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11/03/2018 Sociedade de classes e violência sexual (1): Rumo a um entendimento marxista do estupro | Passa Palavra

Sociedade de classes e violência sexual (1): Rumo a


um entendimento marxista do estupro
11/06/2017

O fato de que todo tipo de gente podia se unir, e de fato se unira, nessa frente
anti-estupro, não signi ca nem podia signi car que a questão da libertação da
mulher havia se convertido subitamente em uma preocupação geral. Por Maya
John

Maya John é militante de um grupo neomaoísta chamado Organização da Juventude


Revolucionária (KYS), facção ligada à Liga Comunista da Índia (CLI). Além disso, faz
parte do Centre for Struggling Women (CSW) e pesquisa as leis laborais no
Departamento de História da Universidade de Nova Délhi. Sua análise sobre a violência
sexual, “Class Societies and Sexual Violence: Towards a Marxist Understanding
of Rape“, publicada em 8 de maio de 2013 e traduzida agora por Pablo Polese, se insere
no contexto das mobilizações anti-estupro de 2012-2013 na Índia, em resposta a um

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caso de estupro coletivo ocorrido em Nova Délhi.  Dividimos o texto em 7 partes e


publicaremos cada uma delas aos domingos. Ao nal, todas as partes desta série de
textos poderão ser lidas clicando aqui. Já o texto “Contribuição ao debate de classe e
gênero”, cuja tradução será disponibilizada na sequência, saiu em 6 de novembro de
2015 e é uma resposta de Angry Workers of the World ao escrito de Maya John.[*] Passa
Palavra

O movimento que surgiu após o estupro coletivo ocorrido em 16 de Dezembro


de 2012 em Nova Délhi causou comoção nos meios de comunicação[1]. As
circunstâncias em que ocorreu a violação (uma jovem mulher voltava de
alguns cinemas localizados em um luxuoso centro comercial) facilmente
comoveriam qualquer pessoa, especialmente os residentes desses bairros de
classe média em ascensão, que podem mais facilmente se identi car com a
vítima. Dado que a explosão de indignação pública que se seguiu não veio do
setor mais marginalizado da sociedade indiana, não surpreende que a mídia e
as elites dominantes indianas tenham reagido de forma muito mais sensível
do que costumam fazer em outros casos de violência sexual contra as
mulheres[2]. Em resposta a este incidente em particular tanto a mídia e os
políticos quanto os jovens de classe média da cidade não demoraram em
colocar a opressão das mulheres como se se tratasse de uma questão
“universal”, o que não é difícil, já que as mulheres são parte de todas as
classes. Esta forma particular de colocar a questão da opressão das mulheres
deu ao movimento anti-estupro um caráter de classe média, moldando tanto a
forma quanto o conteúdo de suas posições políticas.

Pela sua forma e perspectiva, o movimento anti-estupro oferecia um espaço


onde um amplo espectro de participantes podia se reunir. Desde as ONGs
subsidiadas até as feministas radicais; desde os estudantes da JNU (Jawaharlal
Nehru University) até os de muitas instituições privadas, como as
universidades de gestores, escolas de engenharia e outros colégios, e centros
de estudo; desde ativistas comprometidos até pessoas que só queriam o foco
da câmera ou ver as meninas bonitas se reunirem em protesto[3]. Desde
Bhagat Singh Kranti Sena (que não tem nada a ver com a ideologia

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progressista de Bhagat Singh nem nenhuma relação com a kranti [revolução]),


até as ativistas de Shiv Sena; dos misóginos “babas” aos defensores de
cruzadas contra a corrupção, etc. Assim, atrás dos gritos de guerra do protesto
anti-estupro se ocultavam vozes diversas e opostas. Claro, alguns ativistas,
com in uência no sindicato de estudantes da JNU, não demoraram em se
oferecer como rostos visíveis de uma multidão sem rosto. No entanto, o fato
de que todo tipo de gente podia se unir, e de fato se unira, nessa frente anti-
estupro, não signi ca nem podia signi car que a questão da libertação da
mulher havia se convertido subitamente em uma preocupação geral[4].
Mesmo os recentes protestos que surgiram em abril de 2013 como resposta ao
estupro de uma garota de 5 anos, no leste de Nova Délhi, também foram um
conglomerado de todo tipo de forças contraditórias. Muitos dos participantes
simplesmente se unem à luta contra a violência sexual por puro oportunismo,
como é o caso dos membros do conhecido Aam Admi Party (AAP), que se
converteu em uma nova plataforma de lançamento de políticos e caciques
locais. Presentes nos protestos, eles tratam de cobrir toda a campanha anti-
estupro com seus slogans nacionalistas, mas sua concentração diante das
casas dos ministros não consegue esconder que a sensibilidade dos quadros da
AAP (muitos dos quais são conservadores até os ossos) para questões de
gênero é muito questionável.

