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Obras da série
O Pequeno Nicolau
As férias do Pequeno Nicolau
Novas aventuras do Pequeno Nicolau
O Pequeno Nicolau e seus colegas
o Pequeno Nicolau no recreio
Sempé/Goscinny
O Pequeno Nicolau
O fotógrafo resolveu que a gente tinha que ficar em três filas; a primeira
fila sentada no chão e a segunda, em pé em volta da professora, que ia ficar
sentada numa cadeira, e a terceira, em pé em cima de uns caixotes. Esse
fotógrafo tem boas idéias mesmo.
Fomos buscar os caixotes que estavam no porão da escola. Foi muito
divertido, porque não havia muita luz no porão e o Rufino enfiou um saco
velho na cabeça e ficou gritando: "UUU! Eu sou o fantasma." E aí a gente
viu a professora chegar. Ela não parecia muito contente, então saímos
depressa com os caixotes. O único que ficou foi o Rufino. Com aquele saco
ele não via o que estava acontecendo e continuava gritando: "UUU! Eu sou
o fantasma", e foi a professora que tirou o saco da cabeça dele. O Rufino
levou um baita susto. Quando chegou de novo ao pátio, a professora largou
a orelha dele, bateu com a mão na testa e disse: "Mas vocês estão imundos."
Era verdade, a gente tinha se sujado um pouco fazendo palhaçadas no porão.
A professora estava zangada, mas aí o fotógrafo disse que não fazia mal, que
dava tempo de a gente se lavar enquanto ele arrumava os caixotes e a
cadeira para a foto. O único que estava com a cara limpa era o Agnaldo, e
fora ele também o Godofredo, porque ele estava com a cabeça dentro do
capacete de marciano, que parecia um aquário. O Godofredo disse para a
professora: "Está vendo só, professora, se todos tivessem vindo vestidos
como eu, não tinha acontecido nada disso." Eu vi que a professora estava
com muita vontade de puxar as orelhas do Godofredo, mas não tinha jeito de
segurar no aquário. Essa roupa de marciano é um arranjo incrível!
No alto, da esquerda para a direita: Martins (que se mexeu), Paulão, Dubedá, Cossino, Rufino,
Adalberto, Eudes, Champinhac, Lefèvre, Toussaint, Charlier, Sarigaut.
No meio: Paulo Bojojof, Tiago Bojojof, Marcos, Lafontan, Lebrun, Dubos, Delmont,
de Fontagnès, Martineau, Godofredo, Mespoulet, Falot, Lafageon.
Sentados: Rignon, Guyot, Aníbal, Croustsef, Bergès, a professora, Agnaldo, Nicolau, Faribol,
Grosini, Gonzales, Pichenet, Alceu e Mouchevin (que acaba de ser expulso).
Os caubóis
Convidei os meus amigos para brincar de caubói hoje de tarde na minha
casa. Eles chegaram com todas as coisas deles. O Rufino estava com todo o
equipamento de policial que ganhou do pai dele, com o quepe, as algemas, o
revólver, o cassetete branco, o apito de bolinha e tudo; o Eudes estava com o
chapéu de escoteiro do irmão mais velho dele e um cinturão com um monte
de balas de madeira e duas cartucheiras com dois revólveres incríveis, que
tinham cabo feito do mesmo tipo de osso que o estojo de pó-de-arroz que o
papai comprou pra mamãe depois que eles brigaram por causa da carne
assada que estava muito assada mas que a mamãe dizia que era porque o
papai tinha chegado muito tarde. O Alceu estava vestido de índio; tinha um
machado de pau e penas na cabeça e estava parecendo um frango enorme. O
Godofredo, que adora se fantasiar e que tem um pai muito rico que dá tudo o
que ele quer, estava inteirinho vestido de caubói, com uma calça de pele de
carneiro, um colete de couro, uma camisa xadrez, um chapéu grande,
revólveres com espoleta e esporas bem pontudas. Eu estava com uma
máscara preta que ganhei no carnaval, minha espingarda de dardos e um
lenço vermelho no pescoço, que era um cachecol velho da mamãe. A gente
estava superlegal!
Eu saí galopando pelo jardim dando umas batidas na minha calça para
andar mais depressa, e o Eudes chegou perto de mim. "Desce desse cavalo,
ele disse, quem tem o cavalo branco sou eu! — Não senhor, eu disse para
ele, estou na minha casa, e quem tem o cavalo branco sou eu", e o Eudes me
deu um soco no nariz. O Rufino apitou forte com o apito de bolinha. "Você é
um ladrão de cavalos, ele disse para o Eudes, e em Kansas City nós
enforcamos os ladrões de cavalos!" Aí o Alceu veio correndo e disse:
"Espera aí! Você não pode prender ele, eu é que sou o xerife! - Desde
quando, galináceo?", perguntou o Rufino. O Alceu não gosta de briga, mas
mesmo assim ele pegou o machado de pau e toe! bateu com o cabo na
cabeça do Rufino, que não estava esperando. Ainda bem que tinha o quepe
na cabeça do Rufino! "Meu quepe! Você amassou o meu quepe", o Rufino
gritou e saiu correndo atrás do Alceu, e eu comecei a galopar de novo em
volta do jardim.
