia é

...uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos


discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um
sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos,
seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história (Foucault,
1979, p. 7).
Segundo Foucault (1977b, p. 90), “As relações de poder não se encontram em
posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relação, a posição delas não é a de
superestrutura, elas possuem onde agem um papel diretamente produtor”.

Em relação ao poder do Estado, Deleuze (1988, p. 35), comentando Foucault,


explicita:

Foucault mostra, ao contrário, que o próprio Estado aparece como efeito


de conjunto ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens e de
focos que se situam num nível bem diferente e que constituem por sua
conta uma ‘microfísica’ do poder [...] [engrenagens e focos] que o
Estado aprova, controla, ou se limita a preservar em vez de instituir.
Foucault nos chama a atenção para um tipo de poder que se expressa nos
séculos XVIII, XIX, XX: o poder disciplinar ou disciplina.

As sociedades modernas podem ser definidas, segundo o autor, como


sociedades disciplinares, a partir de um novo diagrama – o diagrama disciplinar. Não que
processos disciplinares não fossem encontrados anteriormente, mas, como fórmulas gerais
de dominação, é a partir desse período que é engendrado, no momento em que nasce uma
arte do corpo humano, um certo modo de investimento político e detalhado do corpo.

Sua emergência ocorre a partir de alguns procedimentos (políticos,


econômicos, sociais...) instalados em espaços distintos, alguns se remodelando, outros se
imitando, outros se criando e, na convergência dessa multiplicidade, alimenta-se o motor
de seu funcionamento. Também não aconteceu uniformemente, sendo os colégios e a
escola primária os lugares primeiros de seu maciço investimento.

“Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,


que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-
utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’” (Foucault, 1977a, p. 126).

Os métodos a que se refere são: o trabalho detalhado do corpo – o privilégio


do detalhe, das minúcias, passa a ser o maior investimento político do corpo; a coerção
ininterrupta sobre ele; atenção à economia, à eficácia dos movimentos, à sua organização
interna; esquadrinhamento do tempo, do espaço, dos movimentos. Tudo isso aumentando
o domínio de cada um sobre o seu próprio corpo e sobre o corpo do outro de forma eficaz
e rápida.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do
corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela
procura aumentar; e investe por outro lado a energia, a potência que
poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita
(Foucault, 1977a, p. 127).

O diagrama da soberania caracteriza-se por acionar mecanismos repressivos,


por ser violento, interditor. A disciplina vinculada, dentre outros fatores: ao crescimento
demográfico; ao incremento de uma produção que objetiva aumentar lucros subtraindo dos
corpos toda a força útil; às doenças epidêmicas e, conforme Foucault, à invenção do fuzil
caracteriza-se por constituir técnicas de gestão dos homens, não pela repressão ou pela
interdição, mas pelo que produz, no espaço mesmo de seu exercício.

Vigilância hierárquica, sanção normalizadora e o exame – que combina as


duas anteriores são seus instrumentos privilegiados. A disciplina localiza, examina,
distribui, reparte, coloca em série, compõe, normaliza, registra, compara, avalia, classifica,
hierarquiza... enfim, individualiza.

O poder disciplinar produz o indivíduo, o individual, colocando um em cada


lugar e em cada lugar um, naturalizando esse procedimento por meio de formações
discursivas e não-discursivas que passam a descrever, classificar, investigar o individual
situando os homens em uma curva de normalidade.

Individualiza-se e fixa-se o sujeito: o apto/o não apto, o fracassado/o bem-


sucedido, o aprovado/o reprovado, o competente/o incompetente. Também individualiza o
espaço social: o trabalho, a família, o lazer, a escola.

Vejamos mais de perto.

Segundo Foucault, a disciplina em primeiro lugar precede à distribuição dos


indivíduos no espaço exigindo a “cerca”, a saber, a especificação de um local diferente dos
outros e fechado em si mesmo:

“Escola não é família, nem posto médico, temos que ensinar e é só.”
“Tia, tinha que a diretora proibir as crianças grandes de dar beijo na boca.
Escola é um lugar de respeito.”

“A escola prepara para a vida e para o trabalho no futuro na sociedade.”

“É aqui que se faz a educação de verdade, não em outro lugar.”

“Escola não é para brincar, é pra estudar.”

“Quando forem trabalhar, vão ver que a escola é importante.”

“Temos que deixar do lado de fora nossa vida pessoal, quando cruzamos o
portão da escola.”

À medida que convivíamos no cotidiano escolar, percebíamos, no embate das


forças, a circulação por entre seus integrantes de um esforço em definir o que é escola em
detrimento de outros espaços de vida, melhor dizendo, de espaços que se configuram
outros pela CERCA.

O que cabe ali dentro? O que não cabe e não poderá caber sob a ameaça de
fragilizar suas fronteiras “embaralhando a cabeça”?

Fazia-se urgente, apesar de todas as dificuldades, já que o próprio movimento


das forças é instável e informe, delimitar o campo escolar. Esse movimento insistia... mas
também era tudo muito misturado mesmo!

“Professor é legal quando brinca, conversa da vida.”

“Escola é bom porque a gente tem amigos, vive tudo junto.”

“Os professores tratam a gente como se fosse filhos dele. Que saco!”

“Isso aqui é igualzinho a uma prisão!”

“A gente ri muito, fala de mil lances.”

“O professor não deve se deter só no conteúdo. A vida que está aqui dentro
está lá fora e é dela que devemos nos ocupar.”
“Às vezes a gente está desacorçoado da vida, e vir prá aqui anima, distrai.”

“Minha família são todos aqui.”

“Hoje trabalhei demais, tia. Queria chegar em casa e tomar um whisky igual
meu pai toma quando chega do trabalho.”

“Educação não é privilégio da escola, está em todo lugar.”

“Gente, já não sei mais o que é da escola, da família, do sistema; já estou


embaralhando a cabeça.”

Isso sem falar que os beijos na boca aconteciam nos lugares mais reservados
(ou não) e apontavam a cumplicidade de todos... uma certa “vista grossa” e um certo
“ouvido de mercador” (como diziam) circulavam.

As resistências aconteciam, pula-se a cerca; os espaços delimitados do


trabalho, do lazer, do estudo, da afetividade não se submetiam à compartimentação.

Não era sem brilho nos olhos que subiam a rampa. O que será? Será hoje?
Ilhas de alegres piqueniques aconteciam na hora do lanche – e fora dele – que era sempre
esperado com indagações. Ali conviviam, misturavam-se, entristeciam, confortavam-se.
Cumplicidades mais ou menos explícitas se faziam em nome da vida. Perguntavam uns
pelos outros, preocupavam-se com o dia, brigavam, davam conselhos, adoeciam,
contagiavam-se. A hora do cafezinho comemoravam os encontros. Nela exibiam suas
ferramentas de trabalho. Cuidava-se. Alguns choravam próximo às férias, outras vezes se
entusiasmavam com os feriados. Hora de descansar. Limpava-se, arrumava-se a escola. Os
casos amorosos brotavam dos cantinhos da escola e os arranjos sempre bastante singulares
dos uniformes – que aí desapareciam – faziam os corpos pavonearem. Muita cor, muitas
imagens não procuravam lugar, antes, faziam composições e se conheciam e se
desconheciam numa luta permanente.

Aqui propomos uma questão: não poderíamos nos perguntar que tipo de poder
– em seus mecanismos e efeitos – está em jogo? Um poder que está em toda parte, que
provém de todos os lugares e que lamina da mesma forma a escola, a família, o trabalho, a
vida pública e a vida privada e que, ao mesmo tempo, faz dessas instituições identidades a
se relacionarem exclusivamente? Não poderíamos também trazer “a público” as
resistências no que anunciam nossa possibilidade de criar modos de vida? Aliarmo-nos a
ela no que encerram de potência?

Cartografar a tecnologia do poder disciplinar poderia nos dar instrumentos de


mudanças efetivas e nos fazer descolar dessa busca de reconhecimento dos espaços sociais
remetendo à sua interioridade identitária, individualizada e individualizante.

O portão da escola controlado pelo “vigia” muitas vezes era vivido como um
porto seguro dando a impressão de que, de fato, ali era um lugar fechado, mas, vazado,
“misturava”... e, ainda, os meninos pulavam o portão, chegavam atrasados, saiam antes ou
depois da hora, assim como os demais integrantes da escola (que não pulavam literalmente
o portão).

Mil “imprevistos” faziam, enfim, como que o portão resistisse à celularização


da escola e num movimento de abano desmanchava limites.

O portão muitas vezes era banalizado e dizia-se “É normal de escola os alunos


quererem sair pulando o portão”. Outras vezes era danificado, ao que se respondia com
aumento da cerca e... da resistência.

Ainda outras vezes machucava e podia ser analisado.

“É pura desobediência, por isso ela se machucou!”

“Não, tia, ela pulou o portão porque ele estava fechado!”

Em cada espaço cercado cada indivíduo terá seu lugar, é o quadriculamento. O


espaço das disciplinas é sempre celular.

Um em cada lugar, em cada lugar um.

“Tomem seus lugares.”

“Posso sentar ali?” “Não, hoje não, depois eu vejo.”

“É fácil ver de cara quem faltou, pelas cadeiras vazias.”


“O que você está fazendo aqui? Sua sala é outra. Tia, ele está invadindo
nossa sala.”

“No pátio só as turmas que estão no recreio.”

“Vai um de cada vez ao banheiro, vamos fazer a lista, só pode ir depois que o
outro voltar.”

É uma escola enorme, um labirinto bastante compartimentado, com grandes


espaços de circulação; para deslocar-se de um ponto ao outro se faz necessário algum
tempo e fatalmente alguns encontros fugidios “fora de lugar” se faziam aproveitando
portas à direita, à esquerda, à frente, atrás. “Onde está Fulano?” “Cadê Ciclano?, “Você
viu Fulano de tal?”, “Passou aqui ainda agora, não sei pra onde foi”.

Ao mesmo tempo em que, como um grande espaço com variadas opções de


percurso, permite um certo anonimato, a surpresa em encontrar “as autoridades” e serem
pegas em sua deserção espreitava em cada esquina; ao que, freqüentemente, respondia-se:
“Só vou pegar um livro ali, um instantinho só”, “Fui falar com meu irmão”, “Preciso tirar
xerox”, “Fui tomar água, está calor”. Um movimento de resistência que, como tal, insistia
em sair do lugar; ao que, por sua vez, respondia-se: ou com a constatação da
“malandragem” e a realocação de todos e de tudo nos devidos lugares (embora os lugares
tornassem a se embaralhar sem maiores constrangimentos), ou quando a resistência era
acolhida como uma oportunidade para criarem-se outras relações que escapassem aos
modelos.

O pátio era alegremente ocupado – aproveitava-se para trabalhar também. O


banheiro era o lugar privado mais público que podíamos constatar. Trocar confidências,
fazer planos, descansar um pouquinho, ficar arrumando as intensidades, refazer-se do
esforço, preparar-se.

Quem disse que os lugares das salas eram exatamente fixos? As carteiras e
cadeiras, assim como os alunos, dançavam ao doce sabor dos instantes. Não era também
raro encontrarmos alunos “desalocados”. Havia sempre um que, em determinado dia, ia à
aula da professora do ano passado, isso não para revivê-lo mas para engatar o presente.
A disciplina também procede por localizações funcionais, distribuídas no
espaço de forma a aumentar a docilidade e a utilidade dos corpos. De acordo com sua
função, cada cela ocupará um lugar estratégico.

Salas de aula, uma para cada série em níveis de idade e aproveitamento


escolar. Todas dispostas de forma a concentrar os pequenos mais barulhentos onde o som
não se propagasse com tanta intensidade. As séries mais adiantadas localizavam-se mais
próximas ao acesso de subida/descida. A sala da coordenação no alto e com maior alcance
visual (próxima às séries finais). A dos professores embaixo, num espaço mais protegido
ao final do corredor. A da secretaria, da direção, do apoio pedagógico próximas uma da
outra para facilitar o trâmite das providências a serem tomadas também distantes das salas
de aula. Postos de trabalho, dispostos de maneira econômico-racional, aumentando a
eficácia de cada função.