Outra questão importante que há que assinalar


sobre a natureza do movimento anti-estupro é que
ele representa a cristalização do descontentamento
procedente das mulheres de classe média em
ascensão. Certos grupos de “esquerda” foram se
identi cando progressivamente com suas perspectivas, convertendo-as em
um ponto central de sua política de massas no que diz respeito à violência
sexual. O resultado deste processo foi uma luta anti-estupro que de ne a
“igualdade” da mulher de uma forma particular, e que considera a igualdade
de gênero como solução de nitiva para a violência/violação das mulheres, ao

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mesmo tempo em que propõem mudanças nas leis, políticas de gênero mais
incisivas etc., como soluções de caráter mais imediato. As opressões baseadas
na casta, tribo ou nação simplesmente vêm a se somar à lista de opressões que
as mulheres por si mesmas suportam. Deste modo, as posturas políticas que
põem o acento na estrati cação de classe e em seus efeitos sobre a sexualidade
humana, assim como em seu papel na hora de gerar condições de
vulnerabilidade e de culpabilidade, foram deixadas de lado como resíduo da
velha esquerda. A este respeito, é preciso assinalar, como fez Clara Zetkin
(líder comunista de início do século XX) em muitos de seus escritos, que cada
classe tem sua própria e distinta questão da mulher. A visão predominante da
opressão da mulher, chamada feminismo, é uma mescla de ideias
contraditórias. Englobam objetivos e interesses diferentes, com tarefas e
propósitos bastante distintos, e normalmente representa a materialização da
insatisfação das mulheres de classe alta, um descontentamento que se
apresenta, ademais, como suposto representante dos interesses gerais de toda
mulher.

Dito isto, uma das características mais importantes do recente movimento


anti-estupro é que ele surgiu num contexto claramente urbano. A maior parte
dos movimentos antiviolação anteriores emergiram nas aldeias, como parte
das lutas anti-feudais ou contra a casta dominante. No entanto, pela primeira
vez, temos assistido a um amplo movimento anti-estupro em um contexto
urbano. A este respeito, é de salientar que este movimento urbano se
desenvolveu à margem de outros movimentos mais amplos contra os eixos de
poder que levam à violação. Por isso é melhor começar tratando das
características particulares de casos como o do estupro coletivo de 16 de
dezembro.

O estupro coletivo de 16 de dezembro: analisando as especi cidades das


violações urbanas

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Os debates que surgiram quando os terríveis detalhes do estupro coletivo de


Nova Délhi se tornaram públicos re etem a forma como as distintas forças
(ativistas individuais, grupos de esquerda e também organizações de direita)
tratam de compreender as razões que explicam o aumento dos casos de
estupro. Muitos, pela experiência de lutas anteriores contra as violações no
campo, pensam que estas agressões sexuais são produto da hierarquia de casta
e do domínio da casta superior. Em um contexto rural, o domínio de casta
outorga claramente aos homens o poder de estuprar as mulheres[5].
Precisamente essa é a razão pela qual as pessoas que lutam contra a violação
nas aldeias não lutam apenas contra um Estado insensível e conivente, mas
também contra o poder que exerce a casta dominante. Do mesmo modo, nas
zonas sublevadas em que se produziram violações, sabemos que estas foram
possíveis graças ao poder outorgado ao pessoal armado do Estado, por
exemplo mediante leis como a Lei de Poderes Especiais para as Forças
Armadas (AFSPA) etc. Em semelhante contexto, surgiram movimentos não só
para lutar contra o estupro, mas também contra a ocupação militar.
Igualmente, quando se produzem motins em algumas comunidades, se agride
sexualmente as mulheres das minorias para amedrontá-las, fechar seus
comércios, obrigá-las a emigrar, e inclusive para forjar um falso sentimento
de unidade entre a comunidade dominante, com base na religião, o
regionalismo, etc. Nestes casos, a cumplicidade entre a polícia local e os
políticos da comunidade dominante terminou protegendo os criminosos do
peso da lei e encobriu estes detalhes dos distúrbios. Sem dúvida, nestes casos e
contextos, é fácil identi car o elemento de poder que está em jogo, assim
como a natureza exata ou a fonte de dito poder.

