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VIDA CAPITAL
Ensaios de biopolítica
Parte I
se a contrário da sociedade
di'Pöe livremente do tempo e do mundovdosxecursos-do-mundo. É aquele cujo
intimidade que a sociedade destruiu, mas quase presente não está subordinadoao futuro, em que o instante brilha autonomamente.
seria o espaçode uma que a sociedade, no seu movimento
é porque de uma distancia Aquele que vive soberanamente,seo pensarmosradicalmenteNive emorre do mesmo
ela é o espaço
o contrário,
porque Em outras palavras, como diz Blanchot em modo que o animal. ou um deus. É da ordem dojogoalño do trabalho. A sexualidade
pára de esconjurar.
de totalizaçä0, já nio se trata de
communauté inavouable,'na comunidade por exemplo é útil, portanto servil, já ocrotismo é inútil. e neste sentido, soberano,
intervém o Outro, e ele é
seulivro
Mesmo,mas de uma relaçãona qual Implica num dispêndio gratuito. Domesmo modo o riso, a festa, as lágrimas, efusöes
do Mesmocomo ele introduz a dissimetria. Por um lado
sempreem dissimetria, diversas; tudo aquilo que contém um excedente.Bataille, em seu texto Essai sur Ia
sempreirredutível, pelo Outro devasta a inteireza do sujeito, souveraineté, afirma que esse excedentetem algo da ordem do milagre, até mesmo
alteridadeencarnada
entio, o infinitoda centradae isolada, abrindo-o
para uma exterioridade
do divino. Bataille chegg a dar razio o homem não
fazendoruir sua identidade constitutivo. Por outro lado, essa dissimetria impede
tem necessidade só puo. ele tem fome de milagre. Pois de soberanig,
irrevogável,num inacabamento totalidadeque constituiria uma individualidade
numa segundo Bataille, está em todos nós. até mesmo no operário, que com seu copo de
que todos se reabsorvam exemplo, os monges se despojam de
acontecer quando, por cerveja participa por ugvjnstanteaoanenos, grau, desse elemento gratuito
ampliada, como costuma desse despojamento tornam-
uma comunidade, mas a partir e milagroso, desse dispêndio inútil e porissoglorioso. Isso pode ocorrer com qualquer
tudopara fazer parte de formas reais
kibutz, ou nas ou utópicas de um, na mesma medida, diante da beleza, da tristeza fúnebre, do sagrado ou até da
de tudo,assimcomo no
se possuidores
está isso que já mal ousaremos chamar de comunidade, violência. para Bataille é que essas soberanias, que
comunismo.Em contrapartida,
iguais, e que seria antes uma ausência de comunidade, interrompem a têm objet0J)em objetivo, dão
pois näo é uma comunidade de
de reciprocidade, de fusão, de unidade, de comunhåo, em Nada, são Nada (Rien, não o Néant).
no sentidode que é uma ausência
negativa, como a chamou Georges Bataille, comunidade Bem, é claro que o dautilidade, do acúmulo,
de posse. Essa comunidade
a impossibilidade de sua própria coincidência do encadeamentona obras úteis. em
dos que näo têm comunidade,assume
diria ele, sobre o absoluto da separação
consigomesma.Poisela é fundada,como
contraposição a essa dose de acaso de arbitrário, de esplendor inútil, fasto ou nefasto,
até tornar-se relação, relação que já não aparece em formas rituaisconsagradas exteriormente, como em outros
que tem necessidadede afirmar-separa se romper
paradoxal,insensata.Insensatezque está numa recusa que talvez þar.tleby, o ternppsvmas em momentos e subjetivos, de não servilidade, de
personagemde Melyille,dramatizeda maneira mais extrema: a recusa de fazer gratuidade milagrosa, de dispêndio ou apenas de dissipação. EStá em jogo, nessa
É ali onde a comunidadeservelara... nada. É ali talvezvque elaçomece a tornar-se
soberania; uma perda de si; por trás da qual' como em Bartleby, fala uma recusa de
levar esse pensamento ao seu extremo, com todo o risco que ele servidão. Para jogar com as palavras, diríamos: Da Näo-Servidäo Involuntária. É
comporta,já que não se trata aqui de transmitir uma doutrina, mas experimentar um algo dessa ordem que está em jogo na noçãode como ela foi pensada
feixe de idéias. em que Habermasconsideraherdeirade Nietzsche e precursora
de FoucauIt.S
COMUNIDADE E SOBERANIA
MAIO DE 68 E O DESEJODE COMUNIDADE
O que é soberano, rigorosamente falando? É aquilo que existe soberanamente,
independente de qualquer utilidade, de qualquer serventia, de qualquer necessidade, Seria preciso retornar agora ao tema da comunidade, tendo porpano de fundo
de qualquer finalidade.' Soberano é o que não serve para nada, que não é finalizável
8) HABERMAS,Jurgen. O discursofilosóficoda modernidade.SIO Paulo, Martins Fontes. 2000. cap.
