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I

Ações coletivas: panorama


histórico e fundamentos

Sumário: 1 O Surgimento das Ações Coletivas. 2 As Ações Coletivas no Ordenamento


Brasileiro: Uma Revolução Processual. 3 Fundamentos ou Objetivos das Ações Coletivas

1 O Surgimento das Ações Coletivas

Cedo ou tarde, o estudante ou o operador do direito percebe que a socieda-


de está sempre um passo à frente das normas jurídicas. O direito, corno observa
Alexandre Freitas Câmara, "é criado para manter o status quo. [... ] Mesmo as nor-
mas jurídicas que parecem avançadas, algumas até mesmo revolucionárias, são
na verdade a demonstração tardia de algo que a sociedade já há muito aceitou".'
Não seria errado afirmar que, desde quando o homem passou a conviver em
sociedade, surgiram interesses ligados à coletividade. Diversamente, porém, a
proteção jurídica desses interesses foi reconhecida lentamente, acelerando-se à
medida que os conflitos de massa intensificaram-se e exigiram urna resposta ade-
quada do Judiciário.
No lano ro 'ss aI as a ões populares do processo romano (actiones popu-
laris) constituem a primeira forma de tute a judicial de direItos metain IVl UaIS,
ou seja, direitos que extrapolam a órbita particular.
s somente em 1842, com a primeIra reirnIã - as a ões coletivas
do direito norte-americano (con eCI as corno class actions), é que se pode dizer

/////(/ I/lw/'(/I/!oWIII cdum. 3. cd. Rio de


2 Curso de Processo Coletivo • Donizetti e Cerque ira

~o processo coletivo começou a ganhar COrpO.2Vale lembrar que remonta .1


mesma época umêI1íova organização s~Revolu ão Industrial inglesa
iniciada nofi , na qua a urguesia e o prole ta ria o a Ir m
se Cõino classes básTêasda estrutura SOCIale,como tais, passaram a1"er-inreresses
(coletiVos), mUltas vezes antagômcos. -- __
Aliás, foi a Revolução Industrial que fez com que nos países mais desenvolvi
dos surgisse, logo no início do século :XX,o fenômeno conhecido como ascensão
das massas. Alguns segmentos marginalizados, "deixando de integrar o rol dos
que se encontravam nas periferias das sociedades e respectivas civilizações, não
alcançadas de fato pelo aparelho do Estado, iniciaram um processo para forçar a
entrada nos quadros melhores da civilização, com o que se colocou de um lado a
insuficiência do aparato estatal e bem assim do sistema tradicional"."
Ep:!.síntese, portanto, pode-se di uropa e nos Estados Unidos
oc eram de modo mais acentuado nas r' , eC,'11
dicações sociais pela proteção de intere s eVl en a

-
insuficiência do mo e o processual clássico, marcadamente individualista. re
gulamentação do processo coletiYQJnseI:e:se,--pois,...llessecontexto, como forma
de permitir a adequada tutela de bens iurídícos de natureza.transindividual, que'
açi então eram quase que descons~o~as ordens jurídicas.
Vale salientar que, conquanto a ascensão das massas deixasse evidente a neces-
sidade do processo coletivo, nos países europeus em geral a regulamentação a esse
respeito somente ocorreu na segunda metade do século:XX.Diversamente, os Esta-
dos Unidos, que já haviam tratado do tema em 1842, editaram em 1938 as Pederal
Rules of Civil Procedure, cuja norma nº 23, sobretudo com a reforma de 1966, deu
origem ao modelo de processo coletivo de maior influência no direito comparado.