No entanto, as circunstâncias com as quais nos defrontamos no caso do brutal


estupro coletivo de 16 de dezembro são mais complicadas. Enquanto o termo
“estupro em grupo” (gang rape) encerra a imagem de uma a rmação de
poder, o fato de que os seis violadores não eram nem de longe homens com
poder, nem com um status tradicional para conservar e rea rmar, nem

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estavam em uma situação econômica que lhes pudesse proteger de seu crime,
torna mais difícil considerar este caso como um típico “estupro de poder”. De
fato, seguimos sem poder explicar as violações que se produzem nos entornos
urbanos, um ambiente no qual os homens mais carentes de poder e oprimidos
aparecem como os violentos protagonistas dos crimes sexuais. Em boa parte
dos casos de estupro que se produzem nas cidades estão envolvidos homens
procedentes de setores vulneráveis da sociedade. Assim, qual é o eixo de poder
que permite explicar estas agressões? É correto empregar o eixo das
desigualdades de casta em um contexto urbano que muitas vezes disfarça as
diferenças de casta (os seis estupradores teriam di culdades em saber qual era
a casta de sua vítima enquanto a atraiam nos ônibus)? Do mesmo modo, teria
sentido assinalar algum tipo concreto de eixo de poder sem chegar a
questionar seu próprio predomínio e sua relação orgânica com a sociedade
urbana? Em outras palavras, em certos contextos, como o rural, é fácil
assinalar as hierarquias de casta, e a desigualdade que delas decorrem, como o
eixo que permite explicar a maior parte dos casos de violação. No entanto, não
podemos empregar a mesma lógica ao explicar as violações em contextos
urbanos, que oferecem certo anonimato quanto à posição social, certa
mobilidade, etc. Dada a ausência de eixos de poder identi cáveis que
permitam explicar a violação nestes casos, não é surpreendente que algumas
das explicações feministas do estupro tenham recebido boa acolhida entre os
ativistas, os intelectuais e a juventude. Incapazes de localizar essas típicas
estruturas de poder que tornam possível os estupros, como ocorre no campo
ou nas áreas sublevadas, e em seus ansiosos esforços por identi car as causas
de tais agressões urbanas, muitos acabam recorrendo ao poder masculino para
explicar a agressão de 16 de dezembro. Alguma explicação deve haver para
esse ocorrido e sua brutalidade!, e se não há outra, então aquilo que levou os
seis estupradores a agredirem sua vítima deve ser a hostilidade masculina e o
típico desejo masculino de submeter a sexualidade da mulher.

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Esta linha argumentativa, essencialmente, faz eco às típicas a rmações


feministas segundo as quais o estupro é uma questão de poder, e não sexual, e
que portanto há que compreendê-lo mediante o eixo do poder masculino, ou
basicamente a desigualdade homem-mulher. É importante assinalar que uma
das características do feminismo é que considera o estupro como uma
expressão de poder selvagem que nada tem que ver com a satisfação sexual.
Esta é uma postura feminista muito documentada e conscientemente
defendida, pois o feminismo centra seus esforços em compreender a violência
sexual desde a perspectiva das vítimas e não desde a perspectiva dos
criminosos. Assim, se assumiu que todos os homens são potenciais
estupradores, e que todas as mulheres são vítimas potenciais de um estupro.
Na hora de explicar por que o estupro é uma expressão de poder, isto é, por que
os homens chegam a violar mulheres, tendem a assinalar o “patriarcado”,
uma espécie de doença que se manifesta no aparato estatal, na mentalidade
individual, na cultura e nas normas sociais. Neste processo, o patriarcado se
apresenta facilmente como um sistema coerente contra o qual é necessário
lutar intensamente[6].