Mas quem disse que cada um tomava sua função e sua “cela” de uma vez por
todas?

As tecnologias do poder disciplinar também fazem o controle de cada um pelo


trabalho sistemático de todos; vigilância individual e geral. Os postos não só se definem
pelo território que ocupam, mas também estabelecendo entre si uma classificação e uma
hierarquização. Caracterizando-se pela relação entre seus ocupantes, a disciplina é “a arte
de dispor em fila”.

Em relação à fila propriamente dita, vivia-se nesse espaço escolar um impasse:


onde alocar cada fila que corresponde a cada série para organizar a entrada dos alunos?
Seria mais conveniente que as filas das séries iniciais ficassem mais próximas ao acesso de
subida para as salas de aulas e, por conseguinte, seriam convocadas primeiro para subirem
retardando a entrada das séries finais que, por sua vez, como conseqüência, veriam
diminuído seu tempo de aula? Ou, ao contrário, chamar-se-ia primeiro as séries finais
utilizando mais o tempo dos maiores, mas expondo os menores a uma espera que os
impacientaria de imediato? A primeira opção ainda contava com um adendo: os menores
são mais lentos e fatalmente se chocariam com os mais velhos causando confusão e perigo
na subida.
A ordenação do espaço, do tempo, dos corpos se fazia imperativa. Sua
funcionalidade era minuciosamente calculada em acordo com os mecanismos
disciplinares, como se alguma medida pudesse evitar os processos de resistência.
Lembramos que as práticas de dominação nunca estão separadas das práticas de revolta.

A fila, não obstante, mostra-se ao questionamento. Incomodava. Ensaiavam-se


arranjos a partir desse mal estar; experimentava-se. Um movimento de desconforto, de
incerteza, insistia. Por que não localizá-lo como um índice de expansão de mundo?
Poderíamos trazer essa questão “entre” todos.

“Fazer fila é bom para não misturar! Se misturar? Pisam no nosso pé! É, mas
na fila também fica tudo junto e pisam no pé... deve ser porque é assim!”

“Os mais bagunceiros ficam atrás, sozinhos, grudados na parede, porque na


frente arranja perturbação.”

“Na frente ficam os mais espertos.”

“Os inteligentes na esquerda perto da janela, os mais ou menos no meio, os


burros perto da porta.”

“Tem sala que não tem isso porque são todos burros e bagunceiros.”

“Eu sou da 6ª forte.”

“Os meninos ficam perto da janela, as meninas mais pra cá, porque é melhor
assim.”

“Às vezes a tia troca pra ver se eles consertam.”

A “política do lugar” produz também o lugar do aluno, do professor, do aluno


fracassado e do bem-sucedido, do professor compromissado e do descompromissado, da
servente, do pedagogo, do adiantado e do atrasado, do relaxado e do caprichoso, do meigo
e do agressivo.
Era dia das bruxas... um menino considerado “problemático” na escola, ao ver
outros se preparando, fantasiando-se para a festa, exclama: “Sacanagem, tomaram meu
lugar!”

Os mecanismos disciplinares são dispositivos ao mesmo tempo arquiteturais,


funcionais e hierárquicos.

“A orientadora é a que conversa.”

“A coordenadora separa briga, faz fila, manda subir e descer, ajuda a


organizar tudo.”

“A diretora manda comprar lanche e fica pedindo pra prefeitura pôr


cobertura na quadra.”

“A supervisora às vezes conversa, mais com os maiores, mas fica mesmo é


escrevendo.”

Os mecanismos disciplinares constroem “quadros vivos”.

Foucault (1977a, p. 135) afirma que “...a constituição de quadros foi um dos
grandes problemas da tecnologia científica, política, econômica do século XVIII [...] o
quadro no século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber”.

Classificar seres vivos; separar alunos por série e nesta localizá-los


normativamente em relação ao comportamento e à aprendizagem; observar, regularizar a
circulação de mercadorias; inspecionar os homens; fazer um registro geral dos soldados;
isolar doentes e classificá-los tornando a dividi-los traduzem técnicas de dominação
legitimadas, autorizadas, pelos diversos corpos de saber, por exemplo, o saber científico
por excelência. Os mecanismos de poder tornam possíveis certas espécies de discurso,
estes, por sua vez, servem de suporte ao exercício do poder. Traçar regularidades nas
multiplicidades, organizar a massa dispersa é a tarefa do poder disciplinar. Não só em
relação aos espaços agem os mecanismos disciplinares, o controle da atividade também é
seu foco de investimento.
A relação tempo/atividade é minuciosamente detalhada estabelecendo um
controle ininterrupto que visa a anular a “cera”, a preguiça, a distração, transformando
cada minuto em tempo de trabalho.

A falta de tempo constituía-se, na escola, como um dos principais lamentos


por parte de muitos. Horários cronometrados que “não deixam respirar” (sic), muitas
atividades a serem desenvolvidas que “não cabem dentro do tempo estipulado” (sic).

Corpos suados corriam para lá e para cá. Corriam, não corriam, parecia que
corriam, ao toque insistente das sinetas.

A sineta da escola tocava em intervalos regulares. Para os “mais-avisados”


tudo estava dito: que espécies de deslocamentos de espaço físico e ou de tarefa seriam
efetivados e as maneiras de abordá-los.

Um dos mais recém-chegados à escola atendia prontamente ao comando do


sinal, mas passou a evidenciar, surpreso, que muitas pessoas não o atendiam
adequadamente.

O “menos-avisado” dirigia-se, então, ao pátio e à sala de professores,


convocando o pessoal aos seus lugares. Acreditava, de certo, que as pessoas “distraídas”
não ouviam o toque do sinal. Auxiliava-as, assim, com seu jeito solidário – por vezes
percebíamos um certa falta de convicção quanto à distração das pessoas por parte do
menino-da-sineta. Mas do que se tratava?

Respondia-se ao ato com muitas risadas, às vezes desconsiderando o prudente


aviso, outras respondendo ao apelo. De toda forma, era tido como muito “engraçado”
aquele pequeno – ou grande – gesto. O menino aí mostrava-se indignado com a reação dos
demais, ainda mais quando riam e chamavam-no de “fiscal da SEME”.26

Na medida em que as técnicas de dominação do poder disciplinar se fazem


sobre o tempo, ou melhor, constituem o tempo como tempo útil de trabalho, a resistência
investe na dilatação, na desaceleração, ou seja, num outro ritmo, numa outra relação
tempo/atividade.

26
SEME – Secretaria Municipal de Educação de Vitória – ES.
Mas não dizemos que isso é “enrolar” por preguiça, descaso ou
descompromisso? O que seria engraçado?

Seria porque vinha de uma criança que, assim, não estaria autorizada a
“cobrar” dos outros? Seria porque também como criança “inocente” não tem papas na
língua e trazia a público algo que todos sabem, todos fazem, mas não devem “confessar”?

Preferimos afirmar que seu gesto constituía-se como um analisador27 da


maquinaria do poder disciplinar produzindo um esquadrinhamento de tempo-espaço-
atividade-hierarquias nos sujeitando, ou seja, tornando-nos sujeitos desse diagrama
disciplinar, mas também fazendo produzir resistências.

O menino-da-sineta leu, apenas, “os avisos” em seus enunciados. Na relação


tempo-espaço-atividade, a fiscalização foi analisada e com ela o poder disciplinar.

O gesto, considerado gesto útil, é decomposto em suas nuanças de


movimentos, estabelecendo-se aí um ritmo coletivo ao qual cada aluno será referenciado.
Impõe-se também uma relação entre cada gesto e a atitude global do corpo, para sua
realização mais eficaz. Cada tarefa exige uma certa disposição geral do corpo.

“Tem um bichinho cutucando a nossa bunda, por isso a gente não pára quieto
pra estudar.”

O tempo disciplinar impõe-se pouco a pouco à prática pedagógica. Decompõe-


se o tempo em seqüências lineares, evolutivas, separadas em séries múltiplas e
progressivas – consideradas como estágios. As seqüências vão se ajustando umas às outras
pelo grau de complexidade crescente. Uma série de procedimentos é utilizada para indicar
se o nível de cada um foi atingido e como isso se coloca em relação aos demais, definindo
a capacidade de cada um a partir de um programa. Isso, por sua vez, permite um controle
detalhado e uma intervenção pontual de correção. Esses mecanismos vão constituindo o
indivíduo, o individual que, a partir de sua gênese, progride, se desenvolve em estágios
que se complexificam.

27
Analisador: conceito-chave da Análise Institucional. O analisador é um revelador, um catalisador do
sentido. Afirmam que é o analisador que realiza a análise e não os analistas; “as situações falam por si”
analiticamente. São falas, situações, acontecimentos que analisam as produções em jogo.
Os programas aos quais nos referimos aparecem inicialmente nas instituições
religiosas como uma técnica espiritual e pouco a pouco enveredam pela escola cabendo ao
professor a tarefa de conduzir o aluno à perfeição por meio do exercício cada vez mais
exigente de uma vida ascética; vão marcando a aquisição da aprendizagem e o
comportamento exemplar.

Anteriormente ao séculos XVII, XVIII, segundo Foucault (12 Conferências, s.


d., p. 18), os estudantes formavam grupos de ambulação. A partir desse período, “...a
colonização da juventude fez-se a partir do modelo dos ‘Irmãos da vida comum...’ [grupos
comunitários regidos pela disciplina que vão contra o poder soberano] [...]: exercício do
indivíduo, ascetismo coletivo, busca de melhora para a sua salvação”.

A Pedagogia é desenhada pelo ascetismo. Sua idéia é de que só se aprende as


coisas em níveis sucessivos. A aprendizagem deve realizar-se em espaços fechados e
orientada por um guia (o professor da classe). O exercício é dos elementos fundamentais
da tecnologia política do corpo que vai passo a passo produzindo um assujeitamento que
nunca, de fato, se completa.

Como apontamos o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame são


instrumentos privilegiados das disciplinas em face ao adestramento.

A vigilância hierárquica (jogo de olhar) impõe-se como uma vigilância


permanente, “...olhares que devem ver sem serem vistos”, “cada um se sabe vigiado”, o
que desindividualiza o poder e lhe dá seu caráter de anonimato.

A própria arquitetura da escola é um operador de vigilância, sendo a


fiscalização uma importante peça da engrenagem disciplinar inserida nas atividades
escolares funcionando quase sempre em silêncio.

O Panopticon de Bentham28 constitui-se como uma formalização do poder


disciplinar e fornece o modelo para a prisão, a escola, o orfanato, a fábrica... A partir dele,
de sua fórmula generalizável, constitui-se sobre os corpos um saber, por exemplo, a
28
Panopticon de Bentham “...era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma
torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior.
Em cada uma dessas pequenas celas havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a
escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo [...]. Na torre central havia um vigilante [...]
tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante [que] pode ver tudo, sem que ninguém
ao contrário pudesse vê-lo” (Foucault, 1974, p. 69).
Psicologia da criança, retirando saber sobre os corpos: notificando, codificando,
acumulando informações.

Em relação à sanção normalizadora, Foucault (1977a, p. 159) diz que “...na


essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal [...]
quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis”.

As leis se ocupam do permitido e do proibido. Na sanção normalizadora, a


falta é referida ao “bem” ou ao “mal” incrementando micropenalidades. As disciplinas
inventaram um novo funcionamento punitivo – a penalidade da norma, que, ao comparar,
diferenciar, hierarquizar, antes de tudo, normaliza.

Aliás, a tecnologia da norma foi pouco a pouco penetrando o espaço da lei. A


norma regulando os indivíduos investe em determinados modos de vida fazendo funcionar
comportamentos/sentimentos. É o poder gerindo a vida ao qual Foucault se refere como
um biopoder.

O biopoder investido sobre a vida, segundo o autor, desenvolveu-se (século


XVII) por procedimentos que caracterizam as disciplinas, a “anatomopolítica do corpo
humano” e no século XVIII por uma “biopolítica da população” pelo controle regulador
das populações: natalidade, mortalidade, condições de saúde, longevidade, habitação...