poruma lógicaprodutiva. Até literalmente, o soberano é aquele
que vi ve do excedenge VIII: "Entre erotismoe economiageral". Deixamosdc lado aqui. obviamente,toda discussåodo
extorquidoaos outros,e cuja existênciase abre sem limites, além de sua própria Sentidoclássico.políticoou jurídico.da noçäo A respeito.cf. em NEGRI. Antonio. O
poder constituinte(Rio de Janeiro,DP&A. 2002).Numa nota de Negri classificao ensaio
morte. O soberanoé o opostodo escravo,
do servil, do assujeitado, seja à necessidade, de Bataillesobrea soberaniaComomisteriosoe potentíssimo(p. 38n).Confrontartarnt£mcom as
ao trabalho,à produção,ao acúmulo, consideraçöesde Agambensobre a necessidadede abandonaro conceito de soberania.que garante
aos limites ou à própria morte. O soberano a indiferençaentre direitoe violência(Cf. Moyenssans Jin- Paris.Payot, 1995.p. 124),ou Sobreo
equívocode base de Bataille,ao tentar FnSar a vida nua como figura sotxrana. inscrevendo-ana
6) BLANCHOT,Maurice.La
commwnautéinavouable. Paris. Minuit.
esferado sagrado(HomoSacer: 0 podersoberanoe a vidanua. BeloHorizonte.Editorada UFMG.
7) BATAILLE.Georges."La 1986. 2002.p. 119).
souveraineté",in (Euvres completes,
t. VIII. Paris, Gallimard, 1976.
A comunidade dos sem comunidade 37
Vida capital
36 tradição produtivista e
pois contraria nossa obstante o que fundá uma comunidade. sempre provisória esempre já desertada,
Poderíamos acompanhar
nada convencional, de comunidade. çAlguma coisa entre a obra e a inoperâncias.
essa idéia soberaniaquanto Maio de 68, logo na seqUência
tanto de Blanchot sobre Talvez é o que tenha interessado a Jean-I uc Nancy, requalificar uma região que
comunicacional, Maurice
comentáriofeito
por sobre a comunidade impossível, a
obra de Bataille já nenhum projeto comunista ou comunitário carregava. Rçpensar a comunidade em
0 belo da dos que não têm
negativa, a comunidade
respeito
observações a termos distintos daqueles que na sua origemcrista.religiosa, a tinham qualificado (a
de suas a comunidade
comunidadeausente, saber, como comunhão), repensá-la em termos da instância do "comum", com todo
de 68, que inclui a comunicação
comunidade. da atmosfera de Maio o enigma aí embutido e a dificuldade decompreenderesse comum, "seu caráter não
descrição de estar junto, uma certa
Depois de uma de fala, o prazer
liberdade dado, não disponível e, nesse sentido. menos Repensar o
efervescência,a
explosiva,a segredo do comum que näo seja um segredo comum. 0 desafio obrigou o autor a
uma declaração de impotência.
é como se fosse um deslocamento, a saber, falar mais em estar-em-comum, estar-com, para evitar a
delegaria algumacoisa — aceita não fazer nada, aceita estar e
qual se paranão se limitar, ressonância excessivamente plena que foi ganhando o termo comunidade, cheia de
presença que, caráter incomum desse "povo" que
como uma Ao descrever o substância e interioridade, ainda crista (comunidade espiritual, fraternal, comunial)
dispersar-se. que poderiam dar-lhe
depoisausentar-se, que ignora as estruturas ou mais amplamente religiosa (comunidade judaica, •umma) ou étnica, com todos os
recusa a durar, a perseverar, ele escreve: '"É nisso que ele é
se ausência,
de presençae riscos fascistizantes da pulsäo comunitarista. Mesmo a comunidade inoperante, como
estabilidade,nessemisto o reconhece:
que não não se deixandoagarrar, a havia chamado Nancy em seus comentários a partir de Bataille, com sua recusa dos
detentores de um poder
temível para os a indócil obstinação em reinventá-lo
do fato social quanto Estados-naçäo, partidos, Assembléias, Povos, companhias ou fraternidades, deixava
do tanto a dissoluçäo circunscrever, já que ela a recusa" ...9 É essa
lei não pode intocado esse domínio do comum, e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os
numa soberaniaque a
a-social, associaçäo sempre pronta a se dissociar, fundamentalismos instrumentalizam crescentemente.
potênciaimpotente,sociedade momentaneamente todo o
de uma "presença que ocupa
dispersãosempre iminente não anunciando
(utopia), uma espécie de messianismo
espaço e no entanto sem lugar
inoperância",)0 0 afrouxamento sorrateiro do
nada além de sua autonomiae sua
O SOCIALISMODAS DISTÂNCIAS
inclinação àquilo que se mostra tão impossível
liamesocial,mas ao mesmotempo a
Ailanto inevitável — a comunidade.
