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Barreiro
Geralmente temos por hábito chamar os fármacos de remédios. Entretanto, a origem da palavra latina remediare
significando remediar e não curar, exige que hoje em dia nos habituemos a chamá-los de fármacos ou medicamentos,
sendo a distinção ao nível do princípio ativo, i.e. fármaco, que uma vez formulado traduz-se no medicamento que utilizamos.
Esta denominação é a mais correta por traduzir melhor o papel desempenhado pelos fármacos disponíveis no arsenal
terapêutico moderno, capazes de efetivamente curar, mais do que remediar. Exatamente para destacarmos este ponto
intitulamos este artigo “Sobre a química dos remédios, dos fármacos e dos medicamentos”.
D
esde tempos imemoriais a
humanidade aprendeu a utilizar como substâncias extremamente núcleo indólico (Figura 1).
as propriedades biológicas de ativas no sistema nervoso central Para caçar ou pescar, os ameríndios
substâncias químicas exógenas1, em (SNC), como o harmano e a harmina sabiam empregar poções capazes de
rituais festivos, na cura de doenças e (Figura 1). Esta atividade central deve- envenenar ou simplesmente imobilizar
mesmo como veneno. A maioria des- se à semelhança existente entre suas sua presa, sem que houvesse mani-
tas substâncias era empregada em po- estruturas e a serotonina, também festação de efeitos tóxicos ao comê-
ções, preparadas na maioria das vezes
a partir de plantas.
Galeno (129-199 aC), o fundador da
Farmácia, divulgou o uso de extratos
vegetais para a cura de diversos males,
emprestando o nome às formulações
farmacêuticas, denominadas fórmulas
galênicas. Por volta do século XV, com
a descoberta da imprensa, suas teorias
foram divulgadas e surgiram os primei-
ros embriões das farmacopéias, os her-
bários, reunindo o conhecimento acu-
mulado sobre o uso dos remédios de
origem vegetal.
A Humanidade aprendeu a usar as
plantas utilizando chás de origem ve-
getal para curar ou como bebida sa-
grada, em rituais e festividades pagãs,
identificando suas propriedades aluci-
nógenas ou afrodisíacas. De fato, inú-
meros alcalóides indólicos ocorrem em
plantas empregadas pelos índios em Figura 1: Alcalóides alucinogênicos com o núcleo indólico estruturalmente aparentados à
suas comemorações. Muitos dos com- serotonina (5-hidroxitriptamina).
Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola Dos fármacos aos medicamentos N° 3 – Maio 2001
la. Como exemplo temos as plantas
com propriedades ictiotóxicas (subs-
tâncias com toxicidade para os peixes),
conhecidas pelos índios da Amazônia,
que as empregavam como timbós2. O
curare, alcalóide tetraidroquinolínico
originário da flora da América do Sul,
inspirou os bloqueadores ganglionares
representados entre outros pelo hexa-
metônio (Esquema 1).
Talvez uma das plantas mais anti-
gas empregadas pelo homem seja a
Papaver somniferum, que originou o
ópio e contém alcalóides e substâncias
naturais de caráter básico, como a
morfina. O ópio era conhecido das ci-
vilizações antigas, havendo relatos que
confirmam seu uso desde 400 aC.
Galeno prescrevia o ópio para dores
de cabeça, epilepsia, asma, cólicas, fe-
bre e até mesmo para estados melan-
cólicos. O uso do ópio foi vulgarizado
principalmente por Paracelsus, no sé-
Figura 2: Morfina, indicando diferentes formatos de visualização de sua estrutura tridimen-
culo XVI, como analgésico. sional, em a) mostrando os átomos de oxigênio em vermelho e nitrogênio em azul, omitindo
Os estudos químicos sobre o ópio os átomos de hidrogênio; b) indicando os átomos de hidrogênio (branco) e destacando, 5
começaram no século XIX, e em 1804 em verde, o ciclo nitrogenado de seis átomos, piperidina; c) modelo de volume molecular,
Armand Séquin isolou seu principal omitindo os átomos de hidrogênio; em azul o átomo de nitrogênio e em vermelho os átomos
componente, a morfina, batizada em de oxigênio. (WebLabViewer 2.0).