Claro, esta perspectiva feminista foi ganhando apoio progressivamente, e


pode aparecer como concepção geralmente aceita sobre o estupro
precisamente em momentos como este, quando uma avalanche de agressões
sexuais acaba de sacudir profundamente toda a sociedade urbana.
Concretamente, esta tendência a atribuir o estupro a uma (aparentemente)
eterna desigualdade entre homens e mulheres ca muito bem re etida nas
a rmações que zeram as feministas e ativistas que participaram na recente
campanha anti-estupro. Kavita Krishnan, por exemplo, a rmava em seu
artigo de janeiro de 2013 que “o estupro não é uma expressão de desejo das
mulheres, mas de ódio delas”[7]. Pouco antes, em outro artigo, a própria
Krishnan escrevia: “O estupro e demais formas de violência sexual são uma
a rmação de domínio e de poder patriarcal”[8]. No mesmo artigo, também
apontava que: “os estupros são parte de uma rede mais ampla de violência e

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submissão sobre as mulheres. O medo da violência sexual tem o efeito de


disciplinar a mulher… Há que entender que por sua natureza o estupro é um
crime de poder.” Em seu conjunto, estas a rmações re etem uma forte
inclinação entre as mulheres ativistas por atribuir a violência sexual a uma
questão de poder originada por uma arraigada desigualdade entre homens e
mulheres, que em geral por si mesma, ou junto a outros “centros de poder”,
tem o efeito de disciplinar a sexualidade das mulheres e de mantê-las em um
constante estado de medo.

Houve também quem buscou explicar os estupros


urbanos a partir da bem fundada explicação dos
estupros rurais, ou seja, do predomínio da
hierarquia de casta e de seu sentido como reação de
casta por parte das castas dominantes.
Shuddhabrata Sengupta, em seu artigo de 23 de
dezembro[9], por exemplo, tratava de compreender o estupro coletivo de 16 de
dezembro mediante o eixo de casta, junto à desigualdade de gênero,
a rmando que os seis violadores eram homens de casta superior que tiveram
sua consciência patriarcal transtornada ao ver a vítima saindo com um homem
pela noite. Dava a entender que os homens migrantes de casta superior (como
os seis estupradores) são propensos a atuar desta forma violenta, pois não
estão acostumados à liberdade que a vida urbana oferece, sobretudo às
mulheres, que estão acostumadas a ver em uma posição extremadamente dócil
e submissa. Em outras palavras, segundo alguns, estes estupros são
simplesmente uma extensão da mentalidade rural, que inunda a consciência
da maior parte dos homens que emigram para as cidades. Segundo esta ideia, a
maior parte dos homens, quando “cruzam a fronteira” e entra em um entorno
urbano, percebe a ausência de hierarquia de casta e de gênero, o que os leva a
reagir com agressões sexuais, cujo objetivo é dar uma lição às vítimas e
inculcar medo em todos para que sigam suas normas tradicionais de vida.
Certamente, se aceitamos este argumento, os estupros urbanos não teriam

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nenhuma particularidade[10]. Este enfoque, de fato, foi amplamente aceito


por aqueles que não consideram importante compreender o contexto
particular em que se produzem os estupros, nem levar em conta fatores como
a origem social dos estupradores e suas vítimas. Não obstante, em suas ânsias
de buscar coincidências, ignoram as diferenças. Assim, isto os leva a a rmar
que é o mesmo se se trata de um “estupro urbano, rural, de classe média, de
classe operária, moderna, tradicional, no lar… um estupro é um estupro,
sempre se trata de uma a rmação de poder e uma tentativa violenta de
subjugar.”[11]

Está claro, pois, que a despeito de pequenas variações, a maior parte das
análises mencionadas são incapazes de resolver o problema, pois se veem
incapazes de localizar algum eixo de poder, à margem da desigualdade
homem-mulher, que permita explicar de maneira convincente o aumento
substancial de estupros urbanos. Portanto, segundo eles, deve ser a força bruta
que emana da desigualdade homem-mulher a que supostamente explica por
que há homens (como estes seis estupradores) que, apesar da pobreza e da
vulnerável situação em que se encontram, têm capacidade e vontade de violar
mulheres. Para muitas feministas e ativistas, entender os estupros como uma
questão de poder e não de sexo é algo importante, ainda que implique
trabalhar com uma noção abstrata de poder baseada em uma (eterna)
desigualdade homem-mulher. Pois elas consideram que aceitar que existe um
propósito sexual é um enfoque que tende a justi car o estupro. Para evitar
isto, as feministas e muitos ativistas rechaçam o elemento de frustração
sexual envolvido em grande número de estupros. Ademais, ao esboçar sua
linha argumentativa, as feministas tratam de proteger as vítimas das típicas
piadas e reprovações que lança a sociedade – que com frequência culpabilizam
a vítima por não se vestir apropriadamente, por sair das zonas “seguras”, por
chamar a atenção masculina, etc.

