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Acesso e Permanência no Ensino

Superior
SUMÁRIO
Composição da Comissão de Educação e Cultura
Composição da Comissão de Diretos Humanos e Minorias
Apresentação -
Audiência Pública do dia 13/05/2004
Primeira Parte:
Abertura dos Trabalhos
- Deputado Carlos Abicalil, Presidente da Comissão de Educação e Cultura ...
- Deputado João Matos, Coordenador do Evento
- Exposição da senhora Matilde Ribeiro, Secretária Especial de Políticas de Promoção e
Igualdade Racial da Presidência da República
- Exposição do senhor Nelson Maculan Filho, Secretário de Ensino Superior do Ministério
da Educação
- Exposição da senhora Sônia Malheiros Miguel, Diretora da Subsecretaria de Articulação
Institucional da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da
República
- Exposição do senhor Timothy Martin Mulholland, Vice-Reitor da Universidade de Brasília

Segunda Parte:
Debates
- Deputado João Matos
- Deputado Ivan Valente
- Deputada Iara Bernardi
- Deputado Gilmar Machado
- Deputado Átila Lira
- Deputado Severiano Alves
- Deputado Chico Alencar
- Deputado Gastão Vieira
- Deputado Luciano Leitoa
- Deputado Colombo
- Deputado Murilo Zauith

Audiência do dia 15/06/2004


Primeira Parte
Abertura dos Trabalhos
- Deputado Carlos Abicalil, Presidente da Comissão de Educação e Cultura ...
- Deputado Jairo Carneiro, Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias
- Deputado Luiz Alberto, Coordenador do Evento
- Exposição do senhor Frei David Raimundo dos Santos, Diretor-Executivo da Educação e
Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes - EDUCAFRO
- Exposição do senhor Marcelo Brito, Presidente da União Brasileira de Estudantes
Secundaristas - UBES
- Exposição do senhor Hédio Silva Júnior, Professor-Doutor, especialista da Universidade
de São Paulo/USP
- Exposição da senhora Maria José de Jesus Alves Cordeiro, Pró-Reitora de Ensino da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
- Exposição do senhor Flávio Jorge Rodrigues da Silva, representante da Coordenação
Nacional das Entidades Negras — CONEN
- Encerramento da audiência - Dep. Carlos Abicalil fazendo considerações finais

Segunda Parte:
Debates ..............................
- Deputado Paulo Rubem Santiago
- Deputado Chico Alencar
- Deputado Jairo Carneiro
- Deputada Maria do Rosário
- Deputado Ivan Valente
- Deputado Babá
- Deputado Eduardo Valverde
- Deputado João Grandão
- Maria José de Jesus Alves Cordeiro
- Flávio Roberto
- Encerramento

Audiência do dia 09/12/2004


Abertura dos Trabalhos
- Deputado Carlos Abicalil, Presidente da Comissão de Educação e Cultura ...
- Exposição do senhor Tarso Genro, Ministro de Estado da Educação ........

Segunda Parte:
Debates ..............................
Deputada Professora Raquel Teixeira
Deputado João Matos
Deputado Nilson Pinto
Deputada Alice Portugal
Deputado Osvaldo Biolchi
Deputado Chico Alencar
Deputada Fátima Bezerra
Deputada Iara Bernardi
Deputado Ivan Valente
Deputada Neyde Aparecida
Deputado Ivan Valente
Comissão de Educação e Cultura
Mesa da Comissão:
Presidente: Deputado CARLOS ABICALIL (PT/MT)
Vice-Presidentes: Deputado CÉSAR BANDEIRA (PFL/MA)
Deputado JOÃO MATOS (PMDB/SC)
Deputada PROFESSORA RAQUEL TEIXIERA (PSDB/GO)
Composição da Comissão:
Deputada ALICE PORTUGAL (PC do B/BA)
Deputado ANTÔNIO CARLOS BIFFI (PT/MS)
Deputado ANTÔNIO CARLOS M. NETO (PFL/BA)
Deputado ATHOS AVELINO (PPS/MG)
Deputado ÁTILA LIRA (PSDB/PI)
Deputado BONIFÁCIO DE ANDRADA (PSDB/MG)
Deputado CARLOS ABICALIL (PT/MT)
Deputada CELCITA PINHEIRO (PFL/MT)
Deputado CÉSAR BANDEIRA (PFL/MA)
Deputado CHICO ALENCAR (PT/RJ)
Deputado CLÓVIS FECURY (PFL/MA)
Deputado COLOMBO (PT/PR)
Deputado COSTA FERREIRA (PSC/MA)
Deputado DOMICIANO CABRAL (PSDB/PB)
Deputado EDUARDO BARBOSA (PSDB/MG)
Deputado EDUARDO SEABRA (PTB/AP)
Deputada ELAINE COSTA (PTB/RJ)
Deputada FÁTIMA BEZERRA (PT/RN)
Deputado GASTÃO VIEIRA (PMDB/MA)
Deputado HENRIQUE AFONSO (PT/AC)
Deputado HUMBERTO MICHILES (PL/AM)
Deputada IARA BERNARDI (PT/SP)
Deputado IVAN VALENTE (PT/SP)
Deputado JOÃO MATOS (PMDB/SC)
Deputado JOSÉ IVO SARTORI (PMDB/RS)
Deputada KELLY MORAES (PTB/RS)
Deputado LOBBE NETO (PSDB/SP)
Deputado LUCIANO LEITOA (PSB/MA)
Deputado LUIZ BITTENCOURT (PMDB/GO)
Deputado MARCIO REINALDO MOREIRA (PP/MG)
Deputado MARIA DO ROSÁRIO (PSB/RS)
Deputada MARINHA RAUPP (PMDB/RO)
Deputado MILTON MONTI (PL/SP)
Deputado MURILO ZAUITH (PFL/MS)
Deputada NEYDE APARECIDA (PT/GO)
Deputado NILSON PINTO (PSDB/PA)
Deputado OSMAR SERRAGLIO (PMDB/PR)
Deputado OSVALDO BIOLCHI (PMDB/RS)
Deputado OSVALDO COELHO (PFL/PE)
Deputado PAULO LIMA (PMDB/SP)
Deputado PAULO RUBEM SANTIAGO (PT/PE)
Deputado PEDRO IRUJO (PL/BA)
Deputado PROFESSOR IRAPUAN TEIXEIRA (PP/SP)
Deputada PROFESSORA RAQUEL TEIXEIRA (PSDB/GO)
Deputado RAFAEL GUERRA (PSDB/MG)
Deputado ROGÉRIO TEÓFILO (PPS/AL)
Deputado ROMMEL FEIJÓ (PTB/CE)
Deputada SELMA SCHONS (PT/PR)
Deputado SÉRGIO MIRANDA (PC do B/MG)
SEVERIANO ALVES (PDT/BA)
Deputado SUELY CAMPOS (PP/RR)
Deputado VANDERLEI ASSIS (PP/SP)
Deputado WAGNER LAGO (PP/MA)

Comissão de Direitos Humanos e Minorias


Mesa da Comissão:
Presidente: Deputado MÁRIO HERINGER (PDT/MG)
Vice-Presidentes: Deputado LUIZ COUTO (PT/PB)
Deputado JAIRO CARNEIRO (PFL/BA)
Deputada ZELINDA NOVAES (PFL/BA)
Composição da Comissão:
Deputado CARLOS ABICALIL (PT/MT)
Deputado CHICO ALENCAR (PT/RJ)
Deputado CLÁUDIO MAGRÃO (PPS/SP)
Deputado EDSON DUARTE (PV/BA)
Deputado ENIO BACCI (PDT/RS)
Deputado FERNANDO DINIZ (PMDB/MG)
Deputado GERALDO THADEU (PPS/MG)
Deputada IRINI LOPES (PT/ES)
Deputado JAIRO CARNEIRO (PFL/BA)
Deputado JOÃO ALMEIDA (PSDB/BA)
Deputado JOSÉ LINHARES (PP/CE)
Deputado LEONARDO MATTOS (PV/MG)
Deputado LINCOLN PORTELA (PL/MG)
Deputada LUCI CHOINACKI (PT/SC)
Deputado LUIZ ALBERTO (PT/BA)
Deputado LUIZ COUTO (PT/PB)
Deputado MARCUS VICENTE (PTB/ES)
Deputada MARIA DO ROSÁRIO (PT/RS)
Deputado MÁRIO HERINGER (PDT/MG)
Deputado MIRO TEIXEIRA (PPS/RJ)
Deputado NILSON BAIANO (PP/ES)
Deputado ORLANDO FANTAZZINI (PT/SP)
Deputado PASTOR FRANCISCO OLÍMPIO (PSB/PE)
Deputado PASTOR REINALDO (PTB/RS)
Deputado PAULO GOUVÊA (PL/RS)
Deputada THELMA DE OLIVEIRA (PSDB/MT)
Deputada ZELINDA NOVAES (PFL/BA)

APRESENTAÇÃO
A luta empreendida por segmentos organizados da sociedade civil em defesa da inclusão
social, de vários grupos excluídos, também por meio do acesso e permanência na escola
brasileira, tem encontrado ressonância nos poderes constituídos, especialmente no Poder
Executivo e no Poder Legislativo. O Presidente da República, na cidade de Salvador, lançou
o Programa "Brasil sem Racismo", conferindo sua definição política de governo ao criar um
órgão específico de combate ao racismo, a SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial, com porte administrativo de Ministério, ligado à Presidência
da República.
Uma das expressões dentro do Poder Legislativo, na Comissão de Educação e Cultura, bem
como na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara dos Deputados, deu-se em
2004 valiosos debates em audiências públicas sobre o sistema de reserva de vagas para o
acesso e permanência no ensino superior, priorizando os afro-descendentes, indígenas e
alunos oriundos da escola pública. Nesta Casa também se expressa esta preocupação por
meio da tramitação de importantes projetos de lei que propõem o sistema de reserva de
vagas, provocando uma discussão mais aprofundada, com procedimentos que devem
resultar em leis e que, por sua vez, se concretizam em políticas públicas.
Vale ressaltar que este debate vem perdendo a sua invisibilidade, hoje, já tomando
consciência de grande parte da população brasileira, embora ainda persista uma forte
polêmica entre estes e aqueles que insistem na fala universalista que, apesar de apontar
para uma situação ideal, não corresponde ao retrato atual da sociedade brasileira .
Lamentavelmente faz-se necessário cumprir o convencional slogan "não é possível tratar
como iguais os diferentes". Não tem sido o insucesso ou a queda de qualidade do ensino a
marca dos programas criados por algumas universidades nessa direção.
A presente separata apresenta três dos mencionados momentos e debates, com ricas
contribuições de representantes dos poderes executivo e legislativo, bem como da
sociedade civil. No dia 13 de maio, a Comissão de Educação e Cultura homenageou o
simbolismo deste dia realizando uma audiência pública, com a presença da Ministra da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o Secretário do Ensino
Superior do Ministério da Educação, de representante da Secretaria Especial de Política
para as Mulheres e da Universidade de Brasília. No dia 15 de junho, juntamente com a
Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a Comissão de Educação e Cultura, promoveu
outra audiência pública, discutindo com outros atores, onde, além dos Presidentes das duas
Comissões promotoras se destacaram: representante da Universidade do Mato Grosso do
Sul, da EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes, da
Coordenação Nacional de Entidade Negras, da UBES - União Brasileira de Estudantes
Secundaristas, além do Professor Doutor Hédio Silva Júnior - pesquisador da área na
Universidade de São Paulo. Finalizando os debates sobre o tema, foi realizada a terceira
audiência pública, no dia 9 de dezembro com a participação do Ministro de Estado da
Educação, senhor Tarso Genro, acrescentando a esta publicação importantes subsídios
para um debate qualificado.
Deputado CARLOS ABICALIL
Presidente da Comissão de Educação e Cultura
1ª AUDIÊNCIA — 13/05/2004
SISTEMA DE COTAS EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICO

Abertura
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - A Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos
deputados, em data repleta de simbolismo, 13 de maio, dia institucional da Lei Áurea, tendo
em vista a história de apartação social e exploração da força de trabalho do negro no Brasil,
e no dia seguinte ao da aprovação de importante relatório pela Comissão Especial que trata
do fim do trabalho escravo no País, trazemos para o debate o tema: Sistema de Cotas em
Instituições de Ensino Superior Público.
Esta audiência pública se insere no debate que, na última década, resultou em diversas
proposições legislativas, no sentido de instituir caminhos para respeitar a diversidade, e,
mais recentemente, na decisão do Governo da República de instituir a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, reforçar a Política Nacional de Direitos
Humanos e apontar, com o conjunto da sociedade, a consolidação de matérias legislativas
atinentes à implementação do sistema de cotas em instituições de ensino público.
Levando em conta todo o debate realizado no âmbito do Poder Executivo e o envolvimento
do movimento social representativo da diversidade racial brasileira, convidamos para fazer
enriquecer o debate a senhora Matilde Ribeiro, Secretária Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Tendo em vista o envolvimento
do Ministério da Educação, a concentração de proposições nessa área e a inclusão do
sistema de cotas no ensino superior, o senhor Nelson Maculan Filho, Secretário de
Educação Superior, que nesta oportunidade representa o Ministro Tarso Genro. A senhora
Sônia Malheiros Miguel, Diretora da Subsecretaria de Articulação Institucional da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, que neste evento
representa a senhora Secretária Nilcéa Freire, e o senhor Timothy Martin Mulholland, Vice-
Reitor da Universidade de Brasília, que instituiu também propostas de ações afirmativas, já
praticadas por essa instituição federal.
Neste chão em que é irrigada a raiz da liberdade, devo registrar, por dever de justiça, que
esta audiência pública foi proposta pelos Deputados Ivan Valente, João Matos e Gilmar
Machado e Iara Bernardi. Ela se insere no contexto de um ciclo de debates, instaurado como
parte das atividades da Comissão, em que serão discutidos diversos temas atinentes ao
ensino superior no Brasil, particularmente à sua reforma. Isso será feito ao longo do ano,
para desvelar soluções relativas a propostas que há muito tempo tramitam na Casa e têm
relação com a reforma da educação superior e as políticas de promoção da igualdade racial
no País.
Esperamos assim, estar aqui cumprindo o nosso papel de dar diferentes respostas aos
diferentes e diversos desafios impostos por essa nova realidade brasileira, tendo como
prioridade a promoção da inclusão social. E, esperamos fazê-los respeitando a herança
cultural significativa, as experiências e práticas, os valores, interpretando profundamente os
referenciais dos problemas e das soluções possíveis.
Enquanto homens e mulheres, provocados a pensar no desafio da inclusão, e em
proposições legislativas que viabilizem a luta contra a exclusão na escola e na sociedade
essa reflexão, aqui proposta nesta audiência, e tão bem representada pelos convidados e
convidadas que trarão sem sombra de duvidas, novos sentidos, defendendo a necessidade
da escola se abrir, efetivamente, para as questões da integração dos excluídos, sentimos
também que, podemos ir além do que a integração representa e caminharmos para
a necessária e urgente : inclusão.
Convido para presidir os trabalhos o senhor Deputado João Matos, Relator que, no que diz
respeito a essa temática, analisa uma série de projetos, que estão apensados a um principal,
de origem do Senado Federal.
Deputado João Matos (Coordenador) - Ao cumprimentar as autoridades presentes, informo
que cada convidado disporá de quinze minutos para a exposição, após o que passaremos
aos debates.
Concedo a palavra à senhora Ministra Matilde Ribeiro, Secretária Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
Ministra Matilde Ribeiro - Bom-dia a todos os presentes neste auditório, principalmente os
integrantes da Comissão de Educação e Cultura. Entendo que este momento é de extrema
importância, pois, ao longo de duas horas, poderemos debater exclusivamente a
implementação de cotas para negros e indígenas nas instituições de educação superior
pública do País.
Cabe também tratar dos processos em andamento em relação às instituições privadas,
entendendo que a sociedade brasileira, com todas as suas instituições, é responsável pela
tão falada democracia com cidadania para todos, não só falada como também afirmada em
leis e processos normativos do País.
Na qualidade de Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), tenho-me ocupado, nos últimos quatorze meses, com diversas questões
próprias da ação do Governo e com a proposição que cabe à minha Secretaria no campo
da promoção da igualdade racial, as políticas de ações afirmativas.
O debate e o trabalho cotidiano de diálogo para formulação dessa proposta juntamente com
outros organismos de Governo, em especial o Ministério da Educação, têm ocupado boa
parte dessa tarefa, considerando ser esse um tema debatido historicamente pela sociedade,
mas pouco apreendido e pouco incluído como prioridade nas políticas públicas brasileiras.
Estamos, portanto, vivendo um momento ímpar na história do País. Não somos os primeiros
a ter iniciativa dessa natureza, mas, com certeza, neste momento, estamos dando maior
continuidade, levando-se em conta que, pela primeira vez, temos uma secretaria no primeiro
escalão do Governo tendo como tarefa exclusiva propor, formular ações afirmativas, como
já disse, no campo da promoção da igualdade racial.
Então, não estamos sem espaço, sem locus no Governo para fazer os debates e os
encaminhamentos relativos ao tema. O papel da SEPPIR é coordenar políticas de governo
para a promoção da igualdade racial. Isso significa que, para darmos andamento a essa
agenda, temos de desenvolver um trabalho continuado, com a participação dos mais
tradicionais Ministérios responsáveis pelas políticas sociais.
Ressalto que este debate, como já disse, não nasceu hoje. Repito uma frase de uma pessoa
muito importante no cenário histórico brasileiro, que já passou por esses espaços
parlamentares em Brasília, o senhor Abdias do Nascimento, que, no dia 14 de março,
completou noventa anos. Lúcido e ainda com muita energia para contribuir com o País, disse
que terá energia para muito mais, que apoiará nossa pauta e continuará lutando pelos
direitos humanos no Brasil.
Há muito tempo, Abdias disse que a luta pela liberdade, pela dignidade e pela cidadania da
população negra brasileira não começou conosco, e sim a partir do momento em que o
primeiro negro chegou ao Brasil na condição de escravo, quando, no trabalho forçado, lutava
pela liberdade. Então, não estamos inventando nada, estamos apenas potencializando uma
luta ancestral de construção da dignidade e da liberdade não só para a população negra,
mas para toda a Nação brasileira.
Nesse sentido, Abdias do Nascimento, em 1946, sugeria o debate sobre ações afirmativas
no Brasil, chamando a atenção das instituições públicas e privadas para que assumissem
sua parcela de responsabilidade na construção da igualdade e da justiça social, a fim de
garantir cidadania à população negra ex-escrava.
Em 1967, o Brasil passou a ser signatário da convenção da ONU contra todas as formas de
discriminação, quando foi anunciada a importância de os Governos assumirem políticas de
ações afirmativas, nos mesmos termos discutidos hoje.
Em 1988, nossa Carta Magna definiu a igualdade de direitos para todos, independentemente
de raça, credo, idade, sexo. Pela primeira vez, declara-se que racismo é crime inafiançável
e imprescritível. De lá para cá, muitas coisas aconteceram, e ainda hoje buscamos direitos
iguais para todos.
Em 2001, houve uma importante movimentação internacional: a III Conferência contra a
Discriminação, o Racismo, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na
África do Sul. Nessa conferência, o mais recente movimento mundial a reunir vários Estados,
muitos Governos assinaram uma intenção de afirmação da responsabilidade dos Estados
em garantir cidadania e direitos, desenvolvimento de políticas públicas que dessem conta
de todas as necessidades humanas e programas de ações afirmativas, considerando-se
medidas reparatórias de injustiças sociais históricas e fazendo-se referência à escravidão
como um marco de mediocridade e crueldade do gênero humano.
Portanto, devemos, a cada dia, ser conseqüentes com essa agenda de direitos humanos
em âmbito internacional e fazer das ações afirmativas um caminho para a construção da tão
almejada igualdade.
A partir dessa conferência, o Governo brasileiro, já comprometido com essas medidas que
acabei de relatar, intensificou sua responsabilidade no desenvolvimento de uma agenda
propositiva em relação a essas questões. O atual Governo tem dado continuidade às ações
existentes em âmbito federal.
Como conseqüência de árdua luta do movimento negro e anti-racista do Brasil, foi realizada
em 1995 a brilhante Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela
Vida. Integrantes dessa marcha, uma homenagem a Zumbi dos Palmares, afirmando-o
como herói nacional, entregaram ao Governo Federal, presidido, na época, por Fernando
Henrique Cardoso, uma plataforma de reivindicações e proposições para a sociedade
brasileira no sentido da garantia de cidadania e direitos para a população negra.
Naquele momento, destacavam-se as políticas relativas às comunidades remanescentes de
quilombos, somando todas as áreas da política pública e social brasileira, com a urgente
necessidade de o Governo e as instituições públicas e privadas do País serem
conseqüentes com suas definições históricas em relação aos direitos de cidadania para as
populações negra e indígena.
De 1995 para cá, avançamos bastante no que diz respeito às proposições para garantia dos
preceitos de cidadania e direitos humanos para a população negra. Diversos programas
foram desenvolvidos no Governo anterior. No atual, com a decisão do Presidente da
República de criar uma secretaria com status de Ministério, estamos intensificando a agenda
de promoção de igualdade racial.
A SEPPIR não é responsável apenas pelas políticas voltadas à população negra. A lei que
a criou determina que ela seja responsável pelo diálogo permanente e o encaminhamento
de proposições, visualizando os grupos discriminados racialmente, com ênfase na
população negra. Então, essa ênfase é o motor da SEPPIR e da relação com os demais
organismos do Governo.
Para abordar diretamente o tema de hoje — a implementação de políticas de cotas —, senti
necessidade de me reportar a esse histórico, para reafirmar que estamos dando seqüência
a antigas proposições e responsabilidades do Estado e do Governo de longa data.
O debate sobre a política de cotas intensificou-se do ano passado para cá. Foi formado um
grupo de trabalho interministerial, coordenado pela SEPPIR e pelo MEC, composto por mais
8 organismos do Governo Federal. Em quatro meses de trabalho, foi elaborada uma
proposição, entregue ao Presidente da República no final do ano passado, tendo sido
reformulada em janeiro. E essa é a matéria que está em pauta hoje.
O grupo de trabalho interministerial, após uma avaliação desse processo histórico,
apresentou ao Presidente da República proposta de medida provisória contendo diversos
artigos em que se externava a importância de se levar à frente a política de implementação
de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas federais.
A partir de janeiro, após várias reflexões, formulações e debates — o representante do
Ministro Tarso Genro vai falar a respeito do processo interno do MEC —, chegamos a uma
proposição. Estamos aguardando o posicionamento do Presidente da República em relação
a esta matéria, conclusão do trabalho do GTI e de negociações entre os dois organismos de
Governo, SEPPIR e MEC. A proposição, repito, está sendo analisada pelo Presidente da
República, portanto, ainda não é uma matéria final.
O passo posterior de Sua Excelência é o envio desse projeto de lei ao Congresso Nacional,
a fim de que passe pelos trâmites oficiais. Trata-se de instituição do sistema especial de
reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e
indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior no País.
O primeiro indicativo é que, para os concursos de ingresso nos cursos de graduação, se
considere uma proporção de alunos oriundos do ensino médio em escola pública. Na
seqüência, coloca-se a necessidade de que, dentro de um percentual de alunos oriundos da
escola pública, haja consideração de preenchimento de vagas em uma proporção de alunos
autodeclarados negros e indígenas, levando-se em conta a proporção de negros e indígenas
nas unidades da Federação, a partir dos dados do último censo do IBGE. Não sendo
preenchidas as vagas por negros ou indígenas, consideram-se os alunos oriundos da escola
pública.
Havia dois debates no cenário nacional: o de cotas para estudantes oriundos de escolas
públicas e o de cotas para negros e indígenas. Procuramos unificar as duas posições em
um só projeto de lei, considerando ser um encaminhamento democrático, que leve em
consideração que os alunos que permanecem nas escolas públicas são, em sua maioria,
pobres, dentre os quais a maioria é negra. Essa síntese é a mais óbvia possível.
Ressalto que, às vezes, obviedades também devem ser matéria de muito debate. Para
chegarmos a consensos, temos de considerar processos históricos, indicadores sociais,
alcance das ações governamentais e também a relação dos vários interesses dos Poderes
Públicos brasileiros. Não estamos falando de uma matéria fácil de ser tratada. Estamos
falando de um tema que é gerador de debate histórico.
Nesse sentido, enquanto fazemos essa discussão no Executivo e, hoje, no Legislativo, a
sociedade age. Temos dois importantes experiências, dois referências pioneiras em âmbito
estadual — a da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) —, que causaram debates, impactos e dores de cabeça, inclusive
em âmbito nacional, porque foi questionada sua constitucionalidade.
Ontem estive no Rio de Janeiro, com uma agenda intensa. Passei pela UFRJ, pela UERJ,
pela Universidade Cândido Mendes, participei de debates em relação à essa temática. A
UERJ reavalia seu sistema, mas afirma que foi de uma grandiosidade imensa a mudança
causada com a inserção dos alunos pelo sistema de cotas. Ouvi depoimentos dos alunos e
vi um público não muito comum dentro de uma universidade pública, de cerca de trezentas
pessoas, representando grupos raciais diferenciados. Percebi o orgulho dos negros por
terem tido a oportunidade de ingressar numa universidade pública. Ouvi depoimentos muito
emocionantes de que, com essa medida, houve efetiva movimentação de justiça dentro
daquela universidade.
Na UFRJ, ontem, estava reunido um conselho para discutir as possibilidades de
implementação do sistema de cotas. Em Brasília, a experiência da Universidade de Brasília
— UnB, que inclusive está representada na Mesa pelo professor Timothy Martin Mulholland,
é pioneira no âmbito federal. Ela está no desfecho de seu primeiro processo de vestibular
com cotas. Sabemos que outras experiências estão em curso pelo País. Inclusive, uma
votação favorável à implementação do sistema de cotas poderá acelerar esses processos.
Com referência às experiências que estão sendo realizadas no País, quero dizer que nós,
tanto o Executivo quanto o Legislativo, ao assumirmos nossa parcela de responsabilidade
de levar adiante o sistema que cria oportunidades para quem não as teve, reforçaremos
muitas experiências já em curso espalhadas pelo Brasil e também daremos condição para
que instituições de ensino que se têm posicionado de forma contrária à proposta ou que
estejam em dúvida possam se ver respaldadas por uma lei que garanta esse
encaminhamento. Com isso, podemos dar passos para a alteração dessa realidade de
exclusão que tanto repudiamos. Creio que é necessário um somatório de esforços.
Esse também não é um debate fácil dentro das instituições de ensino. Sabemos que há
manifestações de que a autonomia universitária deve ser preservada, não temos dúvida
disso, mas sabemos também que autonomia universitária não deve ser sobreposta aos
nossos ideais de democracia e de justiça social e racial.
Portanto, é necessário visualizar a mesma realidade por vários prismas, para que possamos
garantir encaminhamentos que possam privilegiar o todo e não apenas uma parte. Numa
linguagem com base no senso comum, costuma-se dizer que a política de cotas já está
implementada há muito no País — 99% para os brancos —, uma vez que os índices estão
comprovando que, dentre as pessoas que conseguem concluir a universidade, apenas 2%
ou 3% são negros.
Vivemos uma realidade explícita em que temos papel ativo. Não é um papel fácil; se fosse,
o Governo Lula, do qual faço parte, já teria tomado essa decisão nos seus primeiros dias.
Não é uma decisão fácil, existem visões diferenciadas dentro desse processo. Mas sabemos
que, diante de visões diferenciadas, nossa principal arma é o diálogo, a negociação e uma
proposição a mais próxima possível da chamada democracia.
Para finalizar, quero dizer que a posição do Governo tem sido construída, desde a
campanha do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no sentido de garantir as políticas de
ações afirmativas, inclusive, a de cotas. Mas, como já disse também, há interesses
diferenciados que devem firmar-se numa construção única. Portanto, o debate tem sido
travado.
Minha posição pessoal — sei que serei questionada —, mesmo antes de ser integrante do
Governo Federal e de estar Ministra, é atuar junto aos setores da sociedade, em especial
os movimentos negro e feminista, favoravelmente às políticas de ações afirmativas e às
políticas de cotas. Entendo que as políticas de cotas são necessárias, mas não são o todo,
não são a salvação da lavoura. Elas constituem um aspecto muito importante, uma alavanca
que poderá levar, nos próximos anos, a mudanças significativas no todo. Elas são um
aspecto relevante, que não deve ser considerado como eterno, são transitórias, necessárias
para criar impactos que levem à mudança. O que deve ser eterno é a educação de qualidade
e pública para todos. Isso, sim, deve ser eterno.
A política de cotas causa impactos, leva-nos a mudanças de postura e muda a fotografia
dentro das instituições públicas. Essa mudança de fotografia vi ontem na UERJ, debati
ontem na UFRJ e tenho esperança de, em breve período, vê-la na UnB e em outras
universidades públicas federais do País.
Deputado João Matos (Coordenador) - Agradeço à Ministra Matilde Ribeiro a participação.
Registro a presença de representantes da Federação de Sindicatos de Trabalhadores das
Universidades Brasileiras — FASUBRA, nas pessoas dos Diretores João Paulo Adamoli,
Neuza Luzia Pinto e Márcia Abreu.
Concedo a palavra ao senhor Nelson Maculan Filho, Secretário de Educação Superior, que
nesta oportunidade representa o Ministro da Educação.
Nelson Maculan Filho (Secretário de Ensino Superior/MEC) - Deputado João Matos, que
preside a Mesa; Ministra Matilde Ribeiro, que acabou de fazer excelente exposição; Sônia
Malheiros Miguel, representante da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; meu
colega Timothy Martin Mulholland, Vice-Reitor da Universidade de Brasília, Senhoras e
Senhores Deputados, autoridades presentes, integrantes de movimentos organizados,
minhas senhoras, meus senhores, Bom-dia.
Na última década, o grave problema das desigualdades sociais, econômicas, raciais e
étnicas assumiu lugar de destaque em debates entre a sociedade civil, a comunidade
acadêmica e administrações governamentais, fazendo emergir como temática das mais
relevantes a questão da promoção da igualdade racial e étnica.
A posição do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto a esse tema é clara
desde a campanha, quando se comprometeu com a implantação de políticas de ações
afirmativas para negros e índios nas universidades. Vivemos numa sociedade que celebra
a democracia racial, o que acabou se traduzindo num senso comum que atribui à nossa
identidade social um valor que procura distingui-la de tantas outras sociedades. Por esta
razão, quando tratamos de ações afirmativas, como o Fórum de Combate ao Racismo, em
verdade, o nosso trabalho está orientado para o aprofundamento da democracia no Brasil.
Para um novo Estado brasileiro que expresse um novo ciclo histórico e político, o combate
às desigualdades e opressões de todos os gêneros e tipos deve estar colocado como
desafio prioritário de sua agenda política e social.
No que concerne às políticas de Estado, a urgência está colocada na prática. Temos
prioridade em resolver como combater de forma adequada todas as formas de exclusão
social, especialmente a racial e étnica, e que direção escolher como País desejável para a
atividade legislativa. Que tipo de estímulos podemos tentar para formulação de políticas
públicas de combate à discriminação? O fato é que temos de politizar a inclusão das
camadas de baixa renda, tratando de modo especial negros e índios. É fundamental que as
políticas públicas se orientem pelo entendimento de que não basta apenas resolver a
questão da desigualdade econômica para que se processe a inclusão de grupos étnicos e
raciais.
O discurso político ideológico, não importa se conservador ou progressista, de esquerda ou
de direita, não tem conseguido dar conta de compreender as sutilezas dos disfarces do
sistema excludente brasileiro, que aparta não só os pobres, mas também os pobres negros
e índios, como mostram os dados. A luta por medidas sociais de caráter compensatório não
deve abandonar o desafio que representa um outro modelo de desenvolvimento, capaz de
promover a dignidade de todos, justiça social e solidariedade.
A defesa de políticas específicas não deve e não pode significar uma subestimação da
necessidade de se promover a luta geral que beneficie a todos. Assim, políticas públicas
que se orientam no sentido de garantir o direito de todos não podem deixar de lado que,
para além da exploração e espoliação econômica, impõe-se a garantia dos direitos dos
oprimidos e excluídos por suas diferenças étnicas, raciais, de gênero ou de qualquer outra
espécie — diferenças essas ainda pouco percebidas pelos atores históricos das lutas de
classe.
Reparar é, pois, uma tentativa de se corrigir desigualdades a partir de ações políticas,
econômicas, sociais, jurídicas, entre outras, que busquem restaurar a auto-estima, a
dignidade, a integridade da memória cultural, física e psicológica de negros e índios no
Brasil, que promovam o resgate do patrimônio cultural, artístico, religioso, principalmente a
ascensão socioeconômica educacional dos negros e índios atingidos pela herança
criminosa do racismo e da exclusão social.
Nesse contexto, o Ministério da Educação vem estudando e discutindo com outros órgãos
do Governo, e também com a sociedade civil, a organização e implementação de política
pública de aceso e permanência de negros e índios na educação superior. É muito
importante o papel da permanência, porque o acesso pode ser só uma vitrine. Como disse
muito bem a Ministra Matilde Ribeiro, o importante é a permanência. As universidades, as
escolas superiores, todo o ensino superior federal terá de criar condições de permanência
para essas pessoas.
Nesse sentido, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviará a esta Casa projeto de lei que
institui o Programa Universidade para Todos, voltado para o acesso democrático nas
instituições de ensino não-público e que prevê a utilização das vagas ociosas dessas
instituições de ensino superior privadas por meio da concessão de bolsas a estudantes
originários de famílias de baixa renda. As bolsas serão concedidas pelas próprias
instituições mediante processo seletivo implementado pelo Ministério da Educação. A
adesão das instituições de ensino ao programa se fará por intermédio de convênio com o
Governo Federal, concedendo-se isenção de alguns impostos e contribuições.
Em relação às universidade federais, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva estará ainda
muito brevemente encaminhando à apreciação dos Parlamentares projeto de lei que institui
sistema especial de reserva de vagas para estudantes egressos das escolas públicas, em
especial negros e indígenas, em instituições públicas federais de educação superior, que,
pelo decreto de lei citado, deverão reservar, na ocasião de cada concurso ou seleção para
o ingresso em curso de graduação, um número mínimo de vagas para estudantes que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O fato é que a reserva
de vagas para negros e índios nas instituições de educação superior nos coloca diante do
desafio de admitir a exclusão e trabalhar politicamente contra ela.
Estudos realizados nos Estados Unidos, país que adotou importante programa de ação
afirmativa nas escolas e que defende que a diversidade de gênero, racial e ética é
especialmente importante para uma universidade que pretenda responder aos desafios do
século XXI. O fato é que a diversidade incorporada ao processo pedagógico e educativo
bem, como a pesquisa, qualifica o processo de formação e saber veiculado pelas
universidades, o que resulta inclusive em revisão de teorias e conteúdos já estabelecidos,
que são repassados em inúmeras disciplinas em nossas universidades. O olhar não branco
sobre inúmeras dimensões do conhecimento humano representa o emergir de novos
paradigmas no campo do conhecimento.
No âmbito específico da educação também devem ser ressaltadas as diretrizes da Lei n.º
10.172, de 9 de janeiro de 2001 (Plano Nacional de Educação), que estabelece a
necessidade de política de inclusão de minorias étnicas.
Nossa reflexão sobre o tema da inclusão racial nos leva à constatação de que muitas
universidades que já implantaram o sistema de reserva especial de vagas para negros e
índios sofrem diante da perspectiva de ações judiciais, em razão da ausência de lei federal
que regule o tema. Já defendemos instituições de ensino superior que estão assumindo
essa posição de conceder cotas para negros e índios em inúmeras ações judiciais. Então é
muito importante que exista uma lei que regularize esse tipo de trabalho, senão nossos
colegas reitores ficarão expostos a batalhas judiciais, com dificuldade de tocarem seus
projetos de cotas nas universidades.
Nesse sentido, o Ministério da Educação entende que as ações afirmativas agregarão e
certamente virão revisar muito do conhecimento acadêmico produzido em nossas
universidades, retratando a real experiência social e histórica do Brasil. O esforço pela
construção de políticas públicas para o combate e erradicação do racismo nas universidades
brasileiras procura sintonizar-se com os desafios postos por inequívoca necessidade de
inclusão de parcela significativa da população brasileira no processo de construção de novos
saberes e novas práticas capazes de superar a homogeneização elitizadora, que hoje é a
face desigual e injusta da nossa comunidade universitária.
O Brasil, como sabemos muito bem, é capaz de desenvolver ensino e pesquisa de ponta
para poucos. Temos a dificuldade de termos ensino de massa. A experiência de boas
universidades federais, estaduais e até privadas visam muito à elitização. Desconhecemos
talvez os fenômenos do estudo do ensino francês alemão, italiano, que também são ensinos
de massa.
No ano passado, atuei como professor convidado no Instituto Politécnico de Milão e dei aula
para 330 alunos com o uso de microfone. Um Prêmio Nobel fazia o mesmo lá.
É interessante observarmos a experiência de outros países. Olhamos muito só para a
América do Norte: Canadá e Estados Unidos. Então chamo a atenção também para a idéia
de ter mais gente na universidade. Temos pessoal muito bem formado. Talvez a melhor
coisa que temos nas universidades públicas hoje são nossos professores, técnicos
administrativos e alunos. No entanto, é preciso aumentar um pouco mais a capacidade de
salas de aula, laboratórios, porque não só nas salas de aulas se ensina ou se faz pesquisa,
mas também nos laboratórios, em convivência com grandes centros de pesquisa. Então é
isso que tem de ser demarcado muito bem.
Por outro lado, foi discutido muito bem pela Ministra Matilde Ribeiro o projeto que será
também fruto das discussões presentes. Seria também interessante, nessas discussões,
mostrar que a universidade não vai baixar o nível. Tem-se que tomar muito cuidado com
discussões muito elitistas no País, em que parece que a integração de novas possibilidades
para pessoas de menor renda irá atrapalhar. Não, a universidade tem de assumir essa
responsabilidade que algumas colegas já têm assumido.
Sobre a autonomia universitária, grande parte das universidades federais já está realizando
esse processo de discussão interna. Estamos, talvez, até correndo atrás de universidades
como a UERJ, a UnB, a UFRJ. É importante também convencer os nossos colegas das
estaduais, em especial das três universidades de São Paulo, importantíssimas neste País,
para que também dêem o exemplo. Algumas universidades demarcam o desenvolvimento
deste País, como a UFRJ, a USP, a UNICAMP, por serem as maiores. É interessante
também que isso passe para uma discussão nacional.
Para mim é uma honra estar nesta Casa, que garante a democracia no País. Qualquer
pessoa como eu, na posição de Secretário, tem a honra de estar aqui. Agradeço o convite
desta Comissão, que está discutindo assunto tão interessante, permitindo que eu aqui esteja
representando o meu Ministro.
Estamos aqui para o debate. Muito obrigado!
Deputado João Matos (Coordenador) — Neste momento, tem a palavra a senhora Sônia
Malheiros Miguel, Diretora da Subsecretaria de Articulação Institucional da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República.
Sônia Malheiros Miguel (Diretora de Articulação Institucional/SPM) - Em nome da Ministra
Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, agradeço o convite para
participar desta audiência. Infelizmente a Ministra não está em Brasília, se aqui estivesse
estaria com certeza compondo esta mesa, até porque tem Sua Excelência um interesse
especial no tema aqui debatido. Foi sob sua gestão, como Reitora da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, que foi implantada a política de cotas.
Gostaria de cumprimentar a Mesa, as autoridades e Parlamentares aqui presentes. Como
contribuição ao debate, a minha intenção é fazer um paralelo entre a experiência que se
tem, desde 1996, de política de cotas para mulheres nas eleições proporcionais, e as
políticas de cotas raciais e étnicas.
Em primeiro lugar, é importante entendermos que o processo de construção de democracia,
de enfrentamento às discriminações, sejam elas quais forem, precisa ser realizado como
prioridade e em parcerias e diálogos.
Esta prioridade o Governo do Presidente Lula explicitou quando criou, como Secretaria
Especial ligada diretamente à Presidência da República, a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, e deu o mesmo status à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, colocando esses dois temas, a questão de gênero e a questão racial,
como transversais a todas as políticas desenvolvidas no Governo. Os diálogos e as
parcerias...estamos a fazer, também aqui.
Considero fundamental tentarmos implantar nas políticas instituídas, seja em que área for,
educação, saúde, trabalho, um olhar que inclua a questão de raça e de gênero, para que
estas sejam tratadas como estruturantes na elaboração de quaisquer políticas.
As ações afirmativas, de uma maneira geral — e aí se insere a política de cotas como
possibilidade de ação afirmativa —, são mecanismos eficazes para a conquista de uma
democracia efetiva e real.
As ações afirmativas e mais explicitamente as políticas de cotas, têm um caráter bastante
específico: são políticas reparatórias, compensatórias, distributivas e de inclusão. A
característica desse tipo de política é que são soluções que trazem muitos conflitos, que
geram maior polêmica para sua implementação.
Isso ocorre porque as políticas de cotas incidem diretamente nas relações de poder. Saem
do discurso e trazem as questões do combate à discriminação e da busca da igualdade
entre mulheres e homens, entre brancas, negras, índias... (brancos, negros, índios...), para
o concreto, para a esfera do dia-a-dia.
Esse é o ponto mais positivo das políticas de cotas e, por isso, essa polêmica é tão grande.
Saímos, portanto, do discurso. Deixa-se para trás a retórica de democracia ou de
necessidade de igualdade e traz-se a questão para a vida, para o concreto e para o dia-a-
dia. Na medida em que se mexe diretamente nas relações de poder, também se instala a
polêmica na sociedade. Porque falar em igualdade é fácil, mas abrir espaço para que essa
igualdade se efetive já não é tão simples assim.
Quando pensamos, por exemplo, na experiência que se teve com a proposta de cotas para
mulheres na política, no momento de sua implantação — a primeira lei de cotas para
candidatura de mulheres é de 1995 —, lembramos que foi levantada a polêmica em relação
a ser ou não constitucional. Também houve a crítica de que as mulheres que entrassem
como candidatas pelas cotas seriam "candidatas de cotas" — entre aspas — e, por essa
questão, teriam menor valor. Hoje tais críticas se repetem na questão das cotas raciais; ou
seja, os alunos que entrarem pelas cotas raciais teriam menos valor porque amparados por
essa legislação específica.
Enfrentamos também essas questões na discussão da política de cotas por sexo. Agora, há
uma outra legislação, que é de 1997. A primeira legislação de cotas para mulheres
contemplava a proporção de 20%; hoje, a cota mínima por sexo é de 30%. Esse debate
ainda existe, de alguma forma, mas a sociedade acabou se acostumando com a idéia da
política de cotas para candidaturas.
Uma diferença muito grande em relação à política de cotas raciais e de cotas para mulheres
na política é que esta última refere-se apenas a candidaturas, ou seja, não assegura a
eleição de mulheres, enquanto as cotas raciais asseguram a entrada de negras e negros, e
em menor escala, indígenas, nas universidades.
Para as mulheres candidatas há uma possibilidade maior de se candidatarem. Mas há
dificuldade de os partidos preencherem as cotas. Mas para os negros e negras, nas
universidades, a vaga é garantida.
Pensando um pouco no paralelo entre cotas para mulheres na política e cotas raciais,
ressalto dois pontos. Ficou evidente, com a experiência que adquirimos durante esses anos
— desde as eleições de 1996 temos política de cotas na política —, que só essa política não
resolve; a ela têm de ser associadas outras.
A política de cotas tem importância educativa muito grande, pois coloca a sociedade
discutindo temas que antes não eram discutidos. Mesmo com eficácia não tão grande
quanto a esperada, por exemplo, em relação à política de cotas para mulheres, o debate da
participação política das mulheres cresceu muito nestes últimos anos. Em todas as eleições
esse debate volta, e rediscutimos por que as mulheres têm pouca participação. Em relação
às cotas raciais, também. A discussão da discriminação racial ganha espaço na sociedade
como um todo. Por si só, esse fato é muito positivo, porque a discriminação racial passa a
ser questionada a partir dessa discussão. Se as cotas são implantadas ou não; se há
dificuldades; se as experiências precisam ser revistas, tudo isso tem que ser avaliado. O
que importa é que o debate está colocado, e isso já é importante.
O debate está colocado, e crescem estudos em relação ao tema. Isso aconteceu em relação
às mulheres e está acontecendo quanto à questão racial e étnica. Crescem os estudos no
sentido de compreender o racismo e seus efeitos, e a necessidade de se implementar
políticas e formatar novas atitudes na sociedade para sua superação.
De qualquer forma, já é positivo o tema ser colocado como importante para debate na
sociedade. Associar essas políticas a outras de promoção de igualdade racial e de gênero
é fundamental, pois o que temos como experiência na questão de políticas de cotas para
mulheres é que, sozinha, ela não resolve.
Trouxe dados positivos, mas as mulheres continuam sendo minoria na política. Vimos que
é preciso haver um outro processo paralelo ao de distribuição de cotas. E entendo que isso
também é importante para as cotas raciais.
Para as mulheres, particularmente, é fundamental a política de cotas raciais. Hoje, vemos
que as mulheres estão presentes nas universidades. Dizem: "As mulheres estão presentes
nas universidades; a mulher já é maioria". Hoje, nas universidades, há mais mulheres que
homens, mas só que mulheres brancas. Se fizermos um recorte racial, veremos que as
mulheres negras são minoria dentro das universidades. Além de as cotas raciais trazerem
à população homens e mulheres, elas vão incidir sobre mais mulheres dentro das
universidades; mais mulheres negras dentro das universidades. E isso é fundamental para
conseguirmos um equilíbrio maior em nossa sociedade.
É importante também vermos que vários estudos mostram a correlação direta entre
educação, rendimento e condições de vida. Se investirmos no sentido de abrir as
universidades para que estas possam dar ensino de qualidade para a população, de uma
maneira geral, com a perspectiva de poderem também atender a populações de menor
poder aquisitivo, que têm maior dificuldade, essa política irá influenciar na melhoria das
condições de vida e de rendimento. As cotas raciais vão incidir também na melhoria de
qualidade de vida da população brasileira. A visibilidade que traz a discussão da política de
cotas, seja qual for, é fundamental e, por si só, é um fator positivo.
A discussão que as cotas levantam quanto à relação de poder estruturada em nossa
sociedade é outro ponto fundamental, porque, a partir dela, podemos debater outras
relações desiguais de poder existentes. Ela é um ponto de entrada na discussão desse tema
que entendemos ser fundamental.
A política de ação afirmativa reconhece a discriminação e age não só no sentido de impedir
que essa discriminação se perpetue, mas também no sentido de recuperar mais
rapidamente a situação de equilíbrio. Ela intervém na sociedade para além do discurso e
atua no sentido de fazer com que as desigualdades percebidas, de ordem racial ou sexual,
sejam radicalmente resolvidas por meio de políticas compensatórias, com objetivo de
reequilibrar mais rapidamente esse jogo de forças. Não precisamos esperar mais 500 anos
para que, como dizem alguns, haja uma mudança na sociedade e, naturalmente, chegue-
se a isso. Se há políticas no sentido de intervir nesse quadro de maneira mais radical, por
que não fazê-lo?
A política de cotas vai possibilitar a presença de mais mulheres e de mais negros e negras
nos espaços de poder e, nesse sentido, fazer com que a presença de mulheres e negros
deixe de ser exceção e passe a ser a regra, a norma.
Outro ponto importante a ser falado é que, junto com a política de cotas, que seria uma
"política de presença", ou seja, mais mulheres ou negros nos diferentes espaços é preciso
que se associem "políticas de idéias", a presença pessoas que defendam a perspectiva de
construção de uma sociedade com igualdade de oportunidades. A já antiga, mas sempre
necessária, articulação entre quantidade e qualidade.
Conjugar a política de presença com a política de idéias é o desafio que as políticas de
ações afirmativas, sejam cotas raciais ou para mulheres, colocam.
O Brasil assinou uma série de convenções e tratados internacionais que reforçam e apóiam
a adoção de ações afirmativas, sejam para mulheres ou contra o racismo, a exemplo da IV
Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995); da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979); da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de
Belém do Pará (1994); a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001).
Nesta Casa, tramitam proposições legislativas de cotas para pessoas com deficiência, para
mulheres, para negros, para idosos, além de cotas nas mais diferentes áreas: empresarial,
da educação e do trabalho. Esse tema também está dentro desta Casa e é fundamental que
aqui seja debatido.
Por isso, parabenizo a Comissão de Educação por fazer esse debate. Acho que outros
devem ser feitos no sentido de que as senhoras e os senhores Parlamentares se apropriem
do tema e possam utilizá-lo como forma de ampliar e radicalizar a democracia neste País
de forma bastante efetiva.
Muito obrigada.
Deputado João Matos (Coordenador) — Agradecemos à Diretora Sônia Malheiros Miguel a
sua exposição.
Com a palavra o senhor Timothy Martin Mulholland, Vice-Reitor da Universidade de Brasília,
que neste ato representa a entidade.
Timothy Martin Mulholland — Bom-dia, Deputado João Matos, Presidente da Mesa;
Deputado Carlos Abicalil, Presidente da Comissão; senhora Ministra Matilde Ribeiro, da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; Professor Nelson
Maculan Filho, Secretário de Educação Superior, e meu chefe; Doutora Sônia Malheiros
Miguel, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Todos que me antecederam me facilitaram muito, porque posso começar assinando em
baixo tudo o que já foi dito aqui. Agradeço ainda pelas intervenções, porque aprendi com
elas.
Registro a presença e cumprimento os estudantes da UnB, do grupo Enegrecer, em especial
o Gustavo Amora , além de outros colegas que foram e são motor de mudanças nessa área
na Universidade de Brasília.
A presença desses estudantes na Universidade é um dos grandes privilégios que temos,
porque se posicionam com clareza e pressionam quando têm muita convicção. A
contribuição deles foi então fundamental.
Cumprimento os representantes da Federação de Sindicatos dos Trabalhadores das
Universidades Brasileiras (FASUBRA), que representam nossos técnicos administrativos.
Cumprimento e parabenizo os Deputados que engendraram essa iniciativa: Iara Bernardi,
Gilmar Machado, Ivan Valente.
É um momento nacional de grande importância, e esta Comissão está no centro do furacão
que se estabeleceu no País.
Tenho imensa honra em representar aqui o nosso Reitor, Professor Lauro Morhy.
A Universidade de Brasília tem uma história de preocupação com seu papel na sociedade.
Citarei, muito rapidamente, que nos anos 1990 várias iniciativas foram tomadas. Uma foi a
abertura de cursos noturnos, que foi feito sem qualquer apoio oficial maior. Foi
simplesmente a força de vontade da UnB de crescer e oferecer cursos para aqueles que
não podiam estudar de dia. O Programa de Avaliação Seriada, dirigido à escola pública,
acabou desvirtuado dessa finalidade por conta da falta de sensibilidade da sociedade, como
também da Justiça; mas se trata de um programa que ainda se volta para uma interação
muito forte com as escolas públicas da nossa região. Não posso deixar de citar o programa
para portadores de necessidades especiais: o candidato ao nosso vestibular que porte
alguma necessidade especial tem atendimento profissional extremamente diferenciado,
para permitir-lhe realmente uma concorrência à universidade em pé de igualdade com os
demais.
A partir de movimentos dos estudantes e da Conferência de Durban, citada pela nossa
Ministra, o debate sobre a exclusão étnica e racial se intensificou. Vários professores se
envolveram com muita garra, assim como muitos estudantes, e o processo avançou. São
três anos, praticamente, desde que se instalou esse processo. Podemos até ser acusados
de lentos, mas não de afobados nesse pormenor. Era necessário o debate porque a
Universidade de Brasília, como todas, provavelmente, teve dificuldade de assimilar essa
discussão. Foi um processo importante e, quando se chegou a uma conclusão, foi pela
quase totalidade do Conselho responsável. Foi uma coisa amadurecida e, do ponto de vista
institucional, uma vitória importante.
O que se estabeleceu na UnB foi um programa — e o distribuímos em uma pequena pasta
aos Parlamentares da Comissão — cujo sumário é o Plano de Metas para Integração Social
Étnica e Racial. Influenciou-nos também o trabalho de vários pesquisadores importantes em
nosso País, principalmente os do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), dentre eles Ricardo Henriques, que hoje está no Ministério da
Educação e Cultura (MEC), Roberto Martins e Rafael Osório.
Gostaria de mostrar rapidamente alguns dados. Selecionei três gráficos que mostram um
impacto grande para nós.
Este é um gráfico feito pelo Ricardo Henriques e mostra, na abscissa, a data de nascimento
e, na ordenada, a escolarização. Pode-se notar que, desde aqueles que nasceram na
geração do meu pai (anos 1920) até os que nasceram em 1974 há uma diferença de acesso
à escola entre brancos e negros no Brasil. O que mais marcou nosso debate é que essa
diferença é uma constante; ou seja, o brasileiro teve cada vez mais acesso à escola — a
escolarização básica passou de quatro para oito anos nesse período —, mas essa diferença
permaneceu constante. É uma diferença quase fixa. Parece até que havia uma lei...
Em nossas aulas de geometria, aprendemos que linhas paralelas jamais se encontram. Se
projetarmos essa linha para o futuro, veremos que, a se manter tudo como está, nada vai
mudar. Vamos conseguir aumentar a escolarização do brasileiro, de modo geral, de brancos
e negros, mas manteremos um hiato essencialmente ad aeterno.