Na escola, por exemplo, a sanção normalizadora pune: atrasos, ausências,


interrupção das tarefas, desatenção, negligência, falta de zelo, grosseria, desobediência,
tagarelice, insolência, sujeira, gestos não adequados, indecência, falta de modéstia.

Tudo o que é considerado “falta” o é em face à regra estipulada, seja em


relação a um período estabelecido para a aprendizagem, seja em relação ao modelo de
bom comportamento.

Os castigos são variados e têm papel corretivo, ora se apela à repetição da


tarefa ora à reflexão sobre a falta suscitando arrependimento.

“Faz logo de uma vez, senão você vai ter que fazer de novo.”

“Não estou arrependido e acabou.”


Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que é capaz de fazer
as crianças sentirem a falta que cometeram, tudo que é capaz de
humilhá-las, de confundi-las [...] uma certa frieza, um certa indiferença,
uma pergunta, uma humilhação uma destituição de posto (Foucault,
1977a, p. 160).

“Você acha certo o que você fez?”

“Logo você que é um bom menino, fazendo isso?”

“Não acredito no que ou ouvi de você!”

As penalidades, as punições não são usadas para reprimir o delito, não são
negativas, portanto. Ao produzirem comportamentos, são positivas e úteis. Recompensar
quando não se desvia da regra; punir quando isso acontece.

“Essa coisa de elogiar uns e não outros talvez não seja ideal, mas é o controle
possível de um para muitos. Gritar que se calem, que sentem, que façam silêncio, é muito
agressivo.”

Interessante observar a atualização dos mecanismos de poder disciplinar que


se configura como uma estratégia de controle de grandes conjuntos humanos em espaço
fechado, fator primordial de sua emergência como técnica de dominação privilegiada.

As penalidades se esvaíam....

“Tem que deixar por menos!”

“Esse negócio de ficar em cima estressa a gente. A vida já é tão difícil. Deixe
quieto!”

“Às vezes me sinto um urubu na carniça.”

“Faço vista grossa mesmo! É tudo bobaginha.”

“A gente fica nervoso e aí dá esses castiguinhos, é mais fácil, a gente já sabe


fazer direitinho, e olha que ninguém precisou ensinar!”

“Eles não fazem nada de mais.”


“Às vezes a gente humilha, é péssimo, parece que é quando se sente atacado e
não sabe o que fazer, aí usamos de nossa autoridade.”

“Como se a vida não pudesse se encarregar da energia deles e aí a gente, por


qualquer coisinha, fica em cima. Não pode ser assim.”

É equivocado pensar que só os castigos punem, a própria política de divisão já


castiga ou recompensa; sendo as suas verdades correspondentes, avaliadas pelas
disciplinas vinculadas por sua vez a sistemas de saber (Psicologia, Pedagogia, ...).

Não se julga o ato, mas a “alma” do aluno (ou do professor, ou do pedagogo


ou mesmo dos familiares). Alma aqui concebida como instrumento e efeito de uma
tecnologia de poder sobre o corpo, que, por sua vez, referencia um saber e vice-versa. Os
conceitos de personalidade, consciência, subjetividade, psique, por exemplo, aí se situam
como peças importantes da relação saber-poder, “...a alma , prisão do corpo” (Foucault,
1977a, p. 32).

O exame que combina vigilância hierárquica e sanção normalizadora


estabelece uma visibilidade que diferencia e sanciona cada um e todos. Nessa técnica,
relações de poder e saber se materializam em toda a sua plenitude estabelecendo a
verdade. A escola, que se torna o local de elaboração da Pedagogia, funcionando como
ciência, é um aparelho de examinar por excelência. Examina comparando um com outro.
Não só sanciona o aprendizado, mas sustenta-o. Cada aluno torna-se um “caso” a ser
medido, comparado, retreinado, excluído, normalizado.

O exame “...manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a


objetivação dos que se sujeitam” (Foucault, 1977a, p. 165).

Trata-se de

...vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce


sobre eles um poder [...] e que, enquanto exerce esse poder, tem a
possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir sobre aqueles que
vigia a respeito deles, um saber [que] se ordena em torno de normas,
em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou
não fazer (Foucault, 1974, p. 70).
Esse saber de vigilância e exame vai dar lugar às ciências humanas:
Psiquiatria, Psicologia, Pedagogia...

Os exames são acompanhados de registros, anotações que pretendem através


dos dias constituir um arquivo a ser utilizado, quando necessário se fizer justificar cada
aluno em seu desempenho. Constitui-se assim o aluno como objeto descritível em seus
traços particulares que foram obtidos por meio de anamneses, interrogatórios, etc.

O que mais teme o poder disciplinar (já que analítico) é a revolta, a


vagabundagem, deserções, confusão, as misturas, em que os limites tão bem delineados se
esfumaçam, onde não há mais lugar. A peste, que suscitou a utilização maciça dos
mecanismos disciplinares para seu controle, é também o pior inimigo, inimigo dessa
tecnologia de gestão dos homens.

O espaço da peste é o do contágio.

“Eu fiquei bagunceira porque minhas amigas são.”

“Tem que tirar esses meninos bagunceiros porque senão prejudica o resto.”

“Os amigos incentivam as desordens.”

“Esse aí tem que ficar separado senão parece que a confusão pega no resto. É
impressionante, um só provoca uma confusão geral.”

“Tudo isso é devido às más companhias.”

Contágio a ser administrado não só pela separação dos indivíduos, mas pela
inclusão de cada um em um lugar de normalidade ou de anormalidade. No poder
disciplinar todos são incluídos.

Mas o menino retorna e diz:

“Tia, não é pra tirar todos os bagunceiros não, porque senão vai ficar muito
sem graça! Escreve aí!”

Antes de entender essa frase como um desejo do aluno (no sentido mais usual
do termo), gostaríamos de remetê-la ao diagrama disciplinar. Na imensa e instável
correlação de forças, em sua capacidade de afetarem e serem afetadas, um afeto se esboça,
exige que se retorne e que se lhe desenhe um contorno. Fugidio, resiste ao poder
disciplinar e afirma que a “bagunça tem graça”, “não haveria graça sem ela”.

Apelo a incluir-se o “desarranjo”(ou outro arranjo), não desprezá-lo, não


excluí-lo. Um movimento é disparado. O que fazer em relação a ele? Ignorá-lo, infantilizá-
lo, discipliná-lo? Ou receber essa “graça” favorecendo sua expressão?

A resistência, melhor dizendo, as resistências

...possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens,


solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao
compromisso, interessadas, ou fadadas ao sacrifício; por definição não
podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder
(Foucault, 1977b, p. 91).

Nesse sentido e admitindo que um discurso ao mesmo tempo que veicula


poder o desestabiliza, os movimentos de resistência, a nosso ver, oferecem importantes
pistas para nosso exercício de liberdade; não, como dissemos, uma liberdade individual do
discurso liberal, mas como uma criação sempre social de outras possibilidades de vida.

Em relação ao fracasso escolar, perguntamos: por meio de que processos a


constituição desse objeto supôs e estabeleceu formas de dominação?

1.3 CONTROLE E VELOCIDADE: PEDAÇOS DO CONTEMPORÂNEO

Ainda que seja de forma exígua, Foucault, Deleuze, Virilio, Hardt, Pélbart,
dentre outros, chamam a atenção para outro tipo de maquinaria de
poder/saber/subjetivação que vem sendo acionado conformando um novo paradigma: o da
sociedade de controle.

A sociedade de controle caracteriza-se pelo controle ao ar livre, diferenciando-


se da disciplinar, que se volta para os espaços fechados – escola, família, fábrica, prisão,
hospital. Os autores referidos atestam que essas instituições atravessam uma crise e que
passo a passo desmantelam-se, dando lugar a novos arranjos e modos de existência.
Segundo Hardt (2000, p. 357), não é a lógica das disciplinas que está sendo
desinvestida “...se encontram, antes generalizadas como formas fluídas através de todo
campo social [...] o ‘espaço estriado’ da sociedade disciplinar dá lugar ao ‘espaço liso’ da
sociedade de controle”.

Uma tarde, em conversa com alunos, produz-se a idéia de fazer um vídeo da


escola. Filmar o que se quisesse, entrevistar, ser entrevistado, apreender o dia-a-dia. Quase
imediatamente surge a idéia de câmeras escondidas aqui, acolá que como tal pudessem
pegar “no flagra” atitudes consideradas inadequadas, quer fossem vindas dos próprios
alunos, dos professores ou dos demais e torná-las públicas exigindo reparação.

“Depois disso, aposto que todo mundo vai pegar leve.”

“Eu vou ser pego, não importa, o outro vai ser também. Todos vão ser.”

“Cada um aí que tome conta de si e se responsabilize.”

Aí produzia-se, sem qualquer ofuscamento, a sociedade de controle


produzindo subjetividades.

A sociedade de controle está relacionada com a constituição do Capitalismo


Mundial Integrado. Capitalismo de sobreprodução que, assim sendo, não se dirige para a
produção, mas para a venda de serviços e que vai tomando lugar após a segunda Guerra
Mundial. Instala o Mercado Mundial, emblema da sociedade de controle (ao passo que o
panóptico seria a imagem mais fiel da sociedade disciplinar). O Mercado Mundial domina
a um só tempo todo o planeta e sua lógica primordialmente dita que quem consegue
adquirir mais, num espaço de tempo o menor possível... vale mais.

Está relacionada também com a globalização da mídia, com a era da


informática e, na esteira de tudo isso, com outras dimensões de espaço/tempo
experimentadas: o tempo zero e a distância zero.

Lembramo-nos do menino que discorria sob sua admiração do “instante”,


dizendo “Em um instantinho de nada, a gente destrói tudo o que levou um tempão para ser
construído” – isso se referindo ao quebra-quebra das cadeiras escolares. A violência,
segundo Virílio (1984), é a própria aceleração, sua matéria-prima é a velocidade.
Enquanto na sociedade disciplinar passamos linearmente de um espaço a
outro: da família para a escola, desta para o trabalho, onde se recomeça a cada vez; na de
controle nada se termina, entra-se numa modulação variável e permanente de diferentes
graus e intensidades.

Na educação formal, há sempre um novo obstáculo a ser transposto o mais


rápido possível: outro curso, mais um nível de escolarização, ainda outra língua
estrangeira, outro aperfeiçoamento em computação. Tudo é fugaz, transformado
rapidamente em dejeto, a ser imediatamente descartável e de novo investido. As
reciclagens e capacitações se sucedem num exaustivo movimento em direção a novas
reciclagens e capacitações. Sempre falta tudo. Um “tudo” que nunca será suprido, pois
rapidamente será lançando um novo programa. Programas que desprezam o real
movimento do cotidiano escolar em suas lutas, que ignoram as práticas escolares em sua
dispersão. O controle é ilimitado, contínuo e ao mesmo tempo de curto prazo e notação
rápida. Velocidade máxima.

Na contemporaneidade

Não se trata mais de ganhar tempo, porém de abolir o tempo. O ideal


tecnocientífico contemporâneo consiste em absolutizar a velocidade a
ponto de dispersar o próprio movimento no espaço, anulando assim não
só a geografia e o tempo de duração desse deslocamento, mas a própria
idéia de espaço, de tempo e de duração. É o ideal do tempo e da
distância zero (Pélbart, 1993, p. 32-33).

Virilio (1984) afirma que hoje o poder é investido na própria aceleração. A


política está menos no espaço físico do que nos sistemas temporais administrados por
várias tecnologias, dando passagem à cronopolítica em detrimento da geopolítica.

“Sempre se diz que a liberdade primordial é a liberdade de movimento. É


verdade, mas não a liberdade da velocidade [...]. É possível uma ditadura do movimento”
(Virílio, 1984, p. 65).

Remetemo-nos, agora, à escola, como uma “caixa de velocidades”. Aí,


velocidades variadas se embaralham, tropeçando umas nas outras muitas vezes sem sequer
se aperceberem dos esbarros.
Lembramo-nos do menino-do-porta-lápis-azul que insistia cuidadosamente
naquela engenhosa operação todos os dias, não obstante tivéssemos a impressão de que ela
é que nele insistia provocando a dilatação de um tempo. Um afeto difícil de captar. Como
se, aliado ao invisível, ao informe, à busca de material de expressão “... [deixava] jorrar o
tempo para que [pudesse] surgir o bom momento de se fazer alguma coisa” (Pélbart, 1993,
p. 35).

