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Lia Eduardo Robinson Achutti Uma peculiaridade desta populagao é que ela é composta majoritariamente de migrantes, de origem ru- ral, da regifio das colénias alemas do Estado, colonas sem terra, apresentando fortemente esta caracteristica étni- ca e cultural. Apesar da precariedade das condigdes de vida, a cooperativa de catadoras de lixo pode ser tomada como um caso bem sucedido de mobilizagao e organiza- cdo, além de exemplar no que se refere ao aproveita- mento e transformagao de lixo. A populacdo conseguiu também um posto de satide comunitario, uma creche e uma escola primdria, que esta em construcao. Abordar fotoetnograficamente trabalhadoras que vivem do lixo, junto do lixo, num lugar para o qual a sociedade maior vira as costas, é revelar uma realidade especifica relativa a grupos populares urbanos. Existe a tendéncia de rejeitar tudo o que esti relacionado com 0 lixo; ld onde ele esta nao temos interesse de estar, A par- tirde uma perspectiva ecoldgico-preservacionista encon- tram-se as estratégias de reciclagem de material nao bi- odegradivel. Segundo esta perspectiva, no lixo nio en- contraremos mais o fim da linha ou fim da cadeia de consumo, encontraremos 0 fim do desperdicio, as mo- demas solugdes para a preservacao do meio ambiente, encontraremos uma verdadeira usina de produgio de matéria-prima. Deste ponto de vista, o trabalho das mu- Iheres da Vila Dique pode ser encarado como de funda- mental importincia, situado no meio de um longo pro- cesso produtivo moderno. Através de uma abordagem descritiva, em que a principal forma de narrar é 0 uso de imagens, através de um exereicio de uma antropologia visual utilizando a téc- nica fotografica - uma fotoetnografia - busco investigar os elementos com os quais esta populacdo constrdi os 12 Rotoetnegratia tragos de sua identidade, Que tipo de apropriacdo os outros fazem do lixo produzido e rejeitado por 16s. Pro- curo visualizar como se dé 0 processo de trabalho de separagao do lixo, a organizagdo do espago de suas casas na construgao de estratégias de reprodugio social e, en- fim, procuro retratar quem sao estas mulheres. ‘A partir do uso da fotografia, associada as técnicas antropolégicas de pesquisa de campo, ¢ tendo como ob jeto esta populagdo e sua inseredo com e no lixo, busco pensar ¢ desenvolver a prdpria antropologia visual como uma linguagem e um olhar, capaz de, no processo de conhecer, nos dar dados. Procure, teoricamente, traba- Ihar a questio da imagem em seu potencial descritivo e suas his{éricas conexoes com a antropologia. Articulo minha experiencia na area de documen- tagdo folografica e de fotojornalismo com minha forma- do como antropélogo. Minhas técnicas de investigacao em campo combinam a tradigao antropolégica de traba- Iho etnografico, com técnicas de observacao direta, ¢ 0 ‘emprego da técnica de fotografia, conformando uma an- tropologia visual. ‘A proposta aqui é a do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo autonomo na fun- cdo de convergir significacdes ¢ informagées a respeito de uma dada situagio social. Em fungao da minha for- magiio ¢ experiéncia profissional anterior como fotdgrafo, € da possibilidade de potencializa-la na sua utilizagao articulada @ antropologia, procurei centrar meus esfor- {08 no que concerne a fotografia. Sem desconsiderar a importincia das contribuigdes daqueles que se empenha- ram no campo do cinema e do video etnografico, sinto- me no dever de propor a ampliacaio do campo da antro- pologia visual viabilizada, nos termos do aproveitamen- 13 Luis Bardo Robinson Achutt to do fazer fotogréfico, que, apesar de ainda restrito, € talvez uma forma mais acessivel e menos custosa em ter- ‘mos financeiros, mais proxima da realidade de um tra- balho cientifico que se depara com restrigdes orgamen- tarias. © foco de minhas observagées sio as trabalhado- ras do galpao de reciclagem do lixo. Suas formas de or- ganizagao, no nivel do trabalho de separagao, aspectos do grupo familiar e respectivas estratégias de sobrevi- vencia. Metodologicamente no entanto, como ja foi referi- do, minha énfase ser no uso da fotografia como uma narrativa imagética capaz de preservar o dado e conver- gir para o leitor uma informagao cultural a respeito do ‘grupo estudadlo. Proponho-me exatamente pensar € (ra- balhar o potencial narrativo-descritivo da fotografia, Este trabalho de antropologia visual ¢ inspirado na tradigao da “Documentary Photography” americana que teve marcante atuacio na década de trinta, através dos foldgrafos Jacob Riis e Lewis Hine primeiramente, e pos- teriormente, através do programa fotografico da “Farm Security Administration” do governo dos Estados Unidos (Newhall, 1983). A inspiragao na fotografia documen- tal americana, quero associar © aprendizado e o olhar etnografico, sendo este o ponto fundamental desenvolvi- do neste trabalho. Por tras de um manuseio ideal da téc- nica fotografica se faz, necessiria a vivéncia antropolé- gica do trabalho de campo no sentido de buscar inter- pretar as realidades culturais que se nos apresentam. No primeiro capitulo organizo um apanhado his- torico do fazer antropolégico e do fazer fotografico, que surgem na mesma época e yao ter varios momentos de interconexao ao longo do tempo. No segundo capitulo u Fotoctngrafin busco abordar as questées do olhar, da visualidade em fungao da dinamica social. Procuro enfatizar o fato de que o olhar esta condicionado a uma determinada época com suas possibilidades tecnologicas e a uma dada cul- tura. Partindo disso, analiso como os modas de olharar- ticulam-se com um social pensado de forma dinamica, ¢ nesse sentido, analiso que mudangas ja esto a anunciar implicagdes nas novas formas do olhar. No terceiro ca- pitulo, discuto formulagdes pertinentes a uma estética e linguagem fotogrficas no sentido de propor uma forma de narrativa etografica através da fotografia. Neste ponto é importante salientar a caracteristica especial deste livro: um livro com dupla entrada. Duas abordagens antropoldgicas distintas e complementares. Duas formas de texto, um verbal e outro imagético. Por isso, duas capas, Ao virar o livro, o leitor encontraré um trabalho eminentemente visual. Depois de contextuali- zar a problematica e 0 ambiente em jogo, apresento 0 resultado de um exercicio utilizando-me da fotografia, no sentido da constituigio de uma narrativa etnografica, qual busquei através do recurso que estou denominando de Fotoetnogratia. Este Livro oriundo de minha dissertagao de mestrado apresentada Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Pés-Graduacao em Antropologia Social, no dia $0 de Abril de 1996. Quando contei com a orientagdo da Prof. Doutora Ondina Fachel Leal. A dissertacdo foi aprovada com conceito A por uma banca formada pelos professores, Dra, Cornélia Eckert (Utrgs), Dr Etienne Samain (Unicamp) e Dr. Ruben Oliven (Ufrgs). ‘Suas sugestoes foram enriquecedoras. Gostaria de agradecer CAPES/CNPg 0 apoio fi- nanceiro, através da bolsa de dois anos que a mim foi 18 Laie Eduardo Robinson Acti concedida. Agradeco também o apoio ¢ acesso ao Labo- ratrio de Antropologia Social do Programa de Pés-Gra- duagao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tanto no sentido de busca de pes- soal técnico especializado, quanto no de orientagao te tico-metodolégica. © acompanhamento das discusses © pesquisas do grupo de Antropologia do Corpo e da Sait- de (Nupacs - PPGAS), coordenado pela professora Ondi- nna Fachel Leal, propiciou minha inseredo junto a popu- lagio estudada, um conhecimento prévio da problema. tica social desta populagao eo acesso contintiado ao ban- co de dados com informagées detalhadas sobre a popu- lagao em estudo. Devo relacionar algumas pessoas que, direta ou in- diretamente, influtram em minha