Que esse tema seja mais do que uma obsessão individual de um autor, atesta-o
tradicional, a da terra, do
Blanchot,nesse ponto,diferencia a comunidade sua presença recorrente entre pensadores dos anos 60-70. Em curso ministrado no
mundo não
sangue,da raça, da comunidadeeletiva. E cita Bataille: "Se esse Collège de France em 1976-77,por exemplo, Roland Barthes gira em torno da
dos seres que se questão Comment vivre-ensemble (Como viver-junto). t5 Ele parte daquilo que
fosse constantementepercorrido pelos movimentos convulsivos
buscamum ao outro..., ele teria a aparência de uma derrisão oferecida àqueles considera ser seu "fantasma", mas que, visivelmente, não é apenas um fantasma
que ele faz nascer". Mas o que é esse movimento convulsivo dos seres que se individual, e sim o de uma geração. Por fantasma Barthes entende a persistência de
buscamum ao outro? Seria o amor, como quando se diz comunidade dos amantes? desejos, o assédio de imagens que insistem num autor, por vezes ao longo de toda
Ou o desejo, conformeo assinala Negri, ao dizer: "O desejo de comunidade é o uma vida, e que se cristalizam numa palavra. O fantasma que Barthes
espectroe a alma do poder constituinte — desejo de uma comunidade tão real seu, fantasma de vida, de regime, de gênero de vida, é o "viver-jungpll,
Näo o viver-
quanto ausente,trama e modo de um movimento cuja determinação essencial é a-dois conjugal, nem o viver-em-muitos segundo uma coerção coletivista.
Algo como
a exigência de ser, repetida, premente, surgida de uma Ou se trata uma "solidão interrompida de maneira regrada", um
distâncias", "a
de um movimento que não suporta nenhum nome, nem amor nem desejo, mas utopia de um socialismo das distâncias", 16na esteira do "páthos da
distância" evocado
que atrai os seres para jogá-los uns em direçäo por Nietzsche.
aos outros, segundo seus corpos
ou segundoseu coração e seu pensamento, 2 Barthes refere-se com mais precisão a seu "fantasma", ao evocar
arrebatando-os à sociedade ordinária? a leitura
Há algo dCinconfessávelnessa uma descrição de Lacarrière sobre conventos situados no
estranheza, que não podendo ser comum; é näœ monte Athos. Monges com
9) BLANCHOT, M. La communauté 13) NANCY,J.-L La communautéagrontée. op. cit„ p.
10) Idem. p. 57.
inavouable.op. cit., p. 57. 38
14) Idem, p. 41.
II) NEGRI.A. O poder 15) BARTHES, Roland. Comment vivre-ensemble.Paris,
constituinte,op. cit., p. 38. Seuil Irnec. 2002.
12) BLANCHOT, op. cit., p. 79. 16) Idem.
A comunidadedos sem comunidade 39
O CORPO DO INFORME
lhes dentro da orelha, antes de expirar. "Porque eu nio pude encontrar o alimento
que mc agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, nao teria feito nenhum
alarde e me empanturrado como você e todo mundo"? ficamos sabendo. ao final.
que a jaula onde ele dá seu último suspiro é usada em seguida para alojar uma
pantera de corpo nobre, "provido de tudo o que é necessário". e que dava a impressåo
de carregar a própria liberdade em suas mandíbulas.