"Ei pessoal, parem! Tive uma idéia, o Eudes falou. Nós vamos ser os
bonzinhos e o Alceu vai ser a tribo de índios, e ele tenta capturar a gente e
depois ele pega um prisioneiro, aí a gente chega e liberta o prisioneiro e aí o
Alceu é vencido!" Todo o mundo estava a favor dessa idéia que era legal
mesmo, mas o Alceu não concordou. "E por que eu é que vou ser o índio?",
o Alceu perguntou. "Porque você tem penas na cabeça, idiota!, respondeu o
Godofredo, e se não gostou não brinca mais, é isso aí, porque você tá
enchendo a gente! — Então, já que é assim, eu não brinco mais", o Alceu
falou e foi para um canto ficar emburrado e comer um pãozinho com
chocolate que ele tinha no bolso. "Ele tem que brincar, disse o Eudes, é o
único índio que a gente tem, e se ele não brincar eu depeno ele!" Então o
Alceu disse que tudo bem, que ele brincava, mas só se ele fosse um índio
bom. "Está bem, disse o Godofredo, mas você tem que ser sempre do contra,
hem! - E quem vai ser o prisioneiro?", eu perguntei. "Ué, vai ser o
Godofredo, o Eudes disse, vamos prender ele na árvore com a corda de
pendurar roupa. — O que é que há, ficou louco, é?, perguntou o Godofredo,
por que eu? Eu não posso ser o prisioneiro porque sou o mais bem vestido
de todos. - E daí, o Eudes respondeu, não é só porque eu tenho um cavalo
branco que eu não vou brincar. - Quem tem o cavalo branco sou eu!", eu
disse. O Eudes ficou bravo e disse que quem tinha o cavalo branco era ele e
que se eu não estivesse gostando ele me dava outro soco no nariz. "Tenta",
eu disse, e ele conseguiu. "Não se mexa, Oklahoma Kid!", o Godofredo
gritava e dava tiros pra todo lado; o Rufino apitava com o apito de bolinha e
gritava: "É isso aí, eu sou o xerife, é isso aí, eu prendo vocês todos!", e o
Alceu deu uma machadada no quepe dele dizendo que ele agora era seu
prisioneiro e o Rufino ficou bravo porque o apito de bolinha caiu no
gramado; eu chorava e dizia para o Eudes que eu estava na minha casa e que
nunca mais queria ver ele: todo o mundo gritava, estava legal, a gente estava
se divertindo pra valer, incrível!
E aí o papai saiu de dentro de casa. Ele não estava com uma cara muito
contente. "Como é, criançada, que gritaria é essa, vocês não sabem brincar
sem gritar? — É por causa do Godofredo, ele não quer ser o prisioneiro!", o
Eudes falou. "Quer que eu te mande a mão na cara?", perguntou o
Godofredo, e eles começaram a brigar de novo, mas o papai separou a briga.
"Vamos, meninos, ele disse, vou mostrar para vocês como é que se brinca.
Eu é que vou ser o prisioneiro." Nós ficamos muito contentes. Como o meu
pai é legal! A gente amarrou o papai na árvore com a corda de pendurar
roupa e, mal a gente tinha acabado, vimos o sr. Durázio pular por cima da
cerca do jardim.
O sr. Durázio é o nosso vizinho que gosta de aborrecer o papai. "Eu
também quero brincar, eu vou ser o pele-vermelha Touro-em-pé! — Sai
daqui, Durázio, ninguém te chamou!" O sr. Durázio estava fantástico, ele
ficou na frente do papai com os braços cruzados e disse: "Que cara-pálida
segure sua língua!" Papai fazia uma força incrível para se soltar da árvore e
o sr. Durázio começou a dançar em volta da árvore dando gritos. Bem que a
gente gostaria de continuar vendo o papai e o sr. Durázio se divertindo e
fazendo palhaçadas, mas não deu, porque a mamãe chamou para o lanche e
depois nós fomos para o meu quarto brincar com o trem elétrico. Eu é que
não sabia que o papai gostava tanto de brincar de caubói. Quando a gente
desceu, de noite, já fazia tempo que o sr. Durázio tinha ido embora, mas o
papai ainda estava amarrado na árvore gritando e fazendo caretas.
É legal saber brincar assim, sozinho!
O Sopa
Hoje a professora faltou. A gente estava em fila no pátio para entrar na
classe quando o inspetor de alunos disse: "A professora de vocês está doente
hoje."
Depois o sr. Dubom, que é o inspetor de alunos, levou a gente para a
classe. Nós chamamos o inspetor de Sopa, quando ele não está perto, é
claro. A gente chama ele assim porque ele diz o tempo todo: "Olhe bem nos
meus olhos", e na sopa tem olhos. Eu também não tinha entendido logo, os
grandes é que me explicaram. O Sopa tem um bigode enorme, e ele sempre
dá castigo, com ele não dá pra brincar. É por isso que nós ficamos chateados
quando ele veio tomar conta da gente, mas, por sorte, quando ele chegou na
classe já foi logo dizendo: "Eu não posso ficar com vocês, tenho que
trabalhar com o diretor, por isso, olhem bem nos meus olhos e prometam
que ficarão bem comportados." Todo o nosso montão de olhos olhou nos
dele e prometemos. Aliás, a gente sempre se comporta bem.
