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Peter Pál Pelbart

VIDA CAPITAL
Ensaios de biopolítica
Parte I

A VIDA (EM) COMUM


19

PODER SOBRE A VIDA, POTÊNCIAS DA VIDA

O Imperador da China resolveu construir uma


muralha que contornasse a
imensidão do Império e o protegesse contra a invasão dos
nômades vindos do Norte.
Tal construção mobilizou a população inteira por anos a fio.
Conta Kafka que ela foi
empreendida por partes: um bloco de pedra era erguido aqui,
outro ali, mais um
acolá, e não necessariamente eles se encontravam, de modo que
entre um e outro
pedaço construído em regiões desérticas abriam-se grandes brechas, lacunas
quilométriCas.1 0 resultado foi uma Muralha descontínua cuja lógica
ninguém
entendia, já que ela não protegia de nada nem de ninguém. Talvez apenas os
nômades,
na sua circulação errática pelas fronteiras do Império, tinham alguma
noção do
conjunto da obra. No entanto, todos supunham que a construção obedecesse a
um
plano rigoroso elaborado pelo Comando Supremo, mas ninguém sabia quem
dele
fazia parte e quais seus verdadeiros desígnios. Enquanto isso, um sapateiro residente
em Pequim relatou que já havia nômades acampados na praça central, a céu aberto,
diante do Palácio Imperial, e que.seu número aumentava a cada dia.2 0 próprio
imperador apareceu uma vez na janela para espiar a agitação que eles provocavam.
O
Império mobiliza todas suas forças na construção da Muralha contra os nómades,
mas eles já estão instalados no coração da capital enquanto o Imperador todo poderoso
é um prisioneiro em seu próprio palácio.
Kafka dá poucas indicações sobre os nômades. Eles têm bocas escancaradas,
dentes afiados, comem carne crua junto a seus cavalos, falam como gralhas, reviram
os olhos e afiam constantemente suas facas. Não parecem ter a intenção de tomar de
assalto o palácio imperial. Eles desconhecem os costumes locais e imprimem à capital
em que se infiltraram sua esquisitice. Ignoram as leis do Império, parecem ter sua
própria lei, que ninguém entende. É uma lei-esquiza, dizem Deleuze-Guattari, 3 talvez

l) KAFKA. Franz. "Durante a construçaoda Muralha da China", in Narrativas do espólio, Modesto


Carone (trad.). Sio Paulo, Cia. das Letras, 2002
2) KAFKA. Franz. "Uma folha antiga" (texto complementarao "Durante a construç50da Muralha da
China"). in Um médico rural, ModestoCarone(trad.). Sio Paulo, Cia. das Letras. 1999.
3) DELEUZE, Gilles e GUAITARI, Félix. Kafka— Por uma literatura menor.Rio de Janeiro.Imago.
1977.
Poder sobre a vida. potências da vida 21
Vida capital
20
está presente e ausente
com o esquizo. O esquizo demonstraram cabalmente a falência da lógica da fortaleza. O Império
do nomade te escapa, sempre está
ao mesmo tempo completamente. Ou melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização
pela semelhança está na tua frente e economia, da cultura, da
ele cidade,da generalizada.Ele mesmo dependeda circulaçäode fluxos de toda ordem a alta
simultaneamente, da família,da
conversa, tempo o desmancha, dificilmente
dentroe fora,da um território mas ao mesmo velocidade, fluxos de capital, de informação, de imagem, de bens, mesmo e sobretudo
linguagem.ocupa recusa, não aceita a dialética da oposição,
que de pessoas.4 Claro que nem tudo circula da mesma maneira por toda parte, nem todos
direto com aquilo por isso ele desliza, escorrega,
entra em confronto antemão ao campo do adversário, extraem dessa circulação os mesmos benefícios. O novo capitalismo em rede,s que
que sabe submetida
de corrói o próprio campo e assim resiste às enaltece as conexöes, a movência, a fluidez, produz novas formas de exploraçño e de
subverte-lhe o sentido,
recusao jogo ou esquizo, é o desterrritorializado por exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova angústia — a do
O nómade, a exemplo do
injunçöesdominantes. fugir. Ele faz da própria desterritorializaçäo desligamento. O que Castel chamou de desfiliaçäo, e Rifkin de desconexäo. 6 A ameaça
aquele que foge e faz tudo
excelência, de ser desengatado — sabemos que a maioria se encontra nessa condição, de
um território subjetivo. desplugamento efetivo da rede. O problema se agrava quando o direito de acesso às
subjetivo tão fugidio? Mas como
lidar com um território redes, como o diz Rifkin (e agora trata-se não só da rede no sentido estrito, tecnológico
Comopode o Império mais que um Imperador tenha
precisamente com isso? Por e informático, mas das redes de vida num sentido amplo) migra do âmbito social
pode ele deixar de lidar pode ficar indiferente a essa dimensão para o âmbito comercial. Em outras palavras: se antes a pertinência às redes de
construir, Império algum
Muralhas concretas a pena de esfacelar-se — o
assenta primordialmente, sob sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos dependia de
subjetiva sobrea qual ele se fato, como poderia o Império
condições de hoje.De critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade
que é ainda mais verdadeironas
capturasse o desejo de milhões de pessoas? Como conseguiria e trabalho, religião, sexo, cada vez mais esse acesso é mediado por pedágios comerciais,
atualmanter-se caso não
plugasse o sonho das multidões à sua megamáquina impagáveis para uma grande maioria.' O que se vê então é uma expropriação das
ele mobilizar tanta gente caso não
vendesse a todos a promessa de uma vida redes de vida da maioria da população pelo capital, por meio de mecanismos cuja
planetária?Como se expandiriase não
vendido o tempo todo, senão isto: maneiras inventividade e perversão parecem ilimitadas.
invejável, segura, feliz? Afinal, o que nos é
de morar e de vestir? O fato é que
de ver e de sentir,de pensar e de perceber,
consumimos,mais do que bens,formas de vida — e mesmo quando nos referimos Mas näo deveríamos deixar-nos embalar por um determinismo tão apocalíptico
apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é crescente. quanto complacente. Parafraseando Benjamin, seria preciso escovaresse presente a
Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que de reversão yital que se anunciam
acessamosconstantemente,absorvemosmaneiras de viver, sentidos de vida, nesse contexto. Pois nada do que foi evocado acima pode ser imposto unilateralmente
consumimostoneladasde subjetividade. Chame-se como se quiser isto que nos rodeia, de cima para baixo, já que essa subjetividade vampirizada, essas redes de sentido
capitalismocultural,economiaimaterial, sociedade de espetáculo, era da biopolítica, expropriadas, esses territórios de existência comercializados, essas formas de vida
o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o visadas não constituem uma massa inerte e passiva à mercê do capital, mas um
capital e a subjetividade. O capital, como o disse Jameson, por meio da ascensão da conjunto vivo de estratégias. pergyntar-se de que maneira,
mídia e da indústriade propaganda,teria penetrado e colonizado um enclave até no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas
entäoaparentemente
inviolável,o Inconsciente.Mas esse diagnóstico é hoje modalidades de se agregar, de trabalhar,de criar sentido, de inventar dispositivos de
insuficiente. Ele agora não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, capitalismo conexionista, que funciona na
mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele base de projetos em rede, como se viabilizam outras redes que não as comandadas
as explora e amplia, produzindo
uma plasticidadesubjetivasem precedentes,que pelo capital, redes autônomas, que eventualmente cruzam, se descolam, infletem ou
ao mesmo tempo lhe escapa por
todos os lados. rivalizam com as redes dominantes? Que possibilidade restam, nessa conjunçäo de