A segunda imagem é a do corpo de De início,
trabalhador incansável sentado por trás do biombo. mas sem demonstrar o mínimo
gosto pelas cópias que realiza, de repente, a cada ordem que recebe do patråo. começa
a responder: Preferiria nåo. O narrador assim o descreve: o rosto magro e macilento,
a face chupada, calma, olhos cinzentos. parados e opacos, por vezes baços e vidrados.
literatura e o pensamento também fazem 0 corpo raquítico, que se alimenta de bolinhos de gengibre, a silhueta pálida. às
Agamben lembra que a ciência visa provar a verdade ou
Giorgio Mas enquanto a vezes em mangas de camisa, estranho e esfarrapado traje caseiro, uma indiferença
tal comoa ciência. pensamento têm outro objetivo.
experimentos, a literatura
eo cavalheiresca e cadavérica. Em suma, um destroço de naufrágio em pleno Atlântico.
hipótese,
falsidadede uma exemplos. Avicenas propöe sua experiência E o mais insuportável aos olhos do advogado: passiva. Impossível
Eis alguns
experimentos sem verdade. imaginaçao o corpo de um homem, pedaço por "intimidar a sua imobilidade". Mesmo na prisao, ali está Bartleby, só no pátio mais
voador, e desmembraem
dohomem e suspenso no ar, ele pode ainda dizer isolado. o rosto voltado para uma alta parede. ou definhado, deitado de lado, recusando-
mesmoquebrado
paraprovarque, Kleist evoca o corpo perfeito da marionete se a alimentar-se. Ao descobrir que esse homem sem passado ocupava-se outrora de
Rimbaud diz: "Eu é um outro".
sou". substitui ao eu psicossomático um ser vazio cartas extraviadas, o narrador se refere compadecido a esses homens extraviados...
do absoluto.Heidegger
comoparadigma preciso deixar-se levar por tais experimentos.
SegundoAgamben,é
e inessencial... do que nossos modos de existêncil
menos nossas convicções
Atravésdeles,arriscamos lembra ele, ao que foi para o O CORPOE O GESTO
história subjetiva equivalem,
No domíniode nossa ereta, ou para o réptil a transformação dos
na sua postura
primataa liberaçaoda mio Recusemos as interpretaçöes humanistas, repletas de sentido ou piedade a respeito
permitiram transformar-se em pássaro. É sempre do
membrosanteriores,que lhe de tais homens extraviados com seus corpos imóveis e inertes, esvaziados e esquálidos.
principalmente quando se parte do corpo da escrita.i
corpoquese trata,mesmoe Teríamos razöes de sobra, é verdade, para associá-los a uma cadeia infindável de
corpos aviltados. na crueldade e indiferença dos genocídios que povoaram a
iconografia de nosso último século. Mas insisto, fiquemos inicialmente apenas com
IMAGENSLITERÁRIAS essas posturas esquisitas, esse "de pé frente ao muro". esse "deitado" no meio da
e palha, essa cabecinha caída mas falando dentro da orelha, esse estar sentado por trás
É nesseespíritoque eu gostariade partir de uma ou outra imagem literária, do biombo, esses gestos desprovidos de esteios tradicionais, como diz Walter Benjamin
corpo do jejuador de
algumasvariaçöesem tornodelas. A primeira é a do magro em seu ensaio sobre Kafka, masque ainda preseryam uma certa margem de manobra
Kat\a, por cuja arte já ninguém se interessa, abandonado numa jaula situada perto
que a guerra viria abortar. Um gesto é um meio sem finalidade, ele se basta, como na
dosestábulos,no fundodo circo. Kaf\a descreve o homem pálido, fitando o vazio
dança. Por isso, diz Agamben, ele abre a esfera da ética, própria do homem. Ainda mais
comos olhossemicerrados,com costelas extremamente salientes, braços ossudos,
quando ele se dá a partir de um corpo inerte ou desfeito. na conjunçäo impossível entre
cinturadelgada,corpo esvaziado,pernas que, para se sustentarem quando é posto de
o moribundo e o embrionário, como é o caso nos personagens literários mencionados.
uma contraa outra na altura do joelho, raspando o chio — em
pé, apertavam-se
Pensemos na fragilidade desses próximos do inumano, em posturas que
suma,um feixe de ossos.No meio da palha apodrecida, quando os funcionários do
tangenciam a morte, e que no entanto encarnam uma estranha obstinação, uma recusa
circoo encontrammeiopor acaso e lhe ele
perguntam sobre as razões de seu jejum, inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimos o signo de uma resistência. Aí se
erguesuacabecinhaexcessivamente falando-
pesada para o pescoço fraco, e responde
l) AGAMBEN,
Giorgio.Bartlebyou Ia création.