trajetéria até aqui: pro- fessor Ruben George Oliven que, com seu carisma e com. peléncia, conquistou-me para a antropologia. A ex-cole- 2, orientadora ¢ amiga, Ondina Fachel Leal, que sempre soube contagiar seus amigos com uma energia positiva, solidria. Foi cla que encorajou-me a iniciar a carreira como fotografo. Minha companheira Maria Cristina Be- lardinelli - a Tita - pela cumplicidade e ajuda cotidiana ¢ pela disposicao de enfrentar a dureza da luta nos bastido- res. Meus pais, Aloyzio e Valderes, minhas irmas, Ana Lit- cia ¢ Liicia Helena pelo entusiasmo e apoio que sinto infi- nitos. Em especial minha mae - sempre atenta na coorde- nagao da retaguarda, sem a qual a vida nao seria possivel, © meu pai, que na vanguarcla, abre as “anelas” para um mundo virtual sem as quais a vida nao sera possivel. Meus amigos. Meu av6 fotdgrafo, Bortolo Achutti, com seu te- Iesc6pio na janela do s6tdo, invadimos a intimidade da lua, E do seu laboratério no fundo de casa, vi como se podia aprisionar a luz, na forma da propria Ina. 16 Potocinegeatia De forma especial, dedico este livro a menina Julia, minha filha, que nasceu junto com este livro, e que, alm de me esquentar 0 colo com seu choro, me faz muitas vezes transitar do abstrato ao concreto e repensar a vida. I HISTORIA: FOTOGRAFIA E ETNOGRAFIA 1, Conexdes entre fotografia ¢ etnografia, fologratar Id, revelar aqui ‘Querer fijar reflejos fugaces no solo es una imposibilidad, tal como ya han demostrado experiencias muy serias realizadas cn Alemania, sino que ese querer linda con el sacrilegio. Dios ccre6 al hombre a su imagen y ninguna méquina humana pude fijar la imagen de Dios; deberia traicionar de golpe sus proprios principioseternos para permitir que un francés,en Pars, anizara al mundo invencién tan diabdlica, (Texto publicado no ano de 1839 pelo jornal alemao Leipziger Anzeiger: cf Freund 1976:67) ‘Nem sempre as novidades so recebidas com entusi- asmo e otimismo. Os otimistas so, via de regra, aqueles que estio direlamente envolvidos com as propostas inova~ doras. Isso explica a desmedida reagio da Igreja Alema, conforme citagio acima, quando da oficializacdo da inven- fio da fotografia na Academia de Ciéncias de Paris no dia 19 de agosto de 1839.' Guardando-se as devidas propor- g6es, ha ainda no campo da antropologia uma resisténcia em aceitar'a existéncia de uma antropologia visual fazendo Iembrar 0 ceticismo da Igrcja Alema que tentara fechar os olhos ante uma evidéncia, o surgimento da fotografia. Mo- Jule Bduardo Robinson Achuti dernamente a aplicagiio da fotografia no campo da chama- da antropologia visual parece evidente. ‘A técnica fotogrifica evoluiu bastante de suas ori- ‘gens até 03 dias de hoje. A primeira fotografia da qual se fem conhecimento demandou oito horas de exposigio, ela foi tomada da janela do quarto de Nicéphore Niépce, em Le Gras, no ano de 1826. ? No inicio do século passado, com a intensificagio do capital industrial e a emergéncia da burguesia, abriu-se 0 ‘mercado para o retrato, nao mais o grande retrato a leo que a aristocracia encomendava de um pintor reconheci- do, A fotografia tornou-se a forma quimica de fixar os re~ tratos que ji eram ha mais tempo esbocados através da ca- mara escura, através do trabalho dos miniaturistas ¢ da in- veneao do recorte de silhuetas ¢ do fisionotrago. * No momento da invencao da fotografia, comegou uma evolugiio no transcurso da qual a arte do retrato, sob a forma. da pinturaa dleo, miniatura, gravura, tal como havia-se exer cido para satisfazer a demanda da burguesia média, foi ven- cida quase que completamente. Esta evolucao fez-se com uma rapidez, {io extraordinaria que os artistas que trabalhavam nesles illimos géneros perderam quase todos, seus meios de subsisténcia, Denire eles recrutaram-se os primeiros que se dedicaram a nova profissio (Freund, 1946:48). Ou nas palavras de Walter Benjamin: No instante em que Daguerre conseguiu fixaras imagens da camara obscura, neste momento os pintores haviam sido despedidos pelo técnico, Mas a verdadeira vitima da fotografia nao se tornou a pintura de paisagens, mas os portraits miniaturais, 08 retratos pintados em miniatura. As coisas evoluiram tio depressa que ja por volta de 1840 a maioria dos ‘ntimeros pinfores dessas miniaturas tornaram-se fotégrafos pprofissionais, primeiro s6 como atividade lateral, mas logo de modo exclusivo (Benjamin 1991:224). 20 ‘Foveetnegratia Por-volta dos anos 50 do século XIX, os primeiros avan- os tecnoldgicos foram propiciando um aumento do campo de atuacdo dos adeptos da fotografia, na maioria oriundos da pintura. Nesta época destacaram-se os fotdgrafos Roger Fenton, conhecido por suas fotos que registraram a guerra da Criméia, Francis Frith que deixou importantes documen- tos visuais dos restos do antigo império faradnico no Egito ¢ Gustave Le Gray, que, além de membro da Comissiio de Mo- numentos Histéricos da Franca, ficou famoso por suas fotos de paisagens marinhas. (Blume, 1982:36) O pensamento antropologicd existe desde que existe © homem com seus juizos € sas investigagSes: o homem, de uma maneira ou de outra, sempre pensou sobre si bre o outro. Definir-se a si sempre implicou uma defi ¢ classificagao por comparacao, oposicao, ou por diferenca em relagao ao outro. Pode-se relacionar o surgimento da antropologia, enquanto campo de saber institucionalizado, com o surgimento das teorias evolucionistas a respeito do homem ¢ da cultura, Na mesma época do surgimento da fotografia, o pensamento evolucionista é marcante em ter~ mos de consolidacdo da emergente ciéncia antropolégica. Essa nova forma de pensar, a antropologia, surge no con- texto da expansio colonialista européia, da necessidade de compreensio de povos diferentes que passam a ser subju- gados ao povo europe. Surge também como uma forma cientifica de justificar e legitimar as conquistas coloniais, em que os diferentes povos do planeta so pensados como pertencentes a diferentes estigios na linha de evolucdo da espécie humana. Na concepedo de uma evolueao humana de forma linear, colocava-se como o ponto mais evoluido da escala, a sociedad européia, a sociedade daquele que pensa a sociedade do outro. O evolucionismo caracterizou- se por uma visio etnovéntrica do desenvolvimento da hu- manidade, pois tinha como parimetro a ci 2 Luiz Rduardo Robinson Achuti péia. Os padroes de civilidade eram encontrados no estigio econdmico, tipo de religido, forma de propriedade e orga- nizacao familiar europeus. Estes parametros constituiam a “forma desenvolvida” de viver. Os pesquisadores de entao tinham seu interesse de estudo voltado para formas de or- ‘ganizagao sociais nas quais nio encontravam estes padroes “civilizados”, tendo as teorias, muitas vezes, etnocentrica- mente servindo de justificativas de praticas colonialistas, “Reunindo e interpretando fatos de povos do mundo, com base em jutzos de valor, julga-se poder formular e genera- Jizar as leis universais do desenvolvimento da humanida- de” (Goncalves 1992:40). ‘A fotografia nao havia sido ainda inventada e ja fa~ zia-se a analogia entre a camara escura ¢ o globo ocular, como sendo este uma espécie de pequena cdmara escura. Com a invencfio, na mente de alguns, permanece a analo- gia olho-camara que serviria de justificativa para o reco- nhecimento de caracteristicas de objetividade ¢ transpa- réncia na técnica folografica. Esta crenca na fotografia como um olhar transparente incrementa o inicio da fotografia ctnogrifica, nao s6 na forma da fotografia antropométrica, mas também na fotografia de registro de materiais cultu- rais, Segundo Wright, “para uma antropologia profunda- mente enraizada nas idéias positivistas, a fotografia ofere- ceu-se como uma tentadora proposiedo: uma objetiva vi- sualizacao e coleta de fatos, facilitando uma organizacito e andélise sistemiticas, a servico da investigaedo cientitica” (Wright, 19924 Wright afirma que, numa perspectiva positivista, a fotografia serviu para levar os assuntos dos estudos antropoldgicos direto para o trabalho de gabinete, ‘transferindo o local das andlises antropoldgicas desprezando a realidade empirica. Ele cita Malinowski como uma exce~ ‘edo ocasional na forma de utilizar a fotografia da segunda metade do século XIX, ao principio deste século.