Este outro gráfico mostra a situação um pouco mais recente. Aqui temos a proporção de
jovens de dezoito a 24 anos na universidade, entre 1992 e 2001. Podemos verificar que,
nesse período de dez anos, a proporção do número de alunos brancos dobrou; a proporção
de alunos negros dobrou, mas a diferença entre eles permanece constante. Ou seja, aquela
mesma situação do gráfico anterior se revela aqui também.
Teremos o maior prazer em passar estes dados aos Deputados. Registramos os dados no
computador, e a qualquer momento poderão eles ser disponibilizados. Também no site da
UnB há outras informações que nossa assessoria está disponibilizando. Seria útil consultá-
lo, também.
O que estes dados mostram, usando informações mais recentes, é que a situação não se
alterou.
Este próximo gráfico, do Rafael Osório, também do INEP, muito nos impressiona: faz uma
comparação, ao longo da escala, de pobre para rico. Na abscissa, verificamos os 10% mais
pobres até os 10% mais ricos da população; na ordenada, a escolarização e os anos de
escola de cada um.
Há uma história que se conta no Brasil: quando o negro ganha algum status social, a
discriminação desaparece. Pois este gráfico é um desmentido absoluto desse mito. Os
senhores vêem — estes dados são do Censo e não uma amostra de uma pesquisa — que,
mesmo quando participam da riqueza nacional em grau maior, o acesso do negro à escola
é menor na sociedade brasileira. São pessoas com 25 anos ou mais. O que se verifica é
que a exclusão não é apenas histórica, de quinhentos atrás; ela é de ontem, é de hoje, e,
se não houver nenhum tipo de intervenção, vai permanecer por mais quinhentos anos em
nosso País.
A convicção da UnB é de que a universidade, como já foi dito aqui, é a porta para a disputa
do poder, que dá acesso aos bens maiores que a sociedade oferece. E não podemos ser
uma porta semi-aberta, uma porta seletiva; temos que ser uma porta para toda a sociedade
brasileira.
Esses dados, e outros tantos que nos foram trazidos de pesquisadores da estirpe dos que
temos no País, levaram a UnB a definir um plano de 3 pontos básicos de ação. O primeiro
ponto é a inclusão propositada, planejada, de estudantes indígenas. Fruto desse programa,
em convênio com a FUNAI, que dá suporte aos alunos e ajuda a escolhê-los, temos hoje na
UnB onze estudantes indígenas; e, para o próximo semestre, teremos mais dez ou doze, e
assim por diante. É um programa numericamente modesto, até porque nossa região não
tem populações indígenas maiores, como em outras partes do País; mas ele tem um valor
simbólico importante. Vimos que cinco mil estudantes indígenas se formam no 2º Grau a
cada ano, mas apenas mil estão cursando universidade, e a grande maioria nas
universidades particulares. Então, entendemos que nosso papel era abrir essa porta, trazer
esses alunos para a UnB e oferecer-lhes cursos de interesse para as comunidades
indígenas. A escolha do curso vem da comunidade, que também nos encaminha os
estudantes. Eles fazem uma prova, para averiguação de conhecimentos do 2º Grau, mas
não competem no nosso vestibular tradicional.
O segundo ponto é o estabelecimento de uma cota de 20% para estudantes negros.
Verificamos, no vestibular passado, que, dos mais de vinte mil candidatos, 19,7% se
declararam pretos ou pardos e negros. Na população, em geral, esse número chega a mais
de 40% . Mas, entre candidatos ao vestibular da UnB, arredondando o número, seriam 20%.
Então, a cota retrata essencialmente, no corpo discente da nossa Universidade, o perfil de
nossos candidatos, dos quais 20% se declaram pretos ou pardos e negros.
Esse processo está em plena marcha. A inscrição foi feita e as provas serão no mês que
vem. Esperamos uma avalanche de processos judiciais e estamos nos preparando para
isso. Acreditamos que, se o Poder Legislativo sinalizar claramente para a sociedade,
principalmente para as universidades públicas — como é o nosso caso —, teremos respaldo
legislativo para fazer esse tipo de experiência, teremos mais tranqüilidade. O mesmo
acontecerá com outras universidades. E muitas hoje foram aqui citadas, como o mais
recente exemplo do Paraná, de Alagoas, da Estadual do Mato Grosso do Sul, e outras
estaduais.
O Brasil está olhando para esse processo que está ocorrendo na UnB. A imprensa se
manifesta com intensidade até assustadora, às vezes, mas é o que nos convence cada vez
mais de que é importante trilhar esse caminho. E é importante que ele seja vencedor.
Senhor Presidente, dos argumentos que nos apresentam, com relação às cotas, alguns
foram citados peladoutora Sônia. Há, por exemplo, a idéia de que vamos empobrecer
academicamente a universidade. Mas nosso vestibular vai selecionar os melhores
candidatos, como sempre fez; vai selecionar os melhores candidatos brancos e os melhores
candidatos negros.
A outra reação típica e esperada da nossa sociedade é a de que estaríamos tirando as
vagas da nossa comunidade. Essa crítica nos chega com muita intensidade. A resposta é
que, em verdade, estamos devolvendo as vagas para os negros. Somos nós, os brancos,
que ocupamos indevidamente as vagas deles.
Em terceiro lugar, quanto ao argumento de que estaríamos trazendo o racismo para dentro
da universidade, trazendo conflitos raciais e promovendo o racismo no Brasil, temos duas
coisas a falar: primeiro, que no Rio de Janeiro não houve qualquer reação. O Rio de Janeiro
recebeu os alunos cotistas com naturalidade, e é o que esperamos de nossos alunos da
Universidade de Brasília: absoluta tranqüilidade e naturalidade. O racismo que apareceu,
infelizmente, foi motivado muito mais por alguns opositores que entraram em discussões
esotéricas, sobre, por exemplo, o que seria raça. Sabemos que, biologicamente, não
existem raças, que o que existem são grupos sociais que atuam entre si, estabelecem
hierarquias de poder e coisas desse tipo. E isto é muito claro, em nosso caso, com 2% de
alunos negros e 1% de professores negros. Estamos sendo parte do problema, mas
queremos ser parte também da solução.
Esse é o processo que se deu na UnB.
Estou à disposição do senhor Presidente e dos demais membros da Comissão para outros
esclarecimentos. Com muita satisfação estamos aqui hoje para fazer este relato aos
senhores. Muito obrigado.
Deputado João Matos (Coordenador) — Agradeço ao Professor Timothy Mulholland a
participação.
Registro a presença do senhor Fernando Correia, representando a Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão.
Neste momento, agradeço ao Presidente da Comissão, Deputado Carlos Abicalil, pela
possibilidade que tive de coordenar os trabalhos na fase de apresentação. E, para poder
participar do debate, gostaria de passar ao nobre Presidente a direção dos trabalhos.
DEBATES
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - Senhoras e senhores, vamos iniciar a fase de
debates. Como tradicionalmente ocorre em nossas audiências públicas, concederemos
precedência aos proponentes das audiências públicas.
Deputado João Matos - Na condição de Relator dos 28 projetos de lei que tiveram origem
no Senado — o primeiro deles e os demais 27 apensados que tramitam nesta Casa —,
tecerei rapidamente algumas considerações. As autoridades que participaram fizeram
explanações a esse respeito, nos trouxeram ricas contribuições, as quais, com outras que
haveremos de juntar nos debates de que participaremos em instituições de nível superior de
outras Unidades da Federação, poderemos incluir em nosso relatório, o que, por certo, o
tornará mais apropriado e rico em conteúdo.
Por outro lado, informo que estive em audiência com o Ministro da Educação, Tarso Genro,
há poucos dias, quando expliquei a Sua Excelência a situação desses 28 projetos e sobre
o que já tinha acontecido. Informei Sua Excelência a respeito desta audiência pública e de
outros procedimentos. Colhi daquele encontro com o Ministro uma demonstração de muita
sensibilidade para com essa questão, tanto de parte do Ministério quanto do Governo como
um todo. Por isso, por meio do Professor Nelson Maculan Filho, gostaria de cumprimentar
o Ministro e toda a equipe do Ministério por essa sensibilidade, que já havia sido manifestada
nesta Casa por meio de projetos de lei, o que demonstra que o atual Governo soube
auscultar os interesses, as reivindicações legítimas da sociedade, sobretudo das classes
menos favorecidas.
Por fim, formulo uma pergunta ao Secretário Nelson Maculan Filho, relativamente à questão
do aluno carente proveniente de família de baixa renda que tem dificuldade para sua
manutenção, mesmo numa universidade pública. No programa do antigo Crédito Educativo,
o aluno carente podia se inscrever e recebia, quando selecionado, uma bolsa de um salário
mínimo para sua manutenção. O meu questionamento tem o sentido de saber se está
embutido na proposta que deve vir a esta Casa algum tratamento específico, especial, com
vistas à manutenção do aluno carente.
Deputado Ivan Valente - Parabenizo a Mesa pela qualidade das intervenções e o alto nível
do debate. Acho que estamos avançando nesse tema com relativa segurança, digamos
assim, mas sem ainda nos furtarmos das dificuldades, porque a injustiça social e a
discriminação racial no Brasil são absolutamente explícitas e patentes. E encontramos
grande dificuldade de avançar. Acho que a política de cotas para negros e também para
outros setores discriminados, excluídos da sociedade, é uma política afirmativa, muito
positiva. Concordo integralmente com ela. Acho que temos que avançar a passos seguros.
A vanguarda desse processo tem que chegar até quem está no centro da discriminação; ou
seja, o movimento tem que ser orgânico, porque não é um movimento de sensibilização
geral — é movimento de luta por direitos, por cidadania, por igualdade social. Então,
parabenizo os senhores.
Quero também externar algumas preocupações que temos que enquadrar no bojo do debate
sobre cotas. Qual é a questão? A primeira delas é a luta pela expansão do ensino superior
público. Sou proponente e encabeço a proposta do Plano Nacional de Educação aqui no
Congresso. Quero dizer que não está havendo expansão do ensino superior público; a
condição dele é vegetativa. Isso cria um grave problema. Ao observar o mapa que o Vice-
Reitor expôs, apesar de não haver entendido algumas coisas, verifico que os dados do Plano
Nacional de Educação e do Ministério de Educação demonstram que apenas onze — e
agora se fala em nove — de cada cem jovens de dezoito a 24 anos freqüentam universidade
no Brasil. Vamos considerar esse dado de hoje. Eu trabalhava com a estatística que
apontava para esses onze jovens, mas os dados do Plano Nacional, se trabalharmos com
os dados de hoje, apontam que são nove, e desses nove apenas três estão em
universidades públicas. O sistema de cotas vai tentar enfrentar a questão primeiro na
universidade pública. Então, rigorosamente, não estamos conseguindo avançar. E aí entra
o papel simbólico das cotas, um papel político, de vanguarda, o de causar impacto, de
mostrar a discriminação, mas da igualdade social e racial estamos muito distantes. Muito
distantes!
Por quê? Porque o ideal seria, Secretário Maculan, que pudéssemos acompanhar a luta
pela implantação da política de cotas com ações conjuntas que expandissem o ensino
superior público, porque a inclusão social, a visibilidade seria ainda maior. A expansão do
ensino superior público no Brasil está congelada. Cito sempre o exemplo de quando, no
primeiro mês do Governo Fernando Henrique, estivemos no MEC com o Ministro Paulo
Renato e propusemos a criação de universidades públicas; disse-nos o Ministro de então:
"Não haverá expansão do ensino superior público em nossa gestão". Pode-se fazer uma
análise e constatar que não houve mesmo, rigorosamente.
Então, como é que trabalhamos essa questão conjuntamente? Como é que se faz para que
uma luta tão positiva, tão afirmativa como a das cotas não obscureça um problema real,
concomitante? Temos que expandir o ensino superior público, e essa é uma luta de
igualdade geral, para garantir o acesso de todos à educação.
Não quero, com isso, tirar a importância da luta; pelo contrário, reforço a luta pelas cotas,
mas ela tem que ser encampada pela luta por mais verbas para a educação, e a expansão
do ensino superior público tem que ser o alicerce político, inclusive para se garantir maior
visibilidade.
A segunda questão, senhor Presidente, é também sobre esse ponto. Falei da organicidade
do movimento, da importância de ele ser orgânico, por uma razão muito simples: acho que,
nessas condições em que estamos, ao se fazer justiça racial e social com o sistema de
cotas, quero que esses cidadãos brasileiros que ganharem acesso, em razão da luta e por
ser de seu direito, tornem-se também lutadores pela expansão de direitos, sob pena de
criarmos apenas um outro setor que foi incluído, vamos dizer assim, mas que também se
torna privilegiado na sociedade brasileira. Ou seja, temos que formar na universidade
lutadores pela igualdade social e racial. Esse ponto também é muito importante. Por isso
valorizo muito a luta orgânica que faz esse movimento.
Em terceiro lugar, para finalizar, na proposta que a Ministra Matilde apresentou, está-se
tentando uma solução para a sobreposição. Imagino que a universidade esteja enfrentando
esse problema. Não é fácil, parece-me, porque, mesmo que coloquemos na lei uma proposta
que dê prioridade aos oriundos da escola pública, com prioridade para negros, índios etc.,
ainda assim ela não tem a precisão necessária, porque haverá triagem do mesmo jeito. Não
a eliminamos, porque ainda são bastante restritas as possibilidades de acesso. Queria ouvir
dos senhores sugestões sobre como enfrentaremos esse problema, inclusive sob o aspecto
jurídico, que certamente já está em pauta, a fim de avançarmos o mais rapidamente possível
nesse processo, certamente com o apoio da sociedade civil.
Sabemos que o melhor argumento é o de enfrentar as resistências conservadoras da
sociedade brasileira.
Muito obrigado.
Deputada Iara Bernardi - Não serei repetitiva relativamente à apresentação do Deputado
Ivan sobre a necessidade de ampliação de vagas públicas para que todos tenham acesso
inclusive à implantação do sistema de cotas de forma muito mais ampla. A companheira
Sônia citou um exemplo sobre a política de cotas de mulheres. Foi o resultado prático de
uma campanha mundial do movimento feminista. Quando se implanta uma política de cotas
e muitas vezes os partidos políticos não conseguem contemplar em suas chapas os 30%
reservados às mulheres, desmistifica-se essa questão de que elas estão presentes em todas
as áreas da sociedade e que já superaram quase todas as barreiras. Isso não é verdade.
Quando se mostra que na Câmara dentre os 513 Parlamentares há 45 Deputadas e no
Senado há oito Senadoras, as pessoas ficam muito espantadas, porque se faz toda uma
propaganda de que muitas dessas barreiras já foram superadas. As ações afirmativas com
relação às mulheres são exemplares porque desmistificam e colocam a público essa
questão. Há uma lei regulamentando isso e os partidos políticos têm de obedecer a ela.
Portanto, considero exemplar a política de cotas para as mulheres.
O Deputado João Matos, o Professor Nelson e a nossa Ministra disseram que outras ações
afirmativas precisariam ser implementadas em conjunto com a política de cotas, inclusive
para manter os estudantes dentro da universidade. Os números que o Reitor da UnB trouxe
são claríssimos. Não se modificam as linhas paralelas, e permanece a desigualdade, mesmo
se todas as crianças tiverem acesso ao ensino fundamental. Portanto, é fato que as outras
ações não se complementam. E reforço a pergunta do Deputado João Matos com relação
às outras ações, que trabalhariam juntas para manter esse estudante na universidade,
encampando, evidentemente, o que o Deputado Ivan já apresentou: a luta pela ampliação
de vagas públicas. Esse trabalho tem de ser elogiado, porque está sendo feito de forma
conjunta com o MEC, com a Ministra Matilde e com a Ministra Nilcéa, bem como estão sendo
providenciadas ações complementares.
Indago da Ministra Matilde e do Secretário Nelson como se complementam as propostas do
projeto de lei que instituirá o sistema de cotas e o Projeto Universidade Para Todos? Antes
esses projetos eram trabalhados de forma conjunta, hoje estão separados, mas em algum
momento as duas propostas se complementam, nessa questão de cotas.
Deputado Gilmar Machado - Este debate é fundamental para todos. O Brasil está repleto de
cotas. Por exemplo, há cota para o sistema profissional que o Sistema "S" utiliza, mas
ninguém a discute, já está sacramentada e é dirigida pela elite brasileira, pelo setor
empresarial. Contra aquelas cotas não há questionamento jurídico. O Judiciário não
reclama. Não há problema com essa cota. E no Brasil temos ainda outros sistemas de cotas,
a exemplo das cotas para as pequenas e médias empresas, que é o sistema SIMPLES.
Então, aí também não há problema jurídico. Não há dificuldade para essas cotas no Brasil.
E poderia elencar uma série de outras cotas que adotamos no Brasil para determinados
setores. Evidentemente, poderiam esses setores competir entre si e disputar um lugar
privilegiado, mas a sociedade entendeu que era importante que essas cotas fossem
elaboradas, não permanentemente, mas para ajudar a desenvolver o País em determinados
setores, em determinadas áreas.
No entanto, quando vamos discutir a questão da cota racial encontramos problemas. Por
quê? Historicamente, repetem-se os discursos: há nisso um problema jurídico, isso quebra
a igualdade etc. Mas quando o Sistema "S" recebe recursos para oferecer cursos
profissionalizantes para determinados setores empresariais não há problema. O filho do
trabalhador que não tem carteira assinada e não tem acesso, desse ninguém vai lá tirar
fotografia. Quando a cota é de origem racial, brota do espírito do Brasil o mito da democracia
racial e todo o mundo começa a criar problema.
E quero cumprimentar a UnB pela coragem, pela ousadia de ter implantado o sistema de
cotas, e por não ter recuado quando uma parte da imprensa dita liberal, igualitária, tentou
comprometer a imagem daquela instituição, a fim de fazê-la recuar, e a UnB manteve-se
firme no propósito de manter e debater essa experiência, que não é nem será permanente
— se Deus quiser, não será necessário —, mas é importante neste momento para que
possamos aprofundar-nos nesse debate.
Cumprimento a Comissão, em especial o Presidente Carlos Abicalil e a Ministra Matilde
Ribeiro pelo brilhante trabalho que vêm fazendo, debatendo abertamente, sem aceitar a
provocação daqueles que dizem que é o Movimento Negro quem está tentando trazer
novamente o racismo e criar confusão no País. Estavam todos muito tranqüilos, a sociedade
muito bonita, e agora estamos querendo trazer ao povo brasileiro novamente o rancor, o
ódio. Alguns maravilhosos articulistas de importantes jornais do Brasil começam a dizer que
vamos criar aqui uma guerra civil-racial. O discurso é o mesmo. Se lermos os discursos dos
Deputados da época do Império e os de agora, parece que nada mudou. O texto é o mesmo.
As discussões são as mesmas. Só mudou a época.
Quero cumprimentá-los e dizer que precisamos reforçar este debate. Particularmente, fiz um
pronunciamento tratando dessa questão das cotas. Estou preparando um texto sobre isso.
É verdade que os jornais não estão querendo publicar, mas não há problema; vou tirar
cópias e distribuí-las. Quem sabe? Talvez um dia as pessoas discutam essa questão do
sistema brasileiro de cotas, até porque não podemos deixar prevalecer a idéia de que as
cotas existem apenas para os negros. Há cotas no Brasil para uma série de outras situações.
Finalmente, Professor Maculan, cumprimento o MEC pela idéia de expansão de vagas em
instituições que estão trabalhando, principalmente por essa proposta de fazer com que as
universidades federais hoje existentes possam apresentar um projeto multicampi. Digo isso
porque a Universidade Federal de Uberlândia prepara um projeto para expansão em mais
três cidades da região, com abertura de outros cursos, a partir da Universidade Federal de
Uberlândia. É a experiência dos projetos multicampi. Em vez de os alunos dessas regiões
mudarem para Uberlândia, a Universidade vai buscá-los onde estiverem. Reitero meus
cumprimentos ao MEC por essa iniciativa, que é o caminho exatamente para a expansão de
vagas no ensino superior.
Temos de juntar as experiências para depois começar a fazer as propostas. Só dessa forma
vamos conseguir equacionar os problemas.
Muito obrigado.
Ministra Matilde Ribeiro - As questões expostas até o momento são bastante instigantes
para que possamos seguir o debate sabendo que estamos lidando com um terreno de
dificuldades. Não estamos aqui falando de uma matéria fácil. Se fosse fácil, não haveria
sentido em esta Mesa e este debate acontecerem hoje, no dia 13 de maio, considerando a
importância que a data tem para a História do Brasil. De fato, em 1888 não era mais possível