Em todo caso, semelhante postura nos ajuda a compreender qual é a causa dos
estupros nas zonas urbanas e a combater as recorrentes violações como a de 16
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de dezembro? Realmente compreendemos os diversos fatores que entram em


jogo em uma agressão como a de 16 de dezembro? Minha opinião é que não, e
não o lograremos se não formos para além do que as feministas identi cam
como a fratura principal que arrasa nossa sociedade, a saber, o predomínio da
desigualdade de gênero entre o homem e a mulher. Ao limitar e encerrar o
problema do estupro e da violência sexual dentro da questão da desigualdade
entre o homem e a mulher, não necessariamente se dá importância a outras
desigualdades (como a de classe) que provocam desigualdade sexual, e,
portanto frustração sexual, entre amplos setores de homens de nossa
sociedade. À luz de casos de estupro como o de 16 de dezembro, em que os
agressores pertenciam ao setor dos oprimidos, explorados e carentes de poder
na sociedade, é imperativo reformular-se estas a rmações sobre o estupro
como uma mera expressão de poder. De fato, podemos nos aproximar da
questão do estupro de uma forma mais simples, respeitando ao mesmo tempo
as particularidades observadas nos estupros ocorridos em nossos centros
urbanos? Certamente que sim, pois o aumento dos estupros e outros ataques
sexuais às mulheres e crianças nas cidades é sintoma de problemas que vão
muito além da desigualdade de gênero. E nos indicam que existem enormes
desigualdades, enraizadas nas agudas divisões de classe em nossa sociedade,
que provocam desigualdade sexual, que nos deixam sem tempo para cultivar
as relações humanas, e que produzem níveis fenomenais de frustração e
agressividade, especialmente entre os homens das massas trabalhadoras.

Ainda que nos coloque um desa o incômodo, é hora de termos em conta o


papel que jogam as inumanas condições em que vivem e trabalham um grande
percentual dos habitantes de nossas cidades. A cidade, com seus ostentosos
centros comerciais, o cinas climatizadas, seus apartamentos e sua vida a todo
vapor por um lado, e suas favelas, suas fábricas clandestinas, seus decadentes
albergues e sua pobreza por outro, se converteram em um refúgio para os
bárbaros crimes sexuais. Portanto, há algo de particular nos crimes sexuais
ocorridos nas cidades. Aqui, o leque de fatores que se conjugam nos estupros é

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mais complicado (os agressores não são necessariamente da casta dominante


ou os rebeldes de uma comunidade). E mais que uma expressão de poder,
muitas destas violações são produto da frustração sexual das pessoas, que
desemboca no abuso de mulheres e crianças em situação vulnerável. O fato de
que a selvagem vida nas cidades seja um criadouro de potenciais estupradores
e vítimas em signi cativas proporções é um dos fatores que contribuem para o
imenso medo em que se desenvolve a vida da maioria das mulheres na
cidade[12]. Ainda que seja inegável que um amplo percentual destes crimes
seja produzido nos próprios lares das mulheres e os cometam seus
companheiros, o maior temor que afronta as mulheres é o de ser violada por
um estranho, um estranho que aparece subitamente, se aproveita da
vulnerabilidade de suas vítimas e da impunidade que oferecem as
circunstâncias, e rapidamente desaparece em meio à escuridão. É este medo o
que nos faz pensar duas vezes antes de sair, de aventurarmo-nos por aí
sozinhas, e o que nos faz tomar as necessárias precauções para nossa própria
segurança.

A este respeito, quiçá alguns argumentos da direita sobre o estupro na época


contemporânea escondam algo de verdade. A questão é se a esquerda é capaz
de distinguir entre a validade de algumas dessas observações sobre o impacto
do moderno desenvolvimento capitalista em nosso país e os tradicionais
pretextos xenófobos e de caráter cultural que costumam abundar nas
a rmações da direita sobre a sociedade moderna[13]. A esquerda é capaz de
prestar toda a atenção que merece à crise sexual criada pelo capitalismo?
Desgraçadamente, se não somos capazes de enfrentar este desa o e de
abordar as arraigadas desigualdades de classe que impedem chegar à
igualdade de gênero e tornam possível os estupros, a violência sexual
necessariamente persistirá. Todos os esforços por mudar as leis, a
mentalidade, e todos esses burocratizados e insensíveis órgãos de Estado, não
podem fazer muito se não formos capazes de conectar este esforço com a luta
que aspira emancipar a toda a espécie humana.

