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SUMÁRIO

UNIDADE 3

EPISTEMOLOGIA GENÉTICA: uma concepção interacionista e suas


implicações educacionais ........................................... 77

Piaget e sua epistemologia genética ....................... 79

A construção do conhecimento .............................. 89

O desenvolvimento afetivo, social e moral ............... 97

UNIDADE 4

CONCEPÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DE VYGOTSKY E SUAS IMPLICAÇÕES


EDUCACIONAIS ........................................................ 107

A formação social da mente: conceitos Vygotskyanos .... 109

A linguagem e seu papel na aprendizagem e


desenvolvimento ............................................ 113

A formação de conceitos ..................................... 121


unidade

3
Epistemologia Genética: uma Objetivos dESTA unidade:

concepção interacionista e suas implicações


Identificar os conceitos
educacionais fundamentais da
epistemologia genética
piagetiana;

Compreender o processo
de construção do
conhecimento, segundo

ROTEIRO DE ESTUDOS Piaget;

Reconhecer a
contribuição de Piaget
para o entendimento
• Piaget e sua epistemologia genética. do desenvolvimento
afetivo, moral e social
da criança.
• A construção do conhecimento.

• O desenvolvimento afetivo, social e moral.


pAra início de conversa

Lembramos que você, futuro professor, estudou nas unidades


anteriores algumas concepções psicológicas que procuram explicar
como ocorre o Desenvolvimento e a Aprendizagem – ora priorizando
o sujeito, ora o objeto de conhecimento. Pôde constatar que
algumas atribuem aos aspectos biológicos o papel central no
desenvolvimento, outras acreditam que são as experiências com o
meio que proporcionam esse desenvolvimento, e outras - de caráter
mais filosófico, idealista – são fundamentadas no Humanismo e na
Fenomenologia, considerando o homem como fonte de todos os
atos, uma vez que a liberdade está na sua consciência.

A partir de agora, nesta unidade e nas próximas, você verá


abordagens que partem do pressuposto de que o conhecimento
resulta da interação do sujeito com o seu ambiente, unindo em
suas ideias os pressupostos básicos dessas correntes, pois entendem
que o conhecimento não se encontra em nenhuma delas isolado,
mas que surge de sua união. A pessoa, ao interagir com as outras
pessoas e com o meio, incorpora suas ideias depois de analisar,
organizar e construir seu conhecimento.

A perspectiva teórica interacionista que apresentamos a você nesta


unidade é a abordagem de Jean Piaget, conhecida como Epistemologia
Genética, que estuda a origem e os processos de formação do
conhecimento pelo ser humano. Na Seção 1, apresentamos o autor,
suas principais ideias e conceitos, e os fatores que interferem no
desenvolvimento cognitivo do ser humano.

Na Seção 2, abordamos o processo de desenvolvimento considerando


o que ocorre em cada estágio, e a sua relação com a aprendizagem.
Na Seção 3, procuramos mostrar as contribuições de Piaget para a
compreensão do desenvolvimento afetivo, social e moral da criança.

Temos certeza de que você encontrará nesta unidade valiosos


conhecimentos para conhecer melhor os alunos, seus processos
internos, e refletir sobre a dinâmica de sua prática educativa.

Esperamos que a leitura do texto e das referências indicadas lhe


seja de grande proveito e que você tenha sucesso nas atividades
propostas.

78 FILOSOFIA
Piaget e sua epistemologia genética

Piaget significa para a inteligência o que Freud


representa para a afetividade (DOLLE, 1981, p. 09).

C
aro educando, nesta unidade você vai conhecer a teoria de
Jean Piaget, que se considerava um biólogo por formação,
um psicólogo por necessidade e um epistemólogo por opção.

O autor e algumas ideias

Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, na Suíça, em 1896. Quando


menino realizou algumas investigações científicas, observando
moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica, trabalhando
como assistente de diretor do Museu de História Natural de sua

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 79


cidade. Formou-se em Ciências Naturais em 1915, doutorando-se
nesta mesma área em 1918 (FLAVEL, 1988).

Ainda adolescente, interessou-se em estudar filosofia, em especial


pela obra de Bergson, “a evolução criadora”, que suscitou
sua curiosidade sobre a maneira pela qual o homem adquire
conhecimento lógico-abstrato e se distingue qualitativamente das
outras espécies animais (DOLLE, 1981).

Piaget passou a sua vida inteira, até os 84 anos, pesquisando para


responder as seguintes questões: Como o ser humano elabora seus
conhecimentos? Como passamos de um estado de conhecimento de
menor validade para um estado de conhecimento de maior validade
científica? Como aumentam e se ampliam os nossos conhecimentos?
Qual a origem do pensamento lógico-matemático? Como e em
função de que as estruturas cognitivas iniciais modificam-se,
dando lugar a outras mais complexas e elaboradas? Estas questões
o levaram a indagar sobre como nascem os conhecimentos, quais
são os seus instrumentos e como estes se constituem.

Tais questões configuram um estudo epistemológico, um estudo


do conhecimento. Por isso, denominamos a teoria de Piaget de
Epistemologia Genética. Observe que epistemologia significa
o estudo do conhecimento, e genética, termo que ele próprio
aplicou, refere-se à busca das origens e dos processos de formação
do pensamento e do conhecimento pelo ser humano (FONTANA;
CRUZ, 1997).

Mas, para responder estas questões, Piaget necessitava de base


empírica, que a Filosofia não lhe proporcionava. Vislumbrou,
então, na Psicologia, mais particularmente na Psicologia da
Criança, a possibilidade de conhecer como as noções evoluem,
razão pela qual criou o método psicogenético, que lhe permitiu a
identificação dos estágios da construção das estruturas cognitivas.

Voltou-se, então, para o desenvolvimento da espécie humana


- do nascimento até a vida adulta. Assim se explica o fato de
que para conhecer o sujeito epistêmico, aquele que constrói o
conhecimento, tenha recorrido à psicologia, enquanto campo de

80 FILOSOFIA
pesquisa. O sujeito é, então, na perspectiva de Piaget, o sujeito
epistêmico: o sujeito cognoscente (KESSELRING, 1997).

Para Piaget, o processo de conhecer é um processo construtivo,


nem está pronto no sujeito nem é dado, exclusivamente, pela
ação do meio sobre ele.

Larocca (2002, p.206) assim se posiciona:

Piaget apresenta uma concepção construtivista da


inteligência humana que refuta teses do empirismo
(que supõe o conhecimento como mera cópia do
real) e do pré-formismo (que concebe programações
genéticas). Para ele, o único apriori possível é o
funcionamento constante dos organismos vivos. Sendo
assim, no domínio da inteligência, jamais admitiu a
existência de ideias inatas. Todos os conteúdos do
conhecimento requerem uma construção.

Vemos, então, que o processo construtivo exige a interação entre


o organismo e o meio, o que nos leva a classificar Piaget, na
Psicologia da Educação, como um teórico interacionista.

Para Piaget, o conhecimento é o resultado de uma elaboração


(construção) pessoal, de um processo interno de pensamento, que
permite ao sujeito coordenar diferentes noções entre si, dando-
lhes um significado, organizando-as, relacionando-as com outras já
existentes. O conhecimento se desenvolve desde as rudimentares
estruturas mentais do recém-nascido até o pensamento formal
do adolescente. Piaget procurou mostrar como e em função de
que estas estruturas se transformam e se tornam cada vez mais
complexas (PIAGET, 1973).

O desenvolvimento cognitivo: conceitos

Piaget (1975) fundamenta-se na perspectiva biológica, em que o


desenvolvimento é entendido como um processo de adaptação,
em que o organismo está em constante interação com o seu
meio, tendo em vista sua organização. Os processos funcionais de
adaptação e organização do sujeito constituem-se como a base

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 81


desta teoria, são processos que se complementam, inseparáveis
e que são explicados a partir de um modelo biológico. Logo, a
inteligência é uma das formas de o ser humano se adaptar ao
meio, ao longo de sua história de vida.

Piaget assim se posiciona: “O organismo é um ciclo de processos


físico-químicos e cinéticos que, em relação constante com o meio,
engendram-se mutuamente” (PIAGET, 1975, p.16-17). Continua
explicando que sendo a inteligência organizadora, ela prolonga o
funcionamento da organização biológica e a supera pela elaboração
de novas estruturas. Afirma que:

[...] o corpo vivo apresenta uma estrutura


organizada, isto é, constitui um sistema de relações
interdependentes; que ele trabalha para conservar
a sua estrutura definida e, para fazê-lo, incorpora-
lhe os alimentos químicos e energéticos necessários,
retirados do meio ambiente; por consequência, reage
sempre às ações do meio em função dessa estrutura
particular e tende, afinal de contas, a impor ao
universo inteiro uma forma de equilíbrio dependente
dessa organização (PIAGET, 1975, p.379-380).

A posição interacionista do desenvolvimento humano, assumida


na teoria piagetiana, considera que todos os fenômenos vitais,
biológicos, sociológicos e psicológicos se originam da contínua
interação entre o organismo e o meio, os quais exercem influências
equivalentes entre si.

A função de adaptação é uma maneira de equilíbrio entre indivíduo


e meio, ou seja, a forma de sobrevivência do ser humano ao meio.
Adaptação é o
equilíbrio entre
a assimilação e a Por sua vez, a organização decorre de um equilíbrio interno, diz
acomodação. Porque
na adaptação você
respeito às estruturas mentais, que se desenvolvem. Estas duas
tem sempre dois funções, a de adaptação e a de organização, se cumprem a partir
polos: você tem
o polo indivíduo – da ação dos mecanismos invariantes de assimilação e acomodação.
assimilação e o polo
objeto – acomodação Explica Piaget que
[...]” (PIAGET. In:
BRINGUIER, 1978, [...] a acomodação é determinada pelo objeto,
p. 61) enquanto a assimilação é determinada pelo
indivíduo. Então, assim como não há acomodação
sem assimilação, já que é sempre a acomodação
de alguma coisa que é assimilada [...], de igual
modo não pode haver assimilação sem acomodação
(PIAGET. In: BRINGUIER, 1978, p. 63).

82 FILOSOFIA
Tanto sua visão de desenvolvimento como de aprendizagem
apoiam-se na ideia da interação. O conhecimento surge da
interação contínua entre sujeito e objeto, interação que se dá
entre esquemas de assimilação e propriedades ou qualidades do
objeto de conhecimento (LAROCCA, 2002).

Explicando de outro modo, a assimilação é a incorporação dos


elementos do meio às estruturas, ou de um objeto de conhecimento
ou de uma nova ideia utilizando esquemas já existentes. E a
acomodação é a modificação, a transformação das estruturas em
função das modificações do meio; significa dizer que os esquemas
de ação serão modificados para compreender e adaptar-se à nova
situação (FLAVELL, 1988).