4) Cf. NEGRIsAntonio e HARDT. Michael. Império. Rio de Janeiro, 2000. Ver o


O IMPÉRIO NOMADIZADO suas teses no texto "lmr£rio e Biopotência".na Parte III, p. 81, deste livro.
5) Cf. BOLTANSKI. I uc e CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris. Gallinwd.
Ver o resumo de suas teses no texto "Capitalismo rizomático", na Parte III. p. 96. livro.
O Impériocontemporâneo, 6) RIFKIN. Jeremy. La fin du travail. Paris. La Découverte. 1997; e CASIEL. As
diferentemente do Império da questão social. Petrópolis, Vozes. 1998.
já não funciona na base chinês do conto de Kaf\a,
de muralhas e 7) RIFKIN. J. A era do acesso. Sio Paulo. Makron Books, 1998.
trincheiras, e os últimos acontecimentos
23
Vida capital Poder sobre a vida, potêncis da vida
22
territórios existenciais alternativos
maciça. de produzir
e exclusao recursos dispõe uma pessoa ou precisaríamos de instrumentos muito esquisitos para avaliar a capacidxie dos chamados
plugagem global capital? De que
mediados pelo doméstico, de cadenciar "excluídos" ou "desfiliados" ou "desconectados" de construírem territórios subjetivœ
àquelesofertados
ou de ocupar o espaço
um modo próprio coletiva, de produzir bens e a partir das próprias linhas de escape a que säo impelidos, ou dos territórios de
um coletivo para memória
de mobilizar a miséria a que foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são capazes
comunitário, por esferas consideradas invisíveis, de
o tempo fazê-los circular,
de transitar de transformar seus fiapos de vida em momentos de desespero coletivo.
conhecimento e vizinhança e a solidariedade, de cuidar da
corporeidade, de gerir a
reinventara com o prazer ou a
dor?8
velhice, de lidar restam de criar laço,
infância ou da impõe-se a pergunta: que possibilidades
A FORÇA-INVENÇÄODOS CÉREBROS EM REDE
Mais radicalmente, na contramão da serialização e das
território existencial e subjetivo
tecer um economia material e imaterial atual?
de a cada minuto pela Utilizando de maneira original textos de Gabriel Tarde, Maurizio Lazzarato
reterritorializaçöespropostas crescente dos ativos intangíveis tais como
debruçou-se recentemente sobre um feixe de questöes correlatas, 10das quais reteríamos
crescente e violentadaesfera
afetividade, e a manipulação a seguinte: Que capacidade social de produzir o novo está disseminada por toda
inteligência, criatividade, emergentes, focos de enunciaçäo
modos de subjetivaçäo parte, sem estar essa capacidadesubordinadaaos ditames do capital, sem ser
subjetiva? Como detectar grupais que•escapam aos parâmetros
existenciais, inteligências proveniente dele nem depender de sua valorizaçao? A idéia de Tarde relida por
coletiva, territórios ainda suficiente
capital e que não ganharam visibilidade
Lazzarato, e que eu retomo nesse contexto de maneira excessivamente suscinta. é
consensuais,às capturas do
no repertório de nossas
cidades? que todos produzem constantemente, mesmo aqueles que nio estio vinculados ao
no Brasil eram visíveis configurações comunitárias diversas, ora processo produtivo. Produzir o novoéinyentarnovosdesejose novas
Há alguns anos
Movimento dos Sem-Terra, ora às redes de tráfico, ou Todos e qualquerum inventanv@ê
mais ligadas à Igreja, ora ao
e estéticos diversos, como o hip-hop, nos costumes, no lazer — novos desejos e
provenientesde movimentosreivindicatórios
proporcionado pelas gangues de periferia,9 novas crenças, novas associaçöes e novas formas de cooperaçao, A invenção não é
ou modalidadesde "inclusão às avessas"
graus de distância ou enlace diversos. Eu não prerrogativados_grandesgênios.nemmonopólio da indústria ou da ciênciê, ela é a
mantendocom as redes hegemônicas
saberia dizer o que está nascendo hoje nos centros urbanos brasileiros, muito menos potência do homemßomum. Cada variaçäo, por minúscula que seja. ao propagar-œ
nas demais cidades do planeta. Mas há um fenômeno que me intriga, entre outros. e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invençöes e
No contextode um capitalismo cultural, que expropria e revende modos de vida, não novas imitaçöes, novas associaçöes e novas formas de cooperaçao. Nessa economia
haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados excluídos, em usar a própria afetiva,a subjetividade$läoé etérea, mas força viva, quantidxk
vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de autovalorizaçä02 Quando social, potência
um grupo de presidiários compöe e grava sua música, o que eles mostram e vendem Nesse contexto, as forças vivas presentes por toda parte na rede social deixam de
não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua ser apenas reservas passivas à mercê de um capital insaciável, e passam a ser
singularidade,sua percepção,sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de consideradas elas mesmas um capital, ensejando uma comunialidade de
"morar" na prisão, de gesticular, de protestar, de rebelar-se — em suma, sua vida. autovalorizaçäo. Em vez de serem apenas objeto de uma vampirizaçäo por parte do
Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é Império, sio positividade imanente e expansiva que o Império se esforça em
disso que fizeram um vetor de existencializaçäo, é essa vida que eles capitalizaram modular, controlar. A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência
e
que assim se autovalorizoue produziuvalor. É claro que coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invençäo de novos
num regime de entropia
culturalessa "mercadoria"interessa, pela sua desejos e novas crenças, de novas associaçöes e novas formas de cooperaçäo, é caia
estranheza, aspereza, visceralidade,
aindaque facilmentetambémela possa vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Uma economia imaterial
ser transformada em mero exotismo étnico
de consumodescartável.Mas a partir desse
exemplo extremo e ambíguo, eu que produz sobretudo informaçäo, imagens, serviços, näo pode basear-se na fŒça
perguntaria,também à luz dos
nómades de Kafka a quem me referi no início, se não física, no trabalho mecânico, na automatismo burro, na solidäo
Säo requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginaçäo, sua
8) GUATTARI.F. "Restauraçao
da cidade subjetiva".
9) DIÓGENES,Glória. in Caosmose. Rio de Janeiro. Editora 34, 1992.
Cartografias da cultura IO) LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l'invention. Paris,
hop. Sio Paulo-FortaIeza, e da violência. Gangues,
Secretariada Cultura e galeras e o movimento hip- 2002.
do Desporto, 1998.
24 Vidacapta/
Poder sobre a vida, potências da vida 25
dimensao subjetiva e extra-econOmica
— toda uma
sua afetividade e privado, no máximo artístico. vida deixa de ser definida apenas a
sua conectividade, exclusivamente pessoal partir dos processos biológicos que afetam a
domínio trabalhador que é posta a trabalhar, populaçao. Vida inclui a sinergia coletiva,
antes relegada ao agora é a alma do a cooperaçao social e subjetiva no contexto
Negri, Por isso, quando trabalhamos nossa de produçao material e imaterial
como o diz Toni lhe serve de suporte. contemporânea; o intelecto geral. Yidasignifica
apenas liberdade suficiente para a alma, assim inteligência,
mais o corpo, que corpo, pois n50 há desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser
um reduzida, assim, a sua definiçäo biológica
alma se cansa como corpo. Em todo caso, que a alma trabalhe para tornar-se cada vez mais uma
salário suficiente para o virtualidade molecular da multidão, energia
como nio há há pouco, que é a vitalidade cognitiva e a-organica, corpo-sem-órgaos. O bios
termos que mencionávamos é redefinidointensivamente, no interior de um caldo
significa, nos O que se requer de cada um é sua força de semiótico e maquínico,
solicitada e posta a trabalhar. molecular e coletivo, afetivo e económico.
afetiva que é se torna tendencialmente, na
dos cérebros em rede Aquém da divisão corpo/mente,
invençao,e aforça.invençao valor. É como se as máquinas, os meios de individual/coletivo, humano/inumano. a vida
ao mesmo tempo se pulveriza e se
principalfonte do
economiaatual, a cabeça dos trabalhadores e virtualmente hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza
e se totaliza. E ao descolar-se de
para dentro da
produçåotivessem migrado sua ciência, sua imaginação,
sua acepção predominantemente biológica,
ganha uma amplitude inesperada e
Agora sua inteligência, isto
passa a ser redefinida como poder de afetar e ser
passassem a pertencer-lhes. valor. A associação e cooperaçao entre afetado, na mais pura herança
passarama ser fonte de espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada
é, sua própria vida
prescinde, no limite, da mediação do capitalista, tio em Deleuze, do sentido do termo
uma pluralidadede cérebros forjado por Foucault: biopolítica não mais como o
poder sobre a vida, mas como at
decisiva num regime fordista. potência da vida.
todos e qualquer um, e não apenas os
Podemos retomar nosso leitmotiv: A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida
como um fato, natural,
relação assalariada, detêm a força-invençao, cada cérebro.
trabalhadoresinseridos numa biológico, como zoé, ou como diz Agarnben, como vida nua,
como sobrevida. 12É o
da rede pode tornar-se vetor de valorização e de
corpo é fonte de valor, cada parte que vemos operando na manipulaçüo genética, mas no limite também
no modo como
tona com cada vez maior clareza é a biopotência
autovalorizaçäo. Assim, o que vem à säo tratados os prisioneiros da AI Qaeda em Guantánamo,
ou os adolescentes infratores
multidão. É esse corpo vital coletivo
do coletivo, a riqueza biopolítica da nas instituiçöes de "reeducaçäo" em São Paulo. Mas os atos de auto-imolaçao
décadas que, nos seus poderes de
reconfiguradopela economiaimaterial das últimas espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliöes, diante das
tropas
afetare de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha de choque e das carnaras de televisao, parecem ser a tentativa de reversao a partir
as possibilidadesde uma democracia biopolítica. desse "mínimo" que lhes resta, o corpo nu," e apontam numa outra direçao. Muito
cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder investia — a vida —
era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta
BIOPOTÊNCIA DA MULTIDÃO inevitável. Mas talvez ele não tenha levado essa intuição até as últimas consequências.
Coube a Deleuze explicitar que ao poder sobre a vida deveria responder o poder da
O termo "biopolítica"foi forjado por Foucault para designar uma das vida, a potência "polític;/' da vida na medida em queeWfazvariar suas formas e,
modalidades de exercício do poder sobre a vida, vigentes desde o século 18. 11Centrada acrescentaria de enunciaçao. De maneira mais
prioritariamente nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, a biopolítica ampla da—vidwo equivale
tem por objetoa população,isto é, uma massa global afetada por processos de precisamenteð biopovênciada multidio, tal como descrita acima.
conjunto.Biopolíticadesignapois essa entrada do corpo e da vida, bem como de Ainda uma palavra sobre a multidão. Tradicionalmente o termo é usado de
seusmecanismos,no domíniodos cálculosexplícitos do poder, fazendo do poder- maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar
saber um agente de transformação da vida humana. e dominar. Já o povo é concebido como um corpo público animado por uma vontade
Um grupo de teóricos,
majoritariamenteitalianos,propôs uma pequena única, Como o diz Paolo Virno, i4 e nas condicöes contemporaneos isso é ainda mais
inversão, não só semântica, mas
tambémconceituale política. Com ela, visível, a multicnoepluralxgengrífugavrefratária à unidade política.
a biopolítica deixa de ser prioritariamente
perspectivado poder e de sua pactos com o soberanoenåœdelegtuueIeAJireitos, seja ele um mulá um gowboyt
racionalidaderefletida tendo por objeto passivo
corpo da populaçãoe suas
condiçöes de reprodução, sua vida. A própria noção de
12) Para um resumo das teses dc a respeito, ver texto "Vida nua", na Parte II. p. 60. deste livro.
li) Paraum resumodas 13) VICENTIN, Maria Cristina. A vida em rebeliåo: histórias de Jovens em conflito com a leL Tese de
tesesde Foucaulta respeito. doutorado, inédito.
ver o texto "Biopolítica". na Parte II, p. 55, deste
14) VIRNO, Paolo. "Multitudes ret principe d'individuation". in Multitudes, 7. Paris. 2001,
27
Vda captal sobre a vda, poténcás da
26