2) KAFKA. Franz. Um artista da fome. Paulo. Brasilienœ. 1991,p. 35.
paris, Circé, 1995, p. 59,
O corpo do informe 45
Wa capta/ o afetam, e
46 atento às excitaçöes que cansou de
ficar vizinhança tio provocativa que o pensamento de Deleuze e Guattari nunca
sujeito prectsa em demasia. A
aptidäo de um ser vivo crítica, seja
e melhor, o
ameaçam também depende da explorar nos vários domínios, tao diferentes nisso de uma certa tradição
afetalo, mais que o ao estrangeiro, Nietzsche,
•tandoaquelas e à alteridade, ela marxista ou frankfurtiana, sempre mais dicotómica? Um pouco como
destruiria de vez. Ele, que se referia à
violênciaque o corpo onde o mais assustador pode trazer embutido o mais promissor.
evitara cessa de ser submetido aos aí embutidos.
de permaneCerem insiste:um vivissecçao operada sobre nós mesmos, e aos riscos e promessas
tambémDeleuze os sons e as palavras cortantes —um Como diferenciar a perplexidade de Espinosa, com o fato de ainda não sabermos o
caca, como poderia 0 corpo
com outros corpos. Mas que pode o corpo, do desafio da tecnociência, que precisamente vai experimentando
o
encontrocom
é que se pode com o corpo? Como diferenciar a decomposição e a desfiguração do corl¾)
preservar as "mãos abertas"?
da "autodefesa"para necessárias. como vimos, para que as forças que o atravessam inventem novas conexöes
usar fraqueza, ao invés de permanecer na
Nietzscheem
EcceHomo,
à altura de sua e liberem novas potências, tendência que caracterizou parte de nossa cultura das
estar Lapoujade define esse paradoxo:
a forçade É assim que últimas décadas, nas suas experimentaçöes diversas, das danças às drogas e à própria
como temele a força?
fraquezade
apenas
cultivar literatura,como näo confundiristo com a decomposiçäoe desfiguraçäo que a
"como estar a altura do to voluntarista...? manipulação biotecnológica suscita e estimula? Potências da vida que precisam de
um
invés de
ultrapassá-lo em certaimpotência,e é dessa impotência que um corpo-sem-órgäos para se experimentarem, por um lado, poder sobre a vida que
forma, do ato, do agente, até
Assim,o superior,liberado da
potência
precisa de um corpo pós-organico para anexá-lo à axiomática capitalistica.
uma Talvez essa oposição remeta a duas vertentes já presentes em Nietzsche, na
eleagoraextrai
mesmo da "postura" formaparadoxalque assumiramno final de sua existência,conforme a análise de
Stiegler. "O sujeito que recebe a potência não sai dela ileso. Ferido, sofrendo com
seus ferimentos,depois vivendo dolorosamenteseus sofrimentos,coloca-se a ele
O CORK)
PÓS-ORGÅNICO
cada vez mais claramente a questão da sorte de suas próprias lesões: deve ele repará-
contemporâneo torne tudo
isso muitíssimo mais complexo, Ias por enérgicas medidasterapêuticasou deixá-las à própria sorte, com o risco de
Mas talvezo quadro material. Num contexto de que elas se infectem? teisl a força da aporia com a qual se enfrenta o vivente
decomposiçöesdo corpo
tendoem vistaas novas metáfora bioinformática tomou de assalto humano, o único que é consciente de seus ferimentos: todo sofrer deve chamar um
uma nova
digitalizaçiouniversal,em que em sua organicidade, já parece agir, mas um agir que não impeça o sofrer; as patologias do vivente reclamam uma
corpo humano, tio primitivo
o nossocorpo,o velho tecnocientífica, onde o ideário virtual vê na medicina, mas uma medicina que respeite as patologias como uma condição da vida."
obsoleto.Dianteda nova matriz Assim, o estatutodo corpo aparece como indissociávelde uma fragilidade. de uma
incômoda, um entrave à liberaçäo imaterial,
materialidadedo corpouma viscosidade ansiamos dor, até mes uma afirmaçäo vital de
Nesta perspectiva gnóstico-informática,
somostodos um pouco handicapés. e desencarnada. outra ordem. Apesar das diferentes inflexöes, é assim para Nietzsche, para Artaud,
uma imaterialidade fluida
Fla perdado suportecarnal,aspiramos por para Beckett, para Deleuze, e em certas circunstâncias também para Kafka.
aspiraçäo incorpórea, platonismo ressuscitado, o fato é
Neocartesianismohigh-tech,
utopia sociopolítica, pós-
quehá um tecno-demiurgismoque responde a uma nova
Näo há
comodiz PaulaSibilia num trabalho recente...10
orgânicae pós-humana,
mas isso O CORPODE KAFKA
porquechorarque um certo humanismo tenha sido superado, é verdade,
o mais difícil
näo significaque se possa evitar uma inquietaçäo crescente. Talvez
isto é, Em Kaf\a temos inicialmente a particularidade de ele referir-se em abundância
seja saber qual a relação entre o que alguns chamam de corpo pós-orgånico,
combinatória ao seu próprio corpo, seja no diário ou nas cartas, e de maneira sempre negativa.