* 22 Fotoctngrafin No mesmo sentido, Samain constata que a antropolo- gia € a folografia surgem na mesma época, por volta da metade do século pasado. A fotografia, a matriz, das mo= dernas técnicas de reproducio do real, serviu de instru- mento aos Viajantes empenhados em fazer o inventario das diferencas do oufroem relacao ao europeu. “Varias cultir- ras, virias maneiras de viver, o problema central da antro- pologia foi saber lidar; saber explicar as diferencas cultu- ais”. Curiosamente, também Héreules Florence conside~ rado um dos inventores da fotografia no Brasil, antes mes- mo de sua invencao estava empenhado em inventariar a vida de outros povos. Ele foi convidado a integrar em 1828, como desenhista, a expedicao cientifica patrocinada pelo Czar Russo Alexandre I e chefiada pelo naturista Georg Heinrich Von Lansdorff, que partiu por via fluvial de Sa0 Paulo com destino ao Mato Grosso ¢ Rio Amazonas.” 2. Século XX: Fotografia e método de pesquisa antropolbgica No principio do século XX, da-se o esgotamento das explicagdes evolucionistas e comecam a surgir novos teéri- cos com novos propésitos para explicar as diferengas entre as varias culturas humanas. As rupturas com o evolucio- nismo se dao principalmente nos Estados Unidos, Inglater- rae Franca. O trabalho da antropologia deixa de ser traba- tho de gabinete. Passam a ter importancia os elementos que serao buscados na existéncia concreta dos povos estuda- dos. Agora a pretensio nao esta mais na elaboracdo de am- plos e genéricos modelos explicativos generalizaveis a toda humanidade, e sim 0 contrario, se quer buscar existéncias particulares e suas ldgicas de funcionamento. Neste inicio de século, todos os grandes cientistas so- F th 23. Oni ple Iie Eduarco Robinson Actuti ciais estiio empenhados na busca de alternativas tedricas que supram as faltas deixadas pelas idéias evolucionistas Influenciando-se mutuamente, vio compondo as bases, as Posigdes tedricas que originariio a especificidade das cor- rentes do pensamento antropolégico na Inglaterra, Estados Unidos e Franca. Malinowski, com sua obra Os Argonautas do Pacifico Ocidental, inaugura um trabalho profundamen- te baseado no levantamento de dados etnogréficos através de extenso trabalho de campo. O antropdlogo passa a ne- cessitar “ir até ld”. Ja em 1914, Malinowski embarca para um trabalho de campo de quatro anos nas ilhas Trobriand levando consigo pesado equipamento fotogrifico. Samain (1995) revela em sua andlise que a fotografia teria sempre sido usada com importancia no corpo dos trabalhos escri- tos por Malinowski e cada vez em maior mimero. Paralelamente, também no principio deste século, surge, nos Estados Unidos, a chamada fotografia de docu- mentacao, técnica de registrar realidades, a busca de evi- déncias para documentar a realidade social. Intimeros fo- tOgrafos dedicaram-se a nova tarefa, um dos mais conhe- cidos foi Lewis Hine que se dedicou ao registro das condi- ‘goes de vida dos imigrantes e do trabalhador infantil nos EUA.* Educado como socislogo nas universidades de Chicago, Columbia ¢ Nova Torque, comprovou que a camera era um poderoso instrumento para a investigacao, (.) A frase ‘historia fem fotos’ fol aplicada a sua obra, que teve sempre a mesma {mportancia que a obra realizada pelos escritores e nao foi apenas ‘ilustragoes’ delas, Suas revelagdes sobre a exploracao infantil conduziram depois a aplicacao de leis sobre 0 trabalho de menores (Newhal, 1988:235) O proprio governo norte-americano ao criar a FSA, Farm Security Administratrion, se utilizou do trabalho de documentacio fotogréfica para promover um levantamento 24. Potoctnegeatia das condigdes de vida da populaco rural dos Estados Uni dos na época da depresséo de 1930. Da equipe de fotdgra fos da FSA destacaram-se Walker Evans e Dorothea Lange, entre outros. No ano de 1989, passados cem anos do aparecimen- toda fotografia, os antropdlogos Margaret Mead e Gregory Bateson retornam de Bali e Nova Guiné, com vasto materi- al fotogritico e filmogrifico, trabalho que viria a ser refe- réncia importante até os dias de hoje para aqueles que tra- tam da chamada antropologia visual. Eles realizaram um trabalho de folego que durow dois anos proporcionando 25 mil fotografias e 6 mil metros de filme 16mm, além de recolher depoimentos ¢ artefatos no intuito de “retratar”, registrar, a cultura do grupo estudado. O mérito do traba- Iho de Mead e Bateson nao reside nas conclusdes a que chegaram na época, um trabalho que gerou certa polémi- ¢a, criticado pelo fato de que teriam produzido um traba- tho carregado de subjetividade. Conforme Jacknis (1987), foi um trabalho ousado para a época. Nao foram os primei- ros a levar cameras para campo, mas talvez tenham sido os primeiros a utilizar os recursos visuais como principal fer- ramenta no trabalho de levantamento de dados etnografi- cos. Se foi um trabalho carregado de subjetividade e se isto chega a ser um problema, a verdade é que tecnicamen- te foi muito bem feito. © material que recolheram é um material que pode servir e de fato serve como dado para analises de outros pesquisadores. Mead e Bateson nos dei- xaram a idéia de que os materiais visuais, fotografias por exemplo, antes de serem cdpias da realidade, sao “textos”, afirmagdes ¢ interpretacdes sobre o real. Anos mais tarde, Mead escreveu que a antropologia teria a responsabilidade de registrar, deixar gravados cos- fumes que estavam em extingao. A autora defendia a an- 25 uti Eduardo Robinson Acthuti tropologia visual e comentava o fato de a antropologia es- tar constituida como uma ciéncia por demais dependente da palavra. (cf. Hockings, 1975) ‘Contemporaneamente os antropdlogos e demais au- tores que tomam a etnografia como objeto de seus estudos, ao produzirem seus trabathos, produzem também novos questionamentos a respeito do fazer etnografico. Vivemos um tempo de intensa circulagdo de idéias devido ao alto grau de avangos tecnolégicos, sobretudo no campo das co- municagdes. As técnicas de obtengao e exposiedo dos dados colhidos no “campo”, campo esse que pode estar muito proximo do espago ocupado pelo pesquisador, devern ser repensadas sob pena de os antropdlogos perclerem a audi- do € a vox ou, como nos diz Geertz, perderem a condigao de fazer o que fizeram as geragdes anteriores de antrop6- Jogos: “atimentar 0 sentimento de como a vida pode decor- rer” (Geertz, 1989:61). © autor quer repensar o papel dos que “olham” e daqueles que sao objetos do “olhar”. Ele esta preocupado com o papel que o antropdlogo devera cumprir do ponto de vista ético, pratico e cientifico. Geertz, atento aum mun- do que se globaliza, pensa que, antes de ser o formulador de grandes teorias mundiais, o antropélogo deve contri- buir para proporcionar o dislogo entre culturas.