o Brasil seguir com o regime de escravidão, que vai contra qualquer princípio de
humanidade.
A pergunta que tem sido feita historicamente é: o que aconteceu no dia seguinte ao 13 de
maio? A sociedade brasileira ainda não conseguiu responder firmemente o que aconteceu
no dia seguinte, e nos anos e décadas e décadas seguintes. Cento e dezesseis anos depois,
estamos aqui falando da exclusão, da ausência de uma grande parcela da população nas
universidades públicas, nas instituições públicas brasileiras.
Com isso, quero reforçar que a resposta ainda está por vir, na sua totalidade. E é importante
que persigamos essa pergunta: o que aconteceu efetivamente com a população negra
brasileira nas décadas e décadas e décadas seguintes à abolição da escravidão? Creio que
a resposta está aqui entre nós, não está lá fora. Pelos dados expostos anteriormente, pelas
reflexões feitas, estamos concordando que não há a suposta igualdade, tão cantada e
decantada nas leis e em nossos discursos. Isso não existe na prática.
Portanto, pensarmos em medidas é extremamente significativo. E, concordando com as
falas anteriores, em especial com a do Deputado Gilmar Machado, não teremos condições,
não podemos esperar o todo para resolvermos questões históricas. O todo tem de vir, mas
enquanto não vem devemos influir nas mudanças. E o sistema de cotas, repito, é uma
dessas influências. Considerando rapidamente os três aspectos: manutenção, expansão e
vinculação entre propostas no campo da Educação, concordo com as reflexões feitas; creio
que é de suma importância o investimento na expansão do ensino público, e acima de tudo
do ensino superior. É importantíssimo que pensemos na manutenção dos alunos que
ingressam nas universidades públicas e privadas pelo sistema de cotas, dentro das
proposições que estamos fazendo. Mas, sobre a manutenção, quero ressaltar que não
podemos — o próprio Ivan disse isso, e também o Deputado João Matos —, a pretexto de
pensarmos em todos os detalhes de um novo sistema, deixar de tomar a decisão por ele.
Caso contrário, vamos trabalhar com a idéia de que enquanto não tivermos certeza absoluta
de todas as formas de manutenção não tomaremos a decisão. Repito que, enquanto
estamos aqui elaborando e pensando, a vida está seguindo lá fora; os alunos pobres que
ingressam nas universidades públicas e privadas historicamente usaram estratégias para
conseguir essa colocação, e digo que temos de potencializar as estratégias já existentes.
A proposta do grupo de trabalho interministerial vem acompanhada de uma medida legal.
Trata-se de uma proposição de monitoramento e de medidas que possam garantir o acesso,
a permanência e a finalização da trajetória dos alunos que entram pelo sistema de cotas, e
creio que isso não deve restringir-se apenas a esses, e sim estender-se ao todo. Isso passa
pela garantia de alojamento escolar, alimentação, transporte e acompanhamento
tecnológico. Uma ação tem tudo a ver com a outra. Agora, essa discussão desemboca na
discussão sobre orçamento, sobre prioridades, sobre a visão do que é particular e do que é
o todo.
Sabemos das responsabilidades de ambas as partes, do Legislativo e do Executivo, nessa
proposição. Quanto à visão do todo, o senhor Nelson Maculan Filho, que aqui representa o
MEC, falou sobre as duas medidas, o Programa Universidade Para Todos e o sistema de
cotas para negros nas universidades públicas; creio que ambas são complementares. Uma
versa sobre o ensino privado, outra sobre o público, mas as duas se complementam. A
qualidade do ensino que tanto almejamos deve estar em todos estabelecimentos de ensino,
sejam públicos, sejam privados. Na minha concepção, são medidas complementares que
têm um pano de fundo comum: a democratização do ensino e a responsabilização das
instituições públicas e privadas para essa democratização, rumo à cidadania.
Cabem ao Legislativo e ao Executivo os detalhamentos disso, um profundo estudo e uma
tomada de posição conjunta, visando à implementação desses sistemas e à criação de
oportunidades para uma boa parcela da população que está fora do sistema escolar.
Finalizo dizendo que este debate é extremamente importante. Dentro desta sala há posturas
distintas, favoráveis e contrárias, mas, na minha concepção, não devemos escamotear a
situação real de que estamos falando. Se ficarmos presos entre os argumentos favoráveis
e os contrários, perderemos de vista a matéria de que estamos tratando: democratização do
ensino e acesso de todas as representações raciais do País à universidade por que todos
pagam, brancos, negros e indígenas.
Nelson Maculan Filho - Foram excelentes perguntas, que me ajudarão até a desenvolver
assuntos mais interessantes. Os questionamentos foram sobre a manutenção de aluno
carente e dos alunos de um modo geral, a expansão da educação federal pública, a
complementação da política de cotas nos dois projetos e expansão dos campi das federais.
Como a maioria dos Deputados sabem, hoje só temos 23% — ou 22%; depende um pouco
da origem dos dados — dos estudantes em universidades públicas federais e estaduais. A
partir de 2004 houve mais vagas para vestibulares em universidades estaduais do que em
federais. Houve realmente uma retração dos serviços federais de educação superior no
Brasil. Para um país republicano, isso é muito triste, é um certo atraso em relação ao
processo.
Não poderá existir um projeto de maior envergadura sem que o Ministério da Educação
encaminhe aos órgãos responsáveis — o Ministério do Planejamento e também o
Congresso Nacional — um projeto de Orçamento melhorado, para que a mudança possa
acontecer a partir de 2005. São muito importantes os concursos para professores e demais
funcionários das universidades federais públicas do País. Hoje há uma forte demanda para
a criação de novos campi, a fim de que o ensino superior público possa expandir-se. Quem
quiser conseguir isso tem de passar pelas barreiras normais impostas pelo Ministério.
Já foi comentada nesta reunião a idéia dos restaurantes universitários, dos vales-transporte
e dos alojamentos. Na minha opinião, essa despesa não deveria ficar a cargo apenas das
universidades. O Estado, o Município, enfim, a comunidade em geral deveria discutir o
assunto junto à Caixa Econômica. Por que algumas universidades públicas federais têm
restaurantes e outras não? Por que um aluno de faculdade privada não tem direito a
restaurantes universitários? Por que não podemos ter no País algo semelhante ao que é
feito na Itália, na França ou na Alemanha? Nesses países, os centros universitários não
pertencem à universidade, mas à comunidade. Então, os alunos podem comer a preços
subvencionados. É interessante chamar a atenção dos senhores para esse fato.
Como organizar a manutenção dos centros universitários com orçamento apertado? Já
sabemos de antemão que o orçamento para o próximo ano não é suficiente. Para as 45
universidades federais e os CEFETs conseguirem pagar suas dívidas seriam necessários
R$ 150 milhões a mais no orçamento. Isso daria novo ânimo para todos. Certamente as
instalações seriam melhoradas, facilitando ao aluno o acesso. O orçamento de que
dispomos não é suficiente para nós. As despesas são altas. Esses R$ 150 milhões a mais,
no orçamento deste ano, fora o que já está sendo discutido, dariam às universidades
federais, todas públicas, enorme estímulo para oferecer mais 20% de vagas no vestibular
do próximo ano.
Temos boas idéias para trazer de volta a universidade republicana, com ensino primário e
secundário de qualidade. E educação perdeu um pouco de qualidade. Atualmente, o Brasil
é mau exemplo em termos de América Latina, porque 77% dos seus alunos pagam pelo
curso superior. Ninguém na América Latina tem um índice igual ao nosso. Isso não existe
na Ásia, nem na Europa, tampouco nos Estados Unidos. Ou seja, apenas este País possui
essa grande quantidade de escolas que cobram pelo ensino de terceiro grau.
Não estou aqui tirando a importância das universidades privadas. Elas desempenham um
importante papel na sociedade. Mas a idéia do Universidade Para Todos é apenas uma
solução passageira para o problema que aí está. Este Governo tem de responder
imediatamente as demandas sociais do Brasil.
Espero ter respondido as indagações.
O Plano Plurianual tem de prover recursos para a manutenção dos novos alunos na
universidade. Não basta eles conseguirem entrar no ensino superior gratuito; têm de lá se
manter até a conclusão do curso.
Sônia Malheiros Miguel - Concordo com o que foi dito aqui. É fundamental associarmos a
política de quotas à ampliação da universidade pública superior com qualidade, e que essa
qualidade seja fiscalizada e monitorada nas universidades particulares também. O ensino
superior público tem de ser valorizado de todas as formas: o próprio espaço da universidade,
a saúde dos alunos e os meios de transporte. Essa tem de ser uma preocupação do
Governo. Para atingirmos a democracia, plena temos de valorizar o ensino público.
Como garantirmos um ensino de qualidade? Com verba suficiente. As cotas não
necessariamente devem ser permanentes. Temos, isso sim, de assegurar a igualdade social
em todos os sentidos. É essa preocupação que tem de ser permanente.
Uma das coisas mais importantes é o diálogo. Temos de valorizá-lo. Todas essas políticas
têm de ser permanentemente discutidas com a sociedade e com os setores diretamente
nelas interessados, como, por exemplo, o movimento de mulheres negras, dentre outros.
Essa conquista tem de ser feita em parceria. Não devemos ficar esperando o momento ideal
para implementar essas políticas. Temos desde de logo que colocá-las em prática e avaliá-
las periodicamente. Sempre que necessário, quando surgirem problemas, devemos
readequá-las.
Nesse sentido, concordo com a Deputada Iara Bernardi. Disse Sua Excelência que a
experiência da política de cotas para candidaturas de mulheres é exemplar e pode ensinar-
nos muito. Talvez com as políticas de cotas raciais possamos ganhar tempo, a partir de uma
experiência já vivida.
Timothy Martin Mulholland - Talvez a grande razão da discussão de hoje seja o que disse o
Deputado Ivan Valente: o sistema público de ensino superior no Brasil vem sendo
negligenciado há mais de dez anos. As universidades estão no limite da sua capacidade,
muitas delas. A UnB, por conta própria, dobrou seu alunado nos anos noventa, mas fez isso
realmente por conta própria. Outras instituições também assumiram esse tipo de
compromisso, mas a situação hoje se encontra realmente no limite. Quero fazer um lobby
junto ao MEC, aproveitando o ensejo, mas é fundamental a sensibilidade que a SESU e o
Ministro têm demonstrado. As universidades federais precisam ser resgatadas como
instituições e recolocadas no papel social fundamental que têm.
Deputado Ivan Valente, a fala de Vossa Excelência é da mais alta pertinência. A expansão
é necessária. A UnB tem um campus em Planaltina, onde temos um prédio construído, mas
ainda faltam professores. Realmente, estamos ansiosos para obter o apoio do Ministério da
Educação. A cooperação com o Governo local permite-nos pensar em coisas desse tipo.
Essas parcerias existem em outros Estados. Em Goiás é muito intenso o trabalho de
cooperação, a fim de que a universidade tenha seu alcance aumentado.
Talvez nem estivéssemos aqui discutindo cotas se o ensino público oferecido aos jovens
fosse de qualidade. Noventa por cento dos jovens de dezoito a 24 anos são excluídos desse
processo; entre eles, esses sobre os quais estamos hoje discutindo. Consideramos esse
aspecto de fundamental importância.
Temos ouvido vários argumentos em relação às cotas. Segundo alguns, se estabelecermos
políticas para atender aos alunos pobres vamos também atender aos alunos negros. É como
se eu fosse ao médico com um problema de estômago e ele dissesse: "tome esse remédio
para o coração, porque ele tem um efeito colateral que vai ajudar seu estômago". Os vários
problemas que temos têm de ser abordados de frente. Se o problema é o coração, vamos
lá; se é o estômago, vamos lá. E a exclusão racial é tão clara e cristalina na sociedade
brasileira que não precisamos mais de muitas pesquisas. Temos dados. Temos instituições
capazes de realizar diretamente a alteração do processo.
Concordo com o Deputado Ivan Valente. Somos uma gota d’água no oceano. Realmente, a
universidade pública, infelizmente, não tem o impacto que deveria ter, mas certamente tem
algum.
Era o que eu queria acrescentar.
Deputado Átila Lira - Cumprimento todos os presentes, Parlamentares e expositores. Passei
a acreditar que o combate à desigualdade, da forma tradicional, não estava alcançando os
resultados esperados. Observamos que nada tem evoluído na economia e na distribuição
de renda durante vinte anos. Por isso acredito nas ações afirmativas para acabar com a
postura contemplativa que existe em relação à desigualdade social.
Acredito que a economia pode redistribuir renda. Ela não vai fazer isso nunca, porque nossa
economia é toda privada, e só poderemos romper o sistema por meio de uma revolução
para a qual não temos mais vocação; passou, desapareceu. Não vejo mais ninguém radical.
Todo o mundo hoje é reformista.
Este tipo de intervenção vai causar uma grande reação, sobretudo porque a nossa estrutura
legal é toda conservadora e discriminadora. Não tenham dúvida. Temos de mudar esse
aparato legal para que decisões como a relativa à UnB sofram o descompasso da realização
dessa política de cotas, que é correta. Simpatizo com a idéia de cotas nas escolas públicas
que beneficiem os grupos sociais mais vulneráveis, como os étnicos. A UnB tomou
iniciativas exemplares. E aqui me reporto ao Professor Nelson Maculan, que é do Piauí. Por
que as universidades públicas federais e as públicas estaduais, que hoje têm a liderança na
oferta de vagas, não avançaram nessa questão? Por que o Ministério da Educação não
avança também na questão das proposições, inclusive legislativas, para andarmos
depressa? Já estamos no segundo ano de Governo. A professora fez uma observação
fantástica, no sentido de radicalizar a democracia quebrando o tradicional. Não basta
esperar a reunião de reitores para propor, porque sabemos que os reitores de maneira geral
são tímidos quanto à mudança em relação às cotas.
Recordo que, na Legislatura anterior, quando se lançou essa proposta, da qual o Deputado
João Matos é um dos Relatores, sobre a vinculação das vagas públicas justamente para
criar um cinturão de proteção social para os segmentos mais pobres, só faltaram quebrar
esta Comissão, porque não aceitavam sequer que essa proposição pelo menos tivesse um
encaminhamento normal. Hoje temos uma nova equipe no Ministério da Educação,
comprometida sobretudo com a causa social. Pergunto: por que essa radicalização da
democracia está andando devagar?
Márcio Pochmann veio aqui e falou muito sobre a questão da desigualdade e a forma
tradicional de avaliá-la somente pela renda. Não. A renda não tem solução. Não haverá
distribuição de renda na democracia tradicional. Tem de haver, portanto, ações afirmativas
que possam contemplar esses segmentos mais pobres.
O senhor Secretário tem de andar depressa com as respostas a este debate, que não é de
hoje, mas é antigo. Já temos algumas idéias bem acabadas, como essa experiência da UnB,
ou a universidade que Vossa Senhoria dirigia, ou a estadual que tinha essa prática. O
Deputado Ivan Valente tem razão. Se andarmos depressa na expansão da rede pública
federal, o processo de absorção pela sociedade do sistema de cotas será acelerado, porque
há também uma reação cultural. Temos uma discriminação racial que é cultural. Esse
segmento de classe média, o mais privilegiado educacionalmente, vê com certa reação a
questão das cotas.
É isto que eu queria dizer: andem depressa, pois já está em tempo de dar respostas. Muito
obrigado.
Deputado Severiano Alves - Como cidadão e como membro de um partido que é defensor
dessa causa, e, considerando que o PDT é o único partido que tem movimentos
organizados, como temos na Bahia, a exemplo do Movimento Negro e do Movimento de
Mulheres, do qual sou o Presidente, e em todos os lugares. A luta começou na Bahia, onde
temos o Olodum, o Ilê Aiê, o Professor Ubiratan, Capinam, o Deputado Luiz Alberto, o
Deputado Caó, que vive no Rio, e a ex-Deputada Maria José, Chefe de Gabinete da própria
Ministra, que são pessoas que lutaram.
Essa causa não vai encerrar-se agora, infelizmente, pois ainda vamos aguardar o Projeto
Universidade Para Todos, apelo para Vossa Excelência no sentido de que faça outro convite
à Ministra para voltarmos a discutir isso.
Interessa-me também fazer um questionamento à SESU, Sr. Presidente. Sabemos que a
única vez que se fez reforma universitária no Brasil, pelo menos na minha existência, foi na
década de sessenta, mais precisamente em 1968, no Governo militar. O Constituinte de
1988 apenas estabeleceu os princípios do ensino universitário. Desde 1988 estamos sem
regulamentar o ensino superior.
Poderíamos fazer a reforma de três maneiras. Uma seria regulatória, apenas para
regulamentar o art. 207, já que as universidades gozam de autonomia científica, didática e
de gestão financeira e patrimonial. Tentou-se fazer a regulamentação dessa autonomia por
meio de um projeto de emenda à Constituição em 1995, no Governo Fernando Henrique.
Vossa Excelência fazia parte da (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação)
CNTE, como membro dirigente. Tentamos e até avançamos, pois fizemos debates muito
extensos sobre a reforma universitária. Mas como não interessava ao Governo, naquele
momento, conceder autonomia universitária, ou pelo menos definir quanto as universidades
poderiam investir no ensino superior, inclusive na expansão, o projeto foi retirado, foi para o
arquivo, foi sepultado, e não se fez mais qualquer tentativa. No Governo Lula, porém, nossa
esperança renovou-se.
Outro critério que também foi adotado no Governo passado, eu diria, foi o disciplinatório. A
expansão universitária tornou-se algo gigantesco em 10 anos; mais que dobraram as vagas.
Mas o Governo tinha de pôr um freio; então, veio o que chamo de reforma disciplinatória,
em que com uma medida provisória se criou a avaliação do ensino. Repito sempre que a
medida não saiu pior porque naquela época o Relator admitiu uma emenda global nossa ao
seu projeto de conversão. Conseguimos mudar a forma do Conselho Nacional de Educação
naquela medida provisória, e também tiramos o exame nacional, que era a prova do aluno,
o chamado Provão. Na reedição da medida provisória que criou a avaliação do ensino, essa
avaliação passou a ser institucional, avaliação da qualidade institucional. Está escrito na lei,
mas essa lei também já foi revogada por outra lei do Presidente Lula criando uma nova
avaliação.
Sobre o Universidade Para Todos, estamos agora numa reforma reparatória, já que estamos
criando medidas paliativas. Isso não significa que eu seja contra as cotas. Longe disso.
Como medida paliativa, sou favorável. Mas concordo com a Ministra: isso é para atender a
um momento social, em face de um processo histórico que temos de reparar. Não podemos
também ficar com a "herança maldita" que vem do primeiro Governo brasileiro, de D. Pedro
I. A dívida social é nossa, e temos de assumí-la, seja lá quem tenha governado no passado.
Posso dizer isso porque fiz oposição ao Governo passado, assim como Vossa Excelência,
durante oito anos. Apesar de meu partido já se ter desligado nacionalmente da base de
apoio, ainda estou apoiando o Governo Lula. Eu continuo acreditando no Governo Lula, e
assumi esta responsabilidade, como muitos companheiros da bancada do PDT.
Professor Nelson, sobre o Universidade Para Todos, ouvi dizerem que vamos criar vagas
compulsórias, vagas essas que não devem ser confundidas com expansão, mas sim
entendidas como reservas de vagas compulsórias do Governo nas instituições filantrópicas
e/ou sem fins lucrativos. Disse-se até o número. Essas instituições são desoneradas de
tributos e por isso não estariam fazendo favor algum ao Governo. Essas cotas que às vezes
elas concedem, por terem essa natureza jurídica, serão modificadas — mas me pareceu
que o Governo não quer. Por exemplo, determinada universidade filantrópica tem que
destinar 20% das suas vagas para os alunos carentes, mas essas vagas serão fiscalizadas
pelo Governo, não mais concedidas. Vamos em busca dessas vagas de forma compulsória.
Citou-se até o percentual. Para as sem fins lucrativos, teríamos para cada 9 alunos uma
vaga; nas outras, as filantrópicas, para cada quatro alunos uma vaga. Em outras palavras,
10% em uma e 20% na outra.
Quanto ao crédito educativo, não ficou claro para nós que ele seria também levado a uma
composição da oferta de vagas, para ampliá-las. O critério estabelecido para selecionar o
acesso no Universidade Para Todos é a condição de pobreza. Então, quem tem renda acima
de um salário mínimo estaria fora, mas até esse patamar de renda seria considerado aluno
pobre? Gostaria que Vossa Excelência esclarecesse isso.