Mas o Sopa estava com uma cara desconfiada, então ele perguntou quem
era o melhor aluno da classe. "Sou eu!", disse o Agnaldo, todo orgulhoso. E
é verdade, Agnaldo é o primeiro da classe, também é o queridinho da
professora, e a gente não gosta muito dele, mas a gente não pode bater nele
tanto quanto gostaria por causa dos óculos. "Bom, disse o Sopa, então você
vai vir aqui, vai se sentar no lugar da professora e vai tomar conta dos seus
colegas. Eu voltarei de vez em quando para ver como vão as coisas.
Recordem as suas lições." Agnaldo foi todo contente se sentar na cadeira da
professora e o Sopa foi embora.
"Muito bem, disse o Agnaldo, nós devíamos ter matemática; peguem os
cadernos, vamos fazer um problema. — Você está ficando louco, é?",
perguntou o Clotário. "Clotário, cale-se!", gritou o Agnaldo com jeito de
quem estava achando mesmo que era a professora. "Vem dizer isso pra mim
aqui, se você for homem", o Clotário falou e a porta se abriu e a gente viu o
Sopa entrar todo contente. "Ah, ele disse. Eu tinha ficado atrás da porta para
escutar. Você, aí atrás, olhe bem nos meus olhos!" Clotário olhou, mas
parece que não gostou muito do que viu. "Você vai me conjugar o verbo: eu
não devo ser grosseiro com um colega que está encarregado de tomar conta
de mim e que quer que eu faça problemas de matemática." Depois de dizer
isso o Sopa saiu, mas prometeu que voltaria.
Quando o Sopa voltou com o Joaquim, que estava com o nariz todo
inchado, ele disse que estava começando a ficar cheio e que se aquilo
continuasse a gente ia ver só uma coisa. "Por que vocês não seguem o
exemplo do colega de vocês, o Agnaldo?, ele perguntou, ele é bem
comportado." E o Sopa foi embora. Nós perguntamos para o Joaquim o que
tinha acontecido com ele e ele disse que tinha pegado no sono de tanto olhar
pelo buraco da fechadura.
"Um feirante vai a feira, disse o Agnaldo, levando numa cesta vinte e
oito ovos a 10 francos*" a dúzia... - Eu machuquei o nariz por tua culpa",
disse o Joaquim. "Isso mesmo!, disse o Clotário, a gente vai fazer ele comer
o livro de matemática dele, com o feirante, os ovos e os óculos!" Aí o
Agnaldo começou a chorar. Ele disse que nós éramos maus e que ele ia
contar para os pais dele e que eles iam fazer todos nós sermos expulsos, e o
Sopa abriu a porta. Todo o mundo estava sentado no lugar e ninguém dizia
nada e o Sopa olhou para o Agnaldo que estava chorando sozinho sentado
na cadeira da professora. "Como é, o Sopa disse, agora é você que está
aprontando? Vocês vão me deixar louco. Cada vez que volto aqui é outro
que está bancando o palhaço! Olhem bem nos meus olhos, todos vocês! Se
eu voltar aqui mais uma vez e perceber alguma coisa de anormal, vou dar
castigo", e ele foi embora de novo. Aí nós achamos que era melhor parar de
fazer palhaçada porque quando o Sopa fica bravo ele dá castigos terríveis.
* Moeda francesa.
"Eu não posso emprestar o meu apito de bolinha pra ele, o Rufino disse,
é lembrança de família." Ninguém podia fazer nada. No fim a gente decidiu
que o Agnaldo avisava e o Rufino apitava no lugar do Agnaldo.
"Como é? A gente vai jogar ou não? Eu já estou ficando com fome!",
gritou o Alceu.
Mas o que complicou foi que, se o Agnaldo era o juiz, então nós éramos
só dezessete jogadores e na hora de dividir sobrava um. Mas aí nós
descobrimos um jeito: um ia ser juiz de linha e ia agitar uma bandeirinha
cada vez que a bola saísse do campo. O escolhido foi o Maximiliano. Um
bandeirinha só não chega para vigiar o campo todo, mas o Maximiliano
corre muito depressa, ele tem as pernas muito compridas e magras com
joelhos gordos e sujos. O Maximiliano não queria nem saber, ele queria
jogar bola, isso sim, e além disso ele falou que não tinha bandeira. Mesmo
assim ele aceitou ser o bandeirinha no primeiro tempo. Em vez de bandeira
ele ia agitar o lenço dele, que não estava muito limpo; mas é claro que,
quando ele saiu de casa, não sabia que o lenço dele ia servir de bandeirinha.
"Bom, vamos lá?", gritou o Alceu.
Depois ficou mais fácil, nós éramos só dezesseis jogadores.
Precisava um capitão para cada equipe. Só que todo o mundo queria ser
capitão. Todo o mundo menos o Alceu, que queria ser goleiro, porque ele
não gosta de correr. A gente concordou, o Alceu é bom goleiro; ele é muito
largo e cobre bem o gol. Mesmo assim ainda eram quinze capitães, e por
isso iam sobrar muitos.
"Eu sou o mais forte, o Eudes gritava, o capitão tem que ser eu e vou dar
um soco no nariz de quem não concordar! — O capitão sou eu, eu sou o
mais bem vestido!", gritou o Godofredo, e o Eudes deu um soco no nariz
dele.
O Godofredo estava bem vestido mesmo; o pai dele, que é muito rico,
tinha comprado um uniforme completo de jogador de futebol pra ele, com
uma camisa vermelha, branca e azul.*
*Cores da bandeira francesa.