® Segun- do ele, o que se faz necessirio é ampliar a possibilidade de um didlogo inteligente entre pessoas que diferem conside- savelmente entre si em interesses, perspectivas e poder; ¢ no entanto estio limitadas em um mundo onde, envolvidas em intermindvel conexdo, fica cada vez mais dificil sair uma do caminho da outra, (Geertz, 1989:63). Mais precisamente, o que se esti a questionar é a for- ma de fazer © trabalho de campo e também a forma de come e para quem apresenti-lo. Neste mesmo sentido, Canclini (1993) investiga os ele- 26 Fotoctnegratia mentos que levaram a colocar em suspeicao as etnografias ditas realistas. Para 0 autor, a crise comegow a partir da publi do Ditirio Intimo de Malinowski que 0 revela como um “polaco vagabundo (expresso que Canclini toma emprestada de Geertz), que aspira ser nomeado Sir na In- glaterra...” (1993:26). Partindo das discrepancias existen- {es entre a obra de Malinowski ¢ 0 didrio intimo do autor, Canclini passa a perguntar até que pontoo trabalho de cam- po ndo existiria apenas para justificar um discurso antro- polégico subjetivo. Ele assinala que via de regra uma vi vencia cadtica de trabalho de campo é apresentada poste- riormente como uma histéria coerente, bem construida que poderia se aproximar de um texto ficcional. E que “em Iu- gar do autor monolégico, autoritério, deve - se buscar a polifonia, a autoria dispersa” (Canclini 1993:29). Canelini, usando como exemplo o trabalho de Barley, propée que se refagam as ligacdes entre o trabalho de campo ¢ 0 discurso antropolégico a fim de se chegar & construgao de um texto que revele a vivéncia real da obtengio dos da- dos. Ele comenta o livro El Antropdlogo Inocentesobre o pais Dowayona Africa, que Barley (1989) dedicou ao seu jeep: ivro oferece uma minuciosa informagao sobre as priticas ¢ cerimonias, a Linguagem e as comidas, a construcio das chiogas, 08 nexos entre a chuva, a circuncisto ea fertlidade ‘vegetal no grupo escothido. Porém todo o tempo Barley incorpora 4 exposiciio os processos de coleta, ruplura com o sentido ‘comum, consteucdo do objeto e prova,icluindo as incertezast.) (Canclini 1993:50), Canclini afirma nao descartar o trabalho de campo, mas que é preciso ter em mente que os dados nao estio no ‘campo esperando pelo etndgrafo, “sio resultado de pro- cessos socials, institucionaise discursivos de construcao ..)” (Canclini 1993:32). 27 Lie dare Robinson Actua Inspirado em Geertz poder-se-ia dizer que, se é ver- dade que o trabalho do antropélogo é um trabalho de in- ferpretagao de culturas alheias, nada melhor, para realizar este trabalho, do que langar mao de estratégias as mais va- rriadas ¢ criativas possiveis, no sentido de se poder chegar, por exemplo, a uma hierarquia dos tipos de “piscadelas” de determinada sociedade. Quanto mais ricas forem as es- tratégias de abordagem, mais interessante sera a forma de apresentar as interpretacdes. Se vivemos em um mundo visual, no qual somos bom- bardeados por icones novos a cada dia, se as diferentes cul- turas impdem umas as outras verdadeiras “guerras” visu- ais, ¢ se as guerras verdadeiras passam a ter o visual de meras brincadeiras - como “olhar” somente para as pala- vras? A antropologia tem que instaurar o treino da comu- nicagio visual; do contrario, esse mundo da visualidade ferminara por invadir e ofuscar 0 mundo dos que estive- rem apenas entre linhas e letras, 3. Fotojornalismo © fotojornalismo surge imediatamente apés a inven- fo da fotografia, tendo sofrido limitagdes iniciais devido as dificuldades de impressdo das imagens. Foi na Alema- nha que o fotojornalismo tomou um grande impulso atra~ ves das revistas ilustradas. Com a ascensio de Hitler ao poder em 1938, 0 fotojornalismo alemdo sofre uma violenta que- da com o fechamento de intimeros érgiios de imprensa e 0 exilio para os Estados Unidos de varios profissionais."° Foi entao nos EUA que criou-se uma das mais importantes re- vistas ilustradas, a Life, que fez escola, impos um estilo ¢ formou uma equipe de renomacdos fotojomnalistas. Dentre 0s principais nomes da Life, pode-se destacar Eugene Smi- the Alfred Fisenstaedt. 28 Poloetnogratia Apesar de grande popularidade, a atividade fotojor- a tem pelo menos duas grande limitagoes que a im- pedem de proporcionar ao profissional uma vivéncia mais efetiva e um mergulho mais profundo para além da reali- dade aparente, Refiro-me as limitagdes de tempo e limita~ ees de ordem ideolbgicas. Os fotojornalistas trabalham com tempo muito escasso, stuas fotos so de consumo didirio. A grande maioria das fotografias ndo resiste na meméria das pessoas por mais de vinte e quatro horas, sio registros via de regra, descartiveis, O fotojornalista que pretender uma autonomia total, uma abordagem pessoal, dificilmente en- contrard onde publicar suas fotos. Ele esbarrara sempre nas intengdes e interesses dos donos dos jornais e revistas, ou dos seus procuradores, os editores. E recorrente no meio fotojornalistico encontrar fotdgrafos que descrevem e La- mentam as folografias que nunca irfio publicar. Ja fotografia documenta é feita com mais profundi- dade que 0 folojornalismo, feita com mais tempo. Hé projetos de documentacao aos quais foldgrafos dedicam toda sua vida, © autor tem tempo de se aprofundar no estudo daquilo que pretende documentar: Muilas vezes 0 folografo trabalha com aidein de estar realizando um documento que ajudara a con lara historia de seu tempo. A fotografia documental tem sido divulgada na forma de livro e de exposig6es itinerantes. Na década de trinta, ao mesmo tempo que os realiza- dores cinematograficos comecavam a usar o termo docu- mental, alguns fotégrafos passaram a se auto-intitular da mesma forma. Bram pessoas que usavam este termo no sen- tido de se diferenciarem, descomprometendo-se cori os contetidos puramente estéticos. Ou ainda, para se diferen- ciarem de uma fotografia classificada como artistica ou de- sinteressada das questdes sociais, ao mesmo tempo que se desvinculavam também do fotojornatismo diario das em- presas de comunicacdo. 29 Iasi Bstuarcdo Robinson Achuti 4, Documentary Photography Adlocumentacaoé um enfoque €nio uma técnica; é uma afirmacdo e nao uma negacao... A alitude de documentar niio & © rechago de elementos plisticos, que devem seguir sendo critérios essenciais em toda a obra, Somente di-se a esses elementos seu limite ¢ sua diregio. Assim, a composicio se transforma numa enfase, e a precisio da linha, 0 foco, 0 filtro, atmosfera - todos esses componentes que estao includes na sonthada penumbra da ‘qualidadc?-, sio postos a servigo de um finn falar, com tanta eloquéncia quanto for possivel, daquilo que deve ser dito na linguagem das imagens." (Stryker, in Newhal 1983:245) O surgimento da fotografia yeio determinar uma afor- tunada possibilidade de transito e troca de imagens entre os homens. Todos a receberam como uma poriadora natu- val da realidade: O “lapis da natureza” para Talbot ou o “espelho com meméria” segundo Daguérre. A fotografia veio substituir 0 trabalho de documentagao da paisagem e dos tipos humanos. Trabalho antes realizado pelos artistas que eram acompanhantes dos botinicos, bidlogos, fisicos, antropélogos e religiosos. Eles compunham as expedigoes cientificas, tendo por oficio fazer o registro visual de tipos humans, fauna e flora, acidentes geograficos, fendmenos fisicos, etc. O empenho dos diferentes fotografos, assim como a importancia que os governos atribuiram 4 fotografia e a pritica de “documentagao”, determinaram o carter e profundidade das documentagoes realizadas da metade do século passado até nossos dias. Todo o amplo espectro fotografico pode ser entendi- do como um trabalho de documentagao da realidade nos seus mais diversos aspectos. No entanto, a Documentary Photography é 0 termo consagrado a um tipo especifico de documentagéo amadurecido em uma determinada época e 30 Retoctnasratia num lugar especifico. “Documentary Photography” refe~ re-se a uma folografia que busca a documentacao social, fem como seu universo de investigagio os homens, suas es~ pecificidades culturais, suas condigdes de moradia e de tra~ balho, suas praticas religiosas e suas formas de lazer, numa determinada época. Ou ainda, as perdas de tragos de iden- tidade ocorridos através do tempo como é 0 caso das popu- ages incigenas. Foi nos Estados Unidos que esta fotografia de cunho eminentemente social feve largo campo, assumin- do através de suas imagens realistas, um cunho de dentin cia politica. Deve-se ressaltar que os Estados Unidos se cons tituiram num fértil terreno para o desenvolvimento da fo- tografia em geral, nao s6 da fotografia de documentacdo. Logo que o daguerrestipo foi divulgado surgi nos EUA cam- po para seu amplo desenvolvimento. Também importan- te o registro de que prosperaram as iniciativas quanto a consolidagio de uma fotografia americana de inspiracao pictérica (fotgrafos que buscaram imitar a pintura), em decorréncia dos esforgos de Alfred Stieglitz via revista Ca- mera Work e Galeria 291."