Mas, então, você deve estar curioso para descobrir o que é um


esquema de ação. Trazemos o que Piaget coloca sobre isso em seu
livro Biologia e Conhecimento:

[...] Chamaremos de esquemas de ações o que,


numa ação, é transponível, generalizável ou
diferenciável de uma situação à seguinte, ou seja,
o que há de comum nas diversas repetições ou
aplicações da mesma ação. Por exemplo, falaremos
de um “esquema de reunião” para comportamentos
como o de um bebê que amontoa blocos, de uma
criança de mais idade que reúne objetos procurando
classificá-los (PIAGET, 1973a, p.16).

Vemos, então, que o esquema de ação é uma maneira própria de


abordar a realidade e de organizá-la. Ele é o conjunto de ações
de todos os gêneros, é a unidade observável, é o comportamento.

Nas palavras do próprio Piaget (In: Carmichael, 1975, p.72):

Desde as ações sensorial-motoras mais simples


(tais como empurrar e puxar) até as operações
intelectuais mais sofisticadas, as quais são ações
interiorizadas executadas mentalmente (por
exemplo, associar, ordenar, seriar), o conhecimento
está constantemente ligado a ações ou operações,
isto é, a transformações.

A partir das atividades reflexas, o sujeito irá formar estruturas


mentais para organizar suas sensações e experiências. Fará

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 83


isso ao longo do processo de desenvolvimento, organizando e
reconstruindo seus esquemas.

Como os esquemas e estruturas mentais são organizados?

A noção de esquema implica,


segundo Delval (1997, p.101): “[...]
uma sucessão de ações, materiais
ou interiorizadas, que têm uma
organização e que são suscetíveis de
repetição em situações semelhantes”.
Isso significa que, ao longo de sua vida, o sujeito exercita ações
através das experiências e, nessa medida, constrói estruturas que
consistem em coordenações ou combinações de esquemas. Dessa
forma, podemos entender os esquemas como unidades básicas da
conduta, que têm um caráter de totalidade e dinamismo, pois
se relacionam entre si formando estruturas – ou seja, formas
cognitivas mais estáveis.

Fatores do desenvolvimento

Para Piaget são quatro os fatores responsáveis pelo desenvolvimento


humano, cada fator é uma condição necessária, mas não condição
suficiente (quando isolado), para que o desenvolvimento aconteça.
Nenhum dos quatro fatores exerce influência maior que o outro
neste processo. São eles:
A maturação do
sistema nervoso
limita-se a abrir
possibilidades,
a) A maturação refere-se à dimensão orgânica, neurológica,
excluídas até certos que abre novas possibilidades para o desenvolvimento ao
níveis de idade, mas
é preciso atualizá- acessar novas estruturas que são desenvolvidas com estas
las, o que supõe
outras condições, das possibilidades.
quais a mais imediata
é o exercício
uncional ligado às
ações (PIAGET, 1970,
p.37-38)
Significa que a maturação é uma condição necessária ao surgimento
de certas condutas, porém precisa contar com o reforço do
exercício e do funcionamento.

84 FILOSOFIA
Para Piaget

[...] a maturação, no que diz respeito às funções


cognitivas – conhecimento – simplesmente
determina a extensão das possibilidades em um
estágio específico. Não causa a atualização das
estruturas. A maturação simplesmente indica se
o desenvolvimento das estruturas específicas é
ou não possível em um estágio determinado. Não
contém em si uma estrutura pré-formada, mas
abre possibilidades – a nova realidade ainda tem
que ser construída (PIAGET, 1971a, p.183, apud
WADSWORTH, 1989, p. 27-28).

Isso significa que as operações intelectuais são claramente


a expressão de coordenações nervosas que, por sua vez, são
elaboradas em função da maturação orgânica. Conforme o autor,
a maturação do sistema nervoso só está concluída na fase da
adolescência.

b) Experiência com o objeto de conhecimento: este fator diz A experiência não


é recepção, mas
respeito ao exercício e à experiência que o sujeito adquire na ação e construção
progressivas (PIAGET,
ação sobre os objetos. 1975, p.342).

Para Piaget (1975, p.342) essa:

[...] experiência não pode ser, portanto, nem


mesmo no começo, um simples contato entre o
sujeito e uma realidade independente dele, pois,
que a acomodação é inseparável de um ato de
assimilação que atribui ao próprio objeto uma
significação pertinente à atividade do próprio
sujeito.

Entendemos que este fator do desenvolvimento cognitivo diz


respeito à experiência que o sujeito adquire na ação sobre os
objetos do conhecimento e não simples contato.

Há dois tipos de experiência com o objeto do conhecimento: a


experiência física que supõe a ação do sujeito sobre o objeto,
abstraindo suas propriedades; e a experiência lógico-matemática,
que supõe que o conhecimento não é deduzido dos objetos, mas
das ações realizadas sobre os objetos. Propõe, por isso, abstrações

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 85


sobre abstrações. Por exemplo, se dissermos que Maria é maior
que João, a propriedade de ser maior não está em Maria, não
é um atributo seu. Apenas o será quando existe uma relação de
comparação, que no caso se dá em relação a João.

Piaget (1975) explica que a experiência progride na medida em


que é organizada e animada pela inteligência, se revelando dessa
forma um dos fatores necessários ao desenvolvimento.

c) Transmissão e interações sociais: este é um fator que pode


ser percebido através das variações nas idades médias em
que as estruturas correspondentes a determinados estágios
de desenvolvimento seriam esperadas. Configura-se como um
fator educativo, no sentido amplo.

Segundo o autor, o meio social provoca acomodações ativas dos


esquemas de ação por meio da linguagem, dos conteúdos expressos
por essa linguagem e pelas regras de pensamento que evoluem no
decorrer das trocas com o outro.

Piaget (1973b, p.30) explica que: [...] para que


uma transmissão seja possível entre o adulto e a
criança ou entre o meio social e a criança educada,
é necessário haver assimilação pela criança do
que lhe procuram inculcar do exterior. Ora, essa
assimilação é sempre condicionada pelas leis desse
desenvolvimento [...].

d) A equilibração progressiva é um fator que influencia o processo


de desenvolvimento. Esta noção é o cerne da teoria piagetiana,
pois é o principal motor da formação das estruturas operatórias
do sujeito. Para Piaget, todos os organismos vivos procuram se
manter equilibrados, adaptados em suas relações com o meio.
Com o rompimento de uma condição de equilíbrio, em face de
perturbações do meio ambiente, gera-se um desequilíbrio e a
necessidade de buscar novas formas de pensamento e ação –
formas adaptativas dos esquemas e estruturas do sujeito.

86 FILOSOFIA
Piaget explica que a equilibração constitui-se como um processo muito
geral de oposição e reação às perturbações exteriores, mais precisamente
pela estabilização de sistemas de compensação. Assim explicita:

[...] o progresso dos conhecimentos não é devido


a um amontoado de experiências empíricas,
mas é o resultado de uma autorregulação, que
podemos designar como uma equilibração. Ora,
esta equilibração não conduz ao estado anterior
[...] mas conduz, em geral, a um estado melhor em
relação àquele de que se partiu, que o mecanismo
autorregulador permitiu melhorar (PIAGET, apud
INHELDER et al., sd, p. 31).

Este fator de processo biológico faz com que o sujeito regule suas
trocas com o meio e garanta sua sobrevivência. Existindo os outros
três fatores, é necessário que se equilibrem entre si. Para Piaget
a palavra ‘equilíbrio’ não está empregada num sentido estático,

[...] mas no sentido de uma equilibração progressiva,


a equilibração sendo a compensação por reação do
sujeito às perturbações exteriores, compensação
que atinge a reversibilidade operatória, no fim
desse desenvolvimento (PIAGET, 1973b, p. 31).

Esse é um processo de construção permanente através de equilíbrios e


desequilíbrios constantes, em que contam, além das perturbações do
meio, a capacidade do organismo de ser perturbado e de responder às
perturbações. Nesse sentido, o que chamamos de inteligência é uma
das formas de o ser humano adaptar-se ao meio, ao longo de sua história
de vida. A equilibração é, pois, um processo adaptativo e é formada
por dois mecanismos invariantes: a assimilação e a acomodação.

A assimilação é a incorporação dos elementos do meio às estruturas


cognitivas do sujeito. A acomodação é a modificação, a transformação
dessas estruturas em função das trocas que realiza com o meio. Enquanto
a assimilação corresponde ao polo aberto do sistema cognitivo, pelo
qual o indivíduo incorpora elementos do mundo exterior, tal como o
organismo vivo tem necessidade de assimilar nutrientes para sobreviver,
a acomodação corresponde ao polo fechado deste sistema, quando este
se auto-organiza em função das peculiaridades dos objetos assimilados
pela experiência. Com a acomodação os esquemas e estruturas do
sujeito são modificados, propiciando uma forma de equilibração mais
avançada e adaptada.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 87


A construção do conhecimento

A
teoria de Piaget é também conhecida como construtivismo.
Segundo Becker (1993, p.89), construtivismo significa:

[...] a ideia de que nada, a rigor, está pronto,


acabado, e de que, especificamente, o
conhecimento não é dado, em nenhuma instância,
como algo terminado. Ele se constitui pela
interação do indivíduo com o meio físico e social,
com o simbolismo humano, com o mundo das
relações sociais [...].

Isso quer dizer que o sujeito, ao interagir com o meio e com outras
pessoas, para se apropriar das trocas que faz, precisa reorganizar essas
ideias transformando-as em algo seu, fazendo sua própria construção.

Conforme Larocca (2002, p.208):

Esquemas e estruturas são instrumentos da atividade


intelectual. Enquanto os esquemas permitem
assimilar e compreender a realidade, as estruturas
permitem organizar os esquemas numa totalidade. O
nível de competência cognitiva de um sujeito qualquer
relaciona-se a um momento do desenvolvimento, que
depende tanto dos tipos e quantidade de esquemas
que construiu até ali, como também do modo de
articulação destes esquemas entre si. Assim, o
desenvolvimento cognitivo caracteriza-se por estágios
sucessivos, e o que chamamos de inteligência assume
o sentido de uma forma de equilíbrio a que tendem
todas as estruturas, uma vez que a ação é tanto mais
inteligente quanto mais evoluídas forem as estruturas
a ela subjacentes.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 89


Os estágios do desenvolvimento e a construção das estruturas
intelectuais

Para Piaget, o processo de desenvolvimento se dá através de


estágios:

[...] um estágio comporta ao mesmo tempo um nível


de preparação, por um lado, e de acabamento,
por outro[...] é necessário distinguir, em toda a
sucessão de estágios, os processos de formação
ou de gênese e as formas de equilíbrio finais [...]
(PIAGET, 1973c, p. 52).
Piaget (1973c, p.50)
disse: Só considero
as idades relativas às
populações sobre as Os estágios constituem-se em formas particulares de equilíbrio,
quais trabalhamos;
elas são, pois, caracterizam-se por uma sucessão constante de aquisições,
extremamente
relativas. Em sendo sua ordem cronológica bastante variável, pois depende da
compensação, em se
tratando de estágios, experiência anterior do sujeito, do meio social, que pode acelerar
a ordem de sucessão
das condutas deve ou retardar o aparecimento de um estágio, e não somente da sua
ser considerada como
constante [...]. maturação biológica.