E nessa classificação de acesso, sobretudo dos oriundos da rede pública de ensino, teriam
preferência os negros e índios? Pergunto a Vossa Excelência como ficariam aqueles que,
não sendo negros, porventura sejam classificados no mérito, façam uma boa prova e
obtenham pontuação acima dos negros e dos índios. Estou repetindo a pergunta que me foi
feita na Universidade de Salvador, onde fiz uma palestra e abordei esse tema como proposta
que já está idealizada e minutada na Casa Civil e deverá ser oficializada. Como ficaria o
aluno pobre classificado por mérito, com boa nota, acima dos negros e dos índios? Ele teria
de ceder a preferência em razão das cotas, ou estaria dentro do processo? Viriam primeiro
os que tiveram boas notas e estão na faixa de apenas um salário mínimo? Quero saber se
é isso mesmo que o Governo tem a nos propor no projeto de lei que virá a esta Casa.
Deputado Chico Alencar - Não vou propriamente indagar, mas exortar-nos a nós
Parlamentares a que façamos o nosso papel. O Professor Maculan, querido amigo, lembrou
muito bem que vivemos uma crise das instituições republicanas. O fato de a universidade
pública brasileira vir sofrendo um processo de decadência e hoje ter apenas 23% dos já
poucos estudantes universitários é gravíssimo. Esse tem de ser um movimento conjunto. O
Deputado Átila Lira tem razão. Precisamos ousar, entender que a política de cotas é um
paliativo, é uma emergência.
Eu sempre disse, inclusive quando votei o projeto específico do Rio de Janeiro para isso,
que o sistema de cotas deveria ser provisório e reavaliado após cinco anos, porque se
tratava de uma política de discriminação positiva e portanto muito conjuntural. Hoje percebo
que o fato de ter um aluno de um segmento secularmente discriminado causa uma pequena
revolução até na cabeça dos professores. Mesmo tendo toda uma literatura, vamos dizer,
de esquerda, igualitária e engajada, os professores não estão acostumados com o pobre e
com as etnias espoliadas ao longo da nossa história na universidade. Isso tem causado uma
pequena revolução. E é ótimo! Temos de bagunçar o coro dos contentes, que acham que
tudo está bem ou que naturalmente as coisas estão evoluindo. Há pessoas que pensam
assim até na economia. "Com tempo, cautela, ajustes e superávites, um dia tudo vai dar
certo. Esses apressadinhos podem desestabilizar tudo." Ora, é preciso desestabilizar,
porque estamos na crise republicana.
Queria saber do Professor Maculan que medidas concretas podemos vislumbrar para o
resgate da universidade? Amanhã cedo participarei de debate na UFMG sobre reforma
universitária. Certamente vai haver uma faixa lá, como já vi na UnB, contra a contra-reforma
universitária privatizante. Eu disse, então: "Vocês estão sabendo mais do que eu. A aula
magna do Ministro Tarso Genro e as oitivas do MEC não apontam nesse sentido, embora
haja forças que pensem assim, e não são muito fracas, e agem até dentro do Governo.
Vamos fazer essa disputa; vamos fazer esse debate e vamos desestabilizar".
Quero parabenizar o Professor Timothy Mulholland, um piauiense, não é? Que beleza! Eu
também sou filho do Piauí! Até brinquei com o Deputado Carlos Abicalil: "Esse norte-
americano pode cair nas graças do Presidente Lula, pois não tem nem o sotaque do
Mangabeira Unger".
Professor, autonomia universitária é o que a UnB está fazendo. Não há por que ficar
esperando a lei para trabalhar o sistema de cotas. Quero elogiar os pontos básicos da UnB
nessa política de reforço à igualdade social. Integração social e étnica é o acesso pela via
da ação afirmativa. Mas não basta o acesso e a permanência. Há 116 anos houve o fim da
escravidão. E daí? O ingresso no mundo livre sem o anteparo do Estado gerou os problemas
que conhecemos. Eu gostaria de saber quais os elementos concretos para essa
permanência. E o programa de apoio ao ensino público, médio, suponho, e fundamental no
Distrito Federal? Se não houver integração, vira demagogia ou estatística.
Um detalhe, senhor Presidente: a preocupação que devemos ter quando definirmos isso
legalmente. Não basta falar do ingresso percentual na universidade pública. É preciso
garanti-lo em cada curso, porque há cursos mais elitistas do que outros, como se sabe.
Sônia Malheiros Miguel - Agradeço, mais uma vez, em nome da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres, o convite para esta audiência e quero reafirmar nosso apoio às
políticas de cotas e à conquista da efetiva igualdade no País.
Deputado Gastão Vieira - Em primeiro lugar, quero cumprimentar os propositores desta
audiência pública, os participantes da Mesa e dizer que sou absolutamente a favor de que
a sociedade brasileira, que custeia as universidades públicas, imponha a essas instituições
a obrigação de ter cotas para negros, índios etc.
O que me incomoda neste debate é o fato de essa questão estar sendo tratada fora do
contexto mais amplo da pobreza brasileira. O Vice-Reitor Timothy Mulholland trouxe a nosso
conhecimento números que demonstram essa discriminação. Junto com a carteira
parlamentar, eu trago comigo vários números. Uma diz que eu sou Parlamentar e os outros
justificam a minha presença nesta Casa.
Dos 32 milhões de alunos do ensino fundamental público, mais da metade encontra-se com
dois anos ou mais de defasagem. O aluno médio conclui a 8ª série depois de cursar mais
de onze anos de escola. Dos 35 milhões de alunos do ensino fundamental, mais de dez
milhões possuem mais de quinze anos de idade e, portanto, não deveriam estar mais nesse
estágio.
A maioria desses alunos desiste no meio do caminho. As últimas estimativas do INEP dão
conta de que a probalidade de um aluno que entra, hoje, na primeira série concluir o ensino
fundamental é de pouco mais de 60%. Portanto, discutir cota, admitir que há discriminação,
podemos até fazê-lo, mas o fato é que eles não estão entrando na universidade pública
porque o ensino fundamental brasileiro é de péssima qualidade, o que deveria nos
envergonhar tanto quanto a discriminação que determinados setores da sociedade brasileira
sofrem.
Não adianta querer resolver algumas questões isoladamente. Faz bem para o espírito
democrático, mas, como disse o Deputado Átila Lira, está na hora de fazer. E temos de
compreender que não vamos resolver. Pelo contrário, em alguns casos, vamos diminuir a
qualidade de grandes instituições universitárias, a não ser que um curso de nivelamento à
noite prepare esses alunos que vão entrar por meio das cotas para acompanharem o ritmo
da instituição.
Gostaria que a ex-Reitora da UERJ estivesse aqui para nos explicar por que 50% dos alunos
que entraram no sistema de cotas desistiram de continuar nos cursos. A qualidade é o
verdadeiro empecilho.
Dizia-se que o Ministro Cristovam Buarque falava demais, que tinha idéias demais. Estou
começando ver esse filme se repetir. E venho, novamente, fazer minhas as palavras do
Deputado Átila Lira: está na hora de fazer. Não há necessidade de manchetes nos jornais
mostrando que o MEC vai criar 2 cursos — não me lembro quais, mas são bem modernos.
Isso aparece como manchete de jornal enquanto as crianças brasileiras não têm o direito de
aprender a ler e escrever no final do primeiro ano do ensino fundamental. E quando o
Presidente Lula, corretamente, bota o dedo na ferida, o Ministério da Educação responde:
vamos fazer mais SAEB. Para quê? Para conhecer o que já conhecemos? Chega de
conversa. Está na hora de atacar a raiz dos principais problemas brasileiros.
Não tenho perguntas. Queria apenas fazer essa afirmação.
Deputado Luciano Leitoa - A questão das cotas tem sido bastante discutida aqui.
Eu fui aluno de instituição pública — Universidade Estadual do Piauí —, porque eu moro na
divisa do Estado do Maranhão com o Piauí. Lá, a grande maioria dos alunos era de classe
média. Eu nunca estudei em escola pública. Na minha opinião, a dificuldade está no próprio
ensino: professores que ganham mal fazem que dão aula e os alunos fazem de conta que
assistem às aulas. O grande problema, portanto, está no ensino.
Quanto à questão das cotas — principalmente o Movimento Negro tem discutido essa
questão —, percebemos que às vezes há uma discussão desigual. Defendo a teoria de que
ninguém pede para nascer, onde vai nascer e com que cor. O fator determinante é situação
financeira, o acesso à informação e a condições de aprendizagem. Todos sabemos que há
desigualdade.
Em relação à questão de cotas — sou negro e tenho orgulho da minha cor; cada um de nós
tem um traço negro —, para realmente haver mudança no sentimento da população, a
participação dos negros tem de estar inserida em outros processos. É preciso haver maior
inserção dos negros no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas, nas Câmaras
de Vereadores e nas instituições públicas. Nos programas de televisão, a maioria dos
apresentadores, apresentadoras e atores é branca. Há poucos negros. As crianças vão
crescendo e vêem sempre apresentadores brancos. O negro, às vezes, tem preconceito em
relação ao próprio negro em virtude da visão passada por algumas emissoras de televisão.
No que diz respeito às cotas — sei que é de direito, mas de certa forma tem de ser feita uma
avaliação e deve ser voltada preferentemente para o ensino médio —, é preciso analisar a
questão da renda familiar. Pergunto ao representante do MEC — já foi perguntado aqui, mas
quando se fala por último torna-se redundante — o seguinte: quais os critérios que serão
utilizados na eventualidade de haver cota para negro? Haverá confusão jurídica na hora de
dizer se é negro ou não? Vemos aqui que o Deputado Chico Alencar cuja pele é um pouco
da tonalidade branca, mas seu cabelo mostra que há traços negros. Como será feita essa
diferenciação?
Portanto, a questão de cotas para negros tem de ser bastante discutida, como também os
critérios para a sua aplicação.
Parabenizo os autores do requerimento pela iniciativa de realização desta audiência pública.
Muito obrigado.
Deputado Colombo - Além dessa experiência da UnB, tive oportunidade de entrar em
contato, no Departamento de História da UnB, com pesquisadores da história da África e do
Atlântico. Há várias teses sobre a história da África. A história européia dizia que na História
não tinha África, porque a maioria dos negros africanos não tinha escrita, portanto, não tinha
história. A UnB, por meio do Departamento de História, enfrenta esse debate, em âmbito
internacional, a fim de ajudar, a partir do Brasil, a escrever a história da África. Parece
incrível, mas é importante assinalar esse aspecto, além da tarefa para a UnB em relação às
cotas.
A questão das cotas deve ser tratada de forma emergencial e em regime de extinção. Por
quê? Porque ela em si, em razão da emergência e da necessidade de inclusão, tem dois
aspectos positivos. Primeiro, se o debate levanta o problema, cria o tremor; segundo, faz
um processo dialético de percepção do que é e não é possível, interage com a sociedade,
estudantes, instituições e racistas. Portanto, trata-se de um aspecto positivo. Mas, do ponto
de vista estruturante da inclusão, deve ser em regime de extinção.
Por isso, temos de apontar para o que está nos documentos da UNESCO, quando trata da
educação superior. Refiro-me à Cláusula 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
que estabelece que o acesso ao ensino superior deve ser por mérito e cabe à universidade,
dentro do princípio da autonomia, promover políticas inclusivas. A cota está no meio, porque
está no acesso. Temos que perceber a universidade como agente transformador da
sociedade estruturante, antes e depois. Portanto, devemos ter um itinerário formativo e
educativo, de tal sorte que tenhamos a universidade interagindo com o ensino médio e os
grupos negros organizados e não organizados.
Devemos estimular a organização e fazer um processo preferencialmente educativo-
formativo. Temos o acesso por mérito, se isso é estruturante. Após o acesso, temos a
assistência material no processo de formação, conclusão e pós-graduação para ele se
tornar, por exemplo, professor ou pesquisador negro na universidade, e assim por diante.
De tal sorte que — e cabe na reforma universitária — podemos discutir essa questão no
projeto da Universidade para Todos.
No entanto, temos que dar, na minha concepção, o seguinte passo: cotas em regime
emergencial, mas em regime de extinção, absolutamente necessária. Vou fazer uma
caricatura sobre a libertação dos escravos. Ministrava aulas na 6ª série e adotava um livro
de um famoso professor do Rio de Janeiro chamado Chico Alencar, que está aqui
compartilhando este debate. A minha dificuldade — um esforço tremendo, Deputado Chico
Alencar — era dizer aos meus alunos da Escola Olavo Bilac, todos brancos, da
compreensão cultural e histórica dessa discriminação existente até hoje.
Senhor Presidente, aproveito a oportunidade para ajudar os demais colegas a raciocinarem
comigo. Imaginem da seguinte forma: a Princesa Isabel declara a libertação dos escravos;
o proprietário fazendeiro chega ao negro que está trabalhando — analfabeto, pois lhe foi
negada sua cultura, laços familiares e educação; ele só sabe trabalhar com enxada e nada
mais — e diz o seguinte: "Me dá aqui a enxada; você está liberto, saia da minha
propriedade". Esse negro não sabia ler, não tinha laços familiares, não tinha herança
material, pois não tinha o que passar — os Códigos permitiam passar a herança material de
um branco para outro —, nem herança cultural, familiar e institucional, e ainda tiram a
enxada dele. Pior ainda, lembremos que os brancos eram indenizados pelo Tesouro pela
perda do negro.
Portanto, defendo que esse itinerário, inclusive formativo de negros e índios, tenha uma
rubrica orçamentária em cada universidade, assim como teve uma rubrica orçamentária para
pagar indenização ao branco, mas não teve para o negro à época da libertação dos
escravos. A rubrica orçamentária seria uma clara demonstração de que vamos fazer isso.
Por exemplo, a Universidade do Paraná acaba de anunciar, a pedido do Movimento
Organizado Negro, a cota de 20% — 20% grosso modo, mas existem todas as variantes lá.
Em Curitiba, sul do País, às vezes imaginamos que há poucos negros, mas existem negros
muito bem apartados da sociedade. A instituição começa a interagir com alguns grupos no
sentido de dar um processo formativo na ante-sala, antes de entrar na universidade, com
processos paralelos à formação do ensino médio, inclusão digital, reforço escolar, enfim,
vários mecanismos e articulações que podem possibilitar uma forma natural para o ingresso
na universidade. Parece-me que se trata de uma boa experiência que vale a pena observar.
Vou defender cota como conceito emergencial, em regime de extinção. A universidade tem
a responsabilidade de preparar um grande itinerário, inclusive formativo, com rubrica
orçamentária. As universidades deverão estabelecer metas, como o documento da UnB. Por
exemplo, o Reitor da UnB tem como meta tantos por cento de negros e índios daqui a 5
anos. Ele tem de fazer um esforço e adaptar a estrutura universitária para fazer todo
itinerário de acesso, permanência, conclusão e formação dos professores para a
retroalimentação sistêmica desse processo de inclusão.
Podemos prever até responsabilização para o Reitor que não cumprir o projeto de metas,
não a meta imediata de cotas e tal, mas a meta de inclusão social.
Deputado Murilo Zauith - A discussão que ora fazemos é proveitosa. Quero participar
trazendo um pouco da minha experiência no Estado do Mato Grosso do Sul sobre cotas.
Quando Deputado Estadual, criamos cotas na Universidade Estadual para índios e negros.
Fomos a primeira universidade do País a trabalhar com o sistema de cotas, principalmente
para índios, pois temos a segunda população indígena do País.
Essa experiência vai ao encontro do projeto a que o senhor Maculan se referiu, que não se
limita a levar o negro e o índio à universidade. O Estado precisa ter condições de
subvencionar os alunos nessa condição enquanto universitários. É o que está acontecendo
no meu Estado. Muitos índios estão tendo acesso à universidade pública, mas não têm
suporte para manter-se na cidade e prosseguir os estudos. O Governo está criando a bolsa
universitária para que esses alunos do sistema de cotas possam se manter durante o curso
superior.
Mas o que me preocupa mais, quando se discute a questão das cotas — ouvi meus colegas
falando em reforma universitária, que está sendo criada uma comissão para isso —, é como
foi vista a educação superior no Brasil nos últimos anos, o mal que foi feito com a educação
superior. Criou-se no Brasil a idéia de que a educação superior tinha de ser um negócio, e
se abriram faculdades e universidades à vontade. Existem campi espalhados por todo o
País, o que, no meu modo de ver, não contribui em nada. Aliás, contribui para que o Brasil
aumente seus índices e possa exibi-los no exterior, mostrando que tem mais alunos
cursando nível superior. Vejam que se chegou a discutir nesta Comissão, no ano passado,
a possibilidade de passar a educação superior para outro Ministério, o que seria algo terrível.
Quando alguém faz avaliação de uma escola e vemos a quantidade de alunos e o
faturamento que tem, isso é ruim. Para mim, educação não é nada disso.
A universidade pública, hoje, passa por uma série de dificuldades, porque ela deve cumprir
um tripé — ensino, pesquisa e extensão —, e os seus professores, com tempo integral, se
dedicarem ao trabalho de ensino, pesquisa e extensão. A universidade particular não
trabalha em cima da LDB. Ela promove o curso de ensino de 3º grau — e, muitas vezes, a
maior parte deles muito mal avaliados. Temos de discutir na LDB o papel da universidade
particular, se ela vai simplesmente oferecer cursos de 3º grau.
E agora, com a espantosa abertura que houve, o que aconteceu? Esgotou-se a clientela
que pode pagar para cursar uma universidade particular. E sinto que agora os empresários
do setor, não satisfeitos — eles fazem anúncios dos cursos em outdoors, nos jornais, nas
rádios e nas televisões —, querem buscar o aluno que não tem recurso. Não sei se está
existindo pressões desses empresários para que o Ministério da Educação busque esse
aluno que não tem recursos.
Aliás, tive oportunidade de conversar sobre o assunto com o Secretário-Executivo do
Ministério disse a ele que isso é tudo que o empresário quer. Se o dono de uma universidade
particular tem uma sala de quarenta alunos, ele vai pôr mais quatro carteiras lá dentro e
dizer: essas dez pertencem à cota de 10%, e o MEC vai ter de buscar o aluno. O MEC, hoje,
tem estrutura para buscar o aluno em todos os Municípios? Não existem mais delegacias,
não existe mais o pessoal do MEC nos Estados. Então, quem vai fazer esse trabalho? A
carteira vai estar disponível para o MEC, mas pôr mais carteira numa sala não vai mudar
em nada a vida da universidade particular.
Quero saber, ao criar um projeto de impacto, que estrutura o MEC tem de buscar o aluno e
colocá-lo na sala de aula. Gostaria de continuar com essa discussão. Espero que possamos
fazê-lo em outros momentos, pois temos de caminhar muito em relação à solução desse
problema.
Timothy Martin Mulholland - Muitas questões, de muitíssima pertinência, foram abordadas.
Vou tentar versá-las de forma rápida, mas desde já ponho-me à disposição dos senhores
Deputados para qualquer tipo de pergunta ou esclarecimento.
Defendemos a autonomia da universidade, como foi aqui mencionado por vários dos que se
manifestaram. A universidade precisa ter o seu espaço de ajuste e de detalhamento de
políticas. É importante que isso aconteça. Vou dar um simples exemplo. Nossa cota aqui é
de 20%; na Bahia é de 40 ou 41% na federal, mas está chegando a um ponto. O principal é
que o número de cotas deles é o dobro da nossa, por razões que eles avaliaram com muito
cuidado e nós também. A nossa cota é por curso, Deputado Chico Alencar. Talvez seja aí
onde se dê a maior mexida. No curso de História, por exemplo — o Deputado Colombo é
pós-graduando nosso, com muita honra para nós —, hoje, 36% dos alunos se identificam
como negros. Nossa cota estabelece o piso de 20%, e os candidatos com o mérito
acadêmico que sobrarem da cota vão concorrer normalmente às demais vagas.
O Deputado Gastão Vieira talvez tenha acertado a mosca mais importante, ao dizer que o
ensino começa no pré-escolar, se não até antes, e isso tem de ser objeto de intensa e
permanente atenção da sociedade e dos diversos níveis de governo. De pouco adiantaria
tentar, na universidade, remediar uma situação que vem de tão longe. Mas isso tem de ser
feito, e é responsabilidade da sociedade.
A universidade pública cumpre vários papéis nesse sentido. Primeiro, formamos
professores. Esse é um papel que temos de cumprir com muita seriedade. Quase todos os
nossos cursos noturnos, por exemplo, são de licenciaturas. Havia necessidade de formar
mais professores, e a UnB caminhou nessa direção.
O ensino fundamental merece atenção da sociedade. Na universidade, o outro papel que