* Prosperou ainda a chamada “straight photography”, uma fotografia objetiva, “realis- ta”, que se impos como uma estética propria, independen- tedas tradigoes da pintura académica, que consagrou mun- dialmente alguns “amigos da natureza”, mestres na docu~ mentagdo das paisagens naturais, tais como Edward Wes- on e Ansel Adams. Na origem da fotografia de documentacao social, ter mo que pasar a ser usado por volta dos anos trinta, en- contra-se a figura de Jacob August Riis, um dinamarqués nascido no ano de 1849 que emigrou para os Estados Uni- dos aos 21 anos de idade. Depois de passar privagiio vagan- do pelas ruas de Nova lorque, consegue emprego como jor- nalista. E, em pouco tempo, em 1877, devido a vivencia anterior, projeta-se como repérter policial do New York Tri- 3 Luiz Bduardo Robinson Achuti buine. Ele passa a se dedicar a dentincia das condigdes de vida dos imigrantes favelados nova-iorquinos, com especi- alacento as questdes da moradia miseravel. Riis consagrou- se como escritor que Iutava por reformas sociais, além de ficar igualmente conhecido como importante fotégrato. Por volta de 1888, a pritica fologrifica comega a fi- car facilitada com a diminuigao do tamanho das cameras e ainvengao do filme em rolo Kodak pelo empresario George Eastman. Nesta época, Riis langa-se como um detetive a do- cumentar visualmente as populacoes que viviam em con~ digdes desumanas que estavam a exigir reformas sociais, Suas fotografias de dentincia fizeram-no famoso. No ano de 1890, Jacob Riis lanca um livro intitulado How the Other Half Lives, 0 qual alcanga grande impacto.(Riis 1971) Roosevelt, primeiro como governador de Nova lor- que e depois como presidente dos Estados Unidos, empre- endeu reformas sociais a partir do impacto do trabalho re~ alizado por Riis. Ele chegou a ser convidado a participar do governo americano. Recusou-se, alegando ser um homem muito ocupado para entrar na politica. Foi tamanha a in- fluéncia do trabalho de Riis que chega a ser considerado 0 precursor da utilizagao da linguagem fotogrifica na abor- dagem dos aspectos sociais da vida do “outro”. Ele buscou, na forma de dentincia social, provocar estranhamento da middle-america, das elites ¢ das instituigdes a0 mostrar em texto € foto “How The Other Half Lives”. Influenciado pela importancia do trabalho de Jacobs Riis, passa a dedicar-se a fotografia aquele que viria a ser tum dos mais destacados fotografos documentaristas soci- ais, Lewis Hine. Socidlogo formado pela Universidade de Chicago, vai para Nova lorque em 1901 lecionar na Schoo! of the Ethical Cultural Society. Hine, que tinha sua atencao voltada para as causas sociais, abandona a tarefa de ensi- nat para dedicar-se em tempo integral & fotografia. Enquan- 82. Potcetnegratia to scus contemporaneos, membros da “Photo-Secession” , lutam para abrir espaco no meio attistico, Lewis Hine utili- zav-se do que chamava fotografia social com o propésito de documentar as condigdes de vida das classes trabalhadoras americanas. Hine trabalhava na diregao de inventariar os problemas sociais dos trabathadores da sociedade de seu pais. Suas primeiras fotos datam do ano de 1903, quando ele folografa imigrantes da Ellis Island. Fotografou também as populacdes faveladas de Washington para o semandrio reformista The Survey. Porém seu trabalho mais importan- tee mais conhecido foi a documentagao que realizou sobre os trabathadores infantis nas diversas induistrias por todo 0 pais. Em 1906, é convidado a participar da equipe de foto- grafos da National Child Labor Committee. Empenhou-se no registro das evidéncias do descumprimento das leis tra~ balhistas nos Estados Unidos, principalmente aquelas que diziam respeito ao trabalho infantil. Em 1920, Hine buscou retratar o lado positivo do trabalho adulto destacando a habilidade e a coragem do trabalhador americano de entio. Em 1982, lanca um livro chamado Men at work - Photographic Studies of Modern ‘Men and Machines,* onde dé divulgacdo a documentacao que fez. da construcdo do mais alto edificio do mundo na época, o Empire State Building. Seu trabalho era de qualidade superior ao trabalho realizado por Riis. Hine nao se limitava a fazer dentincias, suas fotografias revelam um evoluido dominio da técnica folografica posta a servigo de uma objetividade absoluta no intento de registrar minuciosamente o ambiente e as con- digdes de trabalho de seus folografados. Ele utilizava a fo- tografia como parte de um processo educacional e de um projeto sociolégico maior. Fazia um trabalho de pesquisa e observagao participante; muitas vezes, suas fotografias ser- viam de pretexto para entrevistar, registrar depoimentos 33 Lia Eduardo Robinson Achutt dos seus folografados. Encarava com importancia esses de- poimentos individuais que ia recolhendo em meio ao fazer fotografico. Seu método de trabalho acabou por influenci~ ar 0 estilo de um dos maiores esforcos de documentagao social ja realizados, o trabalho fotogrfico empreendido pela FSA, Farm Security Administration do Departamento de Agricultura do governo dos Estados Unidos. Modernamente Hine ocupa um lugar importante na historia da fotografia. Suas imagens do mundo dos trabalhadores, que trazem 0 passado de uma mancira ‘espantosa, sio bem sucedidas na conjugacdo harmoniiosa entre a tendéncia estética e 0 objetivo social. Flas demonsiram que isso ¢ possivel quando a emogdo, a percepcao ¢ a opiniao, transformam-sc em uma expressio plistica persuasiva (Rosenblum 1992: Introdugao). Em fungao da grande depressio, o presidente Frank- lin D. Roosevelt incorporou, no ano de 1935, a Resettle- ment Administration como parte de sua politica de New Deal, que era um projeto reformista que visava minorar os problemas das populagdes que viviam no meio rural do Estados Unidos, através de empréstimos subsidiados a pe- quenos proprictarios, da organizagio de aldeias rurais e do auxilio aos trabalhadores imigrantes, Em 1987, a RA passa para o Departamento de Agricultura transformando-se na FSA - “Farm Security Administration”, O sub-secretirio de agricultura do governo america- no, Rexford Tugwell, decidiu fazer uma pesquisa ilustrada sobre as direas rurais do pais e pars isso convidou Roy Stryker para dirigir o projeto. Inicialmente Stryker formou um gru- po de cinco fotdgrafos, Arthur Rothstein - quimico gradua- do em Columbia e iniciante na fotografia cientifica, Carl My- dans - repérler-fologrifico que ji havia trabalhado para a RA; Walker Evans - que viria ser um dos maiores artistas da historia da fotografia, Ben Shan - que era pintor e ilustrador, 34 Focetnagratia ¢ Dorothea Lange - uma documentarista californiana. Ao Jongo dos anos, outros fol6grafos viriam juntar-se ao nticleo inicial dos documentaristas da FSA, entre eles Jolin Collier Jr, atualmente conhecido como um dos principais representan- tes da antropologia visual americana (Jeffrey: 1989). No to- tal participaram onze fotdgrafos que, ao longo de sete anos, produziram através de 270 mil fotografias um documento em plano geral do meio rural americana feito da soma de abordagens e estilos individuais, No ano de 1942, os recur- ‘sos da FSA foram incorporados ao Office of War Informati- ‘011 0 acervo folognifico doado a Biblioteca do Congresso ‘em Washington. Depois