Quais são os estágios ou períodos do processo de desenvolvimento


cognitivo?

São quatro os estágios ou períodos, que resumiremos a seguir:

1) Sensório-motor - Podemos dizer que o desenvolvimento se


inicia sob as bases do alicerce biológico com o qual a criança

O estágio sensório-
conta, ao vir para o mundo: os reflexos, os órgãos dos sen-
motor se caracteriza tidos e a capacidade motora. O período senso-motor segue
como o período da
inteligência prática, do zero a aproximadamente 24 meses de vida da criança,
ou seja, o bebê
para conhecer o representando “a conquista, através da percepção e dos mo-
mundo utiliza-se da
percepção, da ação vimentos, de todo o universo prático que cerca a criança”
e do movimento.
Os esquemas de (RAPPAPORT, 1981, p.66).
ação constituintes
desta fase servem
de subestruturas
às estruturas
posteriores (PIAGET, Os primeiros esquemas sensório-motores irão permitir à criança
1970).
organizar os estímulos ambientais de modo que os esquemas
de ação constituintes desta fase servem de subestruturas às
estruturas posteriores (PIAGET, 1970).

90 FILOSOFIA
No início, a criança não diferencia o próprio eu do mundo
exterior. Com a interação com o meio, irá ocorrer, aos poucos,
um processo de diferenciação que a levará a perceber-se como
um ser entre outros seres e objetos que existem ao seu redor.
Por volta de um ano, por exemplo, a criança já será capaz de
perceber que um objeto continua a existir para além do seu campo
visual. Essa noção é a permanência do objeto. Outras noções
básicas também são construídas neste período: a construção do
espaço, pois passa a perceber que existem outros espaços, além
do imediato; a construção da noção de tempo, percebendo que
existem séries temporais, que alguns acontecimentos se sucedem
com regularidade; a construção da noção de causalidade, através
da qual percebe relações entre eventos causa e eventos-efeito.

Neste curto espaço de tempo, a criança evolui de uma condição


passiva em relação ao meio ambiente a uma condição ativa e
participante. Embora permaneça egocêntrica, autocentrada, já
percorreu um bom trajeto de adaptação à realidade. Porém, ela
ainda integra-se ao ambiente através da imitação. A conquista
da função simbólica (capacidade de representar mentalmente
objetos ausentes) e da linguagem oral vai alterar suas relações
com o meio, anunciando um novo estágio de desenvolvimento: o
estágio pré-operatório.

2) Pré-operatório - O período pré-operatório corresponde


aproximadamente à faixa etária dos 2 aos 7 anos. Inicia-se com
a conquista da linguagem oral e da capacidade representativa,
através da qual a criança forma os primeiros esquemas
simbólicos que lhe permitirão representar uma coisa por outra.
Ela usa, por exemplo, uma pequena caixa “como se fosse” um
caminhãozinho. Tudo isso, junto com a construção da inteligência
prática na fase anterior, possibilitará o desenvolvimento lento e
gradual do pensamento (PIAGET, 1973c).

Todavia, durante esta fase, seu pensamento é ainda caracterizado por


uma tendência lúdica e uma certa confusão entre realidade e fantasia.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 91


Isso acontece porque a criança ainda não desenvolveu esquemas
conceituais lógicos e continua bastante egocêntrica em suas ações.
Rappaport (1981, p.68-69) define o egocentrismo como:

[...] uma visão da realidade que parte do próprio


eu, isto é, a criança não concebe um mundo, uma
situação da qual não faça parte, confunde-se com
objetos e pessoas, no sentido de atribuir a eles
seus próprios pensamentos, sentimentos etc.

O egocentrismo é a principal qualidade do pensamento da criança


nesta fase e podemos verificá-lo através das explicações que ela
dá para fenômenos ou situações.

O animismo é uma manifestação egocêntrica pela qual a criança


atribui características humanas a seres inanimados. Assim, ela se
queixa ao pai que “a porta é má”, pois lhe prendeu o dedinho.
Atribuiu, então, à porta a intenção de machucá-la.

Em todas as áreas da vivência da criança, o egocentrismo se


manifestará: social, intelectual, moral, afetiva e na linguagem.

Os esquemas intelectuais da criança no período pré-operatório


são denominados de pré-conceitos. Como a criança ainda não
desenvolveu esquemas conceituais verdadeiros, seu julgamento
sobre as coisas existentes no mundo ainda está preso às suas
percepções imediatas e, com isso, sujeito a vários erros.

Em suma, esses pré-conceitos e pré-relações ficam a meio caminho


entre o esquema de ação e o conceito, por não se dominar com
bastante distanciamento a situação imediata e presente, como
deveria ser o caso da representação em contraste com a ação. Esse
apego duradouro à ação, com o que envolve de conexões em parte
indiferenciadas entre o sujeito e os objetos, reencontra-se então
na causalidade desse nível, o qual permanece essencialmente
psicomórfico: os objetos são espécie de seres vivos dotados de não
importa que poderes calcados sobre os da própria ação, como os
de empurrar, puxar, atrair, lançar etc., e tanto à distância quanto
em contato, sem se preocupar com a direção das forças ou com
uma direção exclusiva que é a do agente independente dos pontos
de impacto sobre os objetos passivos (PIAGET, 2002, p. 24).

92 FILOSOFIA
Crianças pré-operatórias ainda não construíram as noções de
conservação e invariância, por isso julgam pelo que veem. Se
colocarmos em frente a elas um copo baixo e largo com uma certa
quantidade de água e a despejarmos toda em um copo fino e alto,
a criança julga que o copo fino e alto contém mais água, pois não
consegue perceber que a quantidade de água não foi alterada.

Assim, também, seu pensamento não é reversível, pois não


consegue retornar ao ponto de partida. Ainda no exemplo dos
copos de água, mesmo que despejemos a água de volta no copo
largo e baixo, a criança não conseguirá entender que se trata da
mesma quantidade de água. Será a conquista da reversibilidade do
pensamento que permitirá à criança conquistar o próximo estágio
de desenvolvimento: o pensamento operatório concreto.

3) Operatório concreto - Em nossa cultura, o período das


operações concretas (7 a 11/12 anos, aproximadamente)
representa, em geral, os primeiros anos escolares, sendo
um momento marcado por grandes aquisições intelectuais,
quando o pensamento da criança assume a forma de operações
A tendência lúdica
intelectuais. e fantasiosa da fase
anterior será substituída
pela necessidade lógica,
Conforme Piaget, as operações são ações mentais direcionadas pois a criança já não
mais tolera contradições
para a constatação e explicação. São concretas, porque se referem em seu pensamento, que
ainda a objetos palpáveis, que a criança precisa manusear fazendo passará a organizar-se
em torno de operações
classificações, seriações, correspondências, numerações etc. concretas, estabelecidas
com base lógica.

As operações concretas são dotadas de reversibilidade, pois agora


a criança compreende que toda operação pode ser invertida. Seu
julgamento, então, já não depende mais da percepção imediata e
vai se tornando um pensamento conceitual, que busca o raciocínio
e não mais se prende ao mundo imediato.

Segundo Davis e Oliveira (1990, p.44): a criança é “capaz de


perceber que a quantidade se conserva, independentemente da
disposição dos elementos no espaço, a criança operatória tem
noção de conservação quanto à massa, peso e volume dos objetos”.

Contudo, é bom lembrar que as suas operações mentais ainda


dependem de materiais e exemplos que podem ser observados,

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 93


como sustentação concreta para o seu pensamento. Nesses termos,
ela já pode ordenar, seriar, classificar, mas não consegue, ainda,
pensar abstratamente.

4) Operatório formal - Se o período anterior já representou um


grande salto qualitativo no desenvolvimento do pensamento,
a conquista do pensamento operatório formal fará com que
as operações mentais se libertem da limitação representada
pela necessidade da evidência concreta. Esta nova fase inicia-
se mais ou menos aos 12 anos e seguirá adiante, pela vida do
sujeito. Agora, o pensamento não mais incide sobre objetos
ou realidades diretamente representáveis, mas também sobre
hipóteses e proposições.

Para que você possa compreender melhor, é nesta fase que o


sujeito é capaz de refletir sobre situações hipotéticas de maneira
lógica. “O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos
futuros, sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais
articulado” (FONTANA; CRUZ, 1997, p.52).

A conquista desta ampla capacidade de pensar o mundo traz para


o jovem adolescente aquisições importantes que irão se refletir
em todo o seu comportamento.

É por isso que, na adolescência: [...] o sujeito será então capaz de


formar esquemas conceituais abstratos (conceituar termos como
amor, fantasia, justiça, esquema, democracia) e realizar com eles

94 FILOSOFIA
operações mentais que seguem os princípios da lógica formal, o que
lhe dará, sem dúvida, uma riqueza imensa em termos de conteúdo
e de flexibilidade de pensamento. Com isso, adquire capacidade
para criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta;
discute os valores morais de seus pais e constrói os seus próprios
(adquirindo, portanto, autonomia); torna-se capaz de aceitar
suposições pelo gosto da discussão; faz sucessão de hipóteses que
expressa em proposições para depois testá-las; procura propriedades
gerais que permitam dar definições exaustivas, declarar leis gerais
e ver significação comum em material verbal; os seus conceitos
espaciais podem ir além do tangível finito e conhecido para
conceber o infinitamente grande ou infinitamente pequeno; torna-
se consciente de seu próprio pensamento, refletindo sobre ele a fim
de oferecer justificações lógicas para os julgamentos que faz; lida
com relações entre relações etc. (RAPPAPORT,1981, p. 74).

A construção do raciocínio hipotético-dedutivo, neste novo estágio,


permitirá ao adolescente estender seu pensamento ao infinito,
abandonando-se, muitas vezes, à procura de explicações sobre o
universo, a vida, o amor, a transformação da sociedade.