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Tendo em conta que lutamos contra uma opressão profundamente arraigada e


relacionada com desigualdades que vão além da divisão de gênero, devemos
indagar conscientemente quais são as bases ocultas da violência sexual e da
opressão geral das mulheres. Minha opinião geral é que o estupro é um
produto histórico das divisões de classe que surgiram na sociedade humana,
um enfoque que elide ou menospreza teoricamente quem se dedica a este
tema. O estupro é, então, uma das formas de opressão desencadeada pela
exploração de classe sobre aqueles em situação mais vulnerável, assim como
sobre aqueles que são sobrecarregados com imagens de sua própria
vulnerabilidade apesar de estar materialmente distanciados dela. Em outras
palavras, na sociedade atual, as mulheres se consideram as receptoras últimas
da violência sexual porque a maior parte delas se vê reduzida a condições de
extrema vulnerabilidade pelo sistema socioeconômico existente, que se
fundamenta numa exploração brutal da classe operária por parte da classe
capitalista. Con nando as mulheres operárias em situações de vulnerabilidade
econômica e social, e portanto sexual, nossa estrutura socioeconômica criou
para o sexo feminino uma formidável imagem de submissão, imagem que
retorna para assombrar inclusive as mulheres que não procedem da classe
trabalhadora.

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Ademais, os documentos demonstram que, ainda que da perspectiva da vítima


não haja nada sexual no estupro, da perspectiva do agressor se pode
considerar que no estupro há um propósito sexual. É crucial que esclareçamos
este problema, pois evitá-lo contribuiu a que a opinião pública não preste
atenção às condições nas quais se produz o estupro em nossa sociedade. Com
este objetivo, pois, para esclarecer o que faz possível que alguns homens
violem e o que constitui uma realidade diária para a maioria das mulheres, é
pelo que é preciso traçar uma linha de demarcação entre a (sexual) intenção
por trás do estupro e o (não sexual, traumático) impacto do estupro. Para
poder enfocar o estupro em toda sua complexidade, este artigo trata de
esboçar a história do estupro, contextualizar a agressão, e portanto, revisar a
perspectiva feminista predominante sobre a violência sexual e a opressão da
mulher.

Notas:

[*] O debate em que o texto de Maya John se insere conta com as seguintes
intervenções:
– General Statements after the rape case
– Description of character of ‘anti-rape’ movement
– Political position on class and gendered violence
– Reply to Maya John, por Kavita Krishnan
– Reply to Krishnan, por John
– Contribution to debate by comrades close to radicalbotes
– Contribution to class/gender debate, por Angry Workers of the World (em
breve será publicado no Passa Palavra)

[1] A vítima de 23 anos era estudante de sioterapia. Ia acompanhada por seu


namorado, um engenheiro, e ambos voltavam para casa depois de ter visto “A
vida de Pi” em um complexo de multicinemas/grandes armazéns do sul de
Nova Délhi, chamado Select Citywalk. Tentaram apanhar um bicitaxi, mas
como não conseguiram decidiram esperar na parada de ônibus (Nova Délhi

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Transport Corporation/DTC bus service). Como o transporte público de Nova


Délhi é um desastre (sobretudo os ônibus), parece que o casal também não
conseguiu pegar um ônibus. Depois de esperar 45 minutos na parada, não foi
muito difícil convencê-los a subir em um ônibus privado. Dentro do veículo a
vítima foi violada por 6 homens da classe operária enquanto o ônibus cruzava
as ruas da cidade, vindo a sucumbir às feridas 13 dias depois, no hospital de
Singapura. A vítima não apenas foi estuprada, mas também tratada com
extrema brutalidade.