da Segunda Guerra, a “Documen- tary Photography” perde forga enquanto movimento, mas seus principios passam a influenciar o fotojornalismo (Newhall:1983) e certamente a pritica da antropologia vi- sual nos Estados Unidos até os dias de hoje. Uma recente iniciativa de fomento da fotografia de documentacao foi a criagiio da The Mother Jones Interna- tional Fund For Documentary Photography, wma fundacao ndo governamental criada também nos Estados Unidos, no ano de 1991. Esta fundagio foi criada com o objetivo de financiar projetos de documentagao fotogrifica, através da colaboragdo financeira de fotégrafos e instituigdes. Cria- ram um fundo em délar que € dividido como premiagao entre os cinco melhores projetos fotogrificos do ano em ambito mundial. ‘Um dos organizadorese mantenedores da Mother,Jo- nes & 0 fotdgrafo Sebastifio Salgado, brasileiro, ha varios anos radicado em Paris, sécio da Agéncia Magnum. Sal- gado é hoje uma das maiores unanimidades mundiais na folografia de documentagao. Ha trés anos langou o livro, Workers - an archaeology of the industrial age," que & resultado da documentagao que fez nos tiltimos anos, uma espécie de “testamento da habilidade humana de sobrevi- 35 In Etuarco Robinson Achuti ver? a condigdes desumanas de trabalho. '* Como ele mes- mo diz, no folheto de sua exposigao no Royal Festival Hall Galleries em Londres em dezembro de 1994: © mundo esti mudando em todo o lugar, entrando na ‘nova revolugao ps-industrial. A classe trabalhadora tradicional foi tao importante na minha formagao ¢ de minha geracito que este livro ¢ exposigao so uma homenagem a eles, bem como ‘um retrato do trabalho que realizam - um meio meciinico de trabalho que esta rapidamente sendo superado. Eu consiantemente eslou tentando provocar o debate, a discussio, sobre as classes trabalhadoras, e especialmente sobre esses ‘rabalhadores dos paises do hemisfério sul!” Sessenla e trés anos separam aquelas que talvez se- jam as principais obras de fotografia de documentacio, obras que tomaram o formato de livros que de certa forma abrem e fecham 0 século XX no que concerne a fotografia sobre trabalho ¢ classes trabalhadoras. Um deles - Men at work - feito por um socidlogo, Hine, preacupade com os aspectos positives de um capitalismo industrial crescente; ‘outro - Workers, de Sebastiao Salgado, um economista que se coloca como um arquedlogo preocupado com o registro dos tipos de trabalho em extingao nesta virada de milénio, Salgado foi buscar o trabathador que ficou “fossilizado” sem atingir sequer 0 padrao dos trabalhadores registrados vi- sualmente por Hine. 5. Antropologia visual: Fotoetnografia Nioexistem fotografias qu nd seam portadora de um conteiida humano e eotsequentemente, que nio sejam antropoligcas sua maneir, Toda fotografia eum olhae sobre © mundo, levado pela inenciondlidade de uma pessoa, que destna ua mensagems vaivel am outro olhar, procurand dar significagi a este mundo (Samnain, 1998-7). 36 Potoetnogratia Uma sintese possivel do que vem sendo tratado até aqui, isto ¢, a técnica fotografica e o seu potencial de regis- tro sécio-cultural, é a antropologia visual. Um bom traba- Iho de documentagao fotogrifica contém em si caracteris ticas do bom fotojornalismo, no que tange a agilidade e do- minio da técnica visando a comunicagao visual. Um traba- tho de documentacio fotogrifica pressupde 0 conhecimento do universo a ser investigado e demanda 0 respeito pelas determinantes culturais do “outro” Para viabilizar um tra- allo de antropologia visual com a utilizagio da fotogra- fia, 6 necessdrio que o antropdlogo domine a especificida- de da linguagem fotognifica e que o fotografo tenha o subs- trato do olhar do antropdlogo, com suas interrogacSes © formas especificas de olhar o outro.” ‘Como possibilidade de crescimento intelectual daque- Je que ventha a realizar a documentagao fotografica de rea~ lidades s6cio-culturais, esto os pressupostos tedricos e as maneiras de olhar consagrados pela antropologia. A possi- bilidade de se fazer a sintese da tradi¢ao e empenho carac- teristicos da Documentary Photography, com 0 approach da antropologia, nos leva ao que verdadeiramente consti tui a chamada antropologia visual.*' No sentido proposto por Cardoso (1988), 0 olhar antropolégico é como o olhar de um viajante: olhar que nio descansa sobre a paisagem continua de tum espaco inteiramente articulado, mas se enreda nos intersticios de extensdes descontinuas, desconcertadas pelo estranhamento (Cardoso 1988:549). Samain, ao fazer um balanco das possibilidades para que a “antropologia consiga tornar-se visual” (@ luz.do que ‘yem discutindo com alguns antropélogos do Departamen- to de Multimeios da Universidade Estadual de Campinas ~ Unicamp), afirma que depois de se responder o que se pro- 37 Ii Etuarco Robinson Achutt cura de especifico ou singular no trabatho com as imagens, deve-se saber aliar duas qualidades; “1 qualidade s{gnica, esiética e poética da imagem fologrifica” com a qualidade “conteudistica” especitica do trabalho antropologico. Dois niveis de abordagem da realidade que venham a contribuir com suas especialidades como uma forma de melhor saber vere saber dizer para melhor “fazer pensar através de ima- gens?. A conjugagao de abordagens diferentes por que “fe- mos que reconhecer que nunca diremos com imagens 0 que procuramos mostrar, e ilustrar através de palavras”, (Samain, 1993:08). ‘Tanto o trabalho de fazer etnografia, quanto o de fa- zer documentacao, nos termos aqui propostos, sao traba- thos que exigem empenho, método e crialividade a fim de registrar, retratar, relatar a cultura do “outro” para o gru- po onde nos inserimos. Encontraremos a sintese na forma da antropologia visual, quando, como diria Loyola (1987:53), a antropologia informar 0 olhar do fotdgrafo e a fologratia iluminar o olhar do antropolgo. As técnicas visuais aplicadas ao trabalho antropold: gicoe, aqui mais especificamente A fotografia, tiveram des- de 0 inicio aplicabilidade no sentido de auxiliar na coleta dos dads, facilitar a entrada no campo, promover 0 de- senicadeamento de dislogos, ¢ ilustrar um texto dissertati- vo. 2 Proponho que se busque a importancia da lingua- _gem folografica no espectro do trabalho antropolégico, no que essa linguagem tem a somar, a narrar, de uma forma especial, um dado especial: a cultura, A construcao de nar- rativas através da imagem fotogratica vem, ao ser articula- da com o texto verbal ¢ a legitimidade que este alcancou, contribuir no sentido de enriquecer e agregar, além de ou- tras formas narrativas como a literatura ou a poesia, com- plexidade aos esforcos de interpretagao de universos soci: 38 Potoctnagrafia ais cada vez mais densos e complexos, onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um elemento da propria sociabilidade. Parece significativa a idéia dos colegas do Nticleo de Antropologia Visual da UFRGS, quando afirmam que a an- tropologia visual nao se trata de uma disciplina indepen- dente, mas “sim da mesma ¢ velha antropologia de sempre, porém apresentada sobre esse outro continente que ¢ a co- municagao audiovisual. Nao é uma Antropologia da Ima- gem, mas uma antropolegia em imagens” (Rodolpho et. al., 1995:169). Uma antropolgia em imagens poderd ser feita mediante o dominio das técnicas de construcao de um vi- deo etnogriifico, de um filme etnografico ou de um traba~ Iho foloetnografico. Fuluramente estaremos fazendo a “ve~ Iha” e tradicional antropologia também através de uma lin- guagem multimidia. ‘Meu empenho converge para a construgio disto que estou propondo nomear de fotoetnografia, a partir do tra- balho com a imagem fixa, a imagem fotogréfica. Nao abor- do aqui as outras duas possibilidades importantes de tra~ balho com imagens em movimento como é 0 caso do cine~ ma e do video. 