Caberá, agora, ao seu pensamento reconciliar-se com a realidade Esta procura de


explicações pode
concreta ajustando e consolidando suas novas estruturas cognitivas fazer com que ele
se desprenda da
de acordo com ela. realidade, pois
trabalha no plano de
uma realidade possível.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 95


O desenvolvimento afetivo, social
e moral

O aspecto estrutural e afetivo das construções cognitivas

P
iaget explica que a afetividade e a cognição são dois
processos que acontecem interligados, que são mesmo
inseparáveis. Assim se posiciona:

Vida afetiva e vida cognitiva são, pois, inseparáveis,


embora distintas. E são inseparáveis porque todo
intercâmbio com o meio pressupõe ao mesmo
tempo estruturação e valorização, mas nem por
isso ficarão menos distintas, visto que esses dois
aspectos da conduta não podem reduzir-se um
ao outro. Assim é que não se poderia raciocinar,
inclusive em matemática pura, sem vivenciar certos
sentimentos, e que, por outro lado, não existem
afeições sem um mínimo de compreensão [...] O
ato de inteligência pressupõe, pois, uma regulação
energética interna (interesse, esforço, facilidade
etc.) [...] (PIAGET, 1977, p.16).

São inseparáveis porque, segundo ele, a afetividade constitui-se


como o motor, a mola propulsora para a cognição. Esclarece que o
papel da afetividade não é o de engendrar ou mesmo de modificar
ou de transformar as estruturas cognitivas. Significa dizer que

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 97


a existência da afetividade ou sua privação podem ocasionar a
aceleração ou atraso no desenvolvimento cognitivo, mas sem
modificar suas estruturas (PIAGET, 1973b).

Arantes (2005) explica que um autor que podemos citar como


tendo questionado as teorias que tratavam a afetividade e a
cognição como aspectos funcionais separados é Jean Piaget. Após
ter ministrado um curso na Universidade de Sorbonne (Paris) no ano
acadêmico de 1953-54, no trabalho publicado como “Les relations
entre l’intelligence et l’affectivité dans le développement
de l’enfant”, que em português significa: As relações entre a
inteligência e a afetividade durante o desenvolvimento da criança,
Piaget adverte sobre o fato de que, apesar de diferentes em sua
natureza, a afetividade e a cognição são inseparáveis.

Explica que toda ação e pensamento possuem um aspecto


Conforme Arantes (2005, cognitivo, que são as estruturas mentais, e um aspecto afetivo,
s/p.): Nessa perspectiva,
o papel da afetividade que representa uma energia, que é a afetividade.
para Piaget é funcional
na inteligência. Ela é
a fonte de energia de
que a cognição se utiliza
para seu funcionamento.

Desenvolvimento social e moral, suas implicações


Ele explica esse processo
por meio de uma
metáfora, afirmando
que “a afetividade seria
como a gasolina, que
ativa o motor de um
carro mas não modifica
sua estrutura”(PIAGET,
Explicando as contribuições do meio social sobre a pessoa, Piaget
1954, p.5 apud ARANTES, (1977, p.157) diz:
2005, s/p.). Ou seja,
existe uma relação
intrínseca entre a
Desde o seu nascimento, o ser humano está
gasolina e o motor (ou
entre a afetividade mergulhado num meio social que atua sobre ele do
e a cognição) porque mesmo modo que o meio físico. Mais ainda que o
o funcionamento do meio físico, em certo sentido a sociedade transforma
motor, comparado com
o indivíduo em sua própria estrutura, porque ela
as estruturas mentais,
não é possível sem o não só o força a reconhecer fatos como também
combustível, que é a lhe fornece um sistema de signos inteiramente
afetividade. acabado, que modifica seu pensamento [...]. Não
http://www.hottopos.
há dúvida alguma, portanto, de que a vida social
com/videtur23/valeria. transforma a inteligência pela tripla mediação:
htm da linguagem [...], do conteúdo dos intercâmbios
[...], das regras impostas ao pensamento.

Com estas ideias, Piaget procura mostrar a importância do grupo


social para o desenvolvimento e a aprendizagem do sujeito, ao
mesmo tempo que elucida que a pessoa sofre pressões de seu grupo

98 FILOSOFIA
social tanto em relação às atitudes como também nas normas e
regras que deve seguir, atendendo determinados valores.

Piaget (1994, p.23) explica que:

[...] as regras morais, que a criança aprende a


respeitar, lhe são transmitidas pela maioria dos
adultos, isto é, ela as recebe já elaboradas e,
quase sempre, nunca elaboradas na medida de suas
necessidades e de seu interesse, mas de uma vez só
e pela sucessão ininterrupta das gerações anteriores.
Daí, a extrema dificuldade de uma análise que deveria
distinguir o que provém do conteúdo das regras e o
que provém da criança pelos seus próprios pais.

O autor afirma que as crianças, no que se refere às regras morais


e sociais, iniciam com o que ele chama de anomia, ou seja, a
impossibilidade de entender e compreender as regras. Em seguida,
surge o respeito unilateral, que resulta da coerção exercida pelos
adultos sobre elas, o que as faz acreditar na existência de regras
e que elas são boas por terem sido propostas pelos adultos, aí
aparece a heteronomia (PIAGET, 1994). Depois, surge o respeito
mútuo, que aparece quando surge a cooperação, elas se submetem
às regras porque decidem que devem obedecer. A autonomia
resulta do respeito mútuo, e conforme Piaget (1994, p.91) “[...] O
respeito mútuo aparece, portanto, como condição necessária da
autonomia, sob seu duplo aspecto intelectual e moral”.

Quando conseguimos este controle interno, que é um autocontrole


que permite obedecer às regras porque queremos e entendemos
seu valor, estamos exercendo nossa autonomia, construindo nossas
próprias regras, aprendendo a negociar, a fazer contratos e acordos
com o grupo. E como Piaget explica essa aprendizagem?

Desenvolvimento e aprendizagem na abordagem piagetiana

Uma questão de grande relevância sobre este tema, na teoria de


Piaget, é a de que o conhecimento resulta de interações entre
sujeito e objeto e que estas interações são mais ricas do que aquilo
que os objetos podem fornecer por eles mesmos (PIAGET, 1977).

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 99


Ele enfatiza que a lógica, a moral, a linguagem e a compreensão
de regras sociais não são inatas, ou seja, não estão pré-formadas
na criança, nem são impostas de fora para dentro, por pressão
do meio. Elas são construídas pelo indivíduo ao longo do processo
de desenvolvimento, processo este entendido como sucessão
de estágios que se diferenciam um dos outros, por mudanças
qualitativas. Essas mudanças permitem não só a assimilação de
objetos de conhecimento compatíveis com as possibilidades do
desenvolvimento, mas, também, servem de ponto de partida para
novas construções.

Conforme Piaget, o desenvolvimento é um processo direcionado


à totalidade das estruturas do conhecimento. Portanto, é um
processo de funcionamento interno; já a aprendizagem é provocada
por situações externas, como, por exemplo, através dos desafios
colocados pelo professor em relação a algum tema pedagógico.

Piaget reforça a tese de que o desenvolvimento explica a


aprendizagem, refutando a ideia de que o desenvolvimento é a
soma de experiências de aprendizagem.
Diz Piaget: “o
desenvolvimento é Um ponto essencial em sua teoria reside em explicar a riqueza das
o processo essencial
e cada elemento da descobertas e invenções características do processo de construção
aprendizagem ocorre
como em função do
dos conhecimentos. Para ele, o que a criança constrói em termos
desenvolvimento total” de conhecimento transforma e transcende as realidades, quaisquer
(Piaget apud SEBER,
1997, p.232). que sejam.

Explicar o desenvolvimento do conhecimento significa explicar


como a criança consegue construir e inventar, não o que ela
repete ou copia. Ora, as descobertas e invenções dependem da
construção de estruturas lógicas que, diferenciando-se em virtude
de assimilações novas, abrem possibilidades para conquistas cada
vez mais elevadas. O desenvolvimento diz respeito à construção
dessas estruturas. A aprendizagem nada mais é que um setor do
desenvolvimento cognitivo, porque se refere a tudo o que a criança
recebe em situações específicas de transmissões educativas
(PIAGET, apud SEBER, 1997, p. 235).

100 FILOSOFIA
Para Piaget, ter assegurado o direito à educação significa ter
oportunidades de se desenvolver, em todos os aspectos, tanto do
ponto de vista intelectual como social e moral.

Piaget (1973d, p.40) explica que:

Afirmar o direito da pessoa humana à educação


é, pois, assumir uma responsabilidade muito mais
pesada que a de assegurar a cada um a possibilidade
da leitura, da escrita e do cálculo: significa, a rigor,
garantir para toda criança o pleno desenvolvimento
de suas funções mentais e a aquisição dos
conhecimentos, bem como dos valores morais
que correspondam ao exercício dessas funções,
até a adaptação à vida social adulta. É antes de
mais nada, por conseguinte, assumir a obrigação –
levando em conta a constituição e as aptidões que
distinguem cada indivíduo – de nada destruir ou
malbaratar das possibilidades que ele encerra [...].

Isto significa que, para ele, educar é mais que transmitir conteúdos,
passar informações, consiste em dar possibilidades a cada pessoa
de desenvolver ao máximo suas potencialidades, transformando-
as em realizações efetivas e produtivas.

DICA PARA SALA DE AULA

• Dialogue com seus colegas: De que forma Piaget define desen-


volvimento e aprendizagem?

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 101


Sugerimos que você assista ao documentário “Os transformadores”
(Episódio Piaget), programa apresentado pela TV Cultura.

BECKER, F. A origem do conhecimento e a aprendizagem escolar.


Porto Alegre: Artmed, 2003.

BRENELLI, R. P. Piaget e a afetividade. In: SISTO, F. et al. Leituras


de psicologia para formação de professores. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2000. p.
105-116.

PIAGET, J. As formas elementares da dialética. Trad. Fernanda


Mendes Luiz. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. (Coleção Lino de
Macedo).

PIAGET, J. INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1989.

PIAGET, J. e SZEMINSKA, A. A gênese do número na criança. Trad.


Christiano Monteiro Oiticica. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília-
DF, INL, 1975.

PIAGET, et al. Abstração reflexionante: relações lógico-aritméticas


e ordem das relações espaciais. Trad. Fernando Becker e Petronilha
Beatriz Gonçalves da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

WADSWORTH, Barry J. Piaget para o professor da pré-escola e 1º


Grau. Trad. Maria Zanella Sanvicente. 3 ed. São Paulo: Pioneira,
1989.

102 FILOSOFIA
SÍNTESE
Nesta unidade vimos que Jean Piaget passou a vida toda pesquisando
para responder às seguintes questões: Como o ser humano elabora
seus conhecimentos? Como aumentam e se ampliam os nossos
conhecimentos?