Aí o Rufino gritou: "Se eu não for o capitão vou chamar o meu pai e ele
prende todo o mundo!"
Eu tive a idéia de tirar a sorte com uma moeda. Com duas moedas,
porque a primeira caiu na grama e nunca mais ninguém achou. O Joaquim é
que tinha emprestado a moeda e ele não gostou nada de ter perdido ela e
ficou procurando a moeda mesmo depois que o Godofredo prometeu que o
pai dele ia mandar um cheque para reembolsar o Joaquim. Afinal os dois
capitães foram escolhidos: o Godofredo e eu.
Quando a mamãe me disse que uma amiga dela vinha tomar chá com a
sua filhinha, eu não gostei nem um pouco. Não gosto das meninas. São
bobas, não sabem brincar de outra coisa que não seja de boneca ou de
vendedora e choram o tempo todo. É claro que às vezes eu também choro,
mas é por coisas sérias como daquela vez que o vaso da sala quebrou e o
papai brigou comigo e não era justo porque eu não tinha feito de propósito,
e também aquele vaso era muito feio e eu sei muito bem que o papai não
gosta que eu jogue bola dentro de casa mas estava chovendo lá fora.
"Você vai ser bonzinho com a Luisinha, a mamãe me disse, é uma
garotinha adorável e quero que você mostre para ela como você é bem-
educado."
Quando a mamãe quer mostrar que eu sou bem-educado, ela me veste
com a calça azul e a camisa branca e eu fico parecendo um bobo. Falei para
a mamãe que eu preferia ir com os meus colegas ao cinema ver um filme de
caubóis, mas a mamãe olhou para mim com os olhos de quando ela não está
para brincadeiras.
"E faça-me o favor de não ser estúpido com a garotinha, senão você vai
se ver comigo, entendeu?", a mamãe disse. Às quatro horas chegou a amiga
da mamãe com a filhinha dela. A amiga da mamãe me beijou, disse para
mim, como todo o mundo diz, que eu era um mocinho, e ela também disse:
"Esta é a Luisinha." Eu e a Luisinha nos olhamos. Ela tinha cabelos
amarelos com trancas, olhos azuis, um nariz e um vestido vermelhos. A
gente se deu os dedos, bem depressa. Mamãe serviu o chá, e isso foi legal
porque quando tem gente para o chá sempre tem bolo de chocolate e a gente
pode repetir duas vezes. Durante o lanche eu e a Luisinha não dissemos
nada. A gente comeu e a gente não se olhou. Quando nós acabamos, a
mamãe disse: "Agora, crianças, vão brincar. Nicolau, leva a Luisinha ao teu
quarto e mostra para ela os teus brinquedos." A mamãe disse isso com um
grande sorriso, mas ao mesmo tempo ela me olhou com aqueles olhos de
quando é melhor não brincar. A Luisinha e eu fomos para o meu quarto, e lá
eu não sabia o que dizer para ela. Foi a Luisinha que disse, e ela disse assim:
"Você parece um mico." Eu não gostei nem um pouco, então eu disse para
ela: "E você que não passa de uma menina!", e ela me deu um tapa. Eu bem
que fiquei com vontade de começar a chorar, mas agüentei firme porque a
mamãe queria que eu fosse bem-comportado, então eu puxei uma trança da
Luisinha e ela me deu um chute na canela. Aí não teve jeito, eu tive que
fazer "ui ui" porque doeu. Eu ia dar um tapa na Luisinha quando a Luisinha
mudou de assunto; ela disse: "Como é, você vai me mostrar esses
brinquedos?" Eu ia dizer para ela que eram brinquedos de menino, quando
ela viu o meu ursinho de pelúcia, aquele que eu tinha rapado só pela metade
porque o barbeador do papai não agüentou até o fim. "Você brinca de
boneca?" ela perguntou e aí começou a dar risada. Eu ia puxar uma trança
dela e a Luisinha estava levantando o braço para meter a mão na minha cara
quando a porta abriu e as nossas duas mamães entraram. "Então, crianças, a
mamãe disse, estão se divertindo? - Estamos sim senhora", a Luisinha falou
com os olhos bem arregalados e depois ela fez as pálpebras mexerem bem
depressa e a mamãe deu um beijo nela dizendo: "Encantadora, ela é
encantadora. Um verdadeiro coelhinho!", e a Luisinha dava duro com as
pálpebras. "Mostra para a Luisinha esses livros de figuras tão lindos que
você tem", a mamãe me disse, e a outra mamãe disse que nós éramos dois
coelhinhos e elas foram embora.
Eu tirei os livros da estante e dei para a Luisinha, mas ela nem olhou
para eles e jogou todos no chão, até aquele que tem uma porção de índios e
que é superlegal. "Os teus livros não me interessam, ela disse, você não tem
nada mais divertido?", e aí ela olhou para o armário e viu o meu avião,
aquele bacana, o que tem um elástico, que é vermelho e voa. "Deixa isso aí,
eu disse, isso não é pra meninas, é o meu avião!", e tentei tirar dela, mas a
Luisinha se desviou. "Eu sou a convidada, ela disse, tenho o direito de
brincar com todos os teus brinquedos, e se você não deixar eu chamo a
minha mãe e a gente vai ver quem está com a razão!" Eu não sabia o que
fazer, não queria que ela quebrasse o meu avião, mas não queria que ela
chamasse a mãe dela porque ia complicar. Enquanto eu estava ali, pensando,
a Luisinha girou a hélice para enrolar o elástico e aí ela largou o avião. Ela
soltou ele pela janela do meu quarto que estava aberta e o avião foi embora.