Fazia-se durar o presente, intensificando-o – e isso não é compatível com a


velocidade.

Lembramo-nos daqueles alunos denominados de “mais lentos mesmo” por


uma questão de “natureza da pessoa”, exigindo dos educadores paciência e respeito para
ver chegar a hora dele de maturação. Necessário aí se faz esperar o avanço nos estágios de
assimilação e acomodação. Lógica de um tempo pré-fixado em uma verdadeira escala de
progressos.

Falamos, ao contrário, de um outro tempo: nem da natureza humana, nem do


relógio, nem da previsão, mas de um tempo intensivo da criação de territórios existenciais,
portanto aquele tempo – movimento que descola da inércia, tempo “gorducho” dos
instantes intensivos que nos inquieta em nossas certezas – verdades temporoespaciais, em
outros termos, histórico-políticas.

Lembramo-nos também de uma velocidade pesada, recheada de uma sensação


de impotência que percorria corredores, salas de aula e demais dependências.

E, ainda, de uma velocidade burocrática afastando o tempo da criação,


engendrando pequenos, sucessivos e ordenados espaços/tempo de cumprimento de tarefas.
E isso, na direção de todos para todos.

Puxando outros fios do diagrama-escola, apareciam as borrachas e lápis


perdidos todos os dias ou caídos ao chão todas as horas, ou esquecidos em casa quase
sempre, ou emprestados aos colegas nem sempre. Lápis sem pontas, borrachas que sujam
os cadernos, apontadores cegos... tudo isso envolvendo um delicado ritual de falas,
posturas corporais. Longe de fazerem com que perdessem tempo e ou “tapeassem” o
professor, atrapalhando o bom andamento das aulas, produziam um outro
tempo/aprendizagem que insiste em escapar pelas beiradas da velocidade burocrática e da
velocidade máxima, movimentando-se trejeitadamente – dançando com o invisível.

Vale a pena trazer à cena o menino-fiscal-da-sineta e... as greves que, segundo


Virilio (1984, p. 42), caracterizam-se mais pela interrupção da duração que do espaço,
configurando-se em “barricadas do tempo”.

Entendemos a desaceleração (melhor seria dizer velocidade de outra ordem)


não como avessa à liberdade de movimento, ao contrário, é essa liberdade que recusa a
ditadura da velocidade, que, no final das contas e por mais paradoxal que seja, nos convida
“a não sair de onde estamos” na medida em que esvazia a possibilidade de resgatar o jorrar
do tempo. Outra vez, melhor seria dizer engatar e não resgatar (dada a sua
irreversibilidade) esse “tempo sem medida, amplo, generoso” (Pélbart, 1993, p. 32).

A aceleração da aprendizagem tentando “recuperar o tempo perdido” o que faz


é libertar o aluno do tempo e não libertar o tempo, devolvendo-lhe sua potência criadora
que, a partir do informe, constrói espaços de vida, lá onde ela quer positivar-se.

Rocha (1996, p. 9) afirma que o tédio, experimentado na escola (como em


qualquer outro tempo/espaço social) “...pode ser traduzido como a sensação de impotência
de criar, de produzir forças mobilizadoras para a construção de caminhos e práticas
gratificantes e fecundas”.

Segundo a autora, o tédio se caracteriza como um descompasso entre o ritmo


de aceleração da vida social – que a escola ajuda a construir – e o plano das intensidades,
aquele da criação de outros modos de existência que desfazem a ordem seqüencial, linear,
evolutiva, programada no cotidiano escolar e que não concebe a desordem como o oposto
da ordem, mas como outra ordem temporal de inserção. Tédio, um índice de movimento,
de diferença, de algo que escapa, que foge ao controle, que desestabiliza colocando em
xeque a segurança de territórios formados. Segurança que não se abre para o caráter
provisório, circunstancial do território.

Esse índice de movimento pode abrir espaço para o tempo enquanto invenção,
ou fragilizar-se atualizando a impotência.
Se o tédio é entendido como apatia, desânimo, em frente às dificuldades, o
que vemos ser gerado é o individualismo, o pessimismo e muitas vezes o conformismo do
“a vida é assim mesmo”. O movimento de produção de estilos de vida mais potentes já nos
espreita a todos em todos os lugares e todo o tempo. Outros regimes de tempo que
delineiam outros modos de subjetivação podem ser uma arma poderosa nos tempos que
correm.

Dando-nos tempo ao tempo, é outra vez a Rocha (1996, p. 60) que recorremos:

Os dispositivos que pedagogizam as relações e o conhecimento


produzido na escola são responsáveis pelo tédio, na medida em que é
através de sucessivas divisões e naturalizações do processo que se
atualiza a lógica que exclui a diferença29 [grifo nosso]. Pedagogizar
implica dar formas às ações, às situações, tendo como referência os
modelos, os padrões convencionais aceitos socialmente como normais.

Dar forma às intensidades que pedem passagem para aí configurarmos


maneiras de viver, isso pode ser feito incluindo a diferença e não a rechaçando, recorrendo
aos modelos.

Arriscamos olhar o fracasso escolar nessa direção, incluindo a diferença que se


agita na repetência/evasão escolar, a “cutucar” aprendizagens, desenvolvimentos, relações
estabelecidas.

1.4 SUBJETIVIDADES EM USINAGEM

Em seus últimos livros, Foucault trabalha a temática da subjetividade que se


constitui em uma terceira dimensão: a primeira do saber, a segunda do poder.

A noção de subjetividade é definida de maneiras diversas conforme a visão de


homem que se delineia. No viés filosófico e/ou científico, não é unívoca. Entretanto, em
que pesem as diferenças entre racionalismos e empirismos, ou idealismos e materialismos,
de Platão passando por Descartes e Freud, a subjetividade nas produções ocidentais
modernas é sempre conceituada como eqüivalendo a qualquer coisa como um “eu”
29
Diferença – conceito de Deleuze e Guattari que remete a forças em tensão que nos afetam e que se
produzem em nós e que nos fazem sempre deferir em relação a nos mesmos, não se remete à noção de
identidade que afirma “eu sou isso, diferente daquilo”.
continente de uma verdade sobre si – mesmo na Psicanálise que substitui a verdade do
sujeito pelo “sujeito” da verdade.

Subjetividade aparece colada às noções de personalidade, intimidade,


interioridade, identidade, de individualidade. Essas noções vão ser exaustivamente
trabalhadas nas “Ciências” Humanas, o que caracteriza, por sua vez, as próprias Ciências
“Humanas”.30

Essa aderência vai se efetivando no entrecruzamento das relações de trabalho


capitalista que investe o corpo disciplinarmente; do Renascimento, do Iluminismo, do
liberalismo político, da migração da população para as cidades, do movimento da
Medicina higienista, do movimento romântico que privilegia a “expressão de cada um...”.

Fabrica-se um “eu” que se desenvolve internamente, sendo o


autoconhecimento o caminho seguro considerado para esse desenvolvimento que se quer
pleno, que caminha da imaturidade à maturidade realizada.

No campo das práticas educacionais/pedagógicas/escolares, aparece bastante


investido esse “procedimento”. Apela-se à auto-reflexão de todos, via de real crescimento
interior que, por seu turno, faz crescer também a qualidade das relações interpessoais –
qualidade quase sempre referida ao respeito mútuo, à cortesia, à “educação” ou bons
modos. Um convite extensivo se faz a todos para se auto-avaliarem, autodescobrirem,
autotransformarem. Ao mesmo tempo outro convite: que se ponham a falar sobre isso.

Em relação ao aluno, por exemplo, esse exercício é estimulado em face às


tarefas escolares propriamente ditas, ou às relações com colegas, professores e demais
pessoas que convivem no ambiente escolar, ou ainda aos aspectos “disciplinares” 31 –
pontualidade, uso do uniforme, “ocorrências”... As transformações desse “dentro” serão
alcançadas a partir de um mergulho em “si”.

30
A Psicologia e a Pedagogia, dentre outras “Ciências”, produzem-se como instrumentos capazes de
investigar, descrever, controlar, capturar a verdade e transformar o “eu”.
31
Disciplinares colocado entre aspas para diferir da disciplina na concepção foucaultiana que utilizamos.
Nesta os dois aspectos anteriores também fazem parte da mecânica disciplinar, assim como esse. Os
integrantes da escola, quando aludem à disciplina, referem-se às explícitas regras de condutas nesse
ambiente.
Esse remédio administrado a todos o e´ em doses maciças a todo e qualquer
“caso”, que, como tal, desvia-se do procedimento adotado, negando-se ao crescimento
interior. A noção de caso nos remete à identidade à qual este passa a ser referenciado
cotidianamente.

Como se a possibilidade de algum tipo de relação reflexiva da pessoa


consigo mesma, o poder ter uma certa consciência de si e o poder de
fazer coisas consigo mesma, definisse nada a mais e nada a menos que
o ser mesmo do humano (Larrosa, 1994, p. 38-39).

Trazendo em nosso roubo de Foucault a noção de subjetividade, esta não seria


equivalente à individualidade, à identidade, nem remete à interioridade por oposição à
exterioridade. Não faz referência a um sujeito constituído, a qualquer essencialismo ou
realismo do “eu”, do sujeito, da pessoa humana. Refere-se, outrossim, à criação de modos
de existência. Modos que se individuam com caráter sempre circunstancial e provisório,
maneiras, processo de constituição da experiência.

Melhor seria falarmos de processos de subjetivação, ou modos de existência já


que apontam diferentes e mutantes jogos estratégicos, diferentes possibilidades de vida
(conceito nietzschiano equivalente), para a criação de territórios de existência, para
“estilos de vida”, como afirma Foucault.

Utilizando Deleuze, Pélbart, Rolnik em suas leituras de Foucault (em seus


roubos) e o próprio Foucault, acreditamos que podemos situar melhor a questão da
subjetividade.

Tomando a concepção de diagrama, temos que forças afetam outras forças e


são afetadas por elas, tecendo redes de poder/saber. Ao nos referirmos aos processos de
subjetivação, é a ação da força sobre si mesma, a relação da força consigo que será
considerada.

Segundo a maneira de vergar, invaginar, dobrar a linha de força, constituir-se-á


determinado modo de existência.

É essa inflexão que cria um interior, mas que comporta dentro de si nada mais
nada menos que o fora. Interior e exterior não estão em oposição, não se dão
separadamente de modo que cada um seja fechado sobre si mesmo. Ao dobra-se,
desdobra-se, volta a dobrar-se de diferentes modos. Pontos que estariam próximos na
primeira dobra podem distanciar-se na segunda, tecendo novas configurações de rede,
produzindo estilos de vida diferentes quer em relação, por exemplo, a sistemas
econômicos, políticos, educacionais, sexuais, relacionais, quer em face ao amor, ao
trabalho, à percepção, à memória, à sensibilidade... que constituem a própria rede. Nós
somos a própria rede.

Cada forma-efeito pode cristalizar-se – capturada pelas relações de poder/saber


ou abrir-se para novas possibilidades de vida, abrir-se ao fora à vertigem que provoca
(Rolnik), à turbulência que ocasiona (Pélbart).

O contorno desenhado por determinada inflexão pode assumir um caráter de


“grades de prisão” fabricando e territorializando interior e exterior; assim o que ficar “para
lá” de seus limites forjados é vivido como ameaça.

O fora tem seu perigo, o de ficarmos paralisados em frente à sua turbulência, à


vertigem que ocasiona perdendo a potência criadora que ele sugere. O medo da destruição,
da desintegração do “eu” pode banir as forças do fora, excluir isso que se manifesta, que
irrompe. Mas podemos, de outro lado, produzir novas maneiras de ser.

Segundo Pélbart (1989, p. 133), o fora é “...aquele ‘espaço’ anterior de onde


surgem os próprios diagramas [...] o sujeito do qual falamos é um recurvamento sobre si
da força solta e nômade e que se cristaliza numa dobra”.