Tais questões o levaram a indagar sobre como nascem os


conhecimentos, quais são os seus instrumentos e como estes se
constituem. Por isso, sua teoria chama-se Epistemologia Genética.
Epistemologia significa o estudo do conhecimento e Genética,
termo que ele próprio aplicou, refere-se à busca das origens e dos
processos de formação do pensamento e do conhecimento pelo ser
humano.

Para conhecer o sujeito epistêmico, que é aquele que constrói


o conhecimento, Piaget recorreu à psicologia, enquanto campo
de pesquisa. Para ele, o conhecimento é o resultado de uma
construção pessoal, de um processo interno de pensamento que
permite ao sujeito coordenar diferentes noções entre si, dando-
lhes um significado, organizando-as, relacionando-as com outras
já existentes.

A partir de atividades reflexas, o sujeito forma estruturas


mentais organizando suas sensações e experiências, ao longo
do desenvolvimento. Organiza e reconstrói esquemas, os quais
permitirão assimilar e compreender a realidade, enquanto as
estruturas permitirão organizar os esquemas numa totalidade.

Para Piaget, todos os organismos vivos procuram se manter adaptados


em suas relações com o meio. Rompendo-se o equilíbrio, em face
de perturbações do meio ambiente, gera-se um desequilíbrio e a
necessidade de buscar novas formas de pensamento e ação. Os
estágios constituem-se em formas particulares de equilíbrio.

Além da equilibração, outros fatores são também responsáveis


pelo desenvolvimento cognitivo: a maturação, as experiências com
o objeto de conhecimento e a transmissão ou interação social.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 103


Piaget explica que a afetividade e a cognição são dois processos
que acontecem interligados, que são mesmo inseparáveis. Explica
também que a vida social transforma a inteligência por meio da
linguagem, pelas trocas realizadas com o grupo social e pelas
regras impostas ao pensamento.

Conforme Piaget, o desenvolvimento é um processo direcionado


à totalidade das estruturas do conhecimento. Portanto, é um
processo de funcionamento interno; já a aprendizagem é provocada
por situações externas.

Você deve ter observado duas questões que são


fundamentais nos estudos de Piaget: o sujeito epistêmico
e a posição interacionista do desenvolvimento humano.
Como você pode defini-las?

De que forma Piaget define desenvolvimento e


aprendizagem?

Na perspectiva de Piaget sobre o processo de


desenvolvimento e aprendizagem, qual é a influência
dessas ideias nas práticas educativas da escola?

Releia o texto e verifique se acertou.

104 FILOSOFIA
4 Copie o quadro e complete os dados que faltam, de
cada estágio, segundo Piaget.
ESTÁGIO FAIXA ETÁRIA CARACTERÍSTICAS
Sensório-motor
2 a 7 anos
As operações
mentais
necessitam da
sustentação das
ações concretas
12 anos

5 Teste seu conhecimento sobre os mecanismos invariantes


do processo de desenvolvimento da inteligência na
perspectiva de Piaget, numerando a segunda coluna e
ligando o conceito ao seu significado:

(1) ADAPTAÇÃO ( ) É a modificação das estruturas em função das


trocas que realiza com o meio.
Sujeito
( ) É a incorporação dos elementos do meio às
(2) ORGANIZAÇÃO
estruturas do sujeito.
Cognitivas
( ) É o equilíbro entre a assimilação e a acomodação.
(3) ASSIMILAÇÃO
( ) É uma maneira própria de abordar a realidade e
(4) ACOMODAÇÃO de organizá-la.

(5) ESQUEMAS DE AÇÃO MENTAIS ( ) Decorre de um equilíbrio interno, diz respeito às


estruturas que se desenvolvem.

6 Complete colocando nos espaços o conceito de cada


significado: Equilibração, Maturação, Experiência
Física, Experiência Lógico-Matemática e Transmissão e
Interação Social.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 3 105


a __________________________________ de dimensão orgânica,
neurológica, abre novas possibilidades para o desenvolvimento,
acessando novas estruturas que são desenvolvidas com estas
possibilidades.

b ___________________________________ que supõe a ação do


sujeito sobre o objeto, abstraindo suas propriedades.

c __________________________________ que supõe que o


conhecimento não é deduzido dos objetos, mas das ações
realizadas sobre os objetos.

d _____________________________ é o resultado de uma


autorregulação, faz com que o sujeito regule suas trocas com
o meio e garanta sua sobrevivência.

e _________________________________ configura-se como um


fator educativo, no sentido amplo.

Na próxima unidade, você irá estudar na concepção interacionista


as ideias de Vygotsky acerca do desenvolvimento e da
aprendizagem.

106 FILOSOFIA
unidade

4
ObjetivoS dESTA unidade:
Concepção Sócio-Histórica de
Estabelecer as relações
Vygotsky e suas Implicações entre os conceitos e as
implicações pedagógicas
Educacionais na abordagem
vygotskyana;

Reconhecer a
importância da
linguagem no processo
de desenvolvimento e
aprendizagem do aluno;
ROTEIRO DE ESTUDOS
Compreender o
processo de formação
de conceitos sob a
• A formação social da mente: conceitos vygotskyanos. perspectiva de Vygotsky.

• A linguagem e seu papel na aprendizagem e desenvolvimento.

• A formação de conceitos.
pAra início de conversa

Você já estudou a perspectiva interacionista de Jean Piaget.


Agora, na Unidade IV, você vai saber como Vygotsky, um eminente
estudioso russo, concebeu o processo de desenvolvimento em
íntima relação com o aprendizado humano.

Tal como você verificou nas contribuições que a teoria piagetiana


oferece à Educação, a teorização vygotskyana traz inestimáveis
subsídios para a nossa ação-reflexão como educadores.

A compreensão de Vygotsky sobre o indivíduo humano é pautada


por sua vinculação com a sociedade e com o contexto histórico. Sua
concepção é comumente conhecida como “Sociointeracionista” ou
ainda “Histórico-Social”. O assunto em questão está contido nas
seções que compõem esta unidade.

Na Seção 1 - “A formação social da mente: conceitos vygotskyanos”,


você conhecerá os pilares básicos do pensamento de Vygotsky,
suas teses centrais e o conceito de internalização das funções
psicológicas superiores.

Na Seção 2 - “A linguagem e seu papel na aprendizagem e


desenvolvimento”, analisamos o papel mediador dos sistemas
simbólicos no processo de desenvolvimento humano, bem como
buscamos esclarecer a importante noção vygotskyana de Zona de
Desenvolvimento Proximal.

Na Seção 3 – “A formação de conceitos”, trouxemos a explicação


de Vygotsky sobre o tema com vários exemplos para ajudá-lo a
entender melhor.

Estudando estas seções e realizando as atividades propostas,


certamente você encontrará contribuições que venham a favorecer
a qualidade de sua prática pedagógica. Boas leituras!

108 FILOSOFIA
A formação social da mente: conceitos
Vygotskyanos

N
ascido em Orsha, na Bielo-Rússia, em 1896, Lev Semenovich
Vygotsky teve um percurso acadêmico marcado por
uma diversidade de temas: artes, linguística, literatura,
antropologia, filosofia, ciências sociais, psicologia e medicina. Iniciou
sua carreira aos 21 anos, em Gomel, logo após a Revolução Russa,
em 1917. Lecionou literatura e psicologia. Mais tarde, em Moscou,
fundou o Instituto de Defectologia, tendo dirigido o Departamento
de Educação para Deficientes Físicos e Retardados Mentais.

Junto com seus principais discípulos, Luria e Leontiev, Vygotsky


realizou estudos sobre os processos mentais superiores do homem
e o papel da mediação no seu desenvolvimento. Teve a publicação
de suas obras censurada na União Soviética, de 1936 a 1956. Morreu
prematuramente, de tuberculose, aos 38 anos.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 109


A perspectiva vygotskyana é conhecida como abordagem histórico-
cultural, em virtude de estudar as raízes sócio-históricas do
psiquismo para compreender como se desenvolvem nos indivíduos
as características tipicamente humanas, que nos diferenciam dos
animais.

Influenciado pelo Materialismo Histórico-Dialético de Marx,


Vygotsky concebeu que o organismo ativo interage com um
ambiente histórico e essencialmente social. Assim, nas ideias de
Vygotsky e de seus colaboradores, você poderá sentir a influência
Segundo OLIVEIRA da teoria de Marx, pois eles compreendem o indivíduo vinculado
(1993, p.23), há
três pilares básicos
ao seu contexto histórico, construído dialeticamente na interação
que são centrais com o meio social.
no pensamento de
Vygotsky:

• As funções
psicológicas têm um
suporte biológico,
pois são produtos da
atividade cerebral.

• O funcionamento
psicológico
fundamenta-se nas
relações sociais entre
o indivíduo e o mundo
exterior, as quais se
desenvolvem num
processo histórico.

• A relação homem/
mundo é uma relação
mediada por sistemas
simbólicos.
O processo de internalização da cultura pelo sujeito

Vygotsky considera que os processos psicológicos superiores são


tipicamente humanos, ou seja, diferem de processos elementares
que são compartilhados com outras espécies animais.

Enquanto os processos psicológicos elementares - reflexos, reações


automáticas, associações estímulo-resposta - são regulados por
mecanismos biológicos, seguindo uma linha de desenvolvimento
natural, os processos psicológicos superiores são produzidos por
uma linha de desenvolvimento cultural, a partir da internalização
de práticas históricas e sociais, sob a base das operações com
signos.

110 FILOSOFIA
Os processos psicológicos superiores consistem, assim, em
ações conscientes e controladas, atenção voluntária, pensamento
abstrato, memória ativa e comportamento deliberado. Para
o desenvolvimento dos processos superiores, a existência de
processos elementares é condição necessária, mas não suficiente.

A compreensão da origem social e histórica das funções superiores


passa pela compreensão de que o social é eminentemente
constitutivo do desenvolvimento humano e não um mero
coadjuvante ou um incidente do processo. Portanto, as funções
psicológicas superiores emergem a partir da interação da criança
com membros mais experientes da cultura.

Nesse sentido, podemos dizer que as forças natural e cultural


atuam como co-formantes dos processos psicológicos, operando
em dupla e penetrando uma na outra (BAQUERO, 1998).
Para Vygotsky, os
Então, você pode observar que Vygotsky não separa o orgânico fatores orgânicos têm
preponderância apenas
do social, mas destaca a apropriação ativa que a criança faz da no início da vida da
criança; ao longo do
cultura de seu grupo. desenvolvimento,
são as interações
socioculturais que
O processo pelo qual Vygotsky explica a apropriação ativa da interferem mais.

cultura é o processo de internalização.