homenagem ao deus grego do sono,
Morpheu. Esta substância, com estru- utilizar doses progressivamente maio- mais seguro, representados pela clas-
tura química particular, tornou-se o res para se obter os mesmos resulta- se das 4-fenilpiperidinas (Figura 3).
mais poderoso e potente analgésico dos. A tolerância pode provocar de- A imensa flora americana deu signi-
conhecido e em 1853, com o uso das pendência física, responsável pelas se- ficativas contribuições à terapêutica,
seringas hipodérmicas, seu emprego veras síndromes de abstinência no como a descoberta da lobelina (Figura
foi disseminado. A estrutura química da morfinômano. O reconhecimento des- 4) em Lobelia nicotinaefolia, usada por
morfina foi elucidada em 1923 por tas propriedades nocivas fez a Organi- tribos indígenas que fumavam suas fo-
Robert Robinson e colaboradores. Sua zação Mundial de Saúde (OMS) reco- lhas secas para aliviar os sintomas da
síntese foi descrita em 1952, cento e mendar seu uso somente em casos asma.
quarenta e oito anos após seu isola- específicos, como no alívio das dores A quinina, um dos principais com-
mento por Séquin (Figura 2). de certos tumores centrais em pacien- ponentes da casca de Cinchona
Embora reconhecida como podero- tes com câncer terminal. officinalis, há muito tempo era conhecida
so analgésico de ação central, a morfi- Entretanto, a partir da estrutura quí- pelos amerindíos como anti-térmico
na provoca tolerância, fenômeno que mica da morfina, identificaram-se po- (Figuras 5 e 6). Este alcalóide quinolínico
se manifesta pela necessidade de tentes analgésicos centrais de uso originou os fármacos anti-maláricos
como a cloroquina e mefloquina.
Os primeiros anti-maláricos desco-
bertos possuíam em sua estrutura um
sistema aza-heterocíclíco, inicialmente
acridínico (por exmplo a quinacrina) ou
quinolínico, imitando aquele presente
no produto natural (Esquema 2). Os
derivados quinolínicos originais perten-
ciam à classe das 4-amino ou 8-amino-
quinolinas (como a cloroquina, prima-
Esquema 1. quina).
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Figura 3: A origem dos analgésicos 4-fenilpiperidíncos a partir da estrutura da morfina: o
anel piperidínico, em azul, substituído em C-4 no alcalóide por uma unidade fenila (verde)
e um átomo de carbono quaternário oxigenado (a, em vermelho).
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Figura 7: Gênese dos anti-maláricos cloroquina e mefloquina a partir da quinina.
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O estudo da fase farmacocinética é organismo recebe com hospitalidade o hepático, capaz de reduzir signi-
essencial para determinar-se a dose os fármacos; entretanto, se consi- ficativamente o coeficiente de partição
do fármaco a ser administrada, e a sua derarmos o pH do trato gastro-intesti- do composto que é a relação de solu-
freqüência, ou seja, a posologia. nal no estômago (~1,2), veremos que bilidade óleo/água, permitindo sua
Temos a tendência de acreditar que o a “recepção” que o organismo faz aos eliminação renal pela urina.