"Olha só o que você fez, eu gritei. Perdi meu avião!", e comecei a chorar. "O
teu avião não está perdido, bobão, a Luisinha disse, olha lá, ele caiu no
jardim, é só a gente descer e pegar."
Descemos até a sala e eu pedi para a mamãe se a gente podia sair para
brincar no jardim e a mamãe disse que estava muito frio, mas a Luisinha deu
uma batida de pálpebra e disse que queria ver as lindas flores. Então a
minha mamãe disse que ela era um coelhinho encantador e disse para a
gente se agasalhar bem para sair. Preciso aprender esse negócio das
pálpebras, parece que esse truque funciona superbem!
No jardim eu apanhei meu avião que não tinha nada, ainda bem, e a
Luisinha me disse: "O que é que a gente vai fazer? — Sei lá, eu disse para
ela, você não queria ver as flores? Olha elas, tem uma porção ali." Mas a
Luisinha disse que não estava nem aí para as minhas flores e que elas eram
ridículas. Bem que eu fiquei com vontade de socar o nariz daquela tal
Luisinha, mas não tive coragem porque a janela da sala dá para o jardim e as
mamães estavam na sala. "Eu não tenho brinquedos aqui, eu disse, só a bola
de futebol, na garagem." Luisinha me disse que era uma boa idéia. Nós
fomos buscar a bola e eu estava preocupado, tinha medo de que os meus
colegas me vissem brincando com uma menina. "Você fica aí entre essas
duas árvores e tenta segurar a bola", ela me disse. Aí eu tive que dar risada e
depois ela tomou distância e bum! um chute incrível! Não consegui segurar
a bola e ela quebrou o vidro da janela da garagem.
As mamães saíram de casa correndo. A minha mãe viu a janela da
garagem e entendeu logo. "Nicolau!, ela me disse, em vez dessas
brincadeiras brutas, você devia dar mais atenção aos convidados,
principalmente quando são delicados como a Luisinha!" Eu olhei para a
Luisinha e ela estava bem mais longe, no jardim, cheirando as begônias.
De noite eu não ganhei sobremesa, mas não faz mal, a Luisinha é legal e
quando a gente for grande a gente vai se casar.
Ela tem um chute incrível!
O ensaio para a visita do ministro
Fizeram todo o mundo descer para o pátio e o diretor veio falar. "Meus
queridos alunos, ele disse para nós, tenho o grande prazer de anunciar que,
por ocasião de sua passagem por nossa cidade, o Senhor Ministro vai nos
dar a honra de visitar a nossa escola. Ele é um exemplo para vocês, um
exemplo que prova que quem trabalha direito pode ter as mais altas
aspirações. Faço questão de que o Senhor Ministro receba aqui uma
acolhida inesquecível e conto com vocês para isso." E o diretor mandou o
Clotário e o Joaquim para o canto de castigo porque eles estavam brigando.
Depois o diretor reuniu todos os professores e inspetores de alunos em
volta dele e disse pra eles que tinha algumas idéias sensacionais para a
recepção ao ministro. Para começar, todo o mundo ia cantar o Hino
Nacional e depois três dos pequenos iam até a frente com flores e iam dar as
flores para o ministro. É verdade que o diretor tem idéias legais e vai ser
uma boa surpresa para o ministro receber flores; com certeza ele não está
esperando. Não sei por quê, mas a nossa professora parecia preocupada.
Acho que ela anda nervosa nestes últimos dias.
O diretor disse que a gente ia começar a ensaiar imediatamente e nós
ficamos muito contentes porque não ia ter aula. A professora Vanderblergue,
que dá aula de música, fez a gente cantar a Marselhesa. Parece que não
estava dando muito certo, mas bem que a gente fazia um bocado de barulho.
Está certo que nós estávamos um pouco na frente dos grandes. Eles ainda
estavam no dia de glória que chegou* e nós já estávamos na segunda
bandeira sangrenta que era erguida**, menos o Rufino, que não sabia a letra
e ficava fazendo "lalalá", e o Alceu, que não cantava porque estava comendo
um croissant. A professora Vanderblergue fez uma porção de gestos com os
braços para a gente ficar quieto, mas, em vez de brigar com os grandes que
estavam atrasados, ela brigou com a gente que foi quem ganhou, e isso não é
justo. Talvez o que tenha deixado a srta. Vanderblergue furiosa foi que o
Rufino, que fecha os olhos para cantar, não sabia que era para parar e
continuou fazendo "lalalá". A nossa professora falou com o diretor e com a
srta. Vanderblergue e depois o diretor disse para nós que só os grandes iam
cantar, os pequenos iam fazer de conta. Ensaiamos e deu tudo certo, mas fez
menos barulho e o diretor disse para o Alceu que não precisava fazer tanta
careta para fazer de conta que estava cantando e o Alceu respondeu que ele
não estava fazendo de conta que estava cantando, que ele estava
mastigando, e o diretor deu um suspiro muito comprido.
* Alusão ao 2º verso da Marselhesa, o Hino Nacional da França.