Veja como ele explica o processo de internalização:

O processo de internalização envolve transformações. Vygotsky


(1989) citou as seguintes:

- uma operação que inicialmente representa uma atividade


externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente;

- um processo interpessoal (entre pessoas/ interpsicológico/


social) é transformado num processo intrapessoal (no interior
da pessoa/ intrapsicológico/ individual);

- tais transformações são produzidas mediante uma série


de eventos ao longo do desenvolvimento e, mesmo sendo
transformado, o processo continua a existir e a mudar por um
longo período, antes de se dar a interiorização definitiva.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 111


A internalização das funções psicológicas supõe que o processo de
desenvolvimento do homem é marcado por sua inserção cultural.
Toma, portanto, a direção de “fora para dentro”, ou seja, ocorre
a partir das ações externas que o indivíduo realiza, as quais são
interpretadas por outras pessoas da cultura que estão ao seu redor
e que atribuem a essas ações certos significados culturalmente
produzidos. É por isso que a interação entre sujeitos tem um papel
fundamental na abordagem de Vygotsky, pois através das relações
interpessoais, internalizamos formas culturais de comportamento
e de funcionamento psicológico.

É importante dizer que a internalização não se constitui um processo


passivo, ou seja, não pode ser reduzida a uma cópia do mundo
exterior. Na verdade, a internalização é um processo bastante
complexo, a ponto de estudiosos da abordagem vygotskyana
como Werstch (1988), Baquero (1998) e Pino (2000) advertirem
que não podemos interpretar a internalização como uma simples
reprodução de conteúdos externos pela consciência. São palavras
de Werstch (1988, p.83) a esse respeito: “a internalização não é
um processo de cópia da realidade externa em um plano interior
já existente; é mais, é um processo em cujo seio se desenvolve um
plano interno de consciência”.

Veja o que dizem Davis e Oliveira (1990, p.50) sobre o papel da


interação no desenvolvimento cognitivo do sujeito:

[...] gradativamente, as interações sociais com


adultos ou com companheiros mais experientes
governam o desenvolvimento e o próprio
comportamento da criança.
A forma como a fala é utilizada na interação social
com adultos e colegas mais velhos desempenha,
portanto, um papel importante na formação e
organização do pensamento complexo e abstrato,
em nível individual. Há uma interiorização
progressiva das direções verbais fornecidas
à criança pelos membros mais experientes
disponíveis no ambiente social. À medida que
as crianças crescem, elas internalizam a ajuda
externa que vai-se tornando desnecessária. O

112 FILOSOFIA
pensamento infantil, amplamente guiado pela
fala e pelo comportamento dos mais experientes,
gradativamente adquire a capacidade de se
autorregular. Por exemplo, quando a mãe mostra a
uma criança de dois anos um objeto e diz “a faca
corta e dói”, o fato de ela apontar para o objeto
e de assim descrevê-lo provavelmente provocará
uma modificação na percepção e no conhecimento
da criança. O gesto e a fala maternos servem como
sinais externos que interferem no modo pelo qual
o menino ou a menina age sobre o seu ambiente.

A linguagem e seu papel na


aprendizagem e desenvolvimento

P
ara se relacionar com o mundo que o cerca, o ser humano
conta, a partir do momento em que nasce, com a mediação
de outras pessoas. Para Vygotsky (1989), o caminho do objeto
até o aprendiz e deste até o objeto passa através de outra pessoa,
implicando que, pela mediação do outro, a criança, desde cedo,
aproprie-se dos significados socialmente construídos na cultura.

Segundo Vygotsky, a ideia de mediação torna mais complexa


a relação do indivíduo com o mundo, supondo sistemas que
se interpõem entre um e outro, no interior de interações e
intercomunicações sociais. Os sistemas mediadores
possuem uma natureza
semiótica, o que
Para compreender melhor o papel que os sistemas mediadores quer dizer que são
sistemas dotados
desempenham no processo de desenvolvimento humano, Vygotsky de significações
produzidas pelos
partiu do conceito marxista de trabalho, concebendo que o trabalho grupos sociais dos quais
o indivíduo participa.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 113


implica a ação transformadora do homem sobre a natureza para
dominá-la, ou seja, para fazer com que sirva aos seus próprios
propósitos (OLIVEIRA, 1993). Foi para ampliar suas possibilidades
de interferir na natureza que o homem criou os instrumentos ou
ferramentas de trabalho.

A partir dessa perspectiva, Vygotsky distinguiu funções diferentes


para os instrumentos e os signos.

Vejamos suas palavras (1989, p. 62) a esse respeito:

A função do instrumento é servir como um


condutor da influência humana sobre o objeto da
atividade; ele é orientado externamente; deve
necessariamente levar a mudanças nos objetos;
constitui um meio pelo qual a atividade humana
externa é dirigida para o controle e domínio da
natureza; o signo, por outro lado, não modifica em
nada o objeto da operação psicológica; constitui
um meio da atividade interna dirigido para o
controle do próprio indivíduo; o signo é orientado
internamente.

114 FILOSOFIA
Vemos, então, que, para Vygotsky, os signos são análogos aos
instrumentos ou ferramentas de trabalho, pois desempenham
o mesmo papel de transformação na natureza. Porém, ele os
caracteriza como instrumentos psicológicos, uma vez que são
criações da cultura humana que se dirigem para o mundo interno
do próprio homem, como meio auxiliar na resolução de problemas.

Utilizamos os signos para trazer de volta, ou tornar presente


alguma coisa, no plano mental. Assim, valemo-nos de símbolos,
palavras, gestos, desenhos que nos lembram algo. Por exemplo:
anotar aniversários ou compromissos em agendas, fazer lista de
compras, executar uma melodia seguindo uma partitura, virar o
relógio para lembrar de fazer uma atividade, desenhar o projeto
de uma casa etc.

Originalmente, os signos surgiram como marcas exteriores


utilizadas pelos homens para controlar a memória e a atenção,
funcionando como representações da realidade referidas a pessoas,
coisas e situações ausentes no espaço e no tempo. Muito antes da
existência dos sistemas de numeração, por exemplo, os homens
primitivos já representavam quantidades através de pequenos
riscos no chão ou nas paredes de grutas, ou nós em cordas, de
modo que podiam recuperar, sem se perder, quantos animais ou
quantos feixes de trigo possuíam para trocar com outros homens.
Essas marcas exteriores exerciam a função de representação das
coisas existentes na realidade, de modo a auxiliar a memória,
sempre que necessário.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 115


Ao longo da evolução histórica do homem, como também ao longo
do desenvolvimento ontogenético de cada um de nós, ocorrem,
então, duas mudanças qualitativas quanto ao uso de signos: 1º)
através da internalização, as marcas externas vão se transformando
em signos internos, isto é, em representações mentais da realidade
exterior; 2º) desenvolvem-se sistemas simbólicos (organização dos
O processo de signos em estruturas complexas e articuladas) (OLIVEIRA, 1993).
mediação através de
signos possibilitou ao Entre os sistemas simbólicos, a linguagem figura como forma básica
homem controlar e
dominar o seu próprio de os grupos humanos se comunicarem e aprimorarem as interações
comportamento,
tornando a atividade sociais. A mediação da linguagem possibilita, aos novos indivíduos
psicológica muito
mais sofisticada, pois de um dado grupo social, a apropriação, desde cedo, das formas
os sinais exteriores
forneceram um
de perceber e organizar o mundo, como um filtro interposto entre
suporte concreto o homem e a realidade. Tal fato significa que a linguagem não tem
para sua relação com
o mundo. apenas a função de comunicar nossos pensamentos, sentimentos e
desejos. Ela também carrega uma outra função que é a de servir
para o domínio de si como reguladora da própria conduta.

Palangana (2000, p.28-29) explicita o papel da linguagem do ponto


de vista vygotskyano.

Preste bastante atenção:

A linguagem encerra em si o saber, os valores, as


normas de conduta, as experiências organizadas
pelos antepassados, por isso participa diretamente
no processo de formação do psiquismo desde o
nascimento. Ao nomear os objetos, explicitar suas
funções, estabelecer relações e associações, o
adulto cria, na criança, formas de reflexão sobre a
realidade. Está-se destacando a intercomunicação
como fundamental não apenas na apreensão do
conteúdo, mas igualmente na constituição do
afetivo, do emocional, da cognição. Sim, pois a
palavra, mais especificamente o significado, contém
determinadas possibilidades de conduta, em especial
de operações mentais cristalizadas. Ela é, nesse
sentido, generalização e síntese de representações
que os homens fazem do real. Quando a criança, pela
intervenção de pessoas, toma para si significados
socialmente construídos, junto com eles incorpora e
desenvolve uma qualidade de percepção, de memória
e atenção, de raciocínio e abstração, dentre outras
capacidades presentes no mundo moderno. Daí a
razão para se afirmar que a prática conjunta e nela
a mediação dos signos e significados (re)criam a
atividade psíquica – uma conquista do coletivo – em
cada novo membro da espécie.

116 FILOSOFIA
Mediante o exposto, você pode concluir que a mediação dos signos
modifica as formas de agir, pensar, sentir e querer. Através dos
signos, os sujeitos adquirem controle do próprio comportamento a
partir dos significados compartilhados na cultura, tornando seu, ao
mesmo tempo em que (re)cria, o mundo à sua volta.

Quando a criança passa a utilizar a fala e os signos (amarrar um


cordão no dedo para lembrar de algo ou usar um código para trazer
ideias), produz-se uma modificação em suas funções psicológicas
superiores. Se a fala e os signos são incorporados a qualquer ação,
esta ação se transforma e se organiza de forma totalmente nova.

A Zona de Desenvolvimento Proximal

Em Vygotsky, a interação entre sujeito e objeto de conhecimento


passa pela mediação de outras pessoas. O conceito que explica
a influência da mediação no desenvolvimento do indivíduo é o
conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Então, vejamos.

Vygotsky (1989, p.97) concebeu a zona de desenvolvimento


proximal como: a distância entre o nível de desenvolvimento real,
que se costuma determinar através da solução independente de
problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado
através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou
em colaboração com companheiros mais capazes.

O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento


retrospectivamente, referindo-se às funções mentais já
amadurecidas. As funções do nível real pertencem, então, ao domínio
daquilo que o indivíduo controla e consegue resolver de maneira
autônoma, independente. A zona de desenvolvimento proximal
define funções que ainda não amadureceram, não se completaram,
mas estão em processo, em estado embrionário. A essas funções
Vygotsky chamou de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 117


As funções que pertencem à zona de desenvolvimento proximal podem
ser verificadas pela necessidade de ajuda ou de apoio que o indivíduo
tem para resolver problemas a elas afetos. Contando com um suporte
mediador adequado e suficiente, as funções que hoje estão na zona
de desenvolvimento proximal vão se consolidar, transformando-se em
funções reais que, de ora em diante, já não mais exigem a ajuda de
outras pessoas para a resolução de problemas.