39 I O OLHAR: DINAMICA E DIVERSIDADE 1. Aprendendo a olhar Diigo niio conhecia © mar. O pai, Santiago Kovadloft, Jeyou-o para que descobrisse 0 mar. Viajaram para o Sul Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando, Quando © menino e © pai entim alcangaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, © mar estava na frente de seus olhos. foi tanta a imensidao do mar, tanto seu fulgor, ue 0 menino ficou mudo de beleza E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, -gaguejando, pedi ao pai: “Me ajuda aolhar. E, Galeano (Livro dos Abragos, 1991) Seres ocidentais ditos modernos, a maioria de nés te~ ‘mos como a primeira imagem de nossas vidas um quarto de hospital de cabega para baixo, povoado por pessoas com olhares complacentes, todos também de cabega para bai- xo" ‘Depois que desistem de nos segurar pelas pernas, co- megamos uma drdua tarefa de adaptacao. Nosso corpo len- tamente tem que aprender uma série de atividades, as mais. elementares, para as quais nfo nascemos preparados. AO contrario dos animais, contamos muito pouco com meca~ ite Eduardo Robinson Achutt nismos instintivos para sobrevivermos. Nossa tinica forma de sobrevivéncia viabiliza-se mediante 0 convivio social através do qual, aprendendo a cultura de nosso grupo, aprendemos a pensar, 4 usar nosso corpo, a escutar, a sen- tir cheiros, a tatear, a olhar e classificar ¢ identificar estas experiéncias a partir de um repert6rio compartilhado com nosso grupo. Enfim, aprendemos a simbolizar e decodifi- car simbolos estabelecidos. £ essa capacidade de simboli zacdo e de comunicagao de significados que opera a dife- renciagéo homem-naturez: © homem 36 ¢ homem na medida em que esti entre ‘outros homens ¢ revestido dos simbolos representativos de stua razdo de ser. Nus ¢ iméveis, tanto 0 grande sacerdote como o vagabundo nao passam de simples caddveres de mamiferce ‘superiores num tempo e num espaco desttuido de sgnificagao, pois deixaram de ser 0 suporte de um sistema simbolicament, humane. (Leroi-Gourhan:1983) Interessa-me discutir aqui algumas assertivas a res- Peito da construgio da nossa capacidade de olhar que, por sua vez, estd diretamente relacionada com os atos de sim- bolizacio na perspectiva da criacao e leitura de imagens. © olhar é aprendido, é treinado de forma articulada com ou- tros olhares. © olhar nao é individual, cle é determinado social e conjunturalmente. £ em fungio do tipo de olhar de uma dada época que sao determinados os tipos de imagens € de que forma as pessoas se relacionam com elas. Plato, procurando pensar a realidade, tratou do as- sunto abordando de forma alegérica a situacao dos homens ‘comuns que deveriam ser libertados pela filosofia. Na sua alegoria, ele fala de homens que estariam acorrentados, des- deo nascimento, no fundo de uma caverna, de olhos dire- Cionados para a parede oposta a entrada, sem a possibili- dade de se voltarem ¢ olhar para tras. Por toda a largura da 42 Poetnagratia entrada da caverna existiria um muro, da altura de um ho- memte, depois do muro, uma grande fogueira. Entre o muro ea fogueira passariam outros homens carregando imagens, estétuas, figuras de animais, utensilios etc. A luz da foguei- ra projetaria na parede do fundo da caverna as sombras das formas que estivessem acima da altura do muro. Os acorrentados ouviriam ecos das palaveas que seriam pro- nunciadas pelos passantes, As imagens sombreadas e 0s eos seriam para os prisioneiros a verdadeira realidade. Qual- quer possibilidade de virem a olhar para tras os deixaria at6nitos com a nova realidade: 03 objetos dos quais s6 co- nheciam as sombras. Mas, se tivessem a possibilidade de othar dos homens vivos no lado de fora da caverna, ficari- am fascinados ao saberem que as sombras que viam cram apenas sombras de figuras, sombras de cépias da vida real. Os que estivessem todo o tempo acorrentados zombariam daqueles que Ihes viessem contar aquilo que viam nao era a legitima realidade, Se alguém [entasse libertd-los para 0 verdadeito mundo, poderia por em ameaga as suas vidas. A dindmica da vida por vezes nos coloca na situagao de acorrentados que puderam dar uma olhada para a en- trada da caverna, Como cientistas, os antropdlogos esto permanentemente a questionar quais imagens dio forma 4s sombras e quem cria e carrega essas imagens, ou seja, 0 que esta por tras da aparéncia imediata."* O oficio da an- tropologia é procurar entrar em “cavernas alheias” ¢ Ii buscar, nas formas aparentemente evidentes do comporla- mento do “outro”, as razdes profundas determinantes da diferenca. E através do dominio de diferentes cédigos sim- olicos que o antropdlogo poder melhor conhecer e inter- pretar 0 seu proprio, a fim de prosseguir na tarefa de com- preender como um dado grupo social, numa dada época, vé e simboliza o mundo. $6 consegue estranhar 0 outro aquele que primeiro sabe de si. 43 Jui Eduardo Robinson Aci ‘Como a vor. ¢ a musica, e contrariamente ao texto, a imagem nos trabalha o corpo. O olhar apalpa ou acaricia, devora ‘ou insinua-se, foca de leve ou penetra, (,.) Ver é abreviar. Interromper a légica linear das palavras, esapar dos corredores do sintatico e abarcar, de uma s6 vez, toca a sua vida atiterior, (.) Divina pechincha ter a possibilidade de justapor sem hhierarquizar, sem saltar linhas nem voltar paginas (Debray, 1994:112). Neste trabalho intitulado “Vidas e Morte de Imagem”, Debray procura articular uma ampla reflexao que ele defi- ne como “uma histéria do olhar no ocidente”. Para poder ensar nosso tempo, que diz, sero tempo da visualidade, ele vai encontrar trés momentos na historia do visivel que cor- responderiam a éreés idades do ofhar: 0 olhar magico, o olhar eslético e othar econdmico. ‘Do mesmo modo que um Livro de Horas do século XII, enorme, rao «pest nfo si como um i de blo no stoulo XX, assim também um retdbulo em uma igreja gatica ‘exigia um olhar diferente daquele que vé um eartaz de cinema, (Debray, 1994:43) ___Caautor filia-se idéia da imagem como o duplo, como simulacro, imitagao ou representagio do real. Ele nos diz, que as primeiras imagens teriam surgido cumprindo di- versas fungdes ritualisticas como a de reverenciar 0 morto. Um duplo daquele que se vai. Esta primeira fase, segundo Debray, a fase do olhar magico tem o idolo como tipo de imagem. Os homens desta fase inicial atribuiam poderes ds imagens, delas faziam-se aliados como tinica forma de en- contrat foras pars enfrentar um mundo ainda descone- cido. Quando os avancos técnicos ¢ cientificos conferem a0 homem a possibilidade de maior apreensao do mundo, Passamos para a fase do olhar estético correspondente a imagem como arte. “A arte chega imagem quando a ma- 44 Potoctnesratia gia se retira”. (Debray, 1994:34) * Esta fase intermedidria teria surgido no século XV com o aparecimento de cole: des particulares dos humanistas ¢ terminado no século XIX com a criagdo do museu piblico. A terceira idade, 0 olhar econdmico, tem como tipo de imagem o que o autor chama de viswa/, “omega logo que adquirimos poder suficiente sobre o espago, o tempo & os corpos para deixar de temer sua transcendéncia” (1994:37). A invencao da fotografia inaugura uma longa transigao das artes pldsticas para as artes visuais. O apare- ‘cimento do video marca a consolidagao da era das imagens como visualidades, sendo a fase da computagio 0 seu coro- amento. Alijada de todo o referente (pelo menos, em principio), a imagem auto-referente dos compuladores permite visitar um pprédio que ainda nao est construido, andar em wm carro que 86 existe no papel, pilofar um avido falso em uma verdadeira ceabine, por exemplo, para repetir no solo uma missio de bombardeamento, Eis o visual, Enfim, tal como em si mesmo. (Debray, 1994:277) 2. O Olhar eo surgimento da imagem fotogréfica O século XIX caracteriza-se pelas grandes transfor- magoes tecnoldgicas. Em Paris, 