** Alusão ao 4º verso da Marselhesa.
Também voltei para casa. Estava tudo ruim. Papai estava sentado na sala
fumando cachimbo, a mamãe estava fazendo tricô e eu me senti mal. A
mamãe ficou muito preocupada, ela me perguntou o que é que eu tinha, eu
disse que era a fumaça, mas não pude continuar a explicar a história do
charuto porque eu ainda estava me sentindo mal. "Está vendo, a mamãe
disse para o papai, eu sempre disse que esse cachimbo empesteava!" Lá em
casa, depois que eu fumei o charuto nunca mais o papai teve direito de
fumar cachimbo.
O Pequeno Polegar
Papai não queria comprar bicicleta pra mim. Ele sempre dizia que as
crianças não tomam cuidado e que elas ficam querendo fazer acrobacias e
que quebram as bicicletas e que se machucam. Eu dizia para o papai que ia
tomar cuidado, e depois eu chorava e depois eu ficava emburrado e depois
eu dizia que ia fugir de casa e, por fim, papai disse que eu ia ganhar uma
bicicleta se fosse um dos dez primeiros na prova de matemática.
Era por causa disso que eu estava todo contente ontem quando eu voltei
da escola, eu tinha sido o décimo na prova. Quando o papai soube, ele
arregalou os olhos e disse: "Puxa vida, caramba, só faltava essa", e a mamãe
me beijou e disse que o papai ia me comprar uma linda bicicleta agora
mesmo e que foi muito bonito eu ter ido bem na prova de matemática. É
verdade que eu tive muita sorte porque a gente era só onze para fazer a
prova, todos os outros estavam com gripe e o décimo primeiro era o
Clotário, que é sempre o último, mas para ele não tem muita importância
porque ele já tem uma bicicleta.
Quando cheguei em casa hoje, o papai e a mamãe estavam me esperando
no jardim com um grande sorriso na boca.
"Temos uma surpresa para o nosso filhão!", a mamãe falou, e os olhos
dela estavam dando risada, e o papai foi até a garagem e trouxe — vocês
nem vão adivinhar: uma bicicleta! Uma bicicleta vermelha e prateada que
brilhava, com um farol e uma campainha. Superlegal! Eu saí correndo e
depois beijei a mamãe, beijei o papai e beijei a bicicleta. "Você vai ter que
me prometer que vai tomar cuidado, o papai falou, e não fazer acrobacias!"
Eu prometi e então a mamãe me beijou, ela disse que eu era o homenzinho
dela e que ela ia fazer um pudim de chocolate para a sobremesa e ela entrou
em casa. O meu papai e a minha mamãe são os mais legais do mundo!
Papai ficou comigo no jardim. "Você sabe, ele disse, que eu fui um
grande campeão de ciclismo e que, se eu não tivesse conhecido a sua mãe,
talvez tivesse me tornado um profissional?" Isso eu não sabia. Sabia que o
papai tinha sido um campeão incrível de futebol, natação, rúgbi e boxe, mas
de bicicleta era novidade. "Vou mostrar para você", o papai disse, e aí ele
sentou na minha bicicleta e começou a dar voltas no jardim. É claro que a
bicicleta era muito pequena para o papai e ele teve dificuldade com os
joelhos que chegavam até o rosto dele, mas ele se virava.
"É um dos espetáculos mais grotescos que tive oportunidade de apreciar
desde a última vez que vi você!" Quem disse isso foi o sr. Durázio que
estava espiando por cima da cerca do jardim. O sr. Durázio é o nosso
vizinho que adora amolar o papai. "Cala essa boca, o papai respondeu para
ele, você não entende nada de bicicleta! — O quê?, o sr. Durázio gritou,
fique sabendo, pobre ignorante, que eu fui campeão inter-regional amador e
que teria me tornado profissional se não tivesse conhecido a minha mulher!"
Papai começou a rir. "Campeão quem, você?, papai disse. Não me faça rir,
você mal consegue se equilibrar num triciclo!" O sr. Durázio não gostou
nada disso. "Você vai ver só", ele disse e pulou por cima da cerca. "Me dá
aqui essa bicicleta", o sr. Durázio falou pondo a mão no guidão, mas o papai
não queria largar a bicicleta. "Ninguém te chamou aqui, Durázio, o papai
falou, volta para a tua toca! - Você está com medo de passar vergonha na
frente do coitado do teu filho?", o sr. Durázio perguntou. "Cala essa boca,
você me dá pena, é isso que você me dá!", o papai disse, e arrancou o
guidão das mãos do sr. Durázio e recomeçou a dar voltas no jardim.
"Grotesco!", o sr. Durázio falou. "Essas palavras de inveja não me atingem",
o papai respondeu.
Papai e o sr. Durázio tiraram a sorte e foi o sr. Durázio quem saiu
primeiro. Como é verdade que ele é bem gordo, a gente quase não via a
bicicleta e as pessoas que passavam na rua davam risada e olhavam para trás
para ver o sr. Durázio. Ele não andava muito depressa e depois ele virou a
esquina e desapareceu. Quando ele apareceu do outro lado, o sr. Durázio
estava todo vermelho, com a língua para fora e estava fazendo uma porção
de ziguezagues. "Quanto?", ele perguntou quando chegou na minha frente.