estecorpo digitalizado,virtualizado,imaterializado, reduzido a uma
o que "Escrevo isso certamente determinado pelo desespero por meu corpo e pelo futuro
de elementosfinitose recombináveis segundo uma plasticidade ilimitada, e
outroschamaramda conquistade um corpo-sem-órgäos... É verdade que ambos com esse corpo" (1910); "Por certo, o meu estado físico constitui um dos principais
obstáculos a meu progresso. Com semelhantecorpo, nada se pode alcançar. Preciso
configuram da formahumana e do humanismo que lhe servia de
umasuperação
suporte,mas não seria um o contrário do outro, embora precisamente estejam nesta
me habituar a suas constantes falhas" (21 nov. 19IO);"À altura de Bergstein, voltou-
me o pensamento sobre o futuro distante. Como farei para suportá-lo com esse corpo
IO) SIBILITI„Paula. O homem
tirado de um depósito de trastes?" (24 nov. 1910).
pós-orgånieo. Rio de Janeiro, Relume Dumará. 2002.
captal
O corpo do informe 49
forças que lhe faltam para levar a bom
mesmo sentido. Kafka refere-se às
No deve poupar recusando o casamento ou
ou das forças que justamengg@portir dessapassiyidadeßonstitutiya•emgvgáz la
termo sua tarefa literária, certas forças, que, em uma circUnstância fazendo dela um acontecimento. como em .
"Só o que tenho sio Que isso desemboque por
outroscompromissos. inacessível à literatura, nas quais, em vezes na morte é quase uma necessidade.
em uma profundidade "O que escrevi de melhor se deve à
normal, se concentram ouso confiar."ll Ou outras mençöes de poder morrer contente. Em todas estas capacidade
profissional e físico, não ao boas e convincentes passagens. trata-se
meu presenteestado com F. dará mais força de resistência à de alguém que morre, o que lhe é muito sempre
"A união minha duro, que vê nisso uma injustiça e, pelo
mesmotema, tais como: um rigor para consigo; ao menos segundo menos,
preciso reconhecer em mim uma concentração muito boa na atividade penso, isso é tocante para o leitor. Para mim,
vida"; "É entretanto, que creio poder estar contenteno leito de morte,
percebeu que escrever era a direçäo mais fecunda
literária.Quando meu organismo secretamente um jogo; alegro-me em morrer tais descrições sao
para aí e foram abandonadas todas as capacacidades na figura que morre...
de meu ser, tudo se dirigiu
prazeres do sexo, do beber, do comer, da meditação
outras, as que têm por objeto os para além de toda uma reflexão possível
Era necessário, pois minhas forças, mesmo sobre a
filosóficae, antes de tudo, a música. obra literária, tal como o demonstrouBlanchot morte como parte da própria
podiam atingir o objetivo de
reunidas,eram tão pequenasque só pela metade de maneira insuperável, talvez
tenhamos nesses escritos o indício do que Peter
Ou ainda,em 1922, o seguinte desabafo numa estadia de hotel: "incapaz ecologia da dor e do prazer. Ao contrapor-se ao
Sloterdijk chamou de uma outra
de suportar um conhecimento, no silenciamento do corpo e do sofrimento
de ser conhecido por quem quer que seja, incapaz proposto pela metafísica ocidental desde o seu início,
infinito diante de uma sociedade alegre ou diante dos pais na sua versão filosófica, religiosa
fundocheio de um espanto ou médica, assistiríamos desde Nietzsche à
naturalmente, não há muita alegria, não chegaria a dizer emergência de uma outra economia da
com seus filhos (no hotel, dor, isto é, uma relação outra com a physis e com o
de 'homem com uma sombra grande demais' , páthos, livre da utopia asséptica
que sou eu a causa, na minha qualidade de um porvir indolor e imaterial. A dor é reinseridana
"imanência de uma vida que
mas efetivamenteminha sombra é demasiado grande, e com um novo espanto eu não precisa ser redimida", de modo que se realiza, aí,
constato a força de resistência, a obstinação de certos seres em querer viver 'apesar
"o ato de suportar o
insuportável "14
de tudo' nestasombra,justo além disso abandonado não somente aqui, mas
em geral, mesmo em Praga, minha 'terra natal', e não abandonado dos homens, isso
não seria o pior, enquanto eu viver poderei correr atrás deles, mas abandonado por O MORIBUNDO
E O RECÉM-NASCIDO
mim em relaçãoaos seres. por minha força em relação aos seres". 12Nesses fragmentos
percebe-seo que notou o crítico Luiz Costa Lima: "Contra um corpo débil, Talvez caiba uma última nota antes de passar às minhas parcas
conclusões. Num
desgracioso,instrumentoinseguro para com ele vislumbrar o futuro, Kafka perscruta artigo enigmático, Deleuze lembra o que tinham em comum Nietzsche,
Lawrence,
as forças que poderiam animá-lo, arrancá-lo da incerteza, da confusão e da apatia Artaud, Kafka: uma aversão à sede insaciável de julgar. Ao sistema do juízo
infinito
Mas em meio a essa estranha contabilidade energética, em que já não se sabe se opuseram um sistema dos afectos, cada um a seu modo, onde as dívidas não
mais se
o que vem de fora apenas fere ou também nutre o corpo debilitado, uma frase do inscrevem abstratamente num livro autónomo que escapa ao nosso olhar, mas marcam
final de 1913 salta à vista: "Não é de fato necessário nenhum empurrão; apenas a os corpos finitos em seus embates. Näo mais as protelaçõesinfindáveis, dívida
sobre mim e chegarei a um desespero gue me impagável, absolvição aparente, juiz onipresente, mas o combate entre corpos.