Foucault entende a subjetividade como o modo no qual o sujeito (um afeto de


si para si) faz a experiência de si mesmo ou a relação consigo, em um jogo de verdade no
qual está em relação consigo mesmo.

O ‘si’, a que se refere Foucault, em lugar de ser um processo de


fechamento numa interioridade, de contato íntimo com uma espécie de
‘essência’ individual, mostra-se como anonimato, como abertura, como
transformação, como produção de diferenças com o que se mumificou
em nós, em nossas relações, em nosso trabalho, em nossa vida
(Domingues Machado, 1999a, p. 150).

A experiência de si é historicamente constituída. É aquilo a respeito do qual o


sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se descreve, se julga. É o resultado
do entrecruzamento de discursos que definem sua verdade, de práticas que vêm a regular
seu comportamento e as formas de subjetivação nas quais se constitui seu próprio
“interior”.

O estilo de vida marcado pelas disciplinas, pelo liberalismo que tem como
premissas fundamentais a garantia da liberdade individual, o respeito ao próximo e
também à propriedade privada, o incentivo à competitividade entre iguais que seria o
motor da ascensão social, constitui-se a partir do que Foucault chamou de “técnicas de si”
ou “artes da existência”. As pessoas, vivendo dentro de uma determinada organização
social, produzem práticas que passam por diferentes ordens – individuais, coletivas,
sexuais, econômicas, jurídicas – e que se apresentam como regras de conduta.

Por técnicas de si ou artes da existências entendem-se:

...práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não


somente se fixam regras de conduta, como também procuram se
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma
obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo (Foucault, 1984, p. 15).

Foucault (1984, p. 48) afirma que o sujeito, sua história e sua constituição
como objeto para si mesmo são inseparáveis das “tecnologias do eu”. Essas são práticas

...que permitem aos indivíduos efetuar por conta própria ou com a


ajuda dos outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua
alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser obtendo assim
uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo estado de
felicidade, pureza sabedoria ou imortalidade.

Assim, as tecnologias do eu se localizam não no espaço da moral que alude a


regras coercitivas, mas no espaço da ética e da estética. A ética “...é um conjunto de regras
facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência
que isso implica” (Deleuze, 1992, p. 125-126).

No que nos cabe salientar, Foucault ainda vai trabalhar o autogoverno e o


poder pastoral, os quais estão relacionados com os processos de subjetivação. Em relação
ao autogoverno, o convite que se faz às pessoas é o de dizerem a verdade a propósito de si
mesmo, não somente obedecer, mas dizer o que se é.

O poder pastoral, por sua vez, “...não pode ser exercido sem conhecer o que
passa pela cabeça dos indivíduos, sem explorar-lhe a alma, sem forçá-los a revelar seus
segredos mais íntimos; implica um conhecimento da consciência e uma atitude para dirigi-
la” (Foucault, apud Larrosa, 1994, p. 53).

O poder pastoral é ao mesmo tempo massificante e individualizante.


Reconhece o rebanho como totalidade e cada um dos seus integrantes.

E Deleuze (1992, p. 124) pergunta:

...mas nós hoje: quais são nossos modos de existência, nossas


possibilidades de vida ou nossos processos de subjetivação; será que
temos maneiras de nos constituirmos com ‘si’, e, como diria Nietzsche,
maneiras suficientemente ‘artistas’, para além do saber e do poder?

Segundo Guattari & Rolnik (1986, p. 28), a sociedade capitalista produziu e


continua atualizando processos de subjetivação atrelados ao capital.

...a produção essencial do CMI32 não é apenas a da representação, mas


a de uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à
sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações
sexuais [às relações escolares], aos fantasmas imaginários.

Processos de subjetivação são entendidos como os modos pelos quais os


indivíduos ou grupos sociais se forjam como sujeitos coletivos. Subjetividade é fabricação
social e não uma propriedade privada do indivíduo referida a um “eu”, a um sujeito
pessoal. Em circulação nos espaços sociais, a subjetividade é assumida e vivida por nós,
cada um, particularmente.

O que nos chama a atenção é a indicação de que o CMI engendra modos de


existência específicos em sua lógica e que a maquinaria capitalista de subjetivação não
está voltada primordialmente ao nível da representação. Os processos de subjetivação não
são um caso de superestrutura, mas de infra-estrutura produtiva. Sua produção é a
indústria de base do sistema capitalista; é a matéria-prima do capital, como o é de qualquer
outro sistema de produção, atingindo o “coração dos indivíduos”. Produção econômica e
produção subjetiva não são exatamente duas instâncias diferenciadas, passam uma pela
outra.

32
CMI: Capitalismo Mundial Integrado. “O capitalismo contemporâneo é mundial e integrado porque
potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que
historicamente pareciam ter escapado [...] e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana,
nenhum setor da produção fique fora de seu controle” (Guattari, 1981, p. 211).
A economia subjetiva capitalista forja maneiras de sentir, pensar, amar,
relacionar-se, trabalhar, modeliza ser aluno, professor, a escola, a educação, a infância, o
fracasso e o sucesso, a vida social, portanto.

Podemos, entretanto, ter, em relação à modelização, uma atitude de maior ou


menor aderência, o que não tem a ver com nossa inserção em classes sociais. A
subjetivação capitalista passa tanto por dominantes como por dominados; não faz qualquer
distinção, também, em relação a sexo, raça, idade... Os “inimigos” estão dentro de nós
mesmos, não têm rubricas predeterminadas; simultaneamente somos inimigos e aliados
dos nossos melhores e maiores amigos ou inimigos.

Qualquer luta contra o capital não deve ser restringida ao plano da economia
política; deve considerar a economia subjetiva. Em As três ecologias, Guattari (1990) trata
de uma ecologia que engloba três registros que são fundamentais e que devem ser
acionados, se quisermos, de fato, uma revolução política, cultural e social. São eles: o
meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana.

A economia subjetiva capitalista produz indivíduos, o individual. Resultado de


uma produção de massa, os indivíduos são normalizados, normatizados, serializados. 33
Atua por classificação, comparação, fixação, hierarquização, juízo de valor; aciona a
submissão de uns por outros. Submissão em caráter dissimulado implicando a sujeição dos
corpos.

Ao invés de sujeito, preferimos a expressão “agenciamento coletivo de


enunciação”, que destitui o sujeito do lugar de fonte da enunciação. Agenciamento “...é
uma multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos e que estabelece ligações,
relações entre eles [...] sua unidade é o co-funcionamento: é uma simbiose, é uma
simpatia” (Deleuze & Parnet, 1977, p. 84).

Ou, ainda, “...agenciamento é comunicação direta, sem mediação da


representação. Comunicação sem subordinação hierárquica ou determinismo. Não opera
por causalidade, mas por implicação recíproca entre movimentos [entre] processos...”
(Deleuze & Parnet, 1980, p. 78).

33
Produto feito em série, o que é igual, homogêneo. Aquilo que se reproduz tal qual o modelo.
Todo agenciamento é coletivo, entendendo este não como conjunto, somatório,
coleção dos mesmos elementos, mas como polivocidade, multiplicidade.

A concepção de coletivo que o define como uma unidade está submetida à


modelização capitalística34 que individualiza não só pessoas, “indivíduos”, mas grupos,
organizações, instituições, massas, na medida em que localiza, identifica, homogeneiza,
totaliza e atribui valor a cada um deles, fabricando-os como um e todo. A identidade
mobiliza em um a multiplicidade que caracteriza a subjetividade. Podemos constatar, em
afirmações como “esse coletivo”, “aquela coletividade”, “não me sinto parte desse grupo”,
o mecanismo de individualização acionado.

Se a subjetividade é entendida como processo, é com a multiplicidade e com a


fragmentação que entramos em contato e não com a unidade, com homogeneidade e com a
totalização.

Com efeito, o termo coletivo deve ser entendido aqui como que no
sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo
junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-
verbais derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica
dos conjuntos bem circunscritos (Guattari, 1992, p. 20).

Benevides de Barros (História da Psicologia Escolar, s. d., p. 147) denomina


“modo-indivíduo” aquele modo de existência que remete para a busca de essências
irredutíveis.

Está hoje instalado um modo de funcionamento massivamente


‘individualizante’ sobre os objetos e as práticas, construindo traços de
equivalência entre sujeito-indivíduo, remetendo um enunciado ao
indivíduo que o enuncia, interiorizando, privatizando os atos e afetos
aos corpos que os expressam.

Esse modo de subjetivação, segundo a autora, vai contornar a noção de grupo


assim como a de sociedade. Passa-se a ver cada uma das três instâncias como três
instâncias, com relações interdependentes mas exteriores umas às outras. Um dos efeitos
apontados pela autora é a instalação de algumas díades: indivíduo/sociedade,
pessoal/social, desejo/política.

34
Guattari utiliza o sufixo ístico para designar formações não só capitalistas em seu modo de produção, mas
também outras economias que não se diferenciam, do ponto de vista do modo de produção de subjetividade
das sociedades capitalistas.
Mas, se tomarmos a subjetividade como múltipla, processual, sempre coletiva,
essas fronteiras se desfazem e o que encontramos nos indivíduos, grupos, instituições,
sociedades são fabricações de modos de existência.

Esta subjetividade múltipla, circulando nos conjuntos sociais poderá ser


apropriada pelos indivíduos e grupos, destituindo-os, por tal via, de
seus lugares naturalizados e substancializados [...] o que implica um
funcionamento de experimentações e criações (Benevides de Barros,
1994, p. 431).

Na escola, ser da 4ªB, 6ªD, 2ªA... era vivido como se cada “grupo” tivesse
características que só a cada um deles pertencesse, fazendo, muitas vezes, que alguns
alunos “não se adaptassem à sua turma” e se deslocassem para “melhores” relações com
outro grupo. A experiência de não pertencimento era freqüentemente esboçada, quer com
palavras, quer com atitudes.

Enunciava-se a turma mais forte, porém “levada”, a turma mais tímida, a mais
fraca, a mais contestadora...

Trocar alunos de turma ou até de turno era um procedimento adotado, não


freqüentemente, mas espreitava a todos em seus cotidianos. Sabia-se que poderia ser uma
“alternativa”.

Esse não pertencimento era visto como inadequação, incapacidade de convívio


social e trazia sofrimento para aqueles que nos chamavam em um canto para confessar e
encomendar remédios para a impossibilidade de seu “eu”. Perguntava-se se era algo de sua
própria natureza ou da natureza da turma na qual eram alocados.

Algumas vezes, porém, nos encontros que ocorriam, esses lugares se


enfumaçavam, essas totalizações davam lugar a fragmentações, à homogeneidade, à
heterogênese35 e tinham que “pensar um pouco” antes de responder à pergunta “a que
turma pertenciam”.36

35
Heterogênese: criação permanente de diferença, não é sinônimo de heterogeneidade que remete à
diferença de identidades.
36
Um artifício que utilizávamos nas vezes em que atravessávamos os interstícios da escola, por exemplo, a
contestação, vetor que, como tal, não pertencia a quaisquer dos grupos mencionados, ou turmas ou pessoas.
A pergunta tinha o propósito de provocar territórios bem delimitados.
Nesse momento falavam de diferentes experimentações de vida, de escola e
afetos sem endereço povoavam as conversas. Irritavam-se com nossa pergunta e
respondiam: “Sei lá, tanto faz”, “Pra que você quer saber isso agora?”, “Como assim?”.

Interessante era ouvir as inúmeras e variadas exceções que se listavam ao


tentarem esboçar o perfil de cada turma, de cada forjado grupo. Uma convulsão de
concordâncias e discordâncias, de verdades que se queriam assegurar.

Ao mesmo tempo, a modelização da subjetividade se choca com modos de


subjetivação singulares. Singularidade é aquilo, aquele movimento que recusa a
modelização da subjetividade dominante.

...é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que


poderíamos chamar de ‘processos de singularização’ uma maneira de
recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos, todos
esses modos de manipulação e telecomando, recusá-los para construir,
de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro,
modos de produção, modos de criatividade que produzam uma
subjetivação singular (Guattari & Rolnik, 1986, p. 16-17).