"Nove minutos e o ponteiro grande entre o cinco e o seis", eu respondi. O
papai começou a dar risada. "Bom, meu velho, ele disse, com você a Volta
da França ia durar uns seis meses! - Em vez de ficar aí com piadinhas
infantis, respondeu o sr. Durázio, que tinha muita dificuldade para respirar,
tenta fazer melhor!" Papai pegou a bicicleta e foi embora.
A gente ficou esperando, o sr. Durázio que estava recuperando a
respiração, e eu, que olhava o relógio. É claro que eu queria que o papai
ganhasse, mas o relógio andava e a gente viu nove minutos e depois, logo
depois, dez minutos. "Ganhei! Eu sou o campeão!", gritou o sr. Durázio.
Quando fez quinze minutos a gente continuava sem ver o papai. "E
estranho, o sr. Durázio disse, a gente devia ir ver o que aconteceu." E aí a
gente viu o papai chegar. Ele vinha a pé. Estava com a calça rasgada, estava
com o lenço dele no nariz e segurava a bicicleta na mão. A bicicleta estava
com o guidão de lado, a roda toda torta e o farol quebrado. "Bati numa lata
de lixo", ele disse.
No dia seguinte, eu falei com o Clotário no recreio. Ele me disse que
aconteceu quase a mesma coisa com a primeira bicicleta dele.
"O que é que você quer, o Clotário disse, os pais são sempre iguais, eles
fazem palhaçada e se a gente não presta atenção eles quebram as bicicletas e
se machucam."
Estou doente
Fomos parar bem longe, bem depois do armazém do sr. Compani, que é
muito bonzinho e é lá que a mamãe compra geléia de morango que é legal
porque não tem semente, não é como de abricó. "Aqui a gente está
sossegado", o Alceu disse e tirou umas bolachas do bolso e começou a
comer, porque ele me disse que correr assim logo depois do almoço deixou
ele com fome.
"Você teve uma boa idéia, Alceu, eu disse, quando penso nos outros que
estão lá na escola fazendo matemática, fico com vontade de dar risada!" "Eu
também", o Alceu falou e nós demos muita risada. Quando a gente acabou
de dar risada, perguntei para o Alceu o que é que a gente ia fazer. "Sei lá,
ora, o Alceu falou, a gente podia ir ao cinema." Também era uma idéia
muito boa, mas a gente não tinha dinheiro. Nos nossos bolsos encontramos
barbante, bolinhas de gude, dois elásticos e migalhas. As migalhas a gente
não guardou de novo porque elas estavam nos bolsos do Alceu e ele comeu.
"Não faz mal, eu disse, mesmo sem cinema, os outros bem que gostariam de
estar aqui com a gente! — E, o Alceu disse, eu não estava mesmo com tanta
vontade de ver A Vingança do Xerife — É mesmo, eu disse, é só um filme
de caubóis." E a gente passou em frente do cinema para ver os cartazes.
Também tinha um desenho animado.
"E se a gente fosse até a praça, eu disse, a gente podia fazer uma bola de
papel e treinar um pouco." O Alceu disse que a idéia não era ruim mas que
na praça tinha o guarda, e que se ele visse a gente ia perguntar por que é que
a gente não estava na escola e ele ia levar a gente para a solitária e ia fazer
aquela do pão e água. Só de pensar nisso o Alceu ficou com fome e tirou um
sanduíche de queijo da mala. Nós continuamos andando na rua e quando o
Alceu acabou o sanduíche ele me disse: "Lá na escola, os outros não estão
se divertindo! — É mesmo, eu disse, e depois, de qualquer modo, é tarde
demais para ir, a gente ia ficar de castigo."
Ficamos olhando as vitrines. O Alceu me explicou a vitrine da mercearia
e depois fizemos caretas na vitrine da perfumaria onde tem espelhos, mas
fomos embora porque percebemos que as pessoas dentro das lojas olhavam
para nós e pareciam espantadas. Na vitrine da relojoaria vimos a hora e
ainda era muito cedo. "Legal, eu disse, ainda temos tempo para brincar antes
de voltar para casa." Como a gente estava cansado de andar, o Alceu me
perguntou o que eu achava de ir até o terreno baldio, lá não tem ninguém e a
gente pode sentar no chão. O terreno baldio é muito legal e a gente começou
a brincar de atirar pedras nas latas de conserva. Depois, a gente começou a
ficar cheio das pedras e então a gente se sentou e o Alceu começou a comer
um sanduíche de presunto, o último da mala. "Na escola, o Alceu falou, eles
devem estar bem no meio dos problemas. — Não, eu disse, a esta hora eles
devem estar no recreio. — E daí, o Alceu perguntou, você acha o recreio
divertido? — Bah!", eu respondi e comecei a chorar. É verdade, pô, afinal
de contas não tinha graça nenhuma estar ali, sozinhos, e não poder fazer
nada e ser obrigado a se esconder e eu tinha razão de querer ir a escola,
mesmo com os problemas, e se não tivesse encontrado o Alceu agora eu
estaria no recreio e estaria jogando bolinha e brincando de polícia e ladrão e
eu sou ótimo nas bolinhas. "O que foi que te deu pra chorar desse jeito?", o
Alceu me perguntou. "A culpa é tua, por tua causa eu não posso brincar de
polícia e ladrão", eu disse. O Alceu não gostou. "Eu não pedi pra você vir
comigo, ele disse, e, além disso, se você não tivesse vindo comigo, eu teria
ido para a escola; é tudo culpa tua! — Ah, é?", eu disse para o Alceu como o
papai diz para o sr. Durázio, que é um vizinho que gosta de amolar o papai.