desinvestimento ativo dos "excluídos"? Em que medida a virtualidade da multidão


O que é esse Uno do qual extrapola o sistema produtivoatual e suas vampirizações,os modelos de
povo tende ao Uno.
deriva do Uno, o chamou de subjetivaçäo que ele engendrou (por exemplo. o do trabalhador assalariado), os
o que Simondon realidade pré.
aindadiz: Para ir rápido, é cálculos do poder que ele suscita, a captura imperial e suas linhas de comando?
deriva?
a multid50 pré-socráticos
por intelecto geral. Chamemo-lo de Além de recusar o sistema de valores e de exploração hegemónicas, como cria
que os
individual (e Marx designou
virtualidade,que e imaterial, corpo-sem-órgäos que precede ela suas próprias possibilidades irredutíveis, mesmo quando isso é feito a céu
esse magma material aberto, nem que o Imperador esteja por perto, à espreita para capitalizar aquilo
biopolítico, ontológica comum.
a potência e acéfala, no seu_agenciamento.esqyizo, que dele escapa?
cadaindividuaçäo configuração acentrada
na sua lembra que na massa
A rrnltidäo, da massa. Canetti
ser vista como ooposto homogênea entre seus membros Não sei o quanto as poucas páginas de Kafka sobre a Muralha da China renetem
tambémpode nela reina a igualdade
singularidades, ser absoluta (nada deve a paranóia do Império contemporâneo, com suas estratégias frustras para proteger-se
abolidas todas as cabeça), a densidade deve
equivale a cada outra intervalo em seu meio), e por dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aurœntar no
(cada deve abrir um
interpor entre seus membros,nada sobrepõe a todas as direçöes coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente e num momento em
se que se
nela predomina uma direçäo única, que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítimo mesmo em terra firme. Näo sei o
último, da massa. 15
que seriam a morte quanto os nómades de Kafka, na sua indiferença ostensiva em relação ao Império,
individuaise privadas, contrário da multidäo, heterogênea, dispersá,
a massa é todo o podem ajudar a pensar a lógica da multidão. Seja como for, em Kafka uma ironia
contínua,unidirecional massa e a lógica esquizo da
complexa„multidirecionav A economia paranóica da fina vai solapando a solene consistência do Império. Há algo no funcionamento do
opostas, mesmo que elas se encavalem, como o notaram Império que é puro disfuncionamento. Quando nas Conversas com Kaßa Janoush
multidãosäo diametralmente
da relaçäo entre massa e malta. De todo modo, as diz ao escritor checo que vivemos num mundo destruído, este responde: "Näo vivemos
Deleuzee Guattaria propósito
sempre souberam usar e dosar a energia da massa e num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como
religiöes, bem como os Estados,
situaçäo inteiramente distinta em relação à multidão, no equipamento de um veleiro destroçado". Rachaduras e estalos que Kafka dá a ver,
seus.fegos, mas encontram-se em
uma outra subjetividade. e que a situação contemporânea escancara. Talvez o desafio atual seja intensificar
que testemunha de um outro desejo e de
esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão. Afinal opoder.çomg_
diz Negri inspirado
PODER E POTÊNCIA poder, há sempre a pptência. há sempre a Insubordinação. E
trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este é
Talvez Foucaultcontinuetendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais
contraa dominação(de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploraçäo exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer
(de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, poder de açäo e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte." 16
isto é, de submissäo da subjetividade, que Talvez a explosividade desse
momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três dimensöes.
Volta a perguntainsistente: Como pensar as subjeti vidades em revolta? Como
mapearo seqUestrosocial da vitalidade na desmesurada extensão do Império e
na sua penetraçäoilimitada, tendo em vista
as modalidades de controle cada vez
mais sofisticadas a que ele recorre,
sobretudo quando ele se realavanca na base
do terrorismogeneralizado e da
militarizaçao do psiquismo mundial? Mas como
cartografarigualmenteas estratégias
de reativaçäo vital, de constituição de si,
individual e coletiva, de
cooperação e autovalorizaçäo das forças sociais avessas
ao circuito formalda
produção?Como acompanhar as linhas de êxodo e
15)CANETTI.Elias.
Massa e poder.
Paulo, Cia. das Letras, 16) NEGRI. A. Etílio. Sio Paulo, Iluminuras.2001.
1995.
A comunidadedos sem comunidade 29
28
DOS SEM COMUNIDADE
A COMUNIDADE
Ora, hoje, tanto a percepçao do seqUestro do comum como a revelaçüo do caráter
espectral desse comum transcendentalizado se dá em condiçöes muito específicas. A
para Jeanne•Marie Gagnebin saber, precisamente num momento em que o comum, e nio a sua imagem, está apto
a aparecer na sua máximaforça de de maneira imanente,dado o novo
contexto produtivo e biopolítico atual. Trocando em miúdos: diferentemente de
algumas décadas atrás, em que o comumera definido mas também vivido como
aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidadese se sobrepunha a elas;
seja como espaço público ou como política, hoje o comum é o espaço produtivo por
excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história
pois no seu núcleo propriamente económico e biopolítico, a prevalência do "comum".
O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista,p capitalismo cognitivo, todos
eles sio fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas
ao que nos é mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência,
por vários pensadores
é evocada com insistência os saberes, a cognição, a memória, a imaginaçao, e por conseguinte a inventividade
Uma constataçäotrivial Giorgio Agamben, Paolo Virno, Jean-Luc comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a
contemporâneosentre eles Toni Negri,
Blanchot.A saber, de que vivemos hoje uma crise do capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar
Nancy,ou mesmoMaurice contorno comum, a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de
antes pareciamgarantir aos homens um
"comum".As formasque sua pregnancia e entraram um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns chamam de rizomático, l pelo
consistência ao laço social, perderam
e asseguravamalguma pública, até os modos de associaçao menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem
em colapso,desde a esfera dita
definitivamente
ideológicos, partidários, sindicais. poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser
consagrados,comunitários. nacionais, uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente auto-referido?
encenaçao política, os
Perambulamos em meio a espectrosdo comum: a mídia, a
mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, Pôr em comu o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos,
consensoseconômicosconsagrados,
a militarizaçao da existência para defender fazer prolifera o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a
a invocaçåocivilizatóriacalcada no pânico,
precisamente, para defender uma forma- inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que
a "vida" supostamente"comum", ou, mais
"vida" ou esta "forma-de- de fato acontece,já que ela se faz acompanharpela apropriação do comum, pela
devida dita "comum". No entanto, sabemos bem que esta
expropriaçäo do comum, pela privatização do comum, pela vampirizaçao do comum
vida"nio é realmente"comum",quequandocompartilhamos esses consensos, essas
empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituiçöes. com finalidades
guerras,esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação. ou
que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versöes mais rizomáticas.
mesmoesta linguagemquefala em nossonome. somos vítimas ou cúmplices de um
seqUestro.
Se de fato há hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou
uma manipulaçaodo comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, SENSORIALIDADE ALARGADA
é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e
totalizadas,transcendentalizadas,
paradoxalmente.tais figuraçöesdo "comum" começam a aparecer finalmente naquilo Se a linguagem, que desde Heráclito era considerada o bem mais comum, tornou-
que sio, puro espectro. Num outro contexto, Deleuze lembra que a partir sobretudo se hoje o cerne da própria produçäo, é preciso dizer que 0 comum contemporâneo é
da segunda guerra mundial, os clichés começaram a aparecer naquilo que são: meros mais amplo do que a mera linguagem. Dado o contexto da sensorialidade alargada,
clichés,os clichêsda relação,os clichés do amor, os clichés do povo, os clichês da da circulação ininterrupta de fluxos, da sinergia coletiva, da pluralidade afetiva e da
políticaou da revoluçåo,os clichésdaquilo que nos liga ao mundo — e é quando eles subjetividade coletiva daí resultante, o comum passa hoje pelo bios social propriamente
assim,esvaziadosdc sua pregnância,se revelaram como clichês, isto é, imagens dito, pelo agenciamento vital, material e imaterial, biofísico e semiótico, que constitui
prontas,pré-fabricadas, hoje o núcleo da produçao econOmicamas também da produção de vida comum. Ou
esquemasreconhecíveis.meros decalques do empírico,
somenteentåo pôdeo pensamento
liberar-se deles para encontrar aquilo que é "real",
na sua força de afetaçao,com I) Cf. "Capitalismorizomólico",na Parte III, p. 96, destc livro.
conseq0ênciasestéticas e políticas a determinar.
30
A comunidadedos sem comunidade 31
misto de inteligência
multidão, no seu coletiva, de
potência de vida da de capacidade de invençüo de novos
seja. é a de laço, desejos sequeira chamá-lo, Corpo-sem-6rgåosvMecanosfera,Vlano de consistência, Plano
de produção
novas associaçöese novas formas de cooperação, como diz de imanência, a linhagem espinosista aqui é muito clara, e inteiramente assumida.
crenças,de é cada vez mais a fonte primordial
e na de Tarde,2que de Num pequeno texto de Deleuze sobre Espinosa, de 1978, essa conexio fica
Maunzio Lazzarato isso mesmo este comum é o visado pelas capturas ainda mais clara. Ali a substanciaou a Naturezaúnica são concebidascomo um
capitalismo. Por
riqueza próprio mas é este comum
igualmente que os extrapola,
fugindo- plano comum de imanência, onde estao todos os corpos, todas as almas, todos os
capitalísticos,
esequestros os poros. indivíduos. Ao explicar este plano, Deleuze insistenum paradoxo: ele já é plenamente
e todos
todos os lados
seríamos tentadosa redefinir o comum a partir desse contexto dado, e no entanto deve ser construído, para que se viva de uma maneira espinosista.
Sendoassim, de Eis o argumento.O que é um corpo, ou um indivíduo, ou um ser vivo, senão
Parafraseando PaoloVimo, seria o caso postular o comum mais como
promessa, mais como um reservatório compartilhado, uma composição de velocidades e lentidöes sobre um plano de imanência? Ora, a
feito
premissado quecomo que como uma unidade atual compartida, cada corpo assim definido corresponde um poder de afetar e ser afetado, de modo
do
multiplicidadee singularidade, mais
que podemos definir um indivíduo, seja ele animal ou homem, pelos afectos de que
já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura.
umavirtualidade
um reservatório de singularidades em variação contínua,
ele é capaz. Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemäo de que afectos é
Diríamosqueo comumé capaz, não sabemos ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de
um corpo-sem-órgäos,um ilimitado (apeiron) apto às
umamatériaa-orgånica, experimentação,mas também de prudência.É essa a interpretaçãoetológica de
individuaçöesas mais diversas. Deleuze: a Ética seria um estudo das composiçöes,da composição entre relaçöes, da
como um tal fundo virtual, como
Comose vê, quandose concebeo comum composição entre poderes. A questão é saber se as relaçöes podem compor-se para
como
socialpré-individual,
vitalidade pura heterogeneidade não totalizável, ele nada
formar uma nova relação mais "estendida", ou se os poderes podem se compor de
temquever comas figuras midiáticas, políticas, imperiais que pretendem hipostasiá- modo a constituir um poder mais intenso, uma potência mais "intensa". Trata-se
ou expropriá-lo.Daí porque a resistência hoje passa por um êxodo
Io,representá-lo então, diz Deleuze, das "sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem
emrelaçãoa essasinstânciasque transcendentalizam o comum, e sobretudo pela para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode tomar um outro
imanentedascomposiçõese recomposições que o perfazem.
experirrmtaçäo
no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relaçöes e o mundo próprios?"'
A questão, de todas a mais candente, poderia ser traduzida do seguinte modo:
de
que maneira se dá a passagem do comum à comunidade,à luz dessa teoria das
ÉTICA E ETOLOGIA
composiçöes e da dupla ótica que ela implica? E em que medida essa comunidade
responde a um só tempo ao comum e às singularidades que o infletem?
Talvezo livroemque Deleuzemelhor tenha percorrido essas duas vias, a da
recusadasinstanciastranscendentalizadas
e a da experimentação desse comum
imanente,juntamentecom Guattari, seja Capitalismo
e esquizofrenia. Contra Édipo NOSTALGIAS DA COMUNIDADE
ou a forma-Estado,contrao plano
de organização transcendente, sua unidade e suas
capturas,os autoresinvocamsimplesmente
o plano de consistência, o plano de Antes de me lançar a algumas indicaçöes de Deleuze a respeito
composiçäo, o planode imanência.Num do tema, cabe
as conexöesvariáveis,as plano de composição, trata-se de acompanhar um desvio para situar a questäo da comunidade num
relações de velocidade e lentidão, contexto mais amplo. Jean-Luc
impalpável a matéria anónima e Nancy, em seu Lmcommunautédésœuvrée,4 lembra que
dissolvendo formase pessoas,estratos e segundo a tradição teórica
extraindopartículase afetos. sujeitos, liberando movimentos, ocidental, lá onde há sociedade, perdeu-se a comunidade.
É um plano de proliferação, Quem diz sociedade já diz
contágio.Numplanode de povoamento e de perda ou degradação de uma intimidade comunitária,
de tal maneira que a comunidade
ele reúneelementos composiçãoo que está em jogo é a consistência com a qual é aquilo que a sociedade destruiu. É assim
heterogêneos, que teria nascido o solitário, aquele que
ininteligívelde Mil disparatados.Como diz a conclusão praticamente no interior da sociedade desejaria ser cidadão de
platôs,o que se uma comunidade livre e soberana, 9
acontecimentos, as transformaçöes inscreve num plano de composiçäœsao os precisamente aquela comunidade que a sociedade
arruinou. Rousseau, por exemplo,
incorporaisvas essencias nômades, as variaçöes
corpo sem órgãos. seja como 3) DELEUZE,Gilles.Spinoza.philosophie
2)LAZZARATO.
Maurizio. 4) NANCY. Jean-Luc. La communauté pratique. Paris. Minuit. 1981,p. 164.
de l'invention. désœuvrée.Paris, Christian Bougois, 1986, que
Paris,Les empecheurs de penser en rond. 2001. acompanho de
capu A comunidadedos sem comunidade
32 33
comunidade,que tinha a "consciência de uma ruptura
pensador da sobre a ruína de uma comunidade„, a comunidade,
o primeiro Ele foi seguido pelos românticos, por Hegel... longe de ser o que a sociedade
dessa
(talvezirreparável) pensada sob fundo de (uma) comunidade teria rompido ou perdido, é o que nos acontece — questão,
a
Nancy, históriaterá sido espera, acontecimento,
"Até diz ou a reconstituir." A comunidade perdida imperativo — a partir da sociedade. ... Nada foi perdido, e
comunidade)a reencontrar por esta razão nada está
perdida—[uma de várias formas, como a família natural, a
perdido. Só nós estamos perdidos, nós sobre quem o "laço
social" (as relaçöes, a
ser exemplificada
ou rompidapode romana, a primeira comunidade crista, corporaçöes, comunicaçäo),nossa invenção, recai pesadamente...
república
cidadeateniense,a Semprereferidaa uma era perdida em que a comunidade
Ou seja, a comunidade perdida não passa de
um fantasma. Ou, aquilo que
comunasou e dava de si mesma, seja pelas instituições, supostamente se perdeu da "comunidade", aquela comunhão,
unidade, co-pertinência,
estreitos,harmoniosos,
se teciaem laços sua unidade. "Distinta da sociedade... a comunidade
é essa perda que é precisamenteconstitutivada comunidade. Em outros
termos, e da
representação de
ritos,símbolos,a membros entre si, mas também a comunhüo
maneira mais paradoxal, enquanto neggçäo da fusão, da
comunicaçãoíntima de seus
ú) é arxnas a própria essência." Ela é constituída pelo identidade consig(Hnesma, X_çpmunidade tem por condição
sua
orgânicadela mesmacom modelo da família e do amor. precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. Daí a
de umaidentidade,segundo o
condenação categórica
compartilhamento do desejo de fusão comunial, pois implica sempre na morte
seria preciso desconfiar dessa consciência restrospectiva da ou no suicídio, de que o
O autorconcluique nazismo seria unvgxe_mpwextremoO desejo de fusão unitária pressupöe a pureza
identidade,bem como do ideal prospectivo que essa
perdada comunidadee de sua unitárias©semprœse pode levar mais longe as exclusöes sucessivas daqueles que não
acompanhao Ocidente desde seu início. A cada
nostalgiaproduz,umavezque ela no suicídio coletivo. Aliás, por um certo
a uma nostalgia de uma comunidade perdida,
momentode suahistóriaele se entrega tempo, o próprio termo comunidade, dado o seqUestrode que foi objeto por
de uma familiaridade, de uma fraternidade, parte
desaparecida,arcaica,deplorandoa perda dos nazistas, com seu elogio da "comunidade do povo", desencadeava
que a verdadeira consciência da perda da um reflexo de
de uma convivialidade.O curioso é hostilidade na esquerda alemã. Foram precisos vários anos para que o termo fosse
comunidadeé cristã: a comunidade pela qual anseiam Rousseau, Schlegel, Hegel, desvinculadodo nazismo e reconectadocom a palavra comunismo.' Em todo caso, a
Bakunin,Marx, Wagner ou Mallarmé se pensa como comunhäo, no seio do corpo imolação,por meio ou em nomeda comunidade,fazia a morteser reabsorvidapela
místicode Cristo.A comunidadeseria o mito moderno da participação do homem na comunidade, com o que a morte tornava-se plena de sentido, de valores, de fins,
de
vidadivina.O anseiode comunidadeseria uma invenção tardia que visava responder história. É a negatividade reabsorvida (a morte de cada um e de todos reabsorvida
na
à dura realidade da experiência moderna, da qual a divindade se retirava infinitamente vida do Infinito).Mas a obra de morte,insiste Nancy, não pode fundar
uma
(comoo mostrouHölderlin).A mortede Deus seria um modo de se referir à mortf comunidade. Muito pelo contrário: é unicamente a impossibilidade de fazer obra
da
da comunidade,e trariaembutidaessa promessade urna ressurreiçäo possível, numa morte que poderia fundar a comunidade.
imanênciacomumentreo homeme Deus. Toda a consciência crista, moderna, Ao desejo fusionai, que da morte faz obra, contrapõe-se uma outra visão
de
humanistada perdada comunidadevai nessa direçao. comunidade, na contramão de toda nostalgia, de toda metafísica comunial.
Segundo
o autor não surgiu ainda uma tal figura de comunidade. Talvez isso queira
dizer que
aprendemos devagar que não se trata de modelar uma essência comunitária,
mas
A COMUNIDADE NUNCA EXISTIU antes de pensar a exigênciainsistentee insólita de comunidade,para além
dos
totalitarismos que se insinuam de todo lado, dos projetos técnico-econômicos
que
Ao que Ngncyresponde,simplesmente:La communauté n 'a pas eu lieu. A substituíram os projetos comunitários-comunistas-humanistas. Nesse sentido a
comunidadenunca existiu. Nem nos índios exigência de comunidadeainda nos seria desconhecida,é uma tarefa,mesmo com as
Guayaqui, nem no espírito de um povo
hegeliano,nemna cristandade."A Gesellschaft inquietudes pueris, por vezes confusas, de ideologias comuniais ou conviviais.
(sociedade) não veio, com o Estado, Por
a indústria,o capital,dissolveruma que esta exigência de comunidade nos seria desconhecida?Pois a comunidade,
Gemeinschaft(comunidade) anterior." Seria na
mais correto dizer que a "sociedade", contramão do sonho fusional, é feita dainterrupçäo, fr@gmentaçao,suspense, é
compreendida como associação dissociante das feita
forças,das necessidadese dos dosseres singularescseusencontros. Daí porque a própria idéia de laço social
signos, tomou o lugar de alguma coisa para a qual não que se
temosum nome,nemconceito, insinua na reflexão sobre a comunidade é artificiosa, pois elide precisamente
e que mantinhauma comunicação muito mais ampla esse entre.
do que a do laço social Comunidade como ocompartilhamento de uma separação dada pela singularidade.
.com os deuses,o cosmos, os animais, os mortos, os
desconhecidos)
e ao mesmotempouma
mais duros(de solidão, segmentaçãomuito mais definida, com efeitos
inassistência,rejeiçäo etc.). "A 5) NANCY, La communauté afrontée. Paris. Galiléc.2001. p. 26.
sociedade não se construiu
A comunidadedos sem comunidade 35
34