I 2 As Ações Coletivas no Ordenamento Brasileiro: Uma Revolução


Processual

A despeito dos rumos traçados pelo direito estrangeiro - mais precisament


o norte-americano - nas primeiras décadas do século:XX, os passos dados inicial-

2 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisajulgada: teoria geral das ações coletivas. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 32-33 e 48. Observe-se que, conquanto a primeira codificaçãc das ações
de classe no direito norte-americano tenha ocorrido em 1842, nos dois séculos anteriores as courts of chance/y
já admitiam tais ações excepcionalmente, com base em critérios de necessidade e conveniência (GIDJ, Antonio,
A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coieüvus ('11/ 1/11/(/ /l(,,.,~I'('cliv(/ cumpurad«,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 4046),
3 ALVIM NETTO, José Manuel de Arruela, Anowçfll's sohll' tiS IlI'lpll'xjdlld,·~ " IIS "1111111IIr"" dll pllll'l:SNIl clvll
contemporâneo sua evoluçuo "O lado da do dll,'!l1I ""II"II,rI,l/n/,'" .I,. /)/1";/11'/" ('"",""",/,,/ v.:l, Siíll 1',1\110
H,'Vlsto! dO', '1'1 ilrll""I,. '""' 1'1'1'1 •• '11,1)'
IIWlIll' pelo Brasil COIll SUei indcpcndêncía juridica de Portugal foram justamente
IlO sent ido cornrárlo. Isso se explica pelo fato de que, em face do tardio desenvol-
vimcnto do capitalismo 110S países da América Latina, o fenômeno da ascensão
dóis massas, com a reivindicação de direitos transindividuais, somente ocorreu
depois da Segunda Guerra Mundial.
Pois bem. Em 1916 foi publicado o Código Civil de Clóvis Bevilágua, ~e,
1116n de cssencialmen . d' . ualista e o ara a proteçao do patrimônio
[lI ivudo, teve a intenção deliberada de fechar as portas às tute as co etlvas.
Na seara processual, também foi marcado por um ideário liberal-individualis-
I iI o Código de Processo Civil de 1939, cuja diretriz foi seguida, com técnica mais
npurada, pelo Código de Processo Civil de 1973, ainda em vigor.
Em .tais Códigos de Processo Civil foi dado enfQqJ..l.f!_HUaSe que exclusivo aos
conflitos individuais do tipo "Tício versus Caio", não se tratando de conftimsde
11IílSSarelativos a direitos metaindividuais, tais atrl-
mônio púb lCO e a probidade administrativa. O máximo que se permitiu a título
dI' IImprlaçao nos elementos da causa (partes, causa de pedir e pedido) diz res-
pl'ilo às hipóteses de litisconsórcio, intervenção de terceiros e reunião de ações
plll conexão ou continência; mesmo assim, porém, o processo permaneceu essen-
u,lImente individualista, com a não-vinculação de grupos à autoridade da coisa
jlllgllda e a ausência de previsão acerca de legitimados para a defesa de direitos
11,insi ndividuais, cujos titulares (isto é, determinadas coletividades) estão impos-
"ihililados de figurar corno partes no processo.
Antes mesmo do CPC de 1973, todavia, o avanço da sociedade e a massifi-
1'.1\,10 dos conflitos ocorrida posteriormente à Segunda Guerra Mundial já to r-
nuv.un evidente a necessidade de inovações no direito processual brasileiro, sob
PI'II,I de este perder sua eficácia social.
Nesse sentido, alguns instrumentos processuais destinados à tutela de direi-
IO~ coletivos despontaram no ordenamento jurídico brasileiro.
q cxcrn 10 bl
'tico consiste na ação o sta.);!rimeiramente na
COIl~Utuiç㺠de 1934, suprimida na e 937, restabelecida Da de 1946 e, porfim,
disciplinada na Lei 4.71V6S (LAP), a qual foi recepcíonada pelas Constituições
pnfil('liores, inclusive a de 1988..
Outro marco importante consiste na promulgação da CLT em 1943, permi-
urulo iI solução pelo Judiciário de dissídios coletivos entre categorias de empre-
'ados (' empregadores, representadas pelos respectivos sindicatos. De modo se-

Nhll IIh~lilllll~ o C6dl}lo Civil di' 2()()2 1(,lIha nvançado no uuuu dn tutela de interesses sociais (veja-se, por
IlIplo, 01111.'121, 1/111' dl~put· ~ohll'" fllll~;IO surjol do ('C)1I11i11O), I1'1('}lou aos direitos coletivos limo disciplina
IIH.'II.I' 11111111'1111',
IIIII~.I, llillidil, pl:ldl,"du oll·XI~ladu. p;\1111I>\lIl1ldl' OpOllllllldlldl' di' dl'SlilHII um capüulo para
.1Ilhirlpflll.1 do 1)111'110 MIII.:,IIII <;01"1111".o 11'111 II~,IIIIIII'IIII' 11'1"1";""1111 li! XI.'11<11'
IIVIII\(;il IIi1 '"illl'lliI
4 Curso de Processo Coleuvo • I)onil.l'lli l~Cl'I"I,,!I'11