Não se deve tomar a singularização “de uma vez por todas”, pois adviria daí
nova modelização. O que não se deve perder de vista é o processo, seu caráter de produção
circunstancial. Tampouco o movimento seria o de voltar para um processo de subjetivação
anterior à modelização capitalística, pois, da mesma maneira, perderíamos o “mote” da
processualidade em sua potência criadora.

Faz-se um convite a produzir novos agenciamentos, novas conexões entre


níveis semióticos heterogêneos, entre instâncias maquínicas:37 econômicas, sociais,
tecnológicas, ecológicas, icônicas, midiáticas (máquinas de expressão de natureza
extrapessoal, extra-individual), de percepção, de sensibilidade, de memória, de desejo, de
afeto, corporais, biológicas, orgânicas (máquinas de natureza infra-humana, infrapsíquica,
infrapessoal).

Retomando, se tomarmos o coletivo em sua singularidade, o que entra em cena


é “massa”, o que há de inquietação de movimento, de desestabilização que provoca, ou

37
O mecanismo (sistema fechado) designa certos procedimento de máquinas técnicas ou uma organização
de um organismo. A máquina (sistema aberto de componentes heterogêneos) só funciona acoplada a outras.
Máquinas sociais, estéticas, teóricas, técnicas funcionam agenciadas entre si produzindo modos de
existência. O maquínico é o processual, portanto, sempre aberto à invenção.
seja, um movimento que afirma outras sensibilidades, outras percepções que escapam da
modelização da subjetividade capitalista. “Sei lá, tanto faz”, “Pra que você quer saber
disso agora?”, “Como assim?”... recheados de indignação.

Diríamos o mesmo em relação ao adulto/criança, professor/aluno,


fracasso/sucesso.

Se nossa referência para nossa experimentação são modelos, fragilizamos a


potência de transformação dos agenciamentos coletivos em seu caráter processual. A
experiência deixa de captar elementos do dia-a-dia que poderiam fazer emergir novas
referências. Sem dúvida, há algo de tênue nos processos de singularização que corre o
risco de ser recuperado pela modelização capitalista, que prima por sobrecodificar os
acontecimentos à sua volta, desinvestindo-os do seu caráter singular, bloqueando seu
processo.

O CMI aciona alguns mecanismos específicos que atravessam todo o espaço


social modelizando relações. São eles: culpabilização, segregação e infantilização. Além
disso as relações com o espaço e o tempo são mediadas pelos planos e ritmos impostos.

A culpabilização traduz-se pelas interrogações:

Quem é você? Você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de
quê? O que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais
na sociedade? A que corresponde sua fala? Que etiqueta poderia
classificar você? (Guattari & Rolnik, 1986, p. 41).

Mais afirmativas do que propriamente interrogações estabelecem um jogo


social que não se refere a seus emissores, mas a maneiras de viver.

A segregação vincula-se à culpabilização. O que se considera de valor


“inferior” é excluído,38 banido. Poderíamos relacionar esse mecanismo não só com a
chamada exclusão escolar (traduzida por evasão), mas também com a exclusão que é feita

38
Como vimos, a partir da lógica do poder disciplinar, ninguém é efetivamente excluído. Em uma sociedade
normalizada todos (e tudo) são incluídos – um em cada lugar, em cada lugar um. O fracasso escolar (evasão
e repetência) tem sido incluído no lugar da falta, da lacuna, da dificuldade, da impotência, do defeito... A
exclusão dos processos de singularização – que pode estar pedindo expressão, “cutucando” a modelização
fracasso escolar – é aqui entendida como a tentativa de banimento das forças do fora a partir dos
mecanismos que as referem à norma.
de todos aqueles processos de singularização. Os movimentos que se atrevem são
facilmente segregados.

Quanto à infantilização, segundo Guattari & Rolnik (1986), talvez o


mecanismo mais importante de todos, faz referência à tutela. Pensam por nós, agem por
nós, porque não somos considerados capazes de fazê-lo.

Para os autores, um elemento essencial da subjetividade capitalista é a relação


de dependência ao Estado das produções sociais, culturais... A escola, que constitui o
Estado em sua função ampliada, veicula que tudo o que se faz e se pensa, ou se quer fazer
e pensar deve ser medido por ela. Quantos aos mecanismos:

“As crianças não sabem o que querem, vêm a nós pedir limites.”

“Os adolescentes não sabem de limites, não têm essa perspectiva de limites,
do controle dos impulsos, ele é sempre instável.”

“Quem vai orientar as turmas? Se deixar por conta deles, vocês já viram!”

“Temos que ficar em cima, senão nada acontece.”

“Mas quem é que diz isso? Talvez não seja necessariamente o professor ou o
mestre explícito exterior, mas sim algo de nós mesmos, em nós mesmos, e que nós
mesmos reproduzimos” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 41).

Esses mecanismos acionados nas conversas entre alunos, professores,


pedagogos, serventes, diretor... produziam muitas vezes o silêncio daqueles que se viam
sem condições para “argumentar à altura” por mais que pensassem ou achassem coisas.
“Achar” é freqüentemente desqualificado, pois mostra, nessa lógica, que não há
embasamento teórico suficiente para as (então) levianas afirmações.

Um silêncio que falava mais do que mil palavras. Os enunciados se mostravam


no pedestal.

“Eles falam tão bem, sabem do que estão falando. Eu, aí, nem consigo começar
a dizer nada, a cabeça fica confusa, a língua parece presa, as pernas ficam moles.”
“Acontece muito comigo, quando eu sei que não é isso que ele tá falando, mas
não tenho o que dizer, ter tenho, só não consigo. Parece que ele tem algo prontinho pra
me derrubar só na fala. Nem ouve, joga fora o que vou dizer. Acha que não sou capaz. Eu
sou? Aí não consigo e dá dor no estômago e me dá raiva também.”

“Me olha como se nada que eu pudesse dizer ou fazer irá mudar nada.”

Um silêncio que incomoda – um bom índice de singularização.

Em diversas situações, ouvíamos “Fala, Fulano!”. “Diga o que você pensa!”.


Às vezes era “a vera”, nos momentos em que os mecanismos capitalísticos “cochilavam”.
Não havia nada de imperativo ou de concessão nesse “Fala” ou nesse “Diga”. Era mais
uma aflição que se pronunciava a querer outras composições para fazer “massa”.

Outras, tratava-se de uma bondosa concessão dos nossos modos de existência


que os da verdade de primeira categoria davam aos da verdade de segunda categoria.
“Afinal vivemos numa democracia”. E não pensem que esses procedimentos se fixavam
em pessoas ou funções, antes percorriam por eles, revezando os corpos.

Algumas vezes não era o silêncio que se fazia, emergia antes uma atitude de
rechaçar a situação que passava rapidamente a ser considerada agressiva já que permeada
por desobediência (no caso dos alunos) ou de afrontamento (no caso dos profissionais
entre si); o que facilmente servia para culpabilizar, infantilizar e segregar ainda outra vez o
agressor e evidenciar que de fato o agredido tinha razão, tinha a verdade (verdade e razão
consideradas sinonimamente).

“Eu só falei para o seu bem, não precisa ficar nervoso!”

“Só queria te ajudar, se você não quer, tudo bem!”

“A gente fala com todo carinho, eles parecem que não querem dar ouvidos,
paciência!”

Não só se enunciavam os mecanismos descritos como se bloqueavam os


índices de singularização que pediam expressão. Gerava-se impotência e frustração em
todos os envolvidos nos encontros. Esses encontros terminavam (um recorte temporal)
com “Não sei mais o que faço com eles!”; “Temos que encaminhar o caso, já esgotamos
todas as formas”; “Já me faltam forças!”; “Já fiz de tudo e nada deu certo!” Essa
modalidade de encontro se expressa ora no contentar-se, ora no lamentar-se.

Ao mesmo tempo “bons encontros”39 aconteciam. As conversas fluíam, as


idéias se produziam, o sentimento de ter muito o que fazer coletivamente se materializava.
Perdia-se a noção do tempo e ganhava-se uma potência em agir. Inventa-se.

O fracasso escolar tem sido produzido no modo de existência que tem como
mecanismos privilegiados a culpabilização, a segregação e a infantilização, ou seja, é
formalizado na lógica capitalista. Mas se o tomamos como um índice de singularização, o
convite a construção de outras práticas está feito.

1.5 TUDO É POLÍTICO, AO MESMO TEMPO MACRO E MICROPOLÍTICO

Revolução molecular é outra denominação utilizada por Guattari & Deleuze


para designar os processos de singularização. São processos de diferenciação produzindo
modos de existência originais quer nos níveis infrapessoais, pessoais ou interpessoais.

Construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os
próximos, com as crianças – seja numa escola ou não – com amigos,
com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por
exemplo, sua própria relação com o corpo, com a percepção das coisas:
isso não seria, como diriam alguns, desviar-se das causas
revolucionárias mais fundamentais e mais urgentes? Toda questão está
em saber de que revolução se trata! Trata-se, sim ou não, de acabar
com todas as relações de alienação – não somente as que pesam sobre
trabalhadores, mas também as que pesam sobre as mulheres, as
crianças, as minorias sexuais, etc., as que pesam sobre sensibilidades
atípicas... (Guattari, 1981, p. 67-68).

Molar e molecular são dois planos (ou segmentos) que atravessam indivíduos,
grupos, instituições, sociedades. Esses conceitos se cruzam com os de micro e
macropolítica. O macropolítico se refere ao plano molar e o micropolítico ao plano
molecular. O molecular como processo pode nascer no macro assim como o molar pode se
39
“Os bons encontros ocorreriam quando um corpo compõe com o nosso e toda sua força ou parte dela vem
aumentar a nossa. Um mais de força não no sentido de um acúmulo de força, mas no sentido de uma maior
intensidade das forças ativas, que venha produzir uma outra qualidade de força, uma potência de agir. Os maus
encontros ocorreriam quando os corpos em suas relações produzem decomposição de forças – forças reativas –
que se expressariam no se contentar ou se acomodar em sofrer os efeitos, em reclamar, em se lamentar, em
acusar. Estas seriam as paixões tristes, a potência do padecer” (Domingues Machado, 1999b, p. 225).
instaurar no micro. Sociedades, instituições, indivíduos... são perpassados por essas duas
espécies de segmentaridade ao mesmo tempo. Segmentaridades que são inseparáveis pois
se enredam e se cruzam, passam uma para a outra, transformam-se, coexistem
estreitamente misturadas; uma pressupõe a outra sempre.

Vejamos:

...somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O


homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os
estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o
vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentada
conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da
cidade; a fabrica conforme a natureza dos trabalhadores e das
operações (Deleuze & Guattari, 1996, p. 83-84).

Somos segmentados: binária (ou se é homem ou mulher, ou se é adulto ou


criança), circular (sala de aula, escola, rua, bairro, cidade, segmentos que vão ressoando
concentricamente), linearmente (primeiro a família, depois a escola, depois o trabalho).
Segmentos que se sobrecodificam. Os relacionamentos entre as pessoas são também
segmentarizados, assim como elas, e não só as classes ou mesmo o Estado.

A organização molar ou de segmentaridade dura se refere aos grandes


conjuntos bem circunscritos (homem/mulher, professor/aluno, fracasso/sucesso). Cada um
dos segmentos é fixado em um território, bem determinado, codificado e sobrecodificado.
Bem talhada, garante, controla a identidade de cada relação, pessoa, grupo, instituição.
Muito se faz para não perturbar essa identidade. Reencontramo-la lá onde a produzimos.

As linhas molares são máquinas binárias de classes, sexos, idades, setores


(público/privado), raças, de subjetividade: em nós/fora de nós. Dicotômicas, engendram
“escolhas”: “ou isso ou aquilo”. Ao estabelecerem territórios, sua característica como
dispositivo de poder, fixam códigos para cada um deles e possuem um Plano de
Organização ou Plano Transcendente, ou ainda chamado Estrutural/Genético. Esse plano
“...dispõe de uma dimensão suplementar (uma dimensão escondida), de uma espécie de
sobre-código, pois não é dado por si mesmo, mas deve sempre ser concluído, inferido,
induzido a partir do que ele organiza” (Deleuze & Parnet,1977, p. 110).