se a contrário da sociedade
di'Pöe livremente do tempo e do mundovdosxecursos-do-mundo. É aquele cujo
intimidade que a sociedade destruiu, mas quase presente não está subordinadoao futuro, em que o instante brilha autonomamente.
seria o espaçode uma que a sociedade, no seu movimento
é porque de uma distancia Aquele que vive soberanamente,seo pensarmosradicalmenteNive emorre do mesmo
ela é o espaço
o contrário,
porque Em outras palavras, como diz Blanchot em modo que o animal. ou um deus. É da ordem dojogoalño do trabalho. A sexualidade
pára de esconjurar.
de totalizaçä0, já nio se trata de
communauté inavouable,'na comunidade por exemplo é útil, portanto servil, já ocrotismo é inútil. e neste sentido, soberano,
intervém o Outro, e ele é
seulivro
Mesmo,mas de uma relaçãona qual Implica num dispêndio gratuito. Domesmo modo o riso, a festa, as lágrimas, efusöes
do Mesmocomo ele introduz a dissimetria. Por um lado
sempreem dissimetria, diversas; tudo aquilo que contém um excedente.Bataille, em seu texto Essai sur Ia
sempreirredutível, pelo Outro devasta a inteireza do sujeito, souveraineté, afirma que esse excedentetem algo da ordem do milagre, até mesmo
alteridadeencarnada
entio, o infinitoda centradae isolada, abrindo-o
para uma exterioridade
do divino. Bataille chegg a dar razio o homem não
fazendoruir sua identidade constitutivo. Por outro lado, essa dissimetria impede
tem necessidade só puo. ele tem fome de milagre. Pois de soberanig,
irrevogável,num inacabamento totalidadeque constituiria uma individualidade
numa segundo Bataille, está em todos nós. até mesmo no operário, que com seu copo de
que todos se reabsorvam exemplo, os monges se despojam de
acontecer quando, por cerveja participa por ugvjnstanteaoanenos, grau, desse elemento gratuito
ampliada, como costuma desse despojamento tornam-
uma comunidade, mas a partir e milagroso, desse dispêndio inútil e porissoglorioso. Isso pode ocorrer com qualquer
tudopara fazer parte de formas reais
kibutz, ou nas ou utópicas de um, na mesma medida, diante da beleza, da tristeza fúnebre, do sagrado ou até da
de tudo,assimcomo no
se possuidores
está isso que já mal ousaremos chamar de comunidade, violência. para Bataille é que essas soberanias, que
comunismo.Em contrapartida,
iguais, e que seria antes uma ausência de comunidade, interrompem a têm objet0J)em objetivo, dão
pois näo é uma comunidade de
de reciprocidade, de fusão, de unidade, de comunhåo, em Nada, são Nada (Rien, não o Néant).
no sentidode que é uma ausência
negativa, como a chamou Georges Bataille, comunidade Bem, é claro que o dautilidade, do acúmulo,
de posse. Essa comunidade
a impossibilidade de sua própria coincidência do encadeamentona obras úteis. em
dos que näo têm comunidade,assume
diria ele, sobre o absoluto da separação
consigomesma.Poisela é fundada,como
contraposição a essa dose de acaso de arbitrário, de esplendor inútil, fasto ou nefasto,
até tornar-se relação, relação que já não aparece em formas rituaisconsagradas exteriormente, como em outros
que tem necessidadede afirmar-separa se romper
paradoxal,insensata.Insensatezque está numa recusa que talvez þar.tleby, o ternppsvmas em momentos e subjetivos, de não servilidade, de
personagemde Melyille,dramatizeda maneira mais extrema: a recusa de fazer gratuidade milagrosa, de dispêndio ou apenas de dissipação. EStá em jogo, nessa
É ali onde a comunidadeservelara... nada. É ali talvezvque elaçomece a tornar-se
soberania; uma perda de si; por trás da qual' como em Bartleby, fala uma recusa de
levar esse pensamento ao seu extremo, com todo o risco que ele servidão. Para jogar com as palavras, diríamos: Da Näo-Servidäo Involuntária. É
comporta,já que não se trata aqui de transmitir uma doutrina, mas experimentar um algo dessa ordem que está em jogo na noçãode como ela foi pensada
feixe de idéias. em que Habermasconsideraherdeirade Nietzsche e precursora
de FoucauIt.S