podemos desenvolver — e a intenção é intensificar — é promover uma cooperação com as
escolas públicas de 1º e 2º graus.
O nosso programa de avaliação seriada já faz isso há quase 10 anos. Em debates que tive
oportunidade de participar sobre uma interação mais intensa, colocamos a universidade a
serviço do ensino público. Na nossa região, inclusive a do Entorno, de certa forma, temos
de adotar a universidade pública de referência.
Concordo, também, que a permanência desses alunos na universidade deve ser uma
preocupação permanente, porque admiti-los e deixar que fracassem seria uma forma cruel
de exclusão, pior do que não admiti-los.
Hoje, na UnB, temos três mil estudantes bolsistas carentes. Precisamos de mais. Essas
bolsas saem de recursos próprios da instituição. Estamos contando com a sensibilidade do
MEC e de outros órgãos do Governo para que a quantia destinada a bolsas seja ampliada.
Dados de pesquisa realizada em nosso último vestibular — simulamos a cota no sentido de
uma simulação estatística —, revelam que hoje precisamos de, pelo menos, mais duas mil
bolsas para enfrentar o ingresso desses alunos. Vamos ter de buscar esses recursos junto
a quem pode nos ajudar.
Os dados do desempenho do estudante de cota, e vou falar com certa cautela, mostram
que, academicamente, o aluno da cota é comparável ao aluno tradicional da universidade.
Isso se dá por um motivo razoavelmente claro: aumentou, e muito, no Brasil a demanda por
universidade, porque o ensino de 1º e 2º graus estão fazendo o seu trabalho, bem ou mal,
estão produzindo estudantes que querem fazer universidade. Esse número quadriplicou e
vai quadriplicar outra vez. A demanda pelo ensino superior, entre esses muitos estudantes
qualificados, é imensa. Nosso vestibular tem quinze candidatos por vaga. Desses, não
apenas um está habilitado, mas quatro, sete ou dez. Há muitos estudantes que poderiam
ser nossos alunos e não o são não porque lhes falta competência, mas porque não temos
como colocá-los para dentro.
Temos a expectativa — dispomos de alguns dados, mas realmente a realidade vai ser o
dado principal — de que nosso estudante cotista seja um aluno com desempenho normal,
semelhante aos demais alunos. Não esperamos que ele seja um fracasso por razões
acadêmicas. Ele pode sê-lo por questões econômicas realmente. Isso tem que ser nossa
preocupação e de todos que apóiam esse tipo de iniciativa.
O Deputado Luciano Leitoa falou do problema da identificação. Recebemos, na imprensa,
um ataque surpreendente sobre essa questão e desviado, de forma às vezes maldosa, para
a impossibilidade de se estabelecer com precisão a raça. O que temos claro é o seguinte: a
discriminação negativa se dá tranqüilamente na sociedade. Quer dizer, o negro é excluído.
Esse dado ninguém questiona. Se ele é socialmente excluído, ele pode ser socialmente
incluído. Tem de ser; se não, negamos a origem. Se não é possível saber quem é negro no
Brasil, não há discriminação racial. E sabemos que existe.
Esse é o processo que adotamos. Ele vai encontrar seus críticos mais adiante, na Justiça
Federal, com certeza. Há toda uma rede de apoio que eu gostaria de citar, tanto da ACP,
como da Secretaria de Direitos Humanos, como do Movimento Negro. Há pessoas que vêm
à Brasília para oferecer ajuda. Hoje, assinamos um convênio com a ACP para um curso de
especialização — História da África —, que será coordenado pela Professora Selma.
Nosso prazo para esse plano de metas é de dez anos. Ele está sendo avaliado antes de
existir e vai ser avaliado constantemente. No caso de nossos alunos indígenas, por exemplo,
colocamos um professor como uma espécie de tutor de cada um deles, para que tenhamos
muito claras as dificuldades que possam surgir, a fim de que o aluno indígena não fracasse,
mas, sim, tenha êxito, que o ingresso desse estudante não seja uma atitude meramente
demagógica, e é o que seria escancarar-lhe as portas da universidade e dele não cuidar.
Deputado Colombo, apóio integralmente a sua idéia da rubrica de apoio. Isso é necessário.
A UnB tem um espaço próprio de gerar recursos, espaço que tem sido fundamental, mas
não o suficiente. Precisaríamos que houvesse destinação de verbas públicas para esse fim.
Gostaria de agradecer ao Deputado Murilo Zauith suas palavras. Realmente, o Mato Grosso,
para nós, é uma referência, e o estamos acompanhando. Vamos manter contato com os
procuradores de Mato Grosso do Sul esta semana, para que eles também nos ajudem a
enfrentar eventuais questões jurídicas que surgirem.
A idéia de metas, levantada pelo Deputado Colombo, é muito interessante.
Não nasci no Piauí, Deputado, mas sou piauiense de coração. Criei-me naquela região e
tenho muito carinho e respeito pelo Piauí, mas a minha aparência não é realmente típica.
Na universidade de lá talvez tivesse de haver cotas para pessoas como eu.
A idéia de metas é interessante. Se uma lei nos dissesse que teríamos de estabelecer
algumas metas em várias áreas e essa lei também previsse certo apoio, Deputado, para
que não tivéssemos de dar passos sem pernas, ou seja, uma lei que estabelecesse metas
claras, a fim de que pudéssemos nos programar e cumpri-las, do meu ponto de vista pessoal
— e creio que do Professor Lauro também —, seria uma lei realmente adequada e moderna
para esse tema. O Professor Maculan sabe que, do MEC, não dá para administrar 54
instituições. Ele sabe que cada qual tem a sua maneira de ser e o seu perfil.
Se trabalharmos com um sistema de metas e objetivos que tenha certa flexibilidade de
planejamento, com adequações para cada Estado — por exemplo, no Rio Grande do Sul
haverá uma adequação diferente da posta em prática na Bahia ou no Pará —, e até punição
caso não haja o cumprimento delas, parece-me oportuno que a Comissão considere a idéia
na legislação que virá, e esperamos que venha logo.
Ao encerrar, agradeço-lhes profundamente o convite. É uma honra muito grande — para
mim pessoalmente e para a UnB — estar aqui. Estamos à disposição de Vossas Excelências
para quaisquer outros esclarecimentos e iniciativas. Poderemos promover, eventualmente,
eventos de maior porte, de natureza acadêmica, uma vez que a Universidade tem facilidades
para tanto e está, repito, à disposição, senhor Presidente, para qualquer contribuição que
nos for solicitada.
Muito obrigado.
Nelson Maculan Filho -Vou tentar responder às perguntas.
O Deputado Átila Lira citou as desigualdades. Creio que temos de responder de maneira
desigual. Já estou com 62 anos. Não podemos errar mais. Minha geração tem de responder
ao menos algumas coisas. Temos de avançar na área da educação.
O projeto de lei que está sendo encaminhado ao Congresso propõe que 50% das vagas
sejam destinadas a estudantes do ensino público. Aqui foi aventada a idéia de se fazer isso
por curso.
O próprio Congresso Nacional vai adaptar os casos mais sensíveis — acredito que isso é
importante —, levando em conta os dados do IBGE. Tudo faz parte da discussão de como
será feito. A matéria foi muito discutida; ouvi vários Deputados; foi ouvida a FUNAI e assim
por diante.
Há um ponto importante, citado pelo Deputado Severiano Alves. Falo muito sobre ele nas
discussões que tenho com o Ministro. O projeto Universidade para Todos não faz parte da
idéia de reforma universitária. Trata-se de um projeto paliativo que, com os atuais recursos
e nossas restrições orçamentárias, poderá responder imediatamente a certa demanda, mas
não é um projeto, como foi aqui referido, para a vida toda.
Por outro lado, há o debate acerca de um projeto para a educação superior do País, projeto
que chamamos de reforma universitária. Temos reforma, contra-reforma, reforma reformista
e neoliberal. Isso faz parte da discussão.
Nas aulas que já ministrei pela Amazônia e por todo o País — estou começando a conhecê-
lo um pouco melhor, embora já o conhecesse no passado —, digo que a posição do
Ministério da Educação, do Ministro e minha com relação à idéia da reforma universitária é
que as universidades públicas continuarão gratuitas. Essa é uma discussão complicada,
mas é exatamente isso que respondo. Como o Deputado Chico Alencar disse, as pessoas
cobram do Governo, mas não é essa visão e chamo a atenção para isso. Para o Ministério
da Educação, não se encontra ali a grande dificuldade.
Vou tentar responder ao questionamento do Deputado Severiano Alves. Vamos supor que
nessas cotas para a universidade se tenha coberto os 5% ou 20% e muitos que tinham
média mais alta do que aqueles de etnia diferente tenham ficado de fora. Esse é o problema
das cotas e não é fácil de responder. O Colégio de Aplicação da UFRJ sorteia — não há
concurso — e faz um tipo de prova, mas a metade é sorteada. Há pais que entram na Justiça,
ganham e colocam o filho na universidade. É complicado.
Deputado Severiano Alves - Gostaria de esclarecer a minha pergunta. Ficou claro que, no
sistema de cotas, a escolha parte do critério econômico. Cem alunos são classificados
porque têm renda menor do que um salário mínimo. Há brancos, negros e índios. Um pobre
daqueles teve a maior nota. Pergunto: ele vai ficar lá para o final, já que temos de inserir
primeiro os negros? Essa pergunta me foi feita e fiquei com dificuldade de respondê-la.
Nelson Maculan Filho - Não estudamos essa questão, mas é interessante. No próprio projeto
podemos supor essa hipótese. Nesse caso, certamente que adotaremos, também, a nota
seletiva. Não sei essa resposta, porque a questão foi bem elaborada. Por isso, o projeto de
lei é importante. A questão ainda não foi discutida, mas é interessante.
O Deputado Chico Alencar enfatizou a função do professor. Quem já deu aula, como eu,
para cinqüenta, seiscentos alunos, sabe da importância disso. Por outro lado, no Brasil,
temos a visão de que a universidade é para poucos, é para uma elite, vinte alunos em sala
de aula. As pessoas não entendem que hoje, com os novos métodos, a área de pesquisa e
a de educação mostram que, quanto maior a massa, é mais fácil escolher e até fazer uma
boa pesquisa.
Outro aspecto interessante nessa discussão é o fato de que a universidade não pode deixar
de fazer pesquisa de ponta. O Brasil é um país continental, que lidera um importante
movimento internacional. Não podemos ficar atrás. Não podemos abaixar o nível da
universidade. A universidade tem que continuar, tem que ter recursos, a fim de realizar
importantes trabalhos.
Estamos formando sete mil doutores por ano no País e atingiremos rapidamente dez mil
doutores. Para muitos deles não há concursos na universidade; hoje, estão trabalhando com
bolsas. O próprio projeto na parte espacial é mantido em grande parte com bolsistas,
bolsistas de 5 ou 6 anos, já com doutorados e pós-doutorados. Temos, hoje, um sistema
errado; temos de fazer concurso público, sim. Há muita gente sendo paga por meio de bolsa
neste País e isso é errado. É preciso realizar concursos.
Atualmente, temos 2.040 instituições de ensino superior no País e mais de dezoito mil cursos
reconhecidos. Mas ainda persiste a idéia de concentrar, como se o Brasil fosse um país
pequeno, quando, na verdade, tem dimensões continentais. Temos de começar a acreditar
que essas instituições podem funcionar também nos Estados. Mas quem fará o trabalho de
seleção, aspecto muito bem lembrado pelo Deputado Murilo Zauith, e de apoio aos alunos
que irão para as universidades privadas, de acordo com o Universidade para Todos? Nossa
idéia é que as universidades públicas, estaduais ou federais, em convênio conosco, façam
esse serviço.
Temos de acreditar um pouco. Não podemos desconfiar de todo mundo neste País. Essa é
a minha visão. Não é unânime. Muitos acham que temos de concentrar cada vez mais aqui.
Acho que ainda estamos atrasados e não temos competência para responder.
Deputado Colombo, morei dois anos na Casa da África, em Paris. Fui preso e saí do País
em 1964. Conheci muito a cultura africana, aprendi algumas línguas, freqüentei salas de
aula e sei que o Egito é na África. Muita gente se esquece disso. No antigo Egito já havia
hieróglifos, já se escrevia. Mas ainda há uma tese segundo a qual os egípcios eram uma
raça negra, talvez relacionada com os etíopes.
No Brasil, ignoramos os africanos. Já os europeus, de Portugal até a França e a Alemanha,
estudam muito a África, porque no passado eles tiverem interesse naquele continente.
Deputado Gastão Vieira, um dos problemas da UFRJ foi o atraso no pagamento das bolsas
pelo Estado. Vários alunos não tiveram acesso à condução. Temos de lembrar que
estudantes com mais dificuldades só têm recursos para almoçar e tomar o ônibus de ida e
volta. Então, temos de montar um sistema de apoio. Temos de ver se será o Ministério da
Educação, o Estado, o Município ou um fundo em comum. É importante chamar a atenção
para isso. É o que eu ouvi dos meus colegas que trabalham na UFRJ. Eles me disseram
que grande parte do pessoal que foi embora devido ao atraso no pagamento dessas bolsas.
Eles não puderam continuar. Perderam muitas aulas no início.
Para os senhores terem uma idéia, um aluno do curso médio faz cópia; outro não tem
dinheiro para fazer cópia, não tem um computador. Por isso, temos de pensar seriamente
nesse assunto. Sou professor, estou há 34 anos na UFRJ, conheço bem a situação, que
não é de hoje. A maioria dos cursos noturnos da UFRJ foi criada na minha gestão. Sem
apoio, aumentamos em 20% o número de vagas. Todo mundo era contra: alunos,
professores e funcionários. Interessante isso. Agora, os resultados vão aparecendo. Quem
me ajudou muito foi a mídia e o Congresso Nacional. Isso acontece por causa da nossa
cultura. Não é por mal. Faz parte da concepção universitária.
Em Ouro Preto só entravam quarenta alunos por ano. No vestibular, concorriam mais de
sessenta, setenta candidatos por vaga e achávamos que não podia entrar mais ninguém.
Para se ter uma idéia, basta dizer que nunca tive um colega de Ouro Preto. Vinha todo
mundo do Rio, de São Paulo, do Ceará. Era a elite do País. O pessoal da região nunca teve
vontade.
Fala-se agora na criação da Universidade Federal do Vale do São Francisco, um trabalho
novo e interessante. Vai-se abrir uma Faculdade de Medicina e vamos tentar destinar
metade das vagas para o pessoal da região. Se não for assim, não haverá ninguém da
região, porque quando se faz vestibular para o curso de Medicina de uma universidade
pública aparece gente até de São Paulo.
Então, alguns cursos, como Medicina, Odontologia, Comunicação, Direito, Psicologia —
Engenharia já saiu um pouco de moda —, têm enorme demanda no vestibular; se não se
fizer reserva de vagas para os candidatos da região, elas serão ocupadas pelos melhores
do País. Temos de chamar a atenção para esse aspecto.
Por outro lado, quero recuperar um pouco o papel que a universidade privada desempenhou
em relação às próprias comunidades. Muitas vezes, como o Estado não avançou, o Prefeito
foi obrigado a negociar com cursos particulares.
Vim de Londrina, Paraná, hoje uma grande cidade, mas, no meu tempo, não havia
universidade, nem mesmo uma faculdade. A minha geração teve de sair de lá para estudar.
Ninguém ficou em Londrina. Todos foram para Curitiba, São Paulo, Campinas, Ribeirão
Preto, Rio de Janeiro. Hoje, não. Hoje, a escola privada vem dando a resposta que o Estado
não conseguiu dar.
Não podemos também ser contra tudo o que muitos fizeram, porque também levaram o
Brasil crescer. Como voltar a ser monarquista hoje?
Temos de pensar um pouco. Até 2010, segundo o Plano Nacional de Educação, temos que
colocar sete milhões de alunos entre dezoito e 24 anos no ensino superior. Hoje, só temos
2,5 milhões. Mais de um milhão têm mais de 24 anos. Será um desafio. Não sei se
conseguiremos, mas seremos incompetentes se nós, Executivo e Legislativo, não
trabalharmos nesse sentido.
Acredito ter respondido o que me foi perguntado.
Foi uma satisfação estar nesta Casa democrática. Estou à disposição dos senhores na
Secretaria de Educação. Respeito muito os que receberam voto, porque representam a
população. Quando não os recebo, não é culpa minha. Faço questão de receber, conversar,
trocar idéias. Ontem mesmo recebi sete Deputados. Vários aqui já estiveram lá conversando
comigo. Somos obrigados a responder aos colegas. É muito importante a diversidade para
crescermos. Acho que a prioridade é para quem tem voto no País.
Congratulo-me com esta Casa pela importante idéia de realizar esta discussão.
Obrigado.
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - Pretendo fazer algumas considerações que poderão
nos orientar no próximo ciclo. Como afirmei no início, esse tema já havia sido levantado em
1946 por Abdias do Nascimento. Portanto, há 68 anos, sete décadas de discussão sobre a
questão de cotas e a participação do negro nas instituições de ensino superior. E, como
disse a Ministra Matilde Ribeiro, o óbvio tem de ser motivo de aprofundamento e debates,
sob pena de ficar pálido — houve aqui um acréscimo de minha parte.
O enfrentamento da constitucionalidade e o pretexto do mérito acadêmico como um
arcabouço de defesa das posições contrárias à política que estamos discutindo.
Deputado Átila Lira - A visão elitista acadêmica: discriminar. Senão, não quebraremos nunca
o ciclo. Achar que a educação básica é pobre e que por isso se reproduzirá... É claro que
ela vai, mas essa seleção, dentro do regime de cotas, vai excluir os piores. E, como disse o
Professor Timothy., não adianta colocar o aluno para dentro do sistema e deixá-lo solto.
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - Isso não quer dizer que se deve ferir o princípio da
liberdade. Ao contrário, queremos apoiá-lo.
A autonomia universitária, do ponto de vista das instituições universitárias, e o princípio da
liberdade de ensino das instituições privadas são dois dos importantes motes de debate
para amadurecimento de matéria, de iniciativa parlamentar ou do Executivo, que será alvo
de análise legislativa.
O tema da interiorização, como já foi apontado, a discussão sobre ser a instituição
multicampi ou não, a repartição e a territorialidade da reserva, mencionada ao final por
Nelson Maculan, impõem-nos também desafios, que, no curso dos debates, não tinham
ainda alcançado a importância que têm demonstrado. Da mesma forma, o item relativo à
manutenção — foi a palavra usada aqui, mas nós costumamos falar em "permanência nos
cursos", indicando rubrica própria, uma vez que temos a tarefa de discutir a Lei de Diretrizes
Orçamentarias, de compatibilizá-la com o Plano Plurianual e de votar o Orçamento da União
—, requer importantes instrumentos de suporte em matéria legislativa. E, a partir do
momento em que estiver garantido, o acesso dessa diversidade ao ensino superior
interferirá decididamente nas práticas curriculares, requerendo sua alteração, bem como
dos horários de funcionamento do curso, dos espaços acadêmicos que deverão ser criados.
Além disso, evidentemente, o estabelecimento de cotas tornará patentes no meio
universitário e não apenas latentes a nível reflexivo muitas das contradições existentes na
sociedade brasileira, em especial no mundo acadêmico. Ele as transformará em dado real,
objetivo, no interior dessas instituições. Mas, ao mesmo tempo, todas essas contradições,
sejam elas jurídicas ou não, reais ou imaginárias, vão estimular a mobilização pela
ampliação de vagas, conforme lembrado pelo Deputado Ivan Valente, com muita
competência. Será uma pressão positiva em prol de uma expansão democratizada, que não
reproduza a elitização tradicional da oferta que há no caso brasileiro.
Com relação aos dados mencionados pelo Deputado Gastão Vieira, se não estou
enganando, eles se referem à rede de ensino fundamental do Estado do Maranhão.
Evidentemente, o Deputado Gastão Vieira, ao reclamar o "fazer", que é urgência em toda a
sociedade brasileira, traz à tona tema que esta Comissão estará debatendo: o Sistema
Nacional de Educação e o famoso regime de colaboração previsto na Constituição Federal,
que reparte responsabilidades que deveriam ser cooperativas e não concorrenciais.
Um Estado pobre como o Maranhão, além de outros, necessita de forte colaboração dos
entes federados, inclusive da União, desde a educação básica, com o fim mesmo de superar
o senso comum de que a União só teria responsabilidade com o ensino superior e que
Estados e Municípios responderiam pelo ensino básico ou fundamental e o médio. Esse
regime de co-responsabilidade inclusive será matéria de um seminário que a Comissão
realizará.
Deputado Gastão Vieira - Senhor Presidente, eu gostaria, como maranhense, que esses
dados fossem relativos ao meu Estado, mas, infelizmente, dizem respeito ao Brasil.
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - O que é mais grave ainda. Mas não há razão para
lamentar. Evidentemente, não devemos apenas reiterar os dados, mas, no horizonte da
nossa atividade política no Legislativo, procurar a superação desses temas.
Agradeço a todos os convidados que aqui estiveram durante quase quatro horas.
Muito obrigado.
2ª AUDIÊNCIA — 15/06/2004
SISTEMA DE COTAS EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICO

Abertura
Deputado Carlos Abicalil (Presidente da Comissão de Educação e Cultura) — A Comissão
de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados propôs ampliar o debate para o
entendimento e formação de opinião pública sobre os projetos relativos ao estabelecimento
de cotas de diversas naturezas. Além de propor o entendimento e a necessidade de
viabilizarmos políticas afirmativas, a discussão ultrapassa do ponto de vista estrutural, formal
e conceitual do projeto estritamente considerado, e tonifica o debate ampliado sobre as
condições de acessibilidade da população brasileira ao ensino superior, visando a
conjugação de um sistema de cotas no âmbito de políticas afirmativas, com características
de cotas étnicas e raciais e também nas instituições públicas de ensino.
Recentemente, foi apresentado projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, que se
acrescenta às diversas matérias em tramitação no Congresso Nacional, desde 1998, e que
estão em fases distintas de tramitação. O projeto de iniciativa do Executivo, neste momento
distribuído à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Casa, encontra espaço nesta
publicação, relatando as Audiências Públicas — que fizeram por requerimento dos
Deputados Luiz Alberto, Gilmar Machado e da Deputada Iara Bernardi, —, que completará,
com esta audiência pública conjunta entre a Comissão de Educação e Cultura e a Comissão
de Direitos Humanos e Minorias, o debate específico, dando seqüência àqueles iniciados
outrora, em torno das cotas étnicas em instituições públicas de ensino.
Evidentemente, organizamos as audiências públicas relativas ao tema , de modo a abordar
diferentes pontos de vista, em torno de práticas implementadas de cotas étnicas e raciais e,
ao mesmo tempo, da proposição de diversas expressões do movimento, seja indígena, seja
de afro-descendentes negros e negras pelo País afora.
A conformação de audiência pública implica necessariamente determinação de focos para
observação do problema, sem prejuízo obviamente de que haja outras oportunidades na
qual o debate aflore e outras visões que até então não tenham sido expressadas.
Convidamos para debater o tema os senhores Frei David Raimundo dos Santos, Diretor
Executivo da Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes — EDUCAFRO,
organização que no ano passado recebeu da Comissão de Educação e Cultura, da Câmara
dos Deputados, o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação; Marcelo Brito da Silva, Presidente da
União Brasileira de Estudantes Secundaristas — UBES; Maria José de Jesus Alves
Cordeiro, Pró-Reitora de Ensino da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Flávio
Jorge, Coordenador Nacional de Entidades Negras.
O cenário e a retrospectiva histórica e social trazida no discurso do colega Deputado Jairo
Carneiro é a mais pura expressão dos desafios que temos de enfrentar. Com determinação,
boa parcela das bancadas querem fazê-lo com êxito, no sentido de fazer não apenas da
reparação, mas sobretudo da participação democrática e republicana, que deve constituir o
horizonte de consolidação da Nação brasileira no início do século XXI, um cenário que
evidentemente respeite as manifestações levantadas. Entre elas destacamos : "Inclusão já"
e "Ações Afirmativas" e "Inclusão já".
Essas três palavras de ordem estão presentes no importante discurso feito em nome de
muitos Parlamentares. Comungamos com a opinião do Deputado Jairo Carneiro. Elas nos
fez abrir as audiências públicas pertinentes, reiterando formalmente, para o registro nos
Anais da Casa, a faixa que parabeniza instituições oficiais de ensino estadual pela adoção
de ações afirmativas de cotas étnicas, como é o caso da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, da Universidade Estadual do Norte Fluminense — UENF, que tem inclusive um
campus na minha cidade natal, Nova Friburgo, da Universidade Estadual da Bahia — UNEB,
e a única universidade federal já presente neste cenário, a Universidade de Brasília. O
Deputado Jairo Carneiro nos lembrou ainda que a Universidade Federal da Bahia também
já aprovou essas cotas e, portanto, mereceu o registro no mesmo plenário e nesta
publicação, de igual natureza.
Temos a convicção de que a força da participação popular, a expressão necessária,
indispensável e urgente da diversidade encaminharam com presença forte nas audiências
públicas o avanço significativo para confirmação desse pleito urgente, indispensável,
necessário e absolutamente justo.
Como Presidente da Comissão de Educação e Cultura, quero registrar a intensa qualidade
dos debates que ocorreram durante as audiências realizadas na Comissão de Educação e
Cultura e que por este motivo aqui estão publicadas.
Isso nos anima e dá forças para continuarmos com muita firmeza e determinação
prosseguindo naquilo que for ainda importante ouvir para contribuir para o processo de
qualificação dos projetos que estão em tramitação. É dessa forma que pretendemos
construir de maneira participativa, fomentando o debate, buscando novos canais de
comunicação e participação popular, novas formas de promover a inclusão social .
Para concluir, quero dizer que agradeço muito as participações que tivemos, agradeço aos
diversos movimentos que se fizeram representar durante as audiências, em diversas formas
de manifestações. Deixo o meu abraço à Universidade de Brasília, nesta importante reação
que a Câmara dos Deputados não pode abdicar de fazer, encaminhando o debate de
determinadas formas de abordagem dos temas das cotas étnicas, que buscam ou a sua
deslegitimação, ou a sua ridicularização, como recentemente ocorreu em veículos de
importância para a formação da opinião pública brasileira.
Naquilo que nós da Comissão de Educação e Cultura pudermos contribuir, não tenham
dúvida de que isso não é apenas motivo de uma aliança utópica em função dos projetos que
estão ora sob nossa apreciação, mas trata-se fundamentalmente de uma aliança histórica
pela reparação de movimentos ao longo do tempo institucionalizados em desfavor da
maioria do povo brasileiro.