Ao
despedaçará".É onde o atrito com o mundo parece tão doído quanto necessário, corpo do juízo, diz Deleuze. com sua ß)rganizaçäpoyigrgrquia, segmentos,
quase uma prova de existência. Aparece assim a relação e diferenciações, Kafka teria oposto o çprpo "afetivovintensivo. anarquista, que só
existir no seio de um comporta pólos, zonas, limiares e gradientes". Desse modo desfazem-se e embaralham-
Talvez uma tal relação,não só em Kafka, mas se as hierarquias, "preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas
também nos autores mencionados,
deixeentreverno corpo umaforça de e as percorrem a toda velocidade, em que enfrentam poderes, sobre esse corpo
resistir face ao sofrimento. Ou seja, mesmo ao
defender-sedas feridasmais sse•
ele se abre ara acolher a variedade das afecções
anarquista devolvido a si ainda que ele seja o de um coleóptero.
sutis. E concomitantemente, toma-se ativo a partir de seu sofrimento primário, da para si um cor;po sem óvgäos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escëpar
sensibilidadeelementar,das dores ao juízo." É assim, ao menos.queGregoršggpg@ppgive tenta encontrar uma saída
e ferimentos e afetação originária. Em outros termos
II) KAFKA.Franz. Carta a
Felice, de 16 de junho de 1913.
12)Citadopor BLANCHOT, 14) SLOTERDIJK, Peter. Le penseur sur scène. Paris, ChristianBourgois. 2000. p- 172.
Maurice.Vespace littéraire. Paris. 15)DELEUZE,
13)COSTALIMA,Luiz Gallimard, 1955, p. 77. G. Críticae clínica,op.cit., p. 149.
da voz: Kafka.Rio de Janeiro,
Rocco, 1993. cap. 2.
fugir do gerente, do comércio O corpo do informe 51
no corpo desfeito e intensivo e dos
insistem os autores, que foge
Há aí, da disciplina, uma vitalidade nao-o Bios designava a vida qualificada, uma forma-de-vida, um modo de vida característico
do adestramento de um indivíduo ou grupo. Saltemos todas as mediações preciosas do autor a respeito
tao freqUentes em Kafka (defeÄ,tGqNues
nos gestos de combate da relação entre vida nua e poder soberano," para indicar simplesmente o seguinte:
Mesmo "poderosa vitalidade näo-organica, que
se anuncia uma o contexto contemporâneoreduz as formas-de-vidaà vida nua, desde o que se faz
equivas,paradas), de que se apossa"
enriquece aquilo
a força, e com os prisioneiros da AI Qaeda na base de Guantánamo, ou com a resistência na
a forçacom aqui essa menção
enigmática a Deleuze, mas nao
Poderíamosencerrar o teríamos Palestina, ou com detentos nos presídios do Brasil há poucos anos atrás, até o que se
a estranheza desse texto caso não completássemos com perpetra nos experimentos biotecnológicos, passando pela excitação anestésica em
atingidosuficientemente melhor encarna uma tal vitalidade näo-orgânica. a
que massa a que somos submetidos cotidianamente, reduzidos que somos a manso gado
referênciaàquilo exemplo de Dickens. O canalha Riderhood
Em
comparece o está cibernético, ciberzumbis, como escrevia Gilles Châtelet em Viver e pensar como
Imanência:uma vida,
num quase afogamento, e nesse ponto libera uma "centelha de vida porcos. Diante da redução biopolítica das formas-de-vidaà vida nua, abre-se um
prestesa morrer
do canalha que ele é, centelha com
parecepoder ser separada a qual leque de desafios dos quais um dos mais importantes poderia ser formulado da seguinte
dem dele"que odeiem.