COMUNIDADE E SOBERANIA
MAIO DE 68 E O DESEJODE COMUNIDADE
O que é soberano, rigorosamente falando? É aquilo que existe soberanamente,
independente de qualquer utilidade, de qualquer serventia, de qualquer necessidade, Seria preciso retornar agora ao tema da comunidade, tendo porpano de fundo
de qualquer finalidade.' Soberano é o que não serve para nada, que não é finalizável
8) HABERMAS,Jurgen. O discursofilosóficoda modernidade.SIO Paulo, Martins Fontes. 2000. cap.
poruma lógicaprodutiva. Até literalmente, o soberano é aquele
que vi ve do excedenge VIII: "Entre erotismoe economiageral". Deixamosdc lado aqui. obviamente,toda discussåodo
extorquidoaos outros,e cuja existênciase abre sem limites, além de sua própria Sentidoclássico.políticoou jurídico.da noçäo A respeito.cf. em NEGRI. Antonio. O
poder constituinte(Rio de Janeiro,DP&A. 2002).Numa nota de Negri classificao ensaio
morte. O soberanoé o opostodo escravo,
do servil, do assujeitado, seja à necessidade, de Bataillesobrea soberaniaComomisteriosoe potentíssimo(p. 38n).Confrontartarnt£mcom as
ao trabalho,à produção,ao acúmulo, consideraçöesde Agambensobre a necessidadede abandonaro conceito de soberania.que garante
aos limites ou à própria morte. O soberano a indiferençaentre direitoe violência(Cf. Moyenssans Jin- Paris.Payot, 1995.p. 124),ou Sobreo
equívocode base de Bataille,ao tentar FnSar a vida nua como figura sotxrana. inscrevendo-ana
6) BLANCHOT,Maurice.La
commwnautéinavouable. Paris. Minuit.
esferado sagrado(HomoSacer: 0 podersoberanoe a vidanua. BeloHorizonte.Editorada UFMG.
7) BATAILLE.Georges."La 1986. 2002.p. 119).
souveraineté",in (Euvres completes,
t. VIII. Paris, Gallimard, 1976.
A comunidade dos sem comunidade 37
Vida capital
36 tradição produtivista e
pois contraria nossa obstante o que fundá uma comunidade. sempre provisória esempre já desertada,
Poderíamos acompanhar
nada convencional, de comunidade. çAlguma coisa entre a obra e a inoperâncias.
essa idéia soberaniaquanto Maio de 68, logo na seqUência
tanto de Blanchot sobre Talvez é o que tenha interessado a Jean-I uc Nancy, requalificar uma região que
comunicacional, Maurice
comentáriofeito
por sobre a comunidade impossível, a
obra de Bataille já nenhum projeto comunista ou comunitário carregava. Rçpensar a comunidade em
0 belo da dos que não têm
negativa, a comunidade
respeito
observações a termos distintos daqueles que na sua origemcrista.religiosa, a tinham qualificado (a
de suas a comunidade
comunidadeausente, saber, como comunhão), repensá-la em termos da instância do "comum", com todo
de 68, que inclui a comunicação
comunidade. da atmosfera de Maio o enigma aí embutido e a dificuldade decompreenderesse comum, "seu caráter não
descrição de estar junto, uma certa
Depois de uma de fala, o prazer
liberdade dado, não disponível e, nesse sentido. menos Repensar o
efervescência,a
explosiva,a segredo do comum que näo seja um segredo comum. 0 desafio obrigou o autor a
uma declaração de impotência.
é como se fosse um deslocamento, a saber, falar mais em estar-em-comum, estar-com, para evitar a
delegaria algumacoisa — aceita não fazer nada, aceita estar e
qual se paranão se limitar, ressonância excessivamente plena que foi ganhando o termo comunidade, cheia de
presença que, caráter incomum desse "povo" que
como uma Ao descrever o substância e interioridade, ainda crista (comunidade espiritual, fraternal, comunial)
dispersar-se. que poderiam dar-lhe
depoisausentar-se, que ignora as estruturas ou mais amplamente religiosa (comunidade judaica, •umma) ou étnica, com todos os
recusa a durar, a perseverar, ele escreve: '"É nisso que ele é
se ausência,
de presençae riscos fascistizantes da pulsäo comunitarista. Mesmo a comunidade inoperante, como
estabilidade,nessemisto o reconhece:
que não não se deixandoagarrar, a havia chamado Nancy em seus comentários a partir de Bataille, com sua recusa dos
detentores de um poder
temível para os a indócil obstinação em reinventá-lo
do fato social quanto Estados-naçäo, partidos, Assembléias, Povos, companhias ou fraternidades, deixava
do tanto a dissoluçäo circunscrever, já que ela a recusa" ...9 É essa
lei não pode intocado esse domínio do comum, e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os
numa soberaniaque a
a-social, associaçäo sempre pronta a se dissociar, fundamentalismos instrumentalizam crescentemente.
potênciaimpotente,sociedade momentaneamente todo o
de uma "presença que ocupa
dispersãosempre iminente não anunciando
(utopia), uma espécie de messianismo
espaço e no entanto sem lugar
inoperância",)0 0 afrouxamento sorrateiro do
nada além de sua autonomiae sua
O SOCIALISMODAS DISTÂNCIAS
inclinação àquilo que se mostra tão impossível
liamesocial,mas ao mesmotempo a
Ailanto inevitável — a comunidade.
Que esse tema seja mais do que uma obsessão individual de um autor, atesta-o
tradicional, a da terra, do
Blanchot,nesse ponto,diferencia a comunidade sua presença recorrente entre pensadores dos anos 60-70. Em curso ministrado no
mundo não
sangue,da raça, da comunidadeeletiva. E cita Bataille: "Se esse Collège de France em 1976-77,por exemplo, Roland Barthes gira em torno da
dos seres que se questão Comment vivre-ensemble (Como viver-junto). t5 Ele parte daquilo que
fosse constantementepercorrido pelos movimentos convulsivos
buscamum ao outro..., ele teria a aparência de uma derrisão oferecida àqueles considera ser seu "fantasma", mas que, visivelmente, não é apenas um fantasma
que ele faz nascer". Mas o que é esse movimento convulsivo dos seres que se individual, e sim o de uma geração. Por fantasma Barthes entende a persistência de
buscamum ao outro? Seria o amor, como quando se diz comunidade dos amantes? desejos, o assédio de imagens que insistem num autor, por vezes ao longo de toda
Ou o desejo, conformeo assinala Negri, ao dizer: "O desejo de comunidade é o uma vida, e que se cristalizam numa palavra. O fantasma que Barthes
espectroe a alma do poder constituinte — desejo de uma comunidade tão real seu, fantasma de vida, de regime, de gênero de vida, é o "viver-jungpll,
Näo o viver-
quanto ausente,trama e modo de um movimento cuja determinação essencial é a-dois conjugal, nem o viver-em-muitos segundo uma coerção coletivista.
Algo como
a exigência de ser, repetida, premente, surgida de uma Ou se trata uma "solidão interrompida de maneira regrada", um
distâncias", "a
de um movimento que não suporta nenhum nome, nem amor nem desejo, mas utopia de um socialismo das distâncias", 16na esteira do "páthos da
distância" evocado
que atrai os seres para jogá-los uns em direçäo por Nietzsche.
aos outros, segundo seus corpos
ou segundoseu coração e seu pensamento, 2 Barthes refere-se com mais precisão a seu "fantasma", ao evocar
arrebatando-os à sociedade ordinária? a leitura
Há algo dCinconfessávelnessa uma descrição de Lacarrière sobre conventos situados no
estranheza, que não podendo ser comum; é näœ monte Athos. Monges com
9) BLANCHOT, M. La communauté 13) NANCY,J.-L La communautéagrontée. op. cit„ p.
10) Idem. p. 57.
inavouable.op. cit., p. 57. 38
14) Idem, p. 41.
II) NEGRI.A. O poder 15) BARTHES, Roland. Comment vivre-ensemble.Paris,
constituinte,op. cit., p. 38. Seuil Irnec. 2002.
12) BLANCHOT, op. cit., p. 79. 16) Idem.
A comunidadedos sem comunidade 39

tempo, cada um seguindo seu ritmo próprio.