melhante, a Lei 1.134/50 (revogada) estabeleceu a Iq~ililllil,íl() de associações de


funcionários públicos para representá-los coletivamente perante autoridades ad
ministrativas e judiciais. Também é.digna de nota a Lei 4.215/63 (revogada), que
dispôs sobre a legitimidade da Ordem dos Advogados do Brasil para representar,
emjuízo ou fora dele, os interesses gerais da classe dos advogados relacionados
com o exercício 1a"'profissão (art, 12, parágrafo úniêõ).
Não se pode olvidar, ainda, da Emenda 16/65 à Constituição de 1946, que
instituiu o controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade no Brasil,
por meio da ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Como se verá no mo
mento oportuno, as atuais ações de controle concentrado de constitucionalidad
(ADI, ADC e ADPF), embora regidas por microssistema processual próprio, po
dem ser tratadas como espécies de ações coletivas, por terem como objeto um di
reito difuso (conformidade das leis e dos atos normativos à Constituição).
Cabe observar, contudo, que as citadas previsões normativas a respeito da
tutela de direitos coletivos eram esparsas e pontuais, tratando principalmente
dos interesses de certas categorias ou classes. Mesmo a ação popular tinha objeto
restrito à anulação de atos lesivos ao patrimônio público," de maneira que "bens
e direitos de uso comum do povo que fossem violados por ato de particular ou
de quem quer que fosse, que ensejassem ação condenatória de ressarcimento ou
I de prevenção de dano, não poderiam ser tutelados pelo cidadão e por ninguém,
tendo em vista a regra imperativa de que a legitimidade extraordinária só poderia
III
existir se fosse autorizada por lei (art. 62 do CPC)".6
A bem da verdade, foi somente com fundamento em estudos doutrinários
II1 publicados na década de 70, por juristas como José Carlos Barbosa Moreira, Ada
Pellegrini Grinover e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, que a regulamentação
legislativa sobre o tema das ações coletivas efetivamente se desenvolveu no Bra-
sil.? E foi justamente a percepção dessa necessidade de inovações pela doutrina
que fez com que o Brasil se tornasse, já nos anos 80, o pioneiro na regulamenta-
ção do processo coletivo entre os países de direito escrito (civillaw).
No ano de 1981, a Lei 6,938 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) es-
tab . - no seu art. 14, § 12, a legitimidade do Ministério P , . - "
ação de responsabilidade CiV1 e cnrm ,or anos causados ao meio ambiente".
--------------------------
5 Originalmente, o objeto da ação popular consistia apenas na proteção do patrimônio público. A Lei 6.513/77,
no entanto, alterou a redação do § 1" do art. 1" da LAP para alargar a definição de patrimônio público, englo
bando "05 bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico" flOI fim, a Constituição
de 1988 estabeleceu, em seu art. 5", LXXIII,que a ação popular dcsttnase "n nnuhu i!lO leslvo no patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à mornlidnde ildll1il1i~1"IIIViI, 1111 111,'10 .unbk-ruc c 00 pntrí
mônio histórico c cultural".
6 ABEl.IIA, Mnrcelo lIçcl() civtlfwhl/w r /lH'/() (//1I11i/'III,:, 11111 d" ,1.1111'111': 1~lul!II~(l Ulliv{;rr,il(1I 111, 'J.()(r\ p, 1:1·14.
, <:11 li, Alltolllo Clil~~ 11('IIClII~ 111 11101111 11 I1l1ld,'l lf" , ivil Inw ,T'"lIlti,
MilS iI I cvoluçao PIO('('SSIIIII ocorreu quando umvcrdudçirarucntc em 1985,
pl ClJl'to clnborado pelo Ministério Público de São Paulo, com base em projeto
illllvl ior dos doutrinadorcs mencionados acima (Projeto Bierrenbachj e so~a
tnfluôucin indireta" do modelo das ações coletivas norte-americanas (class ac-
tlPII.\), deu origem à LcL7.347. que ~ a conhecida_Lei da Ação Civil públicé!.
(I.t\CP). Esse diploma legal finalmente trouxe normas processuais diferencia-
das, aptas a instrumentalizar a tutela dos direitos transindividuais, o que não era
nlcançado antes pelo CPC, de caráter exclusivamente individualista, nem pela
nçao popular, que, como visto, era insatisfatória perante a diversidade de confli-
tos <1<.' massa existentes à época da sua criação. Contudo, explica Ada Pellegrini
lrinovcr que:

"Tratava-se [...] de uma tutela restrita a objetos determinados (o meio ambiente e os


consumidores), até que a Constituição de 1988 veio universalizar a proteção coletiva dos
interesses ou direitos transindividuais, sem qualquer limitação em relação ao objeto do
processo"."

apítulo I do Título 11
mentais"), trata não só de direitos indiViauais,

disDosicões, o CDC nositivou os chamados direitos individuais


homogênos (art. 81, parágrafo único, 11I) e acrescentou à LACP o art. 21, o qual
deu origem a um microssistema processual coletivo, cUJOnuc1eo central conSIste

• Como explica Antonio Gidi, "a legislação [LACPe CDC] e a doutrina brasileiras foram baseadas inteiramente
11;\ doutrina italiana que (esta sim) estudou as class actions norte-americanas" (Rumo a um Código de Processo
Civi! Coletivo: C/ coâificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 30). Critica o autor,
pO/(\Il1. que n doutrina italiana publicada nos anos 70 inspirou-se no processo coletivo norte-americano das
dt"('odlls anteriores, de maneira que a importante reforma da Rule 23, realizada em 1966, não foi objeto de
('\111<10. Assim, conclui que u(> ronsuungedm snbcr qUI' n fonte da atual legislação processual coletiva brasileira
tI 1\ dnuuinn lurllnnn, cujo dll\'l\o uno \('111 lH'l1I nuncn \('V(' muliçào de proC('SSOcoletivo" (op. CiL, p. 32).
v c: lU NOVJo:H, Adll I't-IltW IlIi Dllt'Ito l',on's\lIlil COI('IIVO,'1111,.111 (,'oll',iv(/: :W 1111os dei 1.I'i da Açcl() Civil Príl>lica c
,/11 "'/1/11111 ri,' /":/".1(/ ri,' 11/11'110.\ /),'/1.\11.\, I'. /11111.11111 c ',Irligll rI,'/"'/".II' rlII 0'1/.\/1111/11'11 CoO/dt'llIldm: POlllo I lemlque
d,,~ StllllO'. 1.,11'1111Slilll'iltil" AII.t~, !l()Oh I' 10
jL~menLe nesses dois diplomas noi mat ivns_!1~}II~H,lIlIln
~ jlplJ('iI,~I() do CÓdigo ck:
Processo Civil a um plane mcramcnté'fesidnul. - -
A par desses principais diplomas legais versando sobre processo coletivo,
cabe destacar a Lei 8.429/92, que trata do procedimento da ação de improbidadc
administrativa, e as Leis 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem a respeito das ações
de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC e ADPF).
Outros textos normativos tocam no tema dos direitos coletivos e sua proteção
emjuízo, tais como a Lei 7.853/89 (institui a wtela jurisdicional de interesses co
l~iyos OJ! djfllsos das pesSc;'asportadoras de..deficiência), a Lei 7.913/89 (dispõe
sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causad ao~o
re~ercado de valores mobiliário~Lei 8.0691 (Estatuto da C~do
Adolescente - arts. 208 a 224), a Lei 8.884/94 (dispõe sobre a proteção da ordem
econômica - arts. 29 e 88), a Lei 9.394/96 (Lei de iretrizes e Bases da Educação
Nacíonal - art. 52), a LeI 10. 003 (Estatuto de Defesa do Torcedor - art. 40),
a.J..ei10.741/2003 (Estatuto do Idoso. arts. 78-a-9~-;a..Lê 11.340/2006 (entre
qutras disposições.....cr.ia-mecaIlismospara coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher - art. 37). -- -
"\ Mas nem tudo são flores. Passados anos da entrada em vigor do Código de
Defesa do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública, e, não obstante a intensa
produção legislativa acima resumida, ainda são frequentes os equívocos dos ope-
radores do direito ao lidar com o processo coletivo, sobretudo pelo indevido vín-
culo com a visão individualista do cpc.
Convidamos o leitor a, nos capítulos seguintes, desprender-se dos conceitos
tradicionais do CPC e buscar a fixação de um pensamento coletivo. Para tanto,
analisaremos os princípios e institutos peculiares do processo coletivo, destacan-
do, desde já, que assumem feição tão distinta daqueles inerentes ao processo in-

I I1
dividual que autorizam a conclusão de que o Direito Processual Coletivo existe,
hoje, como ramo autônomo do Direito Processual (v. Capítulo 11,2.1, infra).