[2] Por exemplo, o Supremo Tribunal de Nova Délhi abriu o caso motu próprio,
e a polícia de Nova Délhi foi incomumente rápida em sua atuação e deteve os
acusados 3 dias depois. Os meios de comunicação nacionais não paravam de
falar do caso, e os protestos estudantis levaram a agitação até às ruas. Algumas
cadeias começaram a empregar esta questão como parte de suas campanhas
publicitárias. Muitos dos que protestavam pediam a pena de morte para o
acusado, e ocuparam Raisina Hill (perto da residência presidencial e do
Ministério do Interior, sob cuja autoridade está a polícia de Nova Délhi).
Geralmente não se permite protestos ali. A polícia se manteve relativamente à
margem, e só empregou a força quando alguns provocadores começaram a
atirar pedras. Sonia Gandhi, à época líder do Partido do governo United
Progressive Alliance (UPA), Sheila Dixit (Ministra do Governo do Território da
Capital Nacional), Manmohan Singh (Primeiro Ministro) e Sushilkumar
Shinde (Ministro do Interior), visitaram a família da vítima e lhes
asseguraram que justiça seria feita. Apenas algumas semanas antes do estupro
coletivo de 16 de dezembro, no dia 9 de setembro, em Haryana, uma moça de
16 anos pertencente a uma casta oprimida foi violada por 12 homens. Só alguns
membros desta casta e algumas organizações comunistas levantaram sua voz
para pedir justiça, e os meios de comunicação ignoraram o ocorrido. Os
tribunais de Haryana não abriram o caso motu próprio. A polícia não registrou
a denúncia até que o pai se suicidou. E nem Sonia Gandhi, nem Bhupinder

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Hooda (Presidenta de Haryana), nem Manmohan Singh, nem Shinde visitaram


a vítima.

[3] Sanik Dutta (2013), “Citizens United”, Frontline, 25 de janeiro.

[4] A resposta masculina chauvinista geral é proteger as próprias mulheres,


mas fazer o mesmo às demais. Precisamente por isso pôde-se ver entre os
“agitadores”, durante os protestos, muitos homens acossando outras
mulheres que também protestavam (olhando-as xamente, tocando-as de
maneira imprópria etc.). Por trás do incidente do estupro coletivo na capital,
proliferaram vários grupos vindos de vários locais e que pediam a pena de
morte por estupro. Seus membros, ademais, como re etem seus slogans, eram
misóginos. Até pouco tempo, um grupo suspeito esteve ocupando Jantar
Mantar (portando cartazes negros com slogans a favor da pena de morte). O
grupo pôs uma lápide chamada “Damini” (nome dado pelos meios de
comunicação à vítima do estupro coletivo de 16 de dezembro) nesta destacada
praça. Fizeram uma ocupação em seus arredores sem reivindicar nada
concreto. Diziam que estavam instigando uma “kranti” [revolução] contra o
estupro e que não sairiam dali até que os acusados fossem pegos. O recente
caso de estupro de uma operária fabril no nordeste de Nova Délhi por um
homem cuja lha havia sido violada (19 de dezembro de 2012, Times of India)
demonstra a hipocrisia do chauvinismo masculino. Um estuprador pode lutar
contra o estupro, pois a luta contra o estupro não é em si mesma uma luta pela
libertação das mulheres.

[5] Nas aldeias, muitas vezes são os anciões da aldeia ou os próprios pais das
vítimas de estupro que as obrigam a calar a boca. A polícia, sob a in uência da
parte acusada ou panchayat, muitas vezes não registra o crime, e os médicos
manipulam os laudos. Alguns exemplos de casos de estupro no meio rural
indiano que assinalam o predomínio de uma desenfreada violência sexual são:
Bhanwari Devi em 1992, violada por um homem de casta superior em Bhateri
em Rajasthan; Phoolan Devi, violada em 1979 na aldeia de Behmai em Madhya

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Pradesh por um membro de uma casta superior; duas mulheres dalit (mãe e
lha) violadas por vários homens em Khairlanji (Maharashtra) em 2006, cuja
família quase toda morreu linchada por membros da casta OBC dominante, a
Kundi. Estes casos mostram que existe uma conivência policial e jurídica, e
que a justiça está completamente corrompida.