"É", o Alceu respondeu que nem o sr. Durázio responde para o papai e a
gente brigou, que nem o papai com o sr. Durázio.
Eu queria sair para brincar com os meus colegas mas a mamãe disse que
não, que nem pensar, que ela não gostava muito dos meninos com quem eu
andava, que sempre que a gente estava junto só fazia bobagem e que eu
tinha sido convidado para tomar lanche na casa do Agnaldo, que ele sim é
que era bonzinho e bem-educado e que eu devia seguir o exemplo dele.
Eu não tinha muita vontade de ir tomar lanche na casa do Agnaldo nem
de seguir o exemplo dele. O Agnaldo é o primeiro da classe, o queridinho da
professora, ele não é um colega legal mas a gente não bate muito nele
porque ele usa óculos. Por mim eu preferia ir a piscina com o Alceu, o
Godofredo, o Eudes e os outros, mas não tinha jeito, a mamãe não estava
pra brincadeira e, de qualquer modo, eu sempre obedeço a minha mamãe,
principalmente quando ela não está pra brincadeira.
Mamãe me fez tomar banho, me pentear, mandou eu pôr o terno azul-
marinho, aquele que tem pregas na calça, a camisa branca de seda e a
gravata de bolinhas. Eu estava com a mesma roupa do casamento da minha
prima Elvira, aquele dia que eu fiquei doente depois do almoço.
"Não faz essa cara, a mamãe falou, você vai se divertir bastante com o
Agnaldo!", e depois nós saímos. Eu tinha medo principalmente de encontrar
os meus colegas. Se eles me vissem vestido daquele jeito iam zombar de
mim!
Foi a mãe do Agnaldo que abriu a porta. "Como ele é engraçadinho!",
ela disse, ela me beijou e depois chamou o Agnaldo: "Agnaldo! Vem
depressa! Teu amiguinho Nicolau chegou!" O Agnaldo veio, ele também
estava com uma roupa ridícula, uma calça de veludo, meias brancas e umas
sandálias pretas esquisitas que brilhavam muito. A gente parecia duas
marionetes, ele e eu.
O Agnaldo não parecia muito contente de me ver, ele me estendeu a mão
que estava toda mole. "Está entregue, a mamãe disse, espero que ele não
faça muita bobagem, às seis horas eu passo para pegá-lo." A mãe do
Agnaldo disse que ela tinha certeza de que a gente ia se divertir bastante e
de que eu ia me comportar muito bem. A mamãe foi embora depois de me
olhar como se ela estivesse um pouco preocupada.
A gente tomou lanche. Foi legal, tinha chocolate, geléia, bolos, torradas
e a gente não pôs os cotovelos em cima da mesa. Depois a mãe do Agnaldo
disse para a gente ir brincar direitinho no quarto do Agnaldo.
Quando a gente estava no quarto, o Agnaldo começou a me avisar que
não era para eu bater nele porque ele tinha óculos e ele ia começar a gritar e
a mãe dele ia mandar me prender. Eu disse para ele que eu bem que estava
com vontade de bater nele, mas que eu não ia fazer isso porque eu tinha
prometido para a minha mãe que ia ficar bem-comportado. Isso parece que
deixou o Agnaldo contente e ele disse que a gente ia brincar. Ele começou a
tirar um monte de livros, de geografia, de ciências, de matemática, e ele
disse que a gente podia ler e fazer problemas para passar o tempo. Ele me
disse que tinha uns problemas legais com torneiras que correm numa
banheira destampada e que esvazia ao mesmo tempo que enche.
Era uma boa idéia e eu perguntei para o Agnaldo se eu podia ver a
banheira, que a gente podia se divertir. O Agnaldo me olhou, tirou os óculos,
pensou um pouco e depois disse para eu ir com ele.
No banheiro, tinha uma banheira grande e eu disse para o Agnaldo que a
gente podia encher e brincar de barquinho. Ele me disse que nunca tinha
pensado nisso, mas que não era má idéia. A banheira se encheu logo, até a
borda, porque a gente tinha tapado o ralo dela. Mas aí o Agnaldo estava
muito chateado porque ele não tinha barcos para brincar. Ele me explicou
que não tinha muitos brinquedos, que ele tinha principalmente livros. Ainda
bem que eu sei fazer barcos de papel e nós pegamos as páginas do livro de
matemática. É claro que a gente tomou cuidado, para depois o Agnaldo
poder colar de novo as páginas no livro dele, porque é muito feio fazer mal a
um livro, uma árvore ou um bicho.
Foi muito divertido. O Agnaldo fazia as ondas pondo o braço dentro da
água. Foi uma pena ele não ter arregaçado a manga da camisa e não ter
tirado o relógio de pulso que ele ganhou na última prova de história quando
foi o primeiro e que agora marca quatro horas e vinte e não anda mais.
Depois de algum tempo, não sei quanto, porque o relógio não andava mais,
a gente se encheu, e também já tinha água por todo o lado e a gente não quis
fazer muito estrago principalmente porque o chão estava cheio de lama e as
sandálias do Agnaldo brilhavam menos do que antes.