1839, publicamente di- vulgada a invencao da fotografia. Adorada e odiacla, consi- derada arte por uns e mera técnica por outros, a fotografia yiria determinar mudangas nos habitos e na maneira das pessoas olharem o mundo e a si proprias. Ela veio influen- ciar as mais diversas areas do conhecimento ¢ o comporta- mento humano. Com o surgimento da fotografia, um tipo especial de imagem veio a ser democratizada: 0 retrato. Ele era até en- 48 Ie Eduardo Robinson Achuti {ao privilégio da aristocracia e dos burgueses mais ricos que podiam pagar pinturas a dleo. O daguerredtipo - re- {rato em original tinico feito como uma jéia em placa de cobre - ¢ logo depois o negativo e a possibilidade de cépia em papel vieram viabilizar a massificagao do hibito de possuir a prdpria imagem. O retrato fotogrifico surge na época em que se acen- tua 0 processo de individualizacao, sobretudo na Europa. Passam a existir novos tipos de preocupagdes com o corpo € vestimentas como forma de se produzir a imagem ideal que se quer perpetuar. (Corbin,1992) Anova técnica, que s6 fora ameaca aos pintores me- diocres, ao contririo de ter posto em risco a pintura, como pensavam alguns, veio em auxilio desta, ensinando novos Angulos para o olhar do pintor. Um bom exemplo ¢ o caso do tipo de visio propiciada pelas lentes grande angulares. Os estudos do movimento dos animais e dos humans, fei- {0s pelo fotdgrafo Eadweard James Muybridge, com sua in- venedo de folografias em seqiiéncia, também logo desper- taram o interesse dos pintores naturalistas da época (Stelzer:1981). A fotografia, além disso, democratizou a possibilida- de de se conhecer os clissicos das artes plasticas. As gran- des telas, antes reservadas aos que tinham o privilégio de freqiientar muscus, puderam chegar até maos menos po- derosas através de reproduedes em posters, livros, jornais ou revistas. Atualmente existe o costume de estampar ca- misetas com os mais variados motives, desde reprodugdes de pinturas classicas até folografias, formando uma espé- cle de imagem ambulante, uma forma de empunhar ou vestir bandeiras, dizeres, mensagens, enfim, signos. Interessado na eficécia simbélica das imagens, De- bbray diz que uma fotografia de um ancestral colocada na sala de uma casa impoe uma necessidade de reveréncia 46. Potoetnasratia muito grande, como se a pessoa ainda existisse. A imagem passa de fato a preencher o lugar daquele que se foi. Para uma imagem alcancar eficécia simbolica, nao basta que seja vista, ela tem que ser interpretada por um sujeito que com- partilhe dos cédigos simbdlicos carregados pela imagem.27 A alengio dos antropélogos tém-se fixado mais sobre 0 psicanalista ou ao mago do que sobre os pintores, os cartazislas ‘ou oscineastas.(.) Nenhuma representacao visual éeficaz nela por si mesma, 0 principio de eficacia nao deve ser procurado no olho humiano, simples captador de raios luminosos, mas 110 cérebro que esté por detris O olhar nfo é a retina, (Debeay, 1994:1 10). * Alé a invengao da televisio, mais precisamente sua transmissao via satelite, na auséncia da coisa em si, era atra~ vés da fotografia que se podia olhar o outro, sua cultura, suas virtudes e suas guerras. Nos Estados Unidos, a foto -grafia utilizada como técnica de documentagio social re- volucionou o jornalismo, levou A modificacao de leis, 4 ado- Gao de novas politicas governamentais e despertou o inle- resse de alguns poucos antropélogos. ? A fotografia, que s6 ingenuamente pode ser entendi- da como um meio puramente técnico de se fazer registros visuais, instaurou uma outra forma de olhar, 0 olhar foto~ anifico e sua especificidade. As fotografias de cunho social, Por exemplo, implicam a alteridade. O interesse fotografi ©0 est vollado para o outro que é “distante” de nés, esteja ele Jonge ou perto. O olhar fotografico é uma das formas do olhar etnografico; assim como o antropélogo, 0 fotogra- fio busca uma espécie de revelucdoda vida do outro - apro- veitando uma metifora de Ondina Fachel Leal. Ela soube bem responder aos ingénuos, que acreditam ser a fologra- fia uma cépia da realidade, dizendo que uma fotografia é uma realidade revelada: Laie dare Robinson Achat Folografar é aprender um olhar sobre o outro, este olhar € reificado em uma imagem, imagem esta que tenha 0 poder de caplar olhares de outros outros, Que seria do fotdgrato se no ccontemplassem suias imagens? Folegrafando, somes um olhar que busca olhares,O olhar capaz de seduzir outro olharé sempre perturbador (Leal: 1993). 3.0 Olhar e o surgimento da imagem virtual Estamos vivendo um periodo de novas répidas trans- formagdes na capacidade técnica de criar, manipular e transmitir imagens. O advento da computacao grafica esta nos colocando diante de mais um processo de reeducagao do olhar. As imagens passam a ser produto da colagem de outras imagens, compondo espécies de textos visuais que obedecem mais a subjetividade da autoria, do que a objeti- vidade concernente a realidade. ‘Também as experiéncias com imagens virtuais nos colocam na situagao de iniciantes de uma nova era da vi sualidade. Em um shopping de Porto Alegre tive a oportu- nidade de observar uma situacao exemplar de reeducacao do olhar. Uma loja que vende posters organizava uma ex- posicao que aghutinou um grande mimero de pessoas, O pelo da exposigao era para a venda de posters em ferceira dimensao. Junto aos posters, placas com as instrugdes por escrito: “Fique a mais ou menos 1 metro do poster, procure olhar concentradamente para a superficie do vidro da mol- dura, relaxe e espere”. De fato ndo foi facil. Tentci algumas vvezes até conseguir. Os posters, feitos por computador com imagens pontilhadas, apresentam figuras razoavelmente de- sinteressantes. Depois de um minuto ou dois, partes do pos~ ter adquirem profundidade a ponto de nao mais interessar a imagem da superficie plana, mas sim a virtual figura que surge como um grande volume “saltando” em meio ao pos- Fotoctnogratia ter. Lembro que foi muito curioso nesta experiéncia ob- servar a afligao das criancas no colo dos pais e o empenho quase desesperado destes na tentativa de ensinar aquilo que nem bem haviam aprendido. Retomando as trés idades do olhar propostas por De- bray (1994), poderiamos aprofundar a reflexiio sobre a fer- ceira idade, caracterizada pelo olhar econdmico e que cor- responde a imagem como visualidade. Para Debray esta ¢ ‘uma fase da banalizacio das imagens. Nao temos mais ima gens artisticas, s6 visualidades. Um grande show audiovi- sual no universo da multimidia, do CD-ROM. Ele chega a sugerir que em determinadas situagdes, se pode olhar me- hor fechando os olhos. ** Para finalizar, no sentido de ofhar um pouco essas experiéncias atuais, gostaria de propor uma imagem que nao ¢ alegérica, mas observivel empiricamente. Dentre os ‘modernos jogos informatizados que sao oferecidos ao pii- blico como lazer, existem os jogos de interagéo com ima- gens virtuais.** A pessoa, apds passar no eaixa para fazer seu pagamento, entra numa “arena” eletronica, equipa-se com dculos especiais, recebe uma poderosa arma e passa a travar uma guerra virtual. Quem por ventura venha ob- servar' de fora essa cena achara muito estranho uma pes- soa, que esta s6, agir como se estivesse acomparthada e ain- da mais sendo ameagada, Na alegoria de Plato, a relagtio ‘era com sombras; aqui a interacao se di com invisibilida- des, No tempo dos povos pré-histéricos, idade do olhar ‘magico, o mundo estava superpoyoado por seres sobrena- turais, temidos e adorados. Na idacle do othar estética, os homens apreciavam a arte e eam guiados por poucos deu- ses, Logo vieram alguns intelectuais que anunciaram a morte de Deus, $és, entramos na idade do olhar econémico bus- cando repovoar nosso mundo, criando seres virtuais que 49.

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