[6] Me re ro ao patriarcado não como um “sistema” que existe de maneira


paralela ao sistema socioeconômico que nos rodeia, mas como sinônimo de
sexismo. Considero que o patriarcado ou o sexismo consiste em padrões de
comportamento que evoluíram historicamente em cada época, pelo que o
patriarcado que existe sob o capitalismo é distinto do que existia sob o
feudalismo ou a escravidão. Houve também outras intervenções igualmente
envolventes no debate que se seguiu sobre o estupro, e que aprofundaram
bastante a questão da estratégia de curto e longo prazo necessária para
combater a crescente opressão das mulheres em nossa sociedade. Criticando
as reivindicações que apareceram durante os protestos, algumas destas
intervenções assinalavam a necessidade de colocar reivindicações impossíveis
que por sua própria natureza fossem capazes de derrubar as arraigadas
condições que geram a desigualdade de gênero. Não é preciso dizer que não
podemos colocar reivindicações que reforçam a legitimidade do Estado
burguês, mas seguramente existe um modo leninista de colocar
“reivindicações intermediárias”, ou seja, reivindicações que têm ressonância
imediata nas aspirações do povo e que ao mesmo tempo supõem um desa o ao
Estado. É no processo de colocação destas reivindicações imediatas que temos
que nos organizar, fortalecer nossos quadros, elevar as aspirações das massas
e conseguir uma in uência duradoura sobre elas, etc., para poder, quando
estejamos preparados, colocar as reivindicações (im)possíveis ante o Estado.
Se não procedermos desta forma, cairemos ou no desvio esquerdista (que
consiste em promover consignas absolutamente desconectadas das massas e
que, portanto, nos isolam delas), ou no desvio direitista (que consiste em
defender bandeiras muito populares que nos levam a slogans pequeno-

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burgueses e a perder nosso senso crítico, assim como nossa vontade e nossa
independência em termos de ação proletária).

[7] Kavita Krishnan (2013), “Patriarchy, Women’s Freedom and Capitalism”.

[8] Kavita Krishnan (2012), “Some Re ections on Sexual Violence and the
Struggle Against It”.

[9] Shuddhabrato Sengupta (2012), “To the Young Women and Men of Nova
Délhi: Thinking about Rape from India Gate”.

[10] Um informe do National Family Household Survey dá uma descrição mais


argumentada e realista dos atuais índices de estupro que os oferecidos pelo
National Crime Records Bureau (NCRB), e con rma que as mulheres
residentes nas cidades têm mais possibilidades de passar por abuso e violência
sexual do que as que vivem no campo.

[11] Devika Narayan (2012-13), “Some Thoughts on Rape, Sexual Violence and
Protest: Responding to Responses”, Critique, vol. 2 (2): 39-40.

[12] Hoje, com a expansão das cidades no que poderíamos chamar


“subúrbios”, muitos povos situados junto às grandes cidades sofreram um
surto de violações nas estradas, etc., o que re ete que as presas fáceis também
são procuradas nos arredores das cidades. As agressões a mulheres do campo
ou operárias fabris que são obrigadas a subir em um veículo, entrar em
armazéns abandonados, ou que diretamente são abordadas na estrada, são já
algo corrente, e demonstram que, tal como na cidade, nos municípios situados
em seu contorno se produzem violações que não encaixam necessariamente
no paradigma do estupro de poder, dado a origem dos agressores e o fato de
que buscam mais aproveitar-se da vulnerabilidade da vítima do que dar a ela
uma lição. O fato é que as pessoas que circulam entre o campo e a cidade estão
estendendo gradualmente os padrões urbanos de estupro ao meio rural.

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[13] Alguns tubarões da direita a rmam que o estupro é um fenômeno urbano


e moderno, animado pelo anonimato que a cidade oferece. O chefe da RSS,
Mohan Bhagwat, em sua declaração de 4 de janeiro de 2013 dirigindo-se a um
grupo em Silchar, acabou complicando mais o assunto dizendo que o estupro é
um fenômeno que “acontece na Índia, não em Bharat [termo sânscrito
empregado para denominar o subcontinente indiano]”. Bhagwat identi ca a
Índia com as áreas urbanas, e Bharat com a Índia rural. Segundo ele, o que está
provocando o aumento dos crimes contra as mulheres é a adoção de um estilo
de vida ocidental nas cidades. Em sua declaração, a rmou: “Se você vai ao
campo ou à montanha não encontra casos de violações múltiplas e crimes
sexuais”. Segundo ele as áreas urbanas estão in uenciadas pela cultura
ocidental, enquanto as rurais se alimentam dos valores indianos e das
gloriosas tradições indianas. Dado que supostamente as velhas tradições e
valores indianos respeitam muito as mulheres, isso faz com que no campo não
haja crimes contra as mulheres. Nem é preciso dizer que este tipo de elogios às
tradições indianas não têm em conta os fundamentos das relações sociais.
Portanto, é essencial compreender o passado no contexto de seu meio social,
sistema de produção, nível de educação, etc. Os elogios cegos ao passado
levam a conclusões errôneas. Ao longo da história da Índia, o status da mulher
foi mudando, ainda que sua condição de subordinação tenha sido quase
constante. E ademais sabemos que na Índia rural as mulheres também sofrem
brutais agressões sexuais.

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