comum ao mesmo Singularidade qualquer que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio
uma vida em -Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer, que näo
da solidão negativa. A idiorritmia
"Idiorrittnia"(idios: forma excessiva
reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma
da utópica."
mediana, idílica, o viver-só) está muito Presente multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda
como forma (ou sua contrapartida:
do viver-junto montanha mágica, de Thomas identidade e toda condição de pertinência,mas manifestamseu ser comum — é a
O fantasma o viver.junto em A
literatura. ou o viver-só no Robinson condição, diz Agamben, de toda política futura. BentoPrado Jr., referindo-se a
emtodaa tempo fascinantee claustrofóbico, peleuze,a utilizou uma expressão adequadaa uma tal figura: osolitário solidário.
Mann,ao biografia de alguns pensadores, como é o caso de
Defoe.Ou a
Crusoé,de Daniel para Voorburg, perto de Haia, onde aluga um
da vida se œtira
Espinosa,queno final conversar com seus hospedeiros —
para verdadeiro
em quando desce BLOOM
quarto e de vez atençao para o desejo de criar uma estruturv
Barthes ao chamar a
um modo de fugir ao
aparelhode vida. Em todo caso é
vidaque nåo seja um em grego: retirar-se para trás). Hoje um tal
Recentemente uma publicação anónima inspirada em Agamben contrapunha à
recusá-lo(anachorein, comunidade terrível que se anuncia por toda parte, feita de vigilância recíproca e
poder.negá-loou distanciamento da
em termos de gregariedade, com
anseiopoderiaser traduzido frivolidade, uma comunidade de jogo. 20Uma tal comunidade baseia-se numa nova
figurA*öespoliticas arte das distâncias, no espaço de jogo entre desertores, que não elide a dispersão, o
exílio, a separação, mas a assume a seu modo, mesmo nas condições as mais adversas
do niilismo, mesmo nessa_vidiUsemfprynado homem comum, aquele que perdeu a
QUALQUER
E A SINGULARIDADE
O e-com-eltLiLcomunidade,mas a comunidade que nunca houve, como
disse NÐpgy,pois esta comunidade que elesupostamente perdeu é aquela que nunca
um belo exemplocom Giorgio Agamben, em seu livro intitulado existiu voavsersoÞ_aforma alienada das pertinências, de classe, de nação, de meio,
A que vem.18Ali ele recorda a bela frase de Heráclito: Para os despertos recusando teria de maispróprio, a saber, a assupsgo
ummuna' único e ctnum é, mas aos que estão no leito cada um se revira para o seu da como o havia postulado Bataille.
pr$io. O Comumpara Heráclitoera o Logos. A expropriação do Comum numa À vida sem forma do homem comum nas condições do niilismo, o grupo de
sociedxk é a expropriaçäoda linguagem. Quando toda a linguagem é Tiqqun deu o nome de Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um
pœ um democrático-espetacular,e a linguagem se autonomiza tipo humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existências
numa esfera separada.de modo tal que ela já näo revela nada e ninguém se enraiza brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário, anônimo, talvez
nela.quandoa comunicatividade,aquilo que garantia o comum, fica exposta ao agitado quando tem a ilusão de que com isso pode encobrir o tédio, a solidão,
a
milimo e entravaa própriacomunicação, atingimos um ponto extremo do niilismo. separação, a incompletude, a contingência ——0 nada. Bloom designa essa tonalidade
Como desligar-sedessa comunicatividade totalitária e vacuizada? Como desafiar afetiva que caracterizanossa épocade decomposiçãoniilista, o momento em
aquelasinstanciasque expropriaramo comum, e que o transcendentalizaram? É que
vem à tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafísico de
nossa estranheza
onde evocauma resistênciavinda, não como antes, de uma classe, um -e inoperância,para além ou aquém de todos os problemas sociais
puti(b, umsindicato,um grupo.uma
de miséria;
minoria, mas de uma singularidade qualquer, precariedade, desemprego etc. Bloom ea figura que representa 'Emorte
do qualquerum, comoaquele dosujeito_e
que desafia um tanque na Praça Tienanmen, que já de seu mundo, onde tudo flutua na iLçliferençasem qualidades,
se definepor sua ninguém em que
a uma identidade específica, seja de um grupo mais se reconhecena trivialidadedo mundode mercadorias
políticoou de um movimento infinitamente
social. É o que o Estado não pode tolerar,@ (mercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida
que se alternam
e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já
17) a iåcxritnúa incapaz de alegria
oneNaI.em bu.Eaia mais
nas formas semi-anacoréticas, do monasticism0 assim como de sofrimento, analfabeto das emoçöes de que
anteriores século4. recolhe ecos difratados.
eremitisrno.
o De fato, em 380, por meio do Édito de Teodósio,o Nessa existência espectral, de algum modo se insinua uma
e a idiorritmiaforam
liquidados— eram considerados marginalidado
estratégia de resistência;
resistentesàs egruturas
religiœas de PO(krque
a um instalavanu Com a queda de Tessa10nica.
18)AGAMBEN:
G. 1a e sobreviveaté os dias dc hoje. 20) RevistaTiqqun.Paris, 2001.
19) AGAMBEN.G. Moyens qui vient. Paris. Seuil, 1990.
sansfin: 21) TIQQUN.Théoriedu Bloom.paris. u, Fabrique,2000e
notes suria politique. a revistafiqqun. 2001.
Paris, Payot/Rivages, 1995. p. 95.
Vda capital
40
A comunidac* dos sem comunidade 41
(biopoder, sociedade do espetáculo) aquil
Bloom subtrai ao poder desejo de não viver, de ser nada,
emque o
se O Bloom é o ele de Dostoievski, e por vezes os revolucionários.
Deleuze pergunta, entao: o que resta
qual este quereria a pretensio do biopoder de fazê-lo viver. às almas quando näo se aferram mais a particularidades,
desmonta Bloom
que assim o que as impede então de
nada mascarado,qualidades»sem particularidades, sem substancialidade fundir-se num todo? Resta-lhes precisamente
sua "originalidade", quer dizer um
é o homem
sem presente na literatura do século passado, som que cada uma emite quando pöe o pé na estrada,
ii homem, o anti-herói quando leva a vida sem buscar
homemenquanto Michaux e Pessoa — é o homem sem comunidade. É a salvação, quando empreende sua viagem encamada
de Melville a sem objetivo particular, e então
Kaf\a a Musil, que o Bloom queira o que ele é, que ele se reaproprie encontrao outro viajante, a quem reconhecepelo som. Lawrencedizia
ser este o
a possibilidade
ondeintervém assuma o exílio, a
insignificância, o anonimato, a separaçao novo messianismo ou o aporte democrático da literatura americana:
contra a moral
propnedade que poéticas ou apenas existenciais, mas também européia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que alma só
como circunstâncias se realiza
ea estranhezan50 pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem
jamais tentar salvar outras
políticas. almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente
demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios. A'comuñidade
dos celibatários é a do homem qualquere de suas singularidades que se cruzam: nem
individualismo nem comunialismo.
condiçöes de voltar a Deleuze, não só à sua
desvio,já estamos em
Ora. feito esse ao seu tom. A propósito do
talvez mais importante, também
perspectivateórica, mas que a tudo
aquele escriturário CONCLUSÖES
Bartleb , de Melville,
comenga:a particularidade deste homem é que ele
(pgçyrsor-doBloom?),o autor
é o homem qualquer, o homem sem essência, o
nag-gemÑicularidade nenhuma. Neste percurso ziguezagueante, percorremos a comunidade dos celibatários, a
em alguma personalidade estável. Diferentemente do comunidade dos sem comunidade, a comunidade negativa, a comunidade ausente, a
homemquese recusaa fixar-se
massa nazista, por exemplo), no homem comum tal comunidade inoperante, a comunidade impossível, a comunidade de jogo, a
burocrataservil(que compöe a
algo mais do que um anonimato inexpressivo: o comunidade que vem, a comunidade da singularidade qualquer — nomes diversos
comoele apareceaqui se expressa
Não aquela comunidade baseada na hierarquia, para uma figura não fusionai, não unitária, não totalizável, não filialista de comunidade.
apelo umanovacomunidade.22
o seu patrão gostaria de lhe oferecer, mas uma Resta saber se essa comunidade pode ser pensada, tal como o sugere Negri, como
no paternalismo,na compaixão,como
celibatários. Deleuze detecta entre os uma ontologia do comum. A resposta está insinuada na primeira parte desse texto:
sociedadede irmãos, a comunidade dos
vocação de constituir uma sociedade nos termos de Deleuze, a partir de Espinosa e sobretudo em seu trabalho conjunto
americanos,antes mesmoda independência, essa
comunidade de indivíduos com Guattari, e nas condições atuais de um maquinismo universal. a questão é a do
de irmãos,uma federaçãode homens e bens, uma em plano de imanência já dado, e ao mesmo tempo, sempre por construir. Ná contrainao
pragmatista americana,
anarquistasno seio da imigração universal. A filosofia dossequestroo comum, da expropriação do comum, da transcendentalizaçñodo 9
lutará não só
consonânciacom a literaturaamericana que Deleuze tanto valoriza, comum, trata-se de pensar o comumnaomesmotempocomo imanentee cornœem
alimentam uma
contraas particularidadesque opöem o homem ao homem, e construção. Ou seja, por um lado ele já é dado, a exemplo do comum biopolítico,e
oposto, o
desconfiançairremediávelde um contra o outro, mas também contra o seu por outro está por construir, segundo as novas figuras de comunidade que o comum
ou da caridade, a
Universalou o Todo, a fusão das almas em nome do grande amor assim concebido poderia engendrar.
famosa passagem
alma coletiva em nome da qual falaram os inquisidores, como na Esse pequeno itinerário pode servir para descobrirmos comunidade lá onde não
se via comunidade, e não necessariamente reconhecer comunidade lá onde todos
sobreo firndo
22) É se perguntar se algo nio se insinuana reflexio de Max Horkheimer"especificidade vêem comunidade, não por um gosto de ser esquisito, mas por uma ética que contemple
indivíduona s'Xiedadede massas.Ele reconhece nos indivíduos um elemento de
(singularidade)".um "elementode particularidadedo ponto de vista da raz50". que estaria
desdea também a esquisitice e as linhas de fuga, novos desejos de comunidade emergentes,
novas formas de associar-se e dissociar-se que estão surgindo, nos contextos mais
elemento no
irredutível,
primeirainfinciatotalrrxntereprimidoou absorvido.AO exemplificar esse
finalde seuensaio"Ascensåo dos anónimos,
e declíniodo indivíduo",ele evoca a resistência indivíduos auspiciosos ou desesperadores.
sugenndoque -o núcleoda verdadeiraindividualidade"é a resistência: "Os verdadeiros
em sua
nossotemposio os mártiresque atravessaramos infernos do sofrimento e da degradaç50 os
resistênciaà conquistae à opressao.Os mártires anðnimos dos campos de concentraçJo
símbolosda humanidadeque luta por nascer". In O eclipse da razao. Rio de Janeiro,
bem
pp. 158e 172.Devo a Jeanne-MarieGagnebin a indicaçio desta passagem.
cornoa de veias outrasutilizadasneste capítulo, rastro de uma interlocuçao discreta e amiga•
no
O corpo do informe 43

O CORPO DO INFORME
lhes dentro da orelha, antes de expirar. "Porque eu nio pude encontrar o alimento
que mc agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, nao teria feito nenhum
alarde e me empanturrado como você e todo mundo"? ficamos sabendo. ao final.
que a jaula onde ele dá seu último suspiro é usada em seguida para alojar uma
pantera de corpo nobre, "provido de tudo o que é necessário". e que dava a impressåo
de carregar a própria liberdade em suas mandíbulas.
A segunda imagem é a do corpo de De início,
trabalhador incansável sentado por trás do biombo. mas sem demonstrar o mínimo
gosto pelas cópias que realiza, de repente, a cada ordem que recebe do patråo. começa
a responder: Preferiria nåo. O narrador assim o descreve: o rosto magro e macilento,
a face chupada, calma, olhos cinzentos. parados e opacos, por vezes baços e vidrados.
literatura e o pensamento também fazem 0 corpo raquítico, que se alimenta de bolinhos de gengibre, a silhueta pálida. às
Agamben lembra que a ciência visa provar a verdade ou
Giorgio Mas enquanto a vezes em mangas de camisa, estranho e esfarrapado traje caseiro, uma indiferença
tal comoa ciência. pensamento têm outro objetivo.
experimentos, a literatura
eo cavalheiresca e cadavérica. Em suma, um destroço de naufrágio em pleno Atlântico.
hipótese,
falsidadede uma exemplos. Avicenas propöe sua experiência E o mais insuportável aos olhos do advogado: passiva. Impossível
Eis alguns
experimentos sem verdade. imaginaçao o corpo de um homem, pedaço por "intimidar a sua imobilidade". Mesmo na prisao, ali está Bartleby, só no pátio mais
voador, e desmembraem
dohomem e suspenso no ar, ele pode ainda dizer isolado. o rosto voltado para uma alta parede. ou definhado, deitado de lado, recusando-
mesmoquebrado
paraprovarque, Kleist evoca o corpo perfeito da marionete se a alimentar-se. Ao descobrir que esse homem sem passado ocupava-se outrora de
Rimbaud diz: "Eu é um outro".
sou". substitui ao eu psicossomático um ser vazio cartas extraviadas, o narrador se refere compadecido a esses homens extraviados...
do absoluto.Heidegger
comoparadigma preciso deixar-se levar por tais experimentos.
SegundoAgamben,é
e inessencial... do que nossos modos de existêncil
menos nossas convicções
Atravésdeles,arriscamos lembra ele, ao que foi para o O CORPOE O GESTO
história subjetiva equivalem,
No domíniode nossa ereta, ou para o réptil a transformação dos
na sua postura
primataa liberaçaoda mio Recusemos as interpretaçöes humanistas, repletas de sentido ou piedade a respeito
permitiram transformar-se em pássaro. É sempre do
membrosanteriores,que lhe de tais homens extraviados com seus corpos imóveis e inertes, esvaziados e esquálidos.
principalmente quando se parte do corpo da escrita.i
corpoquese trata,mesmoe Teríamos razöes de sobra, é verdade, para associá-los a uma cadeia infindável de
corpos aviltados. na crueldade e indiferença dos genocídios que povoaram a
iconografia de nosso último século. Mas insisto, fiquemos inicialmente apenas com
IMAGENSLITERÁRIAS essas posturas esquisitas, esse "de pé frente ao muro". esse "deitado" no meio da
e palha, essa cabecinha caída mas falando dentro da orelha, esse estar sentado por trás
É nesseespíritoque eu gostariade partir de uma ou outra imagem literária, do biombo, esses gestos desprovidos de esteios tradicionais, como diz Walter Benjamin
corpo do jejuador de
algumasvariaçöesem tornodelas. A primeira é a do magro em seu ensaio sobre Kafka, masque ainda preseryam uma certa margem de manobra
Kat\a, por cuja arte já ninguém se interessa, abandonado numa jaula situada perto
que a guerra viria abortar. Um gesto é um meio sem finalidade, ele se basta, como na
dosestábulos,no fundodo circo. Kaf\a descreve o homem pálido, fitando o vazio
dança. Por isso, diz Agamben, ele abre a esfera da ética, própria do homem. Ainda mais
comos olhossemicerrados,com costelas extremamente salientes, braços ossudos,
quando ele se dá a partir de um corpo inerte ou desfeito. na conjunçäo impossível entre
cinturadelgada,corpo esvaziado,pernas que, para se sustentarem quando é posto de
o moribundo e o embrionário, como é o caso nos personagens literários mencionados.
uma contraa outra na altura do joelho, raspando o chio — em
pé, apertavam-se
Pensemos na fragilidade desses próximos do inumano, em posturas que
suma,um feixe de ossos.No meio da palha apodrecida, quando os funcionários do
tangenciam a morte, e que no entanto encarnam uma estranha obstinação, uma recusa
circoo encontrammeiopor acaso e lhe ele
perguntam sobre as razões de seu jejum, inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimos o signo de uma resistência. Aí se
erguesuacabecinhaexcessivamente falando-
pesada para o pescoço fraco, e responde
l) AGAMBEN,
Giorgio.Bartlebyou Ia création.
2) KAFKA. Franz. Um artista da fome. Paulo. Brasilienœ. 1991,p. 35.
paris, Circé, 1995, p. 59,
O corpo do informe 45