Vemos, portanto, que a zona proximal é um domínio psicológico


dinâmico, em constante transformação, em face da mediação de
pessoas mais experientes. Esta maneira de conceber o desenvolvimento
remete, pois, à importância significativa dos mediadores no
desenvolvimento individual. Como diz Oliveira (1993, p. 60):

É como se um processo de desenvolvimento


A mediação que
propicia um bom
progredisse mais lentamente que o processo de
aprendizado propicia aprendizado; o aprendizado desperta processos
também a ampliação de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-
do desenvolvimento se parte das funções psicológicas consolidadas do
real do sujeito,
do domínio das
indivíduo.
funções mentais,
ao mesmo tempo
em que lhe abre A concepção vygotskyana coloca, portanto, o aprendizado “na
novas possibilidades
ou novas zonas de frente” do processo de desenvolvimento, exercendo o papel de
desenvolvimento
proximal. puxá-lo, de fazê-lo acontecer. Ora, a implicação pedagógica dessa
concepção, como vemos, é imediata, pois remete à importância
que a escolarização tem na vida dos indivíduos, supondo que
os professores, como mediadores, devem propiciar os suportes
concretos e a interferência adequada para que os alunos
transformem as funções mentais que hoje estão na zona proximal
em funções consolidadas, adquirindo, assim, autonomia.

118 FILOSOFIA
Vygotsky disse que o único bom ensino é aquele que se adianta ao
desenvolvimento. Com esta afirmação, ele valorizou sobremaneira
a intervenção pedagógica: as instruções dadas pelos professores,
as demonstrações, a assistência oferecida aos alunos na resolução
de problemas, o fornecimentos de pistas e indicativos. Para ele, o
que o sujeito consegue fazer com a ajuda de alguém, amanhã ele
fará por si só.

De acordo com Fontana; Cruz (1998, p. 64), a zona de:

[...] desenvolvimento proximal como desenvolvi-


mento em elaboração possibilita a participação do
adulto no processo de aprendizagem da criança.
Para consolidar e dominar autonomamente as ati-
vidades e operações culturais, a criança necessita
da mediação do outro.

Essas autoras consideram que o simples contato que o aluno tem


com o objeto de conhecimento não garante a aprendizagem,
nem promove o desenvolvimento. Há necessidade da intervenção
do professor, de forma questionadora, desafiadora, intencional e
planejada. É desse modo que o aluno pode organizar, ressignificar
tudo aquilo que está aprendendo e desenvolvendo. Em suma, a
participação do professor no processo de ensino e aprendizagem
é fundamental, numa conduta de parceria, dando assistência,
orientando e instruindo o aluno de maneira sistemática e constante.

De tudo o que vimos, cabe destacar que a escola, os professores,


os membros mais experientes da cultura, assim como todo tipo
de ambiente de aprendizagem, têm um papel fundamental na
promoção do desenvolvimento psicológico dos indivíduos.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 119


A formação de conceitos

A
matéria-prima do trabalho docente é o que chamamos de
“conceito”. No dicionário, a expressão conceito corresponde
à formulação de uma ideia por meio de palavras, quer dizer,
uma definição. Os conceitos não nascem prontos em nossas mentes,
nem ficam armazenados nela, no dizer de Vygotsky, “como um saco
armazena ervilhas”. Pelo contrário, os novos conceitos são formados
como resultado de um processo gradativo de elaboração em que
contam a experiência do sujeito no mundo e a inter-relação de
um novo conceito com outros conceitos formados anteriormente.
Vejamos este processo com mais detalhes.

CARACTERIZAÇÃO DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS

• é um processo gradativo que ocorre ao longo das experiências


do sujeito no mundo;

• é um processo mediado pelos sistemas simbólicos desenvolvidos


pelo grupo cultural a que a criança pertence;

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 121


• é um processo diretamente relacionado com a linguagem e a
interação social;

• é um processo que supõe inter-relações entre conceitos novos


e conceitos formados anteriormente;

• dá-se através da palavra, no entanto a palavra não se restringe


ao conceito. Não há uma relação direta/linear entre palavra
e conceito. Por causa das diferentes experiências culturais
e pessoais muitas vezes uma mesma palavra pode expressar
ideias ou conceitos diferentes.

O papel da linguagem na formação dos conceitos

Segundo Vygotsky, a linguagem tem para nós duas funções básicas:


a de intercâmbio social e a de pensamento generalizante. A
função de intercâmbio social serve ao propósito de comunicação
entre os indivíduos; a função de pensamento generalizante serve
como instrumento do pensamento porque através da linguagem
é que nós ordenamos a nossa realidade. Dito de outro jeito, a
linguagem na função de pensamento generalizante simplifica
e generaliza a experiência, dando uma ordem às instâncias do
mundo real através de categorias conceituais cujo significado é
compartilhado pelos usuários dessa linguagem.

Desse modo, quando utilizamos a linguagem para nomear um


objeto, estamos na verdade classificando esse objeto numa
categoria, numa classe de objetos que possuem certos atributos
em comum. Por exemplo: eu só posso chamar um objeto ou uma
figura de “triângulo” se esse objeto ou essa figura tiver três lados
formando três ângulos. Esse conceito de “triângulo” independe da
cor, do tamanho ou do tipo de material presente no objeto.

O valor que Vygotsky atribuiu à linguagem na formação de conceitos


pode ser constatado nas seguintes palavras:

A formação de conceitos, pelo fato de estar relacionada à linguagem


e à interação social, não ocorre de uma maneira linear. Vygotsky
observou isso em seus estudos enfatizando que as crianças muitas
vezes parecem dominar alguns conceitos quando fazem uso deles

122 FILOSOFIA
de modo semelhante ao uso que o adulto faz. Entretanto, muitas
vezes as crianças não têm domínio destes conceitos.

A formação de conceitos, pelo fato de estar relacionada à linguagem


e à interação social, não ocorre de uma maneira linear. Vygotsky
observou isso em seus estudos enfatizando que as crianças muitas
vezes parecem dominar alguns conceitos quando fazem uso deles
de modo semelhante ao uso que o adulto faz. Entretanto, muitas
vezes as crianças não têm domínio destes conceitos.

Leia o episódio e reflita sobre ele:

A professora escreve na lousa “a mamãe afia a faca” e pede para


uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à
criança:

- Quem é a mamãe?

- É a minha mamãe, né?

- E o que é afia?

A criança pensa, hesita e responde:

- Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: “- vem cá minha fia”.

A professora desconcertada, intervém:

- Não, afia é amola a faca!

(SmolKa, Ana L. B. A criança na fase inicial da escrita.


Campinas, SP: Cortez, Ed. da Unicamp, 1988.)

No referencial vygotskyano diz-se que a mediação é SEMIÓTICA – ou


seja, embora se dê pela participação de um outro na relação, ela
acontece através da palavra – a qual é carregada de significados
culturalmente constituídos. É através das mediações que as
pessoas mais experientes do ambiente da criança lhe ensinam os
nomes dos objetos, a utilidade das coisas, os significados de certos
comportamentos.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 123


Vamos analisar alguns exemplos de situações que aparecem
numa pesquisa de Mestrado feita por Mônica Salles Gentil, da
FE/UNICAMP, Campinas, 1997. Neles podemos perceber como as
palavras vão funcionando numa rede de significações, na qual
as noções vão se constituindo a partir de indicadores dados no
processo de mediação e na própria vivência das palavras.

EXEMPLO 1: Numa classe de pré-escola

FELIPE: - Amanhã aconteceu uma coisa estranha...

Marina Z: - Amanhã?

FELIPE: - Amanhã aconteceu...

Guilherme: - Amanhã ainda não aconteceu.

Marina Z: - Amanhã, não. Ontem.

FELIPE: Ontem aconteceu uma coisa estranha, ficou tudo cheio


de poeira.

EXEMPLO 2: Na mesma classe

Marina M.: - Sabe por que eu cheguei atrasada, hoje?

Professora: - Não. Por quê?

Marina M: Porque meu pai chegou em cima da hora. Ele esqueceu


que ele é que tinha que trazer a gente.

André: - Em cima da hora? O que é isso? Ele estava em cima? (e faz


um gesto levantando a mão à frente do rosto).

Bruno: - Não, André. Chegou em cima da hora.

Criança 1: - É que chegou atrasado.

Criança 2: - Chegou tarde!

Professora: Calma. Quem sabe explicar pro André o que é em cima


da hora?

Crianças: - Eu sei!

124 FILOSOFIA
Professora: - Fale Marina Z.

Marina Z: É que chegou depois.

Professora: Não, não é isso.

Bruno: Chegou tarde.

Professora: - Não. Você sabe Marina M?

Marina M: - Sei. É quando chega e o portão está fechando, mas dá


pra entrar.

Professora: - André, em cima da hora é quando você chega na hora


quase certinha que combinou. Quando você vem para a escola, se
você chega depois da 1 hora, chega atrasado; se chega ao meio
dia, como o Felipe, chega antes, adiantado; e se você chega à 1
hora, chega em cima da hora.

(em cima: marco espacial / serve para localização; hora: marco


temporal / não existe fisicamente).

A criança, em seu processo de elaboração conceitual, passa por


momentos diferentes em que a generalização e a abstração vão se
confirmando ou consolidando e, consequentemente, modificando
as palavras usadas, a partir das interações estabelecidas com o
outro. O próprio Vygotsky dizia que, em qualquer idade, um conceito
expresso por uma palavra representa um ato de generalização,
mas é preciso considerar que os significados das palavras evoluem.
Quando uma palavra nova é aprendida pela criança, tem-se um
ato de generalização primitivo; mas, na medida em que há o
desenvolvimento intelectual, a criança vai se tornando capaz de
fazer generalizações cada vez mais elaboradas, mais sofisticadas.
Esse processo é de formação de conceitos.

O percurso da formação de conceitos

Vygotsky reconheceu três grandes momentos no percurso da


formação dos conceitos.

1º) A fase dos conjuntos sincréticos – na qual o significado de


uma palavra denota o que Vygotsky chamou de “amontoado” ou

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 125


“conglomerado” vago. O sujeito utiliza uma palavra para referir-
se a objetos desiguais, agrupados sem que haja um fundamento,
um nexo, porque está se baseando em suas próprias impressões,
conforme as imagens se aglutinam em sua mente. Então, designa-
se um objeto, dando a ele um nome, muitas vezes pelo acaso,
outras vezes porque existe proximidade espacial (um objeto
está perto de outro) e outras vezes mesmo porque está apenas
experimentando, num processo de ensaio e erro.

2º) A fase do pensamento por complexos – Aqui já é uma fase


mais adiantada. No complexo, os objetos associam-se na mente
do sujeito não apenas por causa de suas impressões subjetivas,
mas devido às relações que de fato existem entre esses objetos.
Vygotsky diz que o pensamento por complexos é como se o sujeito
agrupasse os objetos em famílias.