3 Fundamentos ou Objetivos das Ações Coletivas


II
De modo geral, a doutrina identifica três grupos principais de fundamentos
ou ebietívos.das-aeões-ecleavas, a saber: acesso à justiça, eronomia processual e
e.fetiyação do direito material.
Vejamos detalhadamente cada um desses grupos, salientando, de imediato,
que nem sempre as ações coletivas proporcionarão simultaneamente acesso à
justiça, economia processual e efetivação do direito material. podendo muil
bem haver conflito entre tais fundamentos ou objetivos ('111 c11'1('rminadocaso
concreto.
Açol" roil'l ívns: punorum« lustó: ico c fuudamcruos 7

a) Acesso à Justiça
Como visto no tópico anterior, as ações coletivas surgiram no ordenamento
brasileiro com a finalidade de permitir a provocação do Estado à adequada solu-
ção de conflitos de massa inerentes à sociedade contemporânea.
Um dos principais fundamentos ou objetivos das ações coletivas, portanto,
consiste em permitir o amplo acesso à justiça das demandas de massa. Trata-se
do que Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificaram como a segunda onda re-
novatória do Direito Processual em busca de maior efetividade e, consequente-
mente, de maior acesso à justiça.'?
Obviamente, para que se cumpra tal mister, não basta apenas o ato de criar
diversas espécies de ações coletivas. O acesso à justiça pressupõe a tutelajurisdi-
cional diferenciada, ou seja, a consideração dos meios mais amplos e satisfatórios
possíveis para que se solucionem os conflitos de interesses da maneira mais justa
. razoável. Desse modo, em virtude das características e dos aspectos peculiares
dos direitos metaindividuais, houve a necessidade de "revisitação" e adaptação
de diversos institutos jurídico-processuais já existentes, porquanto essencialmen-
1(' individualistas e, por conseguinte, insuficientes para uma adequada instru-
nu-ntalizaçãc dos direitos coletivos em sentido amplo.
Além do acesso à justiça de demandas versando sobre direitos transindividu-
.ils, que se qualificam como indivisíveis e não podem ser postulados isoladamente
por cada indivíduo integrante do grupo," as ações coletivas também proporcio-
num que se leve à justiça conflitos que, no plano individual, jamais seriam obje-
1 () de tutela jurisdicional. Exemplo dessa hipótese consiste na conduta ilícita que
1l,10gera prejuízos significativos no plano individual, porém, se analisada global-
nu-me, representa dano elevado ao grupo (de consumidores, p. ex.), justificando
" propositura de ação coletiva em defesa dos direitos individuais homogenea-
uu-nte considerados.

b) Economia Processual
A sociedade contemporânea, marcada pela intensa e crescente industriali-
.,1(;;\0, urbanização" e globalização, estimula também uma intensa litigiosidade,
provocada por massas de consumidores, classes sociais, categorias profissionais,
ellfim, por comunidades, coletividades ou mesmo grupos de indivíduos homoge-
ne.uncnte considerados.
ti Cu,so dI' !',on'sso Col"llvo • l)o"I/.,·ltI,~ C'·"I,,,·I,,,