seres somos confrontados a uma


mundo. Nesses
44 por
um torpor que é ou imersos numa "zona de opacidade ofensiva", conforme a expressão cunhada
do próprio que é uma vidência, uma
uma cegueira puro páthos, uma uma revista recente, num outro contexto.' Não é isto que vemos ao redor das posturas
difícil
de Bartleby ou de alguns personagens de Kafka? Mas por que nos parece
apatia é
rbada,uma do escritor, Deleuze usa uma
descrever a vida acolher essaspqsturas sem sentido, sem intenção, sem finalidade, rodeados de sua
•or. Para uma frágil saúde irresistível, que provém
goza de sombra branca, de sua zona de opacidade ofensiva?
de uma_ grandes para ele, fortes demais
ouvido coisas demasiado
e
ter visto
do fatode que o escritor recusa, tal como 0 jejuador
impossíveis."' O O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS
tornaria empanturramento, a inteiriça,
dominante,
gordasaúde Talvez devido àquilo que David Lapoujade, na esteira de Deleuze e sobretudo
de Beckett, definiu da maneira mais coloquial e lapidar possível: trata-se de um
demais pelo e ouviu, corpo qui n 'en peut plus, que não agUenta mais. "Somos como personagens de Beckett,
ouviu demais,
grande demais para ele, mas em relaçäo para os quais já é difícil andar de bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de
desfaleceu por isso que é condição de fragilidade,
e se permanecer numa simplesmente se arrastar, e depois ainda, de permancer sentado... Mesmo nas situaçöes
manter-sepermeável inacabamento, seriam uma condição mesma
quêele só pode esse cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo nao aguenta
Essa deformidade, mais embrionário, ondea mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, näo pudesse mais responder...
de imperfeição. se encontra em estado
pois é ali onde a vida
daliteratura, como o diz Gombrowicz.4 Mo há como, o corpo é aquele que não aguenta até por definiçäo.
"pegou"inteiramente, Mas, pergunta o autor, o•queé que o corpo não agüenta mais? Ele não agUenta
forma ainu por nascer" tao cara a tantos autores,
essa liberdadede "seres ainda
pis, pregrvar
musculoso, em meio a uma
atlética Jnais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro. A coação exterior do corpo
corpo excessivamente desde tempos imemoriais foi descrita por Nietzsche em páginas admiráveis de
num Talvez por isso esses personagens que
demasiadamente excitada,plugada, obscena. Para a genealogia da moral, é o "civilizatório" adestramento progressivo do
esyaziamento, palidez, no limite do corpo
mencionamospqecisem de sua imobilidade,
corpo "blindado" não permitirW animal-homem, a ferro e fogo, que resultou na forma-homem que conhecemos. Na
a outras_forçasque um
morto.Paradar passagem esteira de Nietzsche, Foucault descreveu a modelagem do corpo moderno. sua
morto para que outras forças atravessem o corpo?
Seráprecisoproduzirum corpo dança contemporânea, docilizaçäo por meio das tecnologias disciplinares, que desde a revolução industrial
o processo por meio do qual, na
Joé Gilobservourecentemente desembaraçando. otimizaram as forças do homem — e temos disso alguns ecos em Kafka também,
os seus órgãos,
o cŒP) como um feixe de forças e desinveste Pois bem, o corpo não agüenta mais precisamente o adestramento e a disciplina.
interiorizados", como o diz Cunningham. Um
dos"modelossensório-motores Com isto, ele também não agUentamais o sistema de martírio e narcose que o
da sua alma", para então poder "ser
"quepodeser desertado,esvaziado, roubado cristianismo primeiro, e a medicina em seguida, elaboraram para lidar com a dor,
Gil, que esse corpo,
atravessado pelosfluxosmais exuberantesda vida". É aí, diz um na seqüência e no rastro do outro: culpabilização e patologizaçåo do sofrimento,
domínio intensivo, uma
quejá é um corpo-sem-órgäos,constitui ao seu redor um insensibilização e negaçäo do corpo.
textura,
nuvemvirtual,uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua
que
viscosidadepróprias,com se o corpo exalasse e libenasse forças inconscientes dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do
circulamà florda pele, projetandoem tomo de si uma espécie de "sombra branca".6
mundo. Como o nota Barbara Stiegler num notável estudo sobre Nietzsche, para ele
Nio possome furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência
todo sujeito vivo é primeiramente umsujeito afetado, que sofre de suas
da Cia. Teatral Ueinzz. Por vias existenciais e estéticas inteiramente outras, afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge; da multidão de estímulos e
reencontramosentre alguns dos atores, "portadores de sofrimento psíquico", posturas excitações, que cabe a ele selecionar, evitar, escolher, acolher... 9 Para continuar a ser
inumanas,disformes, solitárias, com sua presença impalpável e
(kchumbo,em suaesquisiticee cintilåncia branca
próprias, rodeados de sua "sombra 7) Para mais detalhessobrea Cia.-Ueinzz.ver o texto intitulado"Esquizcxenia".na Parte VI. p. 145.
destelivro.
3) Gilles.crítica e clínica.Sio Paulo, 8) LAPOUJADE.David. "O corpo que nio agUentamais". in Nietzschee Deleuze: que pode o coqx'.
4)GOMBROWICZ Editora 34, 1997. p. 14. D.
Contreles poetes. Paris. Complexe, 1988, p. 129. LINS. Daniel e GADELHA,Silvio (orgs.). Rio de Janeiro, Relume Dumará. 2002, pp. 82 e ss.
5)PESSANHA. 9) STIEGLER.Barbara.Nietzscheet 1a biologie.Paris. PUF. 2001. p. 38.
6) GIL Certezado agora. Sio Paulo. Ateliê, 2002.
Movimento total.Listm, Relógiod' Água. 2001.
p. 153.
47
O corpo do informe