compadecem,por mais que o Eis aí uma vida, maneira: como extrair da vida nua formas-de-vida quando a própria forma se desfez,
todosà suavoltase neutro, para além do bem e do
puro
e como fazê-lo sem reinvocarformas prontas, que sio o instrumento da redução à
impessoal,singular, mal, uma "espécie
aconteciflEnto, extremo vida nua? Trata-se, em suma, de repensar o corpo do informe, nas suas diversas
O outro exemplo situa-se no oposto da existência
de beatitude",diz Deleuze.
"emmeio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessados
Osrecém-nascidos,
dimensões. Se os personagens que mencionei, juntamente com seus corpos esquálidos,
que é pura potência, e até mesmo beatitude". Pois tambémo
sua gestualidade inerte, sua sombra branca ou demasiado grande, sua opacidade
por uma vida imanente ofensiva, sua passividade originária, repercutem em meio ao espaço literário "neutro"
bebê, tal o moribundo,é atravessado por uma vida, um "querer-viver obstinado,
qualquer vida orgânica: com uma criancinha já se em que surgiram, é porque do interior do que poderia parecer a vida nua a que foram
cabeçudo,indomável,diferente de reduzidos pelos poderes, sejam eles soberanos, disciplinares ou biopolíticos, nesses
tan pessoalorgânica, mas não com o bebê, que concentra em sua pequenez
personagens se expressa uma vida, singular, impessoal, neutra. não atribuível a um
a energia suficiente para arrebentar os paralelepípedos (o bebê-tartaruga de
sujeito e situada para além de bem e mal. Talvez por tratar-se de uma vida que não
Lawrence)." carece de nada, que goza de si mesma, em sua plena potência — vida absolutamente
Textossurpreendentes,em que se vai do sistema do juízo aos recém-nascidos, imanente —, que Deleuze referiu-se à beatitude.
numasequência vertiginosa de cambalhotas, perscrutando um aquém do corpo e da Em todo caso, poderíamos arriscar a hipótese de que nesses personagens "angelicais",
vidaindividuada,como se Deleuze buscasse, não só em Kafka. Lawrence, Artaud, como dizia Benjamin, fala ainda a exigência de uma forma-de-vida,mas uma forma-
Nietzsche,mas ao longo de toda sua própria obra, aquele limiar vital a partir do qual de-vida sem forma, e precisamente, sem sede de forma, sem sede de verdade, sem sede
tcxiosos lotesrepartidos,pelos deuses ou homens, giram em falso e derrapam, perdem de julgar ou ser julgado. Eis aí, como dizíamos no início, experimentos que põem em
a pregnincia, já não "pegam" no corpo, permitindo-lhe redistribuiçöes de afecto as xeque nossos modos de existência, e que talvez equivalham, no domínio subjetivo, ao
maisinusitadas.Um tal limiar, situado entre a vida e a morte, entre o homeme o que foi para o primata a liberação da mão na sua postura ereta.
animal,entre a loucurae a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem mutuamente,
pöe em xequeas divisõeslegadas por nossa tradição — e entre elas uma das mais
difíceisde serempensadas,como se verá a seguir.
Extrapolando o circuito literário, é talvez esse o paradoxo que nos é proposto
pelos tempos presentes, nos diversos âmbitos, da arte à política, da clínica ao
VIDA SEM FORMA,FORMA
DE VIDA pensamento, no seu esforço de reencontrar as forças do corpo e o corpo do informe.
Nos termos sugeridos a partir de Agamben e Deleuze, isto significaria o seguinte: no
Agamben lembra que os gregos mesmo domínio sobre o qual hoje incide o poder biopolítico, isto é, a vida, reduzida
se referiam à vida com duas palavras diferentes.
Zoé referia-seà vidacomo assim à vida nua, trata-se de reencontrar aquela uma vida, tanto em sua "beatitude"
um fato, é o fato da vida, natural, biológica, a "vida nua"
quanto na capacidade nela embutida de fazer variar suas formas.
16)DELEUZEG.
e GUAITARI.F. Xana,
17) G. crítica e clínica, por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago. 1977.P'
18) Idem. 151.
op. cit., pp. 149-150. 19) Cf. a respeitoo texto intitulado"Vida nua", na Parte II, p. 60, deste livro.