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Lúcio Costa
Paira, com efeito, nos arraiais da arte – como nos demais – grande
preocupação. Os grunhidos do lobo se têm feito ouvir com desoladora
insistência, correndo a propósito boatos desencontrados, alarmantes. A
atmosfera é de apreensões, como se o fim do mundo se aproximasse, cada
qual se apressando em gozar os últimos instantes de evasão: escrevendo,
pintando, esculpindo – as últimas folhas, telas ou fragmentos de emoção
desinteressada, antes da opressão do curral que se enuncia com a
humilhação do mergulho carrapaticida.
Em momentos como este pouco adianta falar à razão: não apenas porque
nenhuma atenção será prestada a quem não grite, como porque – alguém
acaso escutando – muito se arrisca a ser vaiado. Ninguém se entende: uns,
impressionantemente proletários, insistem em restringir a arte aos
contornos sintetizadores do cartaz de propaganda, negando interesse a
tudo que não cheire a suor; outros, eminentemente estetas, pretendem
conservá-la em atitude equívoca e displicente entre nuvens aromáticas de
incenso.
Dos tempos mais remotos até o século XIX, a arte de construir – por mais
diversos que possam ter sido os seus processos, e embora passando das
formas mais rudimentares às requintadas – serviu-se invariavelmente dos
mesmos elementos, repetindo, com regularidade de pêndulo, os mesmos
gestos: o canteiro que lavra a sua pedra, o oleiro que molda o seu tijolo, o
pedreiro que – um a um – convenientemente os empilha. As corporações e
famílias transmitiam – de pai a filho – os segredos e minúcias da técnica,
sempre circunscrita às possibilidades do material empregado e à habilidade
manual do artífice – por mais alado que possa ter sido o engenho.
A arquitetura terá que passar pela mesma prova. Ela nos leva, é verdade,
além – é preciso não confundir – da simples beleza que resulta de um
problema tecnicamente resolvido; esta é, porém, a base em que se tem de
firmar – invariavelmente – como ponto de partida.
Seja como for, não sendo ela um fim, mas, simplesmente, o meio de
alcançá-lo, não lhe cabe a culpa se os benefícios, porventura obtidos, nem
sempre têm correspondido aos prejuízos causados, mas àqueles que a têm
nas mãos. E, neste particular, o exemplo dos EUA – onde, num respeitoso
tributo à Arte, as estruturas mais puras deste mundo são religiosamente
recobertas, de cima abaixo, de todos os detritos do passado – é típico.
Aliás, existem outras curiosas afinidades entre esses dois povos tão
afastados no tempo: a coragem de empreender, a arte de organizar, a
ciência de administrar; a variedade das raças; a opulência dos centros
cívicos; os estádios e certa ferocidade esportiva; o pragmatismo; o
mecenismo; o gosto da popularidade; o próprio jeitão dos senadores e, até
mesmo, a mania das recepções triunfais – tudo os aproxima. Tudo que o
romano tocava, logo tomava ares romanos; quase todos que atravessam o
continente saem carimbados: EUA
A escultura, de certo modo a mais sóbria e casta das artes – tem como
principal qualidade a retenue: quanto mais energia acumulada – maior
densidade, maior força. A composição – tanto quanto possível fechada –
não se deve esgarçar em intenções que lhe prejudiquem essa qualidade
própria – razão por que, todas as vezes que ela cede às solicitações do
drama, se enfraquece e logo apresenta sintomas inequívocos de
decadência. Todas as deformações, supressões ou acréscimos que possam,
acaso, contribuir para intensificar essa sensação de vida concentrada – são
legítimos. Ao contrário dos acabamentos espichados e torneados, tão
comuns nas insuportáveis estilizações decorativas – as suas superfícies se
compõem de infinidade de planos mínimos, trabalhados isoladamente, em
função do conjunto, escondendo-se nas passagens imperceptíveis que os
articulam e ligam entre si até se perderem derramados nas superfícies
maiores – o segredo de toda verdadeira escultura. A falta de consistência
que se observa em tanta obras – embora importantes – resulta da
inobservância desse preceito fundamental.
Filia-se a nova arquitetura, isto sim, nos seus exemplos mais característicos
– cuja clareza e objetividade nada têm do misticismo nórdico – às mais
puras tradições mediterrâneas, àquela mesma razão dos gregos e latinos,
que procurou renascer no Quatrocentos, para logo depois afundar sob os
artifícios da maquilagem acadêmica – só agora ressurgido, com imprevisto
e renovado vigor. E aqueles que, num futuro talvez não tão remoto como o
nosso comodismo de privilegiados deseja, tiveram a ventura – ou o tédio –
de viver dentro da nova ordem conquistada, estranharão, por certo, que se
tenha pretendido opor criações de origem idêntica e negar valor plástico a
tão claras afirmações de uma verdade comum.