Deputado Jairo Carneiro (Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias) -


Participamos deste debate em parceria com a Comissão de Educação e Cultura, informando
a todos, que a história de luta das minorias Políticas do Brasil passou a ser incorporada pela
Comissão de Direitos Humanos a partir de 2003. Felizmente, a Câmara dos Deputados fez
a devida reparação, incluindo as questões das minorias no devido lugar, mesmo com a
discordância de segmentos conservadores que se faziam ecoar nos debates sobre a
reforma do Regimento Interno e das Comissões da Câmara dos Deputados.
Particularmente, entendemos que, ao falar em sistema de proteção aos direitos humanos,
deve-se iniciar o debate a partir da história da caminhada dos afro-descendentes e nativos
brasileiros na trajetória do País, uma vez que foram as principais vítimas do processo
expansionista da civilização européia ocidental.
Falar em direitos humanos, sem levar em conta a questão étnica de orientação sexual e
relações de gênero, não passa de mera abstração intelectual e de discurso monopolista de
uma minoria retrógrada e sonhadora do mito ocidental, intitulado "humanidade universal",
entendendo-se européia e cristã.
Qualquer reflexão ou elaboração de políticas públicas no Brasil, sem considerar a realidade
dos negros ou índios, perderá seu significado e sua legitimidade. Sabemos que parte da
militância tradicional dos direitos humanos resiste a qualquer idéia de especificidade e
diversidade humana, pois teima em afirmar-se na ultrapassada concepção universalista, que
sempre se sustentou na idéia de que a luta pelo respeito aos direitos humanos já contempla
todas as peculiaridades da vida. Tal assertiva sempre foi problemática e difícil de ser gerida
pelos movimentos minoritários, uma vez que a história sobre os direitos humanos no mundo
contemporâneo teve boa parte do seu nascedouro advinda da própria cultura européia, uma
cultura extremamente etnocêntrica, que sempre recusou o princípio da diversidade e
diferenças humanas e civilizatórias.
É sabido que, no ano que antecedeu a formulação e oficialização da Carta Universal dos
Direitos Humanos de 1948, os povos africanos reivindicaram a inclusão do quesito
"reparação" e foram frontalmente vencidos pela incoerência do espírito comunista que
grassava sobre a Europa dos tempos modernos. Assim, os movimentos das minorias —
negros, mulheres, índios, homossexuais e tantos outros — infelizmente tiveram que fazer
seu próprio percurso de luta, enfrentando a intransigência dos Estados e o preconceito da
sociedade e, pasmem, até de uma parte daqueles que militam em direitos humanos.
Depois desse breve histórico e conceitual, gostaria de adentrar a temática para contrapor a
espécie de convulsão dos oponentes a essa idéia. Causa perplexidade deparar com a
própria discordância da comunidade acadêmica, que pressupostamente conhecedora da
história de luta e contradições humanas, insiste em negar essa possibilidade de reparação.
Não se entende esse furor de contrariedade, de ferrenha campanha contra as cotas. Diga-
se de passagem, os movimentos das minorias étnicas não estão inventando ou delirando
na reivindicação. Estão, sim, fazendo uso de um instrumento comum nas ações das
sociedades de classes dos Estados modernos.
Pergunto então: qual a diferença entre sistema de cotas para sistema de subvenção, isenção
fiscal, subsídios e o perdão das dívidas ativas e tantos outros eufemismos que obedecem à
mesma lógica, ou seja, do protecionismo do Estado aos setores privilegiados ou
organizados? Por que esse estranhamento? O Estado moderno sempre usou de tais
artifícios para proteger setores que ele considera estratégicos. Foi assim com o PROER; foi
assim com o processo de incentivo de fluxo migratório no Sul do Brasil; foi assim na
concessão de isenção para entidades filantrópicas, religiosas, esportivas, culturais e outras.
A própria universidade brasileira usa desses recursos, não de forma oficial, aberta ou
explícita. Vamos perceber tais mecanismo de seleção institucional ao constatarmos que não
basta o aluno pobre, negro ou índio passar no vestibular, na ilusão de que participa de um
processo democrático.
Para um aluno pobre, negro ou índio, pertencente ao segmento socialmente excluído, a
chance de acessar o campus universitário é praticamente