fármacos administrados por via oral
não é, de forma alguma, hospitaleira. Planejamento racional de fármacos
Assim, princípios ativos, i.e. fármacos O modelo chave-fechadura suge-
lábeis3 em pH ácido, não podem ser re ainda que, conhecendo-se a estru-
administradas por via oral sem que tura do bioreceptor, eleito como alvo
estratégias adequadas de formulação terapêutico adequado para o trata-
farmacêutica sejam adotadas, de ma- mento de uma patologia, pode-se,
neira que a forma farmacêutica (medi- por complementaridade molecular,
camento), resista à passagem pelo “desenhar” uma molécula capaz de
estômago, favorecendo a liberação do interagir eficazmente com este re-
princípio ativo no intestino, onde o pH ceptor, permitindo seu planejamento
não é ácido. Desta forma, pelo estudo estrutural (Figura 10). Esta estratégia
da fase farmacocinética, pode-se de- de desenho planejado de bioli-
terminar a melhor forma farmacêutica gantes, geralmente emprega técni-
Figura 8: O centenário modelo chave- de um fármaco em função da via de cas de química computacional (com-
fechadura. administração eleita. Outrossim, toda puter assisted drug desing, CADD),
substância exógena, fármaco ou não, onde a modelagem molecular é fer-
denominada xenobiótico, ramenta extremamente útil.
sofre metabolização no Entretanto, quando a estrutura do
organismo, geralmente bioreceptor não é conhecida, pode-se
8 a nível hepático, por utilizar como “modelo” molecular seu
ação de enzimas oxidati- agonista ou substrato natural, que ade-
vas. Dependendo dos gru- quadamente modificado pode permitir
pos funcionais presentes na a construção molecular de novos inibi-
molécula de um fármaco, pode- dores enzimáticos, novos antagonistas
se antecipar, teoricamente, quais po- ou agonistas de receptores, dependen-
derão ser seus principais metabólitos, do da necessidade, definida pela
e não raramente, prever-se seu poten- escolha do alvo terapêutico.
cial tóxico. Outros órgãos são capazes Esta árdua tarefa é realizada pela
de metabolizar os fármacos, tanto que química medicinal4, sub-área que têm
o plasma pode promover hidrólise de observado significativo desenvolvimen-
ésteres ou amidas, pela presença de to no país. Os principais paradigmas
Figura 9: O modelo chave-fechadura e o con- esterases e amidases. Geralmente, o da química medicinal estão esque-
ceito de complementaridade molecular. caminho metabólico que predomina é matizados na Figura 11, ilustrando seu
aspecto interdisciplinar.
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suas atividades sobre cerca de 70 to work with as many variables as the me-
enzimas e 25 receptores, sendo em sua dicinal chemist...” (“...ninguém no mundo
maioria inibidores enzimáticos ou está condenado a trabalhar com tantas variá-
antagonistas de receptores. Menos veis como o químico medicinal...”) esta afir-
mação de Corwin Hansch descreve de forma
numerosos são os agonistas de re-
exemplar o contexto da interdisciplinaridade
ceptores ou os inibidores de canais que caracteriza a química medicinal.
iônicos.
O mercado farmacêutico mundial Para saber mais
ultrapassou a marca de 300 bilhões de Sobre conceitos e fundamentos de
dólares em 1999, e o fármaco líder das química medicinal: BARREIRO, E.J. e
estatísticas totalizou cerca de 4 bilhões FRAGA, C.A.M. Química Medicinal: as
de dólares em vendas. No mesmo ano bases moleculares da ação dos fármacos.
de 1999, a indústria farmacêutica lançou Porto Alegre: ArtMed Editora Ltda., 2001.
diversos novos medicamentos. No Brasil MONTANARI, C.A. Química medicinal:
tivemos o lançamento do orlistat (Xeni- contribuição e perspectiva no desenvol-
cal®), primeiro inibidor seletivo de lipa- vimento da farmacoterapia, Química
ses intestinais, recomendado para o Nova, v. 18, p. 56-64, 1995.
tratamento da obesidade. Foram lança- Sobre a importância dos produtos
dos dois fármacos anti-inflamatórios não- naturais no desenvolvimento de fár-
macos: BARREIRO, E.J. Produtos na-
esteroidais de segunda geração, cole-
turais bioativos de origem vegetal e o
Figura 12: Principais classes terapêuticas coxib (Celebra®) e rofecoxib (Vioxx®),
desenvolvimento de fármacos. Química.
em vendas (o número dentro dos retângu- que atuando seletivamente na enzima
Nova, v. 13, p. 29-39, 1990.