No pensamento por complexos, as palavras tendem a referir-se


aos objetos e seus contextos reais, quer dizer, as ligações são
factuais, isto é, concretas. Qualquer nova ligação que aparecer
na realidade pode levar a criança a incluir um objeto dentro de
uma dada categoria. Um exemplo de pensamento por complexos
é analisado por FONTANA (1996). A autora mostra a professora
trabalhando com o conceito de cultura, depois de uma visita dos
alunos ao museu. O complexo fica caracterizado neste caso porque
o conceito de cultura aparece estreitamente ligado ao contexto
da visita ao museu. Então, tendo a professora perguntado para os
alunos o que é cultura, apareceram respostas assim:

Car - “Cultura é coisa de museu.”

Zil – “É coisa que a gente olha, mas não pode pôr a mão” (regra
do museu).

Leo – “É umas coisas muito velha.”

Osv - “É coisa que se põe a mão cai de tão velha que ta.”
Algumas crianças simplesmente repetiram frases que ouviram da
coordenadora do museu:

“Cultura é criatividade.”

“Cultura é coisa que deve ser preservada.”

126 FILOSOFIA
3º) A fase dos conceitos propriamente ditos: A principal diferença
entre os complexos e os conceitos propriamente ditos está no
tipo de ligação entre os elementos. Nos conceitos os elementos
são agrupados de acordo com um atributo; nos complexos podem
existir tantas ligações quantos forem os contatos que realmente
existem entre os elementos. Para formar os conceitos propriamente
ditos, não basta unir elementos, será preciso abstraí-los, isolá-los,
examiná-los de modo separado da experiência imediata. Assim, a
formação de conceitos requer duas operações mentais: a análise
e a síntese, ou seja, um movimento de vai e volta do geral para o
particular e do particular para o geral. Por exemplo: a criança só
chegará ao verdadeiro conceito de cão quando souber distingui-
lo de outros animais, dos vegetais, através de uma definição que
sirva para as características de todos os cães.

O papel da ecolarização na formação dos conceitos científicos

As três fases que foram apresentadas referem-se à trajetória


espontânea de formação de conceitos, isto é, aquela que ocorre
através da atividade prática da criança e de suas interações sociais
no meio em que vive – ou seja, o processo espontâneo de formação
de conceitos é um processo que deriva da experiência pessoal da
criança em seu cotidiano. No entanto, é interessante verificarmos
que Vygotsky distinguiu os conceitos espontâneos/cotidianos,
que advêm da experiência pessoal, daqueles conceitos que são
adquiridos por interferência da escolarização. Estes últimos,
Vygotsky denominou de “conceitos científicos”.

Os conceitos espontâneos/ cotidianos originam-se da experiência


pessoal, prática, diária da criança e são impregnados dessa
experiência pessoal.

Os conceitos científicos originam-se da interferência da escola,


são conceitos induzidos pela ação pedagógica, são adquiridos
por meio do ensino, como parte de um sistema organizado de
conhecimentos, mesmo porque a escola, nas sociedades letradas,
trabalha com o conhecimento sistematizado pela humanidade.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 127


Uma coisa é a criança adquirir o conceito de cão na vivência com
o seu cãozinho em casa. Claro que ela vai descobrir que o cão late,
que tem pelos, que é quentinho, que gera seus filhotes na barriga
e seus filhotes mamam. Outra coisa será aprender na escola que
o cão é um animal “mamífero”, “homotérmico”, “vivíparo” etc.

Então, a aquisição de conceitos de modo espontâneo não é igual


à aquisição de conceitos por interferência científica na escola.
Este ponto é muito
importante para nós Vygotsky tinha isso bem claro, tanto é que disse claramente:
professores porque nos
mostra que não devemos
separar a experiência da A mente se defronta com problemas diferentes
criança, as coisas que ela já quando assimila os conceitos na escola e quando
conhece do seu cotidiano, é entregue aos seus próprios recursos. Quando
de sua experiência cultural
e pessoal, dos novos transmitimos à criança um conhecimento
conceitos que trabalhamos sistemático, ensinamos-lhe muitas coisas que ela
com ela na escola. Para que não pode ver ou vivenciar diretamente (VYGOTSKY,
possamos atuar no processo 1989, p. 74).
de formação de conceitos
científicos de modo bem
sucedido, precisamos
compreender o seguinte:

a) Os conceitos espontâneos Quer dizer, na escola, mesmo a criança que não tem um cão
são ricos de experiência
pessoal, por isso são mais
ou nunca viu um cão pode adquirir a ideia de cão através da
concretos. No entanto,
mesmo já tendo o conceito,
interferência dos conceitos científicos.
o sujeito pode não ter
consciência dele, nem
saber utilizá-lo de forma
Para Vygotsky, o aprendizado de conceitos científicos na escola
deliberada. Os conceitos é uma força poderosa no desenvolvimento infantil, que
espontâneos não estão
organizados num sistema determina o destino do desenvolvimento mental do aluno. Mas,
hierárquico na mente.
Vygotsky diz: Ao operar com para que isto aconteça, deve haver uma inter-relação entre os
conceitos espontâneos, a
criança não está consciente conceitos espontâneos e os conceitos científicos. Quer dizer, o
deles, pois sua atenção
está sempre centrada no desenvolvimento de um deve buscar o desenvolvimento de outro.
objeto ao qual o conceito se
refere, nunca no próprio ato
de pensamento (VYGOTSKY, Veja o que diz Vygotsky (Id. Ibidem, p. 93-94):
1989, p. 79)

b) Os conceitos científicos Ao forçar a sua lenta trajetória para cima, um


são transmitidos em conceito cotidiano abre o caminho para um conceito
situações formais, portanto
precisam ser mediados científico e o seu desenvolvimento descendente.
face ao caráter abstrato do Cria uma série de estruturas necessárias para
objeto. Desenvolvem-se a a evolução dos aspectos mais primitivos e
partir de definições verbais, elementares de um conceito que lhe dão corpo
não espontâneas.
e vitalidade. Os conceitos científicos, por sua
c) O desenvolvimento dos vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento
conceitos espontâneos ascendente dos conceitos espontâneos da criança
é ascendente, enquanto
o desenvolvimento dos
em relação à consciência e ao uso deliberado. Os
conceitos científicos é conceitos científicos desenvolvem-se para baixo
descendente. Apesar disto, por meio dos conceitos espontâneos; os conceitos
os dois processos são inter- espontâneos desenvolvem-se para cima por meio
relacionados.
dos conceitos científicos.

128 FILOSOFIA
A concepção de Vygotsky acerca do desenvolvimento dos conceitos
científicos mostra-nos que:

a) a escola tem uma importância capital no desenvolvimento


humano pois a intervenção pedagógica provoca avanços que
não ocorreriam espontaneamente – a instrução deliberada que
ocorre na escola é fundamental na construção de processos
psicológicos superiores nos indivíduos;

b) os membros de grupos culturais que não dispõem da ciência, da


sistematização do conhecimento, funcionam intelectualmente
com base em conceitos espontâneos gerados em situações
concretas, pessoais.

c) vida e escola não precisam ser instâncias incomunicáveis. É


importante que o processo de elaboração conceitual que de- Sugerimos para leitura:
corre da vida diária não se separe do processo de elaboração “Formação Social da
Mente”, “Pensamento e
científica propiciado pela escola. Os dois tipos de conceitos Linguagem”, “Linguagem,
Desenvolvimento e
devem procurar-se, devem retroagir um sobre o outro para Aprendizagem” de
Vygotsky; “Vygotsky:
produzir um processo de aprendizagem que seja significativo e aprendizado e
desenvolvimento, um
reflexivo. processo sócio-histórico,
de Marta Kohl de Oliveira e
“Vygotsky: uma perspectiva
histórico-cultural”, de
Teresa Cristina Rego.

Para refletir sobre a


importância da mediação,
recomendamos que você
assista aos filmes: “O
enigma de Kaspar Hauser”,
SÍNTESE direção de Werner Herzog
e “Mister Holland, meu
adorável professor”, de
Richard Dreyfus.
Nesta Unidade, procuramos explicar a você as ideias de Vygotsky
Há também um
sobre desenvolvimento e aprendizagem. Para ele, as funções documentário intitulado
“As borboletas de
psicológicas são de origem sociocultural e emergem de processos Zagorski”, série “Os
psicológicos elementares, de origem biológica, através da transformadores”, da TV
Cultura de São Paulo.
interação que a criança realiza com os membros mais experientes
de sua sociedade.

Os processos psicológicos superiores são produzidos por uma linha


de desenvolvimento cultural, a partir da internalização de práticas
históricas e sociais, sob a base das operações com signos. O signo
modifica a forma de agir, pensar, sentir e querer, é orientado
internamente e o sujeito o utiliza para seu próprio controle.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 129


O psicólogo russo chama de zona de desenvolvimento proximal
a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado
através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, que é determinado através da solução
de problemas sob a orientação de adultos ou em colaboração com
companheiros mais capazes ou outras crianças mais experientes.

Uma operação de início é uma atividade externa, que


reconstruída, ocorre internamente. Um processo interpessoal se
torna intrapessoal como resultado de uma longa série de eventos
ocorridos no desenvolvimento.

O processo de formação de conceitos em nosso pensamento


passa por três momentos: uma fase sincrética, uma fase de
pensamento por complexos até chegar ao conceito propriamente
dito. A escolarização tem uma importância imensa no processo de
aquisição de conceitos científicos, razão pela qual podemos dizer
que a escola é fundamental para que os sujeitos pensem de modo
mais elaborado.

Nesta atividade de verdadeiro (V) ou falso (F), você


pode avaliar a sua compreensão sobre algumas ideias
básicas de Vygotsky e colaboradores, acerca do
desenvolvimento e aprendizagem do ser humano.

( ) Os instrumentos e signos não exercem qualquer


influência no processo de desenvolvimento do
homem.
( ) O nível de desenvolvimento real é caracterizado
pela resolução de problemas de forma
independente.
( ) A zona de desenvolvimento proximal define as
funções que ainda não amadureceram, que estão
presentes em estado embrionário.

130 FILOSOFIA
( ) O desenvolvimento histórico e social do ser humano
é pouco relevante, pode até ser desconsiderado
na perspectiva vygotskyiana.
( ) A linguagem possibilita a apropriação das formas
de perceber e organizar o mundo, como se fosse
um filtro interposto entre o homem e a realidade.

Faça no espaço destinado às anotações um pequeno


texto sobre o papel da escola em relação a formação
dos conceitos científicos.

PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | unidade 4 131

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