Quando nos referimos às escolas em geral nos situamos no plano molar. Assim
como: o professor ensina, o aluno aprende, aquele estabelece tarefas para esse que as deve
cumprir com qualidade esperada e no tempo determinado. O primeiro avalia, corrige; o
segundo estuda e executa. O supervisor supervisiona os professores. O coordenador
organiza a disciplina. A diretora provê o que se faz necessário infra-estruturalmente.
Segmentos bem determinados que se casam perfeitamente.

Já as linhas de segmentos flexíveis, moleculares, são verdadeiros fluxos


moleculares, microdevires.

Por fluxo, entende Deleuze, algo de intensivo e mutante, algo entre uma
criação e uma destruição. O fluxo é abstrato mas real, eficaz. Só se
apreende o fluxo através do segmento e este só existe através do fluxo
que o banha. Os fluxos não param de agitar, de remanejar os
segmentos, assim como esses só se prolongam pelos fluxos que
conservam (Lima, 1999, p. 92).

Um fluxo “...implica sempre algo que tende a escapar aos códigos não sendo,
pois, capturado e a evadir-se dos códigos, quando capturados...” (Deleuze & Guattari,
1996, p. 99).

A noção de devir utilizada por Deleuze & Guattari (1997, p. 64) refere-se à
mudança, são orientações, direções que se opõem à adaptação, a modelos. Não se refere ao
passado ou ao futuro, efetivam-se no presente. A idéia de devir está ligada à possibilidade
de produção de singularização.

Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos
que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre
as quais instauramos relações de movimento e de repouso, de
velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de
nos tornamos, e através das quais nos tornamos.

Enquanto em relação à segmentaridade dura se traça um porvir, as linhas


flexíveis ou moleculares40 traçam devir. Não operam por binarizações, antes, caracterizam-
se por traçar fluxos de desterritorializações que desarranjam os dois segmentos do
binarismo molar. Aqui falamos de relacionamentos menos localizáveis, exteriores a eles
mesmos, concernentes a fluxos que escapam das “pessoas”, das “funções”. Um
movimento de devir outro “...o devir – outro seria a corporificação na dimensão visível,

40
Seu plano é chamado de Plano de Consistência ou Imanência ou de Composição ou da Natureza. Plano
que trabalha com conjugações de fluxos, velocidade e lentidão entre as partículas. Não é um plano
preexistente, é exatamente construído nos agenciamentos.
das diferenças que iriam se engendrando na dimensão invisível, que estariam aquém e
além do eu” (Rolnik, 1994, p. 46).

Segundo Rolnik, “corpo vibrátil” é aquele que alcança esse invisível, corpo
sensível aos efeitos, às intensidades, às repulsas e atrações, ao encontro dos corpos.
Importante ressaltar que estamos diante de uma empreitada que não necessita de um
especialista para ser levada a cabo (psicólogo, pedagogo...). O corpo vibrátil não é de
propriedade de quem quer que seja, de uma vez por todas e em todos os momentos.

O plano do invisível é o da produção das diferenças entendida como


desassossego que pode levar à criação de novos modos de vida. As conversas aqui são
atravessadas por minúsculos olhares, entonações, silêncios, subentendidos, por vibrações
de intensidades maleáveis, micromovimentos.

Essa linha molecular mais maleável, não menos inquietante, muito mais
inquietante, não é simplesmente interior ou pessoal: ela também põe
todas as coisas em jogo, mas em uma outra escala e sob outras formas,
com segmentações de outra natureza, rizomáticas ao invés de
arborescentes. Uma micropolítica (Deleuze & Guattari, 1996, p. 72).

O rizoma define um sistema aberto, diferente do sistema arborescente – que


fixa uma ordem, pontos, posições. Nele o que é caule, depois é raiz, seu crescimento é
horizontal. Ao olhar, aparentemente, não começou em lugar nenhum; para onde vai não dá
para sabermos também. Pode-se cortar em qualquer lugar que o rizoma não morre,
qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro. “Um rizoma não cessaria de conectar
cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências,
às lutas sociais” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 15-16).

O rizoma é característico da multiplicidade:41 muitos pontos ligando-se entre si


de várias maneiras. O que distingue a multiplicidade do múltiplo é que este está apoiado
em um modelo derivado do uno se opondo a ele; já as multiplicidades não supõem
nenhum modelo, unidade ou totalidade. Existem somente linhas no rizoma; linhas
segmentadas, linhas desterritorializadas a se conectarem em diferentes direções,
desenhando mapas. O rizoma seria uma rede de devires.

41
Multiplicidade: conceito “roubado” de Bergson por Deleuze e Guattari. Para Bergson, no mundo é tudo
multiplicidade. As unidades se formam a partir da “apreensão do espírito”.
Um rizoma está sempre entre [grifo nosso], no meio, tem como tecido as
conjunções e... e... A árvore tem filiações, começa e termina em algum
ponto. O entre não é algo localizável no espaço, é um movimento
transversal, um fluxo incessante, um devir. Como tal, não pode ser
definido a não ser fragmentária e provisoriamente, na relação, podendo
sempre ser outra coisa... (Benevides de Barros, 1994, p. 271).

É importante ressaltar que não devemos tomar os sistemas rizomático e


arborescente em oposição. “Nos rizomas existem estruturas de árvore ou de raízes e, ao
contrário, o ramo de uma árvore, a divisão de uma raiz pode pôr-se a brotar em forma de
rizoma...” (Deleuze, apud Benevides de Barros, 1994, p. 271). A questão refere-se,
portanto, a dois processos diferentes e não a dois estados.

As duas segmentaridades42 se atiçam uma a outra ou se confirmam. Há sempre


uma relação proporcional entre ambas, seja direta ou inversamente proporcional. Quanto
mais a organização molar é forte, mais ela suscita uma molecularização de seus elementos,
mas também coexistem movimentos moleculares que vêm a desterritorializar as
dicotomias, conjugando fluxos, apontando devires. Não há, então, oposição, contradição
entre molar e molecular. Todos nós e nossas instituições, segundo os autores, temos um
plano molar e um molecular. Os códigos são inseparáveis do movimento de
descodificação.

Mas precisamos ver mais de perto uma outra linha.

A linha de fuga, linha de gravidade ou celeridade, igualmente real, mas sem


forma, abstrata, não existe a priori, é uma desterritorialização absoluta; é imprevisível, de
destinação desconhecida. Uma linha de “experimentação-vida”. Não admite segmentação
fazendo inclusive explodir as outras duas. A linha de fuga é criação traçando-se no próprio
tecido social. É necessário salientar que as três linhas (e não só as duas anteriores
descritas) são dadas simultaneamente, tomadas umas das outras, isto é, tomadas de modo
imanente num verdadeiro emaranhado. Estão presentes o tempo todo e não é fácil
desenovelá-las.

42
Deleuze e Guattari acrescentam que talvez seja preciso reservar as palavras linha e segmento para a
organização molar e buscar outras palavras que convenham melhor à composição molecular – fluxo, devir.
Nesse plano, mais que linhas moleculares segmentadas, encontramos fluxos moleculares com suas
mutações, suas conexões, suas precipitações... intensidades.
A linha molecular ora pende para o lado molar ora para a linha de fuga, está
presa entre as duas linhas.

Faz-se necessário situar os “perigos” das linhas.43 À primeira vista, a linha de


fuga parece a mais difícil. É Deleuze & Guattari (1996, p. 76) que afirmam “...devemos
inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-
as efetivamente na vida. As linhas de fuga – não será isso o mais difícil?”

A molar endurecida nos faz correr o perigo de não nos modificarmos e nem as
coisas ao nosso redor. Ficamos reverberando ao infinito.

A molecular é perigosa, porque muitas vezes pode reconstituir em si


microfascismos, microformações de poder. Ao desfazer o binarismo da dura pode trazer
para si os elementos encrostados nas formas endurecidas. Um exemplo simples: ao
desfazer a dicotomia homem/mulher, e entrar no terreno dos “mil pequenos sexos”, no
dizer de Deleuze, pode a estes incorporar uma falocracia. É fácil reconhecer os inimigos
no nível molar. No molecular as coisas se complicam bastante.

A linha de fuga, embora, às vezes, traga a potência e a alegria da criação, já


que “atravessa o muro”, “sai dos buracos negros”, é passível de “...ricochetear no muro, de
recair em um buraco negro, de tomar o caminho da grande regressão e de refazer os
segmentos mais duros ao acaso de seus desvios” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 80). Isso,
ao invés de se conectar com outras linhas e aumentar sua potência.

A linha de fuga é uma máquina de guerra e como tal traz os perigos da


destruição. Traz, muitas vezes, ameaça, desespero, desterritorialização pura. O medo de
perder a segurança da organização molar em sua dureza nos intranqüiliza. Mas nos
intranqüiliza também ficar reverberando ao infinito. “Essa história de intensidades é muito
delicada: a mais bela intensidade torna-se nociva quando ultrapassa nossas forças nesse
momento, é preciso poder suportar, estar em boas condições” (Deleuze & Guattari, 1996,
p. 71).

43
Uma linha não é melhor ou pior que a outra, não é o caso de julgar qualquer uma e sim perguntar sobre o
que fazem funcionar.
Micropolítica, rizomática, cartografia são denominações dessa modalidade de
investigação das linhas que compõem o indivíduo, grupos, instituições, sociedades, coisas
– como o fracasso escolar, por exemplo.

Fazer uma análise micropolítica é, trazendo as formas constituídas, entrar em


sintonia com o plano molecular – plano que constrói sujeito e objeto.

***

O passarinho

“ Tia, o que você está fazendo aí no banco tão quietinha?

 Estou procurando umas coisas.

 Você perdeu aí no banco mesmo?

 Não, não perdi nada não, estou só procurando.

 Não era melhor você andar para procurar?

 Também. Mas essas coisas que estou procurando não precisam que a gente
fique andando o tempo todo. Às vezes, se a gente se mexer muito, elas fogem. Estou
procurando linhas de fuga.

 O que é isso?

 Lembra quando você me falou, outro dia, de um bichinho que fica


cutucando a bunda? Pois é. Essas linhas de fuga não só cutucam nossa bunda como o
corpo inteiro. A gente fica inquieta, sem sossego, como que procurando uma coisa que
nem sabe o que é direito. A gente só sabe que não é aquilo ‘de sempre’, que vemos,
dizemos, fazemos, todos os dias; é uma coisa diferente de tudo. Nem ela (a coisa) sabe o
que é ainda, só sabe quando acontece.

 Entendi. Pode deixar que eu vou te ajudar a procurar. Vou falar com meus
colegas desse negócio e eles te ajudam também.
 Legal, obrigada, estou precisando de ajuda mesmo. Como é que eu não
pensei nisso antes? Que vocês podiam ajudar! Olha aí, alguma coisa já aconteceu. Eu
não tinha pensado antes e o pensamento aconteceu. De certo porque a gente aqui nesse
banco, nessa conversa gostosa fez que isso acontecesse, até sem planejar. Foi indo... foi
indo... A gente fez uma coisa diferente, sabia?

 O quê?

 Fico pensando que os adultos muitas vezes acham que as crianças não
podem ajudar, que só eles ‘sabem das coisas’. As crianças, às vezes, também acham isso,
como se tivesse ‘um adulto na criança’.

 Só ajudar a pegar giz para o professor, os livros no armário e, em casa, a


catar os brinquedos e a descer com o lixo.

 É isso aí!”

***

Durante uns bons dias, algumas crianças e, em especial, minha parceira,


traziam-me seus achados.

Não me perguntavam se o que traziam como linhas de fuga, de fato, poderia


ser caracterizado como tal. Nem eu tampouco assumi a tarefa de ir explicando, separando
o que poderia ou não poderia ser considerado como linha fuga. Nesse movimento, elas
perderiam até seu sentido maior – fugiríamos da fuga.

O que mais nos encantava era que, num estalar de dedos, cartógrafos brotavam
de todos os lados.