Wa capta/ o afetam, e
46 atento às excitaçöes que cansou de
ficar vizinhança tio provocativa que o pensamento de Deleuze e Guattari nunca
sujeito prectsa em demasia. A
aptidäo de um ser vivo crítica, seja
e melhor, o
ameaçam também depende da explorar nos vários domínios, tao diferentes nisso de uma certa tradição
afetalo, mais que o ao estrangeiro, Nietzsche,
•tandoaquelas e à alteridade, ela marxista ou frankfurtiana, sempre mais dicotómica? Um pouco como
destruiria de vez. Ele, que se referia à
violênciaque o corpo onde o mais assustador pode trazer embutido o mais promissor.
evitara cessa de ser submetido aos aí embutidos.
de permaneCerem insiste:um vivissecçao operada sobre nós mesmos, e aos riscos e promessas
tambémDeleuze os sons e as palavras cortantes —um Como diferenciar a perplexidade de Espinosa, com o fato de ainda não sabermos o
caca, como poderia 0 corpo
com outros corpos. Mas que pode o corpo, do desafio da tecnociência, que precisamente vai experimentando
o
encontrocom
é que se pode com o corpo? Como diferenciar a decomposição e a desfiguração do corl¾)
preservar as "mãos abertas"?
da "autodefesa"para necessárias. como vimos, para que as forças que o atravessam inventem novas conexöes
usar fraqueza, ao invés de permanecer na
Nietzscheem
EcceHomo,
à altura de sua e liberem novas potências, tendência que caracterizou parte de nossa cultura das
estar Lapoujade define esse paradoxo:
a forçade É assim que últimas décadas, nas suas experimentaçöes diversas, das danças às drogas e à própria
como temele a força?
fraquezade
apenas
cultivar literatura,como näo confundiristo com a decomposiçäoe desfiguraçäo que a
"como estar a altura do to voluntarista...? manipulação biotecnológica suscita e estimula? Potências da vida que precisam de
um
invés de
ultrapassá-lo em certaimpotência,e é dessa impotência que um corpo-sem-órgäos para se experimentarem, por um lado, poder sobre a vida que
forma, do ato, do agente, até
Assim,o superior,liberado da
potência
precisa de um corpo pós-organico para anexá-lo à axiomática capitalistica.
uma Talvez essa oposição remeta a duas vertentes já presentes em Nietzsche, na
eleagoraextrai
mesmo da "postura" formaparadoxalque assumiramno final de sua existência,conforme a análise de
Stiegler. "O sujeito que recebe a potência não sai dela ileso. Ferido, sofrendo com
seus ferimentos,depois vivendo dolorosamenteseus sofrimentos,coloca-se a ele
O CORK)
PÓS-ORGÅNICO
cada vez mais claramente a questão da sorte de suas próprias lesões: deve ele repará-
contemporâneo torne tudo
isso muitíssimo mais complexo, Ias por enérgicas medidasterapêuticasou deixá-las à própria sorte, com o risco de
Mas talvezo quadro material. Num contexto de que elas se infectem? teisl a força da aporia com a qual se enfrenta o vivente
decomposiçöesdo corpo
tendoem vistaas novas metáfora bioinformática tomou de assalto humano, o único que é consciente de seus ferimentos: todo sofrer deve chamar um
uma nova
digitalizaçiouniversal,em que em sua organicidade, já parece agir, mas um agir que não impeça o sofrer; as patologias do vivente reclamam uma
corpo humano, tio primitivo
o nossocorpo,o velho tecnocientífica, onde o ideário virtual vê na medicina, mas uma medicina que respeite as patologias como uma condição da vida."
obsoleto.Dianteda nova matriz Assim, o estatutodo corpo aparece como indissociávelde uma fragilidade. de uma
incômoda, um entrave à liberaçäo imaterial,
materialidadedo corpouma viscosidade ansiamos dor, até mes uma afirmaçäo vital de
Nesta perspectiva gnóstico-informática,
somostodos um pouco handicapés. e desencarnada. outra ordem. Apesar das diferentes inflexöes, é assim para Nietzsche, para Artaud,
uma imaterialidade fluida
Fla perdado suportecarnal,aspiramos por para Beckett, para Deleuze, e em certas circunstâncias também para Kafka.
aspiraçäo incorpórea, platonismo ressuscitado, o fato é
Neocartesianismohigh-tech,
utopia sociopolítica, pós-
quehá um tecno-demiurgismoque responde a uma nova
Näo há
comodiz PaulaSibilia num trabalho recente...10
orgânicae pós-humana,
mas isso O CORPODE KAFKA
porquechorarque um certo humanismo tenha sido superado, é verdade,
o mais difícil
näo significaque se possa evitar uma inquietaçäo crescente. Talvez
isto é, Em Kaf\a temos inicialmente a particularidade de ele referir-se em abundância
seja saber qual a relação entre o que alguns chamam de corpo pós-orgånico,
combinatória ao seu próprio corpo, seja no diário ou nas cartas, e de maneira sempre negativa.
estecorpo digitalizado,virtualizado,imaterializado, reduzido a uma
o que "Escrevo isso certamente determinado pelo desespero por meu corpo e pelo futuro
de elementosfinitose recombináveis segundo uma plasticidade ilimitada, e
outroschamaramda conquistade um corpo-sem-órgäos... É verdade que ambos com esse corpo" (1910); "Por certo, o meu estado físico constitui um dos principais
obstáculos a meu progresso. Com semelhantecorpo, nada se pode alcançar. Preciso
configuram da formahumana e do humanismo que lhe servia de
umasuperação
suporte,mas não seria um o contrário do outro, embora precisamente estejam nesta
me habituar a suas constantes falhas" (21 nov. 19IO);"À altura de Bergstein, voltou-
me o pensamento sobre o futuro distante. Como farei para suportá-lo com esse corpo
IO) SIBILITI„Paula. O homem
tirado de um depósito de trastes?" (24 nov. 1910).
pós-orgånieo. Rio de Janeiro, Relume Dumará. 2002.
captal
O corpo do informe 49
forças que lhe faltam para levar a bom
mesmo sentido. Kafka refere-se às
No deve poupar recusando o casamento ou
ou das forças que justamengg@portir dessapassiyidadeßonstitutiya•emgvgáz la
termo sua tarefa literária, certas forças, que, em uma circUnstância fazendo dela um acontecimento. como em .
"Só o que tenho sio Que isso desemboque por
outroscompromissos. inacessível à literatura, nas quais, em vezes na morte é quase uma necessidade.
em uma profundidade "O que escrevi de melhor se deve à
normal, se concentram ouso confiar."ll Ou outras mençöes de poder morrer contente. Em todas estas capacidade
profissional e físico, não ao boas e convincentes passagens. trata-se
meu presenteestado com F. dará mais força de resistência à de alguém que morre, o que lhe é muito sempre
"A união minha duro, que vê nisso uma injustiça e, pelo
mesmotema, tais como: um rigor para consigo; ao menos segundo menos,
preciso reconhecer em mim uma concentração muito boa na atividade penso, isso é tocante para o leitor. Para mim,
vida"; "É entretanto, que creio poder estar contenteno leito de morte,
percebeu que escrever era a direçäo mais fecunda
literária.Quando meu organismo secretamente um jogo; alegro-me em morrer tais descrições sao
para aí e foram abandonadas todas as capacacidades na figura que morre...
de meu ser, tudo se dirigiu
prazeres do sexo, do beber, do comer, da meditação
outras, as que têm por objeto os para além de toda uma reflexão possível
Era necessário, pois minhas forças, mesmo sobre a
filosóficae, antes de tudo, a música. obra literária, tal como o demonstrouBlanchot morte como parte da própria
podiam atingir o objetivo de
reunidas,eram tão pequenasque só pela metade de maneira insuperável, talvez
tenhamos nesses escritos o indício do que Peter
Ou ainda,em 1922, o seguinte desabafo numa estadia de hotel: "incapaz ecologia da dor e do prazer. Ao contrapor-se ao
Sloterdijk chamou de uma outra
de suportar um conhecimento, no silenciamento do corpo e do sofrimento
de ser conhecido por quem quer que seja, incapaz proposto pela metafísica ocidental desde o seu início,
infinito diante de uma sociedade alegre ou diante dos pais na sua versão filosófica, religiosa
fundocheio de um espanto ou médica, assistiríamos desde Nietzsche à
naturalmente, não há muita alegria, não chegaria a dizer emergência de uma outra economia da
com seus filhos (no hotel, dor, isto é, uma relação outra com a physis e com o
de 'homem com uma sombra grande demais' , páthos, livre da utopia asséptica
que sou eu a causa, na minha qualidade de um porvir indolor e imaterial. A dor é reinseridana
"imanência de uma vida que
mas efetivamenteminha sombra é demasiado grande, e com um novo espanto eu não precisa ser redimida", de modo que se realiza, aí,
constato a força de resistência, a obstinação de certos seres em querer viver 'apesar
"o ato de suportar o
insuportável "14
de tudo' nestasombra,justo além disso abandonado não somente aqui, mas
em geral, mesmo em Praga, minha 'terra natal', e não abandonado dos homens, isso
não seria o pior, enquanto eu viver poderei correr atrás deles, mas abandonado por O MORIBUNDO
E O RECÉM-NASCIDO
mim em relaçãoaos seres. por minha força em relação aos seres". 12Nesses fragmentos
percebe-seo que notou o crítico Luiz Costa Lima: "Contra um corpo débil, Talvez caiba uma última nota antes de passar às minhas parcas
conclusões. Num
desgracioso,instrumentoinseguro para com ele vislumbrar o futuro, Kafka perscruta artigo enigmático, Deleuze lembra o que tinham em comum Nietzsche,
Lawrence,
as forças que poderiam animá-lo, arrancá-lo da incerteza, da confusão e da apatia Artaud, Kafka: uma aversão à sede insaciável de julgar. Ao sistema do juízo
infinito
Mas em meio a essa estranha contabilidade energética, em que já não se sabe se opuseram um sistema dos afectos, cada um a seu modo, onde as dívidas não
mais se
o que vem de fora apenas fere ou também nutre o corpo debilitado, uma frase do inscrevem abstratamente num livro autónomo que escapa ao nosso olhar, mas marcam
final de 1913 salta à vista: "Não é de fato necessário nenhum empurrão; apenas a os corpos finitos em seus embates. Näo mais as protelaçõesinfindáveis, dívida
sobre mim e chegarei a um desespero gue me impagável, absolvição aparente, juiz onipresente, mas o combate entre corpos.
Ao
despedaçará".É onde o atrito com o mundo parece tão doído quanto necessário, corpo do juízo, diz Deleuze. com sua ß)rganizaçäpoyigrgrquia, segmentos,
quase uma prova de existência. Aparece assim a relação e diferenciações, Kafka teria oposto o çprpo "afetivovintensivo. anarquista, que só
existir no seio de um comporta pólos, zonas, limiares e gradientes". Desse modo desfazem-se e embaralham-
Talvez uma tal relação,não só em Kafka, mas se as hierarquias, "preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas
também nos autores mencionados,
deixeentreverno corpo umaforça de e as percorrem a toda velocidade, em que enfrentam poderes, sobre esse corpo
resistir face ao sofrimento. Ou seja, mesmo ao
defender-sedas feridasmais sse•
ele se abre ara acolher a variedade das afecções
anarquista devolvido a si ainda que ele seja o de um coleóptero.
sutis. E concomitantemente, toma-se ativo a partir de seu sofrimento primário, da para si um cor;po sem óvgäos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escëpar
sensibilidadeelementar,das dores ao juízo." É assim, ao menos.queGregoršggpg@ppgive tenta encontrar uma saída
e ferimentos e afetação originária. Em outros termos
II) KAFKA.Franz. Carta a
Felice, de 16 de junho de 1913.
12)Citadopor BLANCHOT, 14) SLOTERDIJK, Peter. Le penseur sur scène. Paris, ChristianBourgois. 2000. p- 172.
Maurice.Vespace littéraire. Paris. 15)DELEUZE,
13)COSTALIMA,Luiz Gallimard, 1955, p. 77. G. Críticae clínica,op.cit., p. 149.
da voz: Kafka.Rio de Janeiro,
Rocco, 1993. cap. 2.
fugir do gerente, do comércio O corpo do informe 51
no corpo desfeito e intensivo e dos
insistem os autores, que foge
Há aí, da disciplina, uma vitalidade nao-o Bios designava a vida qualificada, uma forma-de-vida, um modo de vida característico
do adestramento de um indivíduo ou grupo. Saltemos todas as mediações preciosas do autor a respeito
tao freqUentes em Kafka (defeÄ,tGqNues
nos gestos de combate da relação entre vida nua e poder soberano," para indicar simplesmente o seguinte:
Mesmo "poderosa vitalidade näo-organica, que
se anuncia uma o contexto contemporâneoreduz as formas-de-vidaà vida nua, desde o que se faz
equivas,paradas), de que se apossa"
enriquece aquilo
a força, e com os prisioneiros da AI Qaeda na base de Guantánamo, ou com a resistência na
a forçacom aqui essa menção
enigmática a Deleuze, mas nao
Poderíamosencerrar o teríamos Palestina, ou com detentos nos presídios do Brasil há poucos anos atrás, até o que se
a estranheza desse texto caso não completássemos com perpetra nos experimentos biotecnológicos, passando pela excitação anestésica em
atingidosuficientemente melhor encarna uma tal vitalidade näo-orgânica. a
que massa a que somos submetidos cotidianamente, reduzidos que somos a manso gado
referênciaàquilo exemplo de Dickens. O canalha Riderhood
Em
comparece o está cibernético, ciberzumbis, como escrevia Gilles Châtelet em Viver e pensar como
Imanência:uma vida,
num quase afogamento, e nesse ponto libera uma "centelha de vida porcos. Diante da redução biopolítica das formas-de-vidaà vida nua, abre-se um
prestesa morrer
do canalha que ele é, centelha com
parecepoder ser separada a qual leque de desafios dos quais um dos mais importantes poderia ser formulado da seguinte
dem dele"que odeiem.
compadecem,por mais que o Eis aí uma vida, maneira: como extrair da vida nua formas-de-vida quando a própria forma se desfez,
todosà suavoltase neutro, para além do bem e do
puro
e como fazê-lo sem reinvocarformas prontas, que sio o instrumento da redução à
impessoal,singular, mal, uma "espécie
aconteciflEnto, extremo vida nua? Trata-se, em suma, de repensar o corpo do informe, nas suas diversas
O outro exemplo situa-se no oposto da existência
de beatitude",diz Deleuze.
"emmeio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessados
Osrecém-nascidos,
dimensões. Se os personagens que mencionei, juntamente com seus corpos esquálidos,
que é pura potência, e até mesmo beatitude". Pois tambémo
sua gestualidade inerte, sua sombra branca ou demasiado grande, sua opacidade
por uma vida imanente ofensiva, sua passividade originária, repercutem em meio ao espaço literário "neutro"
bebê, tal o moribundo,é atravessado por uma vida, um "querer-viver obstinado,
qualquer vida orgânica: com uma criancinha já se em que surgiram, é porque do interior do que poderia parecer a vida nua a que foram
cabeçudo,indomável,diferente de reduzidos pelos poderes, sejam eles soberanos, disciplinares ou biopolíticos, nesses
tan pessoalorgânica, mas não com o bebê, que concentra em sua pequenez
personagens se expressa uma vida, singular, impessoal, neutra. não atribuível a um
a energia suficiente para arrebentar os paralelepípedos (o bebê-tartaruga de
sujeito e situada para além de bem e mal. Talvez por tratar-se de uma vida que não
Lawrence)." carece de nada, que goza de si mesma, em sua plena potência — vida absolutamente
Textossurpreendentes,em que se vai do sistema do juízo aos recém-nascidos, imanente —, que Deleuze referiu-se à beatitude.
numasequência vertiginosa de cambalhotas, perscrutando um aquém do corpo e da Em todo caso, poderíamos arriscar a hipótese de que nesses personagens "angelicais",
vidaindividuada,como se Deleuze buscasse, não só em Kafka. Lawrence, Artaud, como dizia Benjamin, fala ainda a exigência de uma forma-de-vida,mas uma forma-
Nietzsche,mas ao longo de toda sua própria obra, aquele limiar vital a partir do qual de-vida sem forma, e precisamente, sem sede de forma, sem sede de verdade, sem sede
tcxiosos lotesrepartidos,pelos deuses ou homens, giram em falso e derrapam, perdem de julgar ou ser julgado. Eis aí, como dizíamos no início, experimentos que põem em
a pregnincia, já não "pegam" no corpo, permitindo-lhe redistribuiçöes de afecto as xeque nossos modos de existência, e que talvez equivalham, no domínio subjetivo, ao
maisinusitadas.Um tal limiar, situado entre a vida e a morte, entre o homeme o que foi para o primata a liberação da mão na sua postura ereta.
animal,entre a loucurae a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem mutuamente,
pöe em xequeas divisõeslegadas por nossa tradição — e entre elas uma das mais
difíceisde serempensadas,como se verá a seguir.
Extrapolando o circuito literário, é talvez esse o paradoxo que nos é proposto
pelos tempos presentes, nos diversos âmbitos, da arte à política, da clínica ao
VIDA SEM FORMA,FORMA
DE VIDA pensamento, no seu esforço de reencontrar as forças do corpo e o corpo do informe.
Nos termos sugeridos a partir de Agamben e Deleuze, isto significaria o seguinte: no
Agamben lembra que os gregos mesmo domínio sobre o qual hoje incide o poder biopolítico, isto é, a vida, reduzida
se referiam à vida com duas palavras diferentes.
Zoé referia-seà vidacomo assim à vida nua, trata-se de reencontrar aquela uma vida, tanto em sua "beatitude"
um fato, é o fato da vida, natural, biológica, a "vida nua"
quanto na capacidade nela embutida de fazer variar suas formas.
16)DELEUZEG.
e GUAITARI.F. Xana,
17) G. crítica e clínica, por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago. 1977.P'
18) Idem. 151.
op. cit., pp. 149-150. 19) Cf. a respeitoo texto intitulado"Vida nua", na Parte II, p. 60, deste livro.

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