Exemplo dessa litigiosidade de massa silo os 111 llh.u ('S d(' processos (indivi
duais) movidos para discussão da cobrança de tarifa IlH'IlS:tI pelas operadoras
de telefonia fixa. Alguns anos depois da flexibilização do monopólio estatal rc
ferente à exploração dos serviços públicos de telecomunicações, a prática das
concessionárias de tais serviços concernente à cobrança de tarifa mensal básica
começou a ser impugnada judicialmente pelos consumidores, dando origem (l
uma avalanche de processos que literalmente abarrotou o Judiciário. Evidente
mente, fosse intentada uma ação coletiva - inclusive mais adequada pela natu
reza unitária e incindível inerente ao contrato de concessão, o qual, por sua vez,
influi diretamente sobre os contratos celebrados com os usuários _,12o desgas
te do Judiciário seria mínimo, ao mesmo tempo em que a tutela prestada seria
potencializada.
Nesse contexto, a eficaz tutela dos direitos coletivos importa, inevitavelmen
te, na redução da quantidade de ações ajuizadas individualmente e, por conse
quência, do número de processos nos tribunais com a mesma matéria a ser de-
cidida. Economizam-se gastos inerentes à prestação jurisdicional, evitam-se
julgamentos "contraditórios?" (notadamente mais comuns no caso de múltiplas
ações individuais) e contribui-se, assim, para o melhor funcionamento e para
a harmonia do sistema jurídico. Parte-se, enfim, na conhecida lição de Kazuo
Watanabe,14 de um tratamento atomizado dos litígios para uma estrutura molecu-
lar, que resulta em economia dos mecanismos processuais disponíveis.
Por fim, vale destacar a interessante observação de Antonio Gidi, no sentido
de que "as ações coletivas promovem economia de tempo e de dinheiro não so-
mente para o grupo-autor, como também para o Judiciário e para o réu". Quan-
to a este, lembra o processualista que muitas vezes ocorre de a solução coletiva
apresentar-se "mais econômica e menos desgastante para o réu do que ter de en-

I frentar as despesas com as inúmeras ações individuais semelhantes relacionadas


à mesma controvérsia" .15

c) Efetivação do Direito Material


Por fim, o terceiro fundamento ou objetivo das ações coletivas consiste, ob
viamente, na efetivação dos direitos coletivos em sentido amplo.

12 Kazuo Watanabe, no artigo intitulado Relação entre demanda coletiva e demandas individuais (Revista dI'
Processo, n2139. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 29-35), bem descreveu ('8S(, exemplo como hipótese
de ação pseudoindividual. Confira-se, a esse respeito, o tópico 6 do Capft 1110 111d('sl<' llvio.
13 Utiliza-se essa expressão em sentido impróprio, pois não se alude il "t;"I'~ Id(lllll,'/I'., IIIIIS 11I0 somente com
origem comum (ou seja, fundadas em situações de faro ()II <1('<11,('110,'qltlv"I"III •.~)
'4 Demandas coletivas e os problemas ('I11CI&('I1I('Sdll plj'IKI~ 1'"1'11'11' /1'1".'" 1/.11'"" ",\.\11, li" 117, UIIO 17, SÍlo
!'ilulo: Ikvistil dos 'ü ibuuuls, jul./s('1. 1992, p, l!i :>.!,
", (;1111,1\11111I110.1\rI"'.1 1/1'11111/ ., IIp. 1'11, p. :lh,
'li" dl'l ivaçno OCOI rc dl! ti uas mnncnns: I por meio da aplicação do direito
I'f'lo ()I~ao julgudo: em umn causa específica, e, portanto, concretamente e de
uuuln .uuo: iuuivo: 11 de forma preventiva e abstrata, visto que a punição de
IOlldulas ilf<:iws,quando bem realizada em cada caso concreto, gera estímulo
p.1I;1 () cumpi imcnto voluntário do direito pela sociedade."

,JlJlUSPRUOÊNCIA TEMÁTlCA

A economia processual como fundamento ou objetivo das ações coletivas

"I As ações coletivas foram concebidas em homenagem ao princípio da economia pro-


cvssunl. O abandono do velho individualismo que domina o direito processual é um im-
perativo do mundo moderno.
Ali .ivés delas, com apenas uma decisão, o Poder Judiciário resolve controvérsia que de-
mundarla uma infinidade de sentenças individuais. Isto faz o Judiciário mais ágil. De ou-
II() lado, a substituição do indivíduo pela coletividade torna possível o acesso dos margi-
llitiS econômicos à função jurisdicional. Em a permitindo, o Poder Judiciário aproxima-se
di! dcmocracía.
1 •.• 1" (STJ, P Seção, MS 5187/DF, relato r: Ministro Humberto Gomes de Barros, j. em
4/9/1997, DJ 29/6/1998, p. 4).

'" (~III1, 1\1\1111\10'\ c/H'.\ li! I/til/ ,op 1'11, P :I~I·:I,.

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