Cartógrafos cumpliciados tentavam ir acompanhando o rico cotidiano,


construíamo-nos. Embaralhávamo-nos nas linhas, tropeçávamos nas duras, desfiávamos a
rede. Éramos nós a própria rede. Dávamos passagem ao bichinho que cutuca o corpo
inteiro.

Chego à escola. No pátio havia um grande reboliço. Nunca tinha visto tanta
gente junta – nem na hora obrigatória do Hino Nacional. Um passarinho ficara preso entre
a laje e o suporte de uma de suas luminárias mal fixada. Pé direito alto e quase inacessível.
Quase.

A impressão de tanta gente se dava pela intensa mobilização das forças. A


mobilização para salvar o passarinho chacoalhava as energias. Todos davam sugestões, e
soluções foram pouco a pouco sendo geridas entre eles. Materiais heterogêneos: corpos,
pedaços de pau, cordas, escadas, ganchos, panos, falas, atitudes eram agenciados
singularmente desenhando rizomas transitórios, mas sempre insistindo em salvar o
passarinho.

Não se sabia mais quem era quem ou o quê. O tempo assumia sua dimensão
intensiva e um calor nas relações pairava no ar. Uma alegria do esforço (ou será esforço da
alegria?) se fazia sentir nesse espaço que parecia ter crescido em dimensão ao tomar outras
direções.

O movimento de libertar o passarinho conectou-se com o movimento de


libertação da experiência dos modelos. Não havia modelos. Máquina-passarinho e
máquina-escola foram acopladas e funcionavam produzindo potência em agir. A
experiência pôde funcionar como elemento de construção do fazer, a partir de seus
processos.

Um bom encontro aconteceu.

Minha parceira mais fiel, do outro lado do pátio, corre em minha direção,
olha-me fundo nos olhos e está habitada por velocidades e intensidades que minha
percepção ordinária não registra. Parecia-me que se dava um tempo para respirar um
pouco e que também esperava que as palavras se decidissem por escolherem entre si quais
ocupariam sua fala.

“Tia, achei uma linha de fuga para você!”. E me segredando ao ouvido


prossegue: “É essa festa do passarinho”.

A noção de desejo de Deleuze e Guattari nos ajuda a situar melhor a


micropolítica. Podemos pensá-la como uma analítica das formações do desejo no campo
social.
Anteriormente falamos de uma das faces do agenciamento: o agenciamento
coletivo de enunciação. A outra face do agenciamento concomitante àquela e a ela ligada
de maneira radical é denominada pelos autores de agenciamento maquínico do desejo ou
agenciamento maquínico de efetuação.

As máquinas desejantes têm como característica produzir sempre o produzir:


produção do produzir. Desejo é produção, não há desejo “em si”. Se falamos em produção,
dizemos que não existem esferas autônomas que condicionam a produção. Todo desejo é
maquinado, agenciado; seria inconcebível um desejo fora de determinado agenciamento,
de determinado plano a ser forjado, onde fluxos se conjugam.

O desejo é processo. Assim sendo, só é concebido no seu plano de imanência.


Desejo é, então, produção e processo, ou seja, processo de produção – usinagem,
maquinação incessante de modos de vida individuais/coletivos, “...ele engaja
necessariamente um ‘coletivo’, agenciamentos coletivos, um conjunto de devires sociais”
(Lima, 1999, p. 76). Sempre o desejo quer mais conexões, mais agenciamentos:

...o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra coisa senão
a produção social. Não é possível reservar ao desejo uma forma de
existência particular, uma realidade mental ou psíquica, que se oporia à
realidade material da produção (Deleuze & Guattari, 1976, p. 47-48).

As noções de agenciamento coletivo de enunciação e agenciamento maquínico


do desejo conectam o desejo às multiplicidades do campo onde se produzem os
enunciados. Campo esse que é sempre social.

Os investimentos do desejo constituem-se o próprio terreno da micropolítica


tanto no nível molar quanto no molecular, relembrando que esses níveis não estão em
oposição. O desejo pode orientar-se para novas sensibilidades não atreladas à modelização
capitalista ou, ao contrário, pode entrar nos seus meandros já que tem possibilidades de
montagens infinitas; pode também paralisar-se, bloquear-se... A ele nada falta, é ela, a
falta, que remete à positividade do desejo.

É esse sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelos movimentos


do desejo, o interpreta como sinal de uma carência de completude [ao
contrário]... aquilo que para o sujeito é falta, revela-se como excesso de
singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a
tornar-se outra, se o processo seguir seu curso (Rolnik, 2000, p. 458).
Na biblioteca da escola, uma tarde, junto a um grupo de alunos, líamos
estórias. Até que às nossas mãos chega a história de Branca de Neve e os Sete Anões.

Nós nos perguntamos que “roubo” poderíamos fazer da história...Depois de


alguns dias, tínhamos outra estória a ser contada.

“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?...” (Branca de
Neve, s.d., p. 1, 5, 8, 12) frase proferida repetidamente por uma “rainha má e orgulhosa”
(sic) ao seu espelho mágico.

De que repetição estamos falando pelas repetidas vezes em que a rainha faz
essa pergunta?

Uma repetição que busca o reconhecimento. Reconhecer-se não só como bela,


mas como a mais bela e, principalmente, reconhecer-se: desde sempre e de uma vez por
todas. Definitivamente. Diria que a rainha nesse movimento – ou esse movimento na
rainha – buscaria ser um e ser todo, ser identidade.

Repetição do mesmo, retorno do mesmo ao mesmo.

Quereria, a rainha, na esteira do platonismo, ser mais que uma “boa cópia”
semelhante ao modelo? Almejava ser uma cópia perfeita que chegasse a se confundir com
“a própria essência do belo”? A identidade da rainha era ser tal e qual o original? Original
e cópia, lógica da representação que privilegia a identidade.

Deleuze, ao propor – no percurso de Nietzsche – a reversão do platonismo,


pensa a diferença tomada como afirmação do simulacro.

De acordo com o autor, Platão ao fazer a divisão entre o mundo sensível


(mutável, aparente – mundo das cópias) e o mundo inteligível (imutável, portador das
essências – mundo do modelo), visa a criar um critério de seleção e separa o bem do mal,
a verdade do erro. Para Platão, não há verdadeiro conhecimento do sensível, só há
conhecimento do inteligível. A noção de aparência sensível remete a uma deficiência do
sujeito que deforma, em virtude das ilusões dos sentidos, o conhecimento da essência
inteligível. O mundo das aparências, segundo Platão, não nos garante a verdade; seria
preciso tirar todas as máscaras par serem alcançadas as verdadeiras essências.
Mas não está exatamente nessa divisão – mundo sensível e mundo inteligível –
a crítica de Deleuze a Platão e sim em outra que dessa deriva: a diferença entre cópia e
simulacro. Sua crítica se volta contra a subordinação da diferença à representação.

A filosofia da representação definida pelo primado que confere à identidade


tem como principal pressuposto que o pensamento é o exercício natural de uma faculdade,
pressupondo uma natureza reta do pensamento no sentido que ele possui formalmente a
verdade. Um sujeito já-lá idêntico, um objeto já-lá idêntico a si que para chegar à verdade
necessita, de um lado, dessa natureza reta do pensamento e, de outro, da “boa vontade” do
pensador. A representação pressupõe uma origem, um a priori, uma essência, uma
substância, uma idéia primeira, um invariante histórico, uma entidade transcendental.

Ao fazer a diferença entre cópia e simulacro, Platão situa o primeiro numa


relação de semelhança com o modelo, com o original (boas e más cópias) e o segundo
como cópias degradadas, sem semelhanças, não se referindo ao original. Os simulacros
vão ser excluídos, exorcizados já que a lógica é procurar o verdadeiro, o puro.

Subverter a filosofia da representação é afirmar a potência do simulacro,


destruindo a lógica original/cópia. Os simulacros não se deixam hierarquizar ou ordenar; é
diferença não mediatizada pela representação, isto é, submetida à identidade, à analogia, à
oposição, à semelhança. É pura diferença.

A filosofia da Diferença ou da Multiplicidade caracteriza para Deleuze o


pensamento como invenção se agenciando nos encontros; não é o pensamento lugar de
resposta, de descoberta de verdades e sim de afirmações sempre provisórias. Na lógica do
simulacro, o mundo é só aparência, máscaras 44 sobre as máscaras, não havendo nelas nada
por trás, a essência verdadeira a ser revelada.

O que o simulacro nos indica como modo de funcionamento é a


simulação, maquinaria intempestiva que torna impossível a fixidez, que
convida a um nomadismo sem fundamentos, sem origens, sem
identidade [o simulacro aponta para] [...] a desnaturalização dos
objetos e das práticas, para o fim da crença de que é possível conhecer
algo sem conhecer seus movimentos de emergência e proveniência
históricas, de que é possível ‘existir’ algo separado de suas relações

44
Máscaras são “operadores de intensidade” (Rolnik, 1989, p. 23), possibilitam, assim, mais ou menos
passagem de afetos.
com o mundo (Benevides de Barros, História da Psicologia Escolar,
s.d., p. 13).

Ao analisar o modelo platônico, Deleuze considera-o o modelo do mesmo: a


verdade é verdadeira, a justiça é justa, a beleza é bela...

Benevides de Barros diz que o simulacro, por sua vez, não está atrelado ao
modelo do mesmo. Ele também retorna, a diferença retorna incessantemente, mas, como
capacidade de diferir. Repetição sim, mas da diferença. Ela insiste. O que revém é o diverso,
o múltiplo, o diferente; não é o mesmo que revém. Ao invés do UM, o múltiplo; ao invés da
identidade, a diferença; ao invés do ser... o devir; ao invés do definitivo... o provisório.
Segundo Nietzsche/Deleuze, o mundo é vir-a-ser, não há mundo do ser.

Seria a rainha platônica? Teria a rainha pavor dos simulacros? Estaria ela
submetida ao modelo do mesmo, à repetição do mesmo? A beleza é bela... “...um dia, a
rainha má e orgulhosa fez a mesma pergunta a seu espelho e ele, desta vez, respondeu: 
Agora já não é você a mais bela! A mais bonita do reino agora é Branca de Neve” (Branca
de Neve, s. d., p. 11).

Desterritorialização. O espelho (ou esse outro movimento na rainha) aponta o


desconhecimento, não mais o reconhecimento, fazendo desabar um território já bem
constituído. O espelho incita à bifurcação. E a rainha sobrecodifica, reterritorializa “...e
naquela mesma hora, mandou chamar o chefe da guarda do castelo. Deu-lhe ordem de
levar Branca de Neve, imediatamente para a floresta, onde deveria matá-la” (Branca de
Neve, s.d., p.11).

Levar para longe, “o fora para fora”, afastar aquilo que desarranja certezas,
verdades bem estabelecidas e naturalizadas. O que se anuncia? É a diferença que pede
expressão, a tecer outras possibilidades de vida, de sujeitos e objetos provisórios.

Como o chefe da guarda ficou com pena de Branca de Neve, não a matou,
escondeu-a na floresta (ocasião de seu encontro com os Sete Anões) embora a rainha tenha
passado a acreditar que tinha se consumado o extermínio da jovem. O perigo de diferir
estava afastado. Estava? Lembremos: a diferença insiste.
Ainda outra vez, ao perguntar ao espelho tranqüilamente quem era a mulher
mais bonita, este respondeu: “Branca de Neve, é mais bonita” (Branca de Neve, s. d., p. 8).
A rainha então decidiu matar a jovem com as próprias mãos; entretanto a estratégia não foi
eficiente. Sobreviveu Branca de Neve. E ainda tentou uma terceira vez matá-la... outra vez
não foi possível; até o final da estória Branca de Neve permanece viva. E o espelho
continuava incansavelmente a repetir: “Você não é a mais bela” (Branca de Neve, s. d., p.
11, 13). Ao tentar pela segunda, terceira, quarta vez aniquilar a moça, a rainha repetia: “–
Pronto! Agora eu me livrei de ti [grifos nossos] Branca de Neve” Branca de Neve, s.d., p.
8, 12, 14). Foi em vão. Repetição do mesmo e repetição da diferença. Isso faz toda a
diferença.

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