los, em vermelho, indica a participação rela- prostaglandina endoperóxido sintase-2 BARREIRO, E.J. e FRAGA, C A.M. A
tiva no mercado). CNS = sistema nervoso (PGHS-2) são capazes de tratar os utilização do safrol, principal componente
central. processos inflamatórios, inclusive aque- químico do óleo de Sassafrás, na síntese
les crônicos, sem apresentar efeitos cola- de substâncias bioativas na cascata do 9
terais gástricos. Ainda em 1999, foi lan- ácido araquidônico: anti-inflamatórios,
çado o sildenafil (Viagra®, Figura 13), o analgésicos e anti-trombóticos. Química
primeiro fármaco útil para o tratamento Nova, v. 22, p. 744-759, 1999.
da disfunção eréctil, atuando como inibi- Sobre metabolismo dos fármacos:
dor seletivo de fosfodiesterase V. Todos BARREIRO, E.J.; SILVA, J.F.M. da e FRA-
estes novos fármacos representam im- GA, C.A.M. Noções básicas do metabo-
portantes inovações terapêuticas, confir- lismo de fármacos. Química. Nova, v. 19,
mando uma das principais características p. 641-650, 1996.
da indústria farmacêutica que compre- Sobre estereoquímica de fármacos
ende a inovação. BARREIRO,E.J.; FERREIRA, V.F. e
COSTA, P.R.R. Substâncias enantiomeri-
E.J. Barreiro (eliezer@pharma.ufrj.br),doutorado na camente puras (SEP): a questão dos
Université Scientifique et Médicale de Grenoble, França, fármacos quirais. Química Nova, v. 20, p.
membro da Academia Brasileira de Ciências, profes- 647-656, 1997.
sor titular da Faculdade de Farmácia da Universidade LIMA, V.L.E. Os fármacos e a quirali-
Federal do Rio de Janeiro, é coordenador do Labora-
Figura 13: Estrutura do sildenafil (Viagra®) tório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas.
dade: uma breve abordagem. Química
lançado recentemente no Brasil para o tra- Nova, v. 20, p. 657-663, 1997.
tamento da disfunção eréctil. Notas Sobre modelagem molecular: BARREI-
RO, E.J.; RODRIGUES, C.R.; ALBU-
1. substâncias externas ao organismo,
Conclusões: Remédios, fármacos e QUERQUE, M.G. SANT’ANNA, C.M.R. de
ingeridas, geralmente sob a forma de chás.
2. Timbó: designação comum a plantas, e ALENCASTRO, R.B. de . Modelagem
medicamentos
basicamente leguminosas e sapindáceas, molecular: uma ferramenta para o plane-
Considera-se que ca. 85% do total que induzem efeitos narcóticos em peixes jamento racional de fármacos em química
de fármacos utilizados sejam de ori- e, por isso, são usadas para pescar. Frag- medicinal. Química Nova, v. 20, p. 300-
gem sintética, representando significa- mentadas e esmagadas, são lançadas à 310, 1997.
tiva parcela dos 300 bilhões de dólares água; logo os peixes começam a boiar e po- Sobre a síntese de fármacos: BAR-
dem ser apanhados à mão. Deixados na REIRO, E.J. A importância da síntese de
arrecadados com medicamentos no
água, recuperam-se, podendo ser comidos fármacos na produção de medicamen-
mundo, em 1999, distribuídos entre tos. Química Nova, v. 14, p. 179-188 1991.
sem inconvenienes.
diversas classes terapêuticas. Os mais 3. Como aqueles que por apresentarem Sobre latenciação de fármacos: CHIN,
importantes fármacos do mercado, são em sua estrutura função químicas vulnerá- C.M. e FERREIRA, E.I. O processo de
mostrados na Figura 12. veis ao pH do estômago (como ésteres metí- latenciação no planejamento de fárma-
Considera-se que todos os fármacos licos, amidas cíclicas) sofrem hidrólise ácida. cos. Química Nova, v. 22, p. 65-74, 1999.
úteis na terapêutica atual manifestam 4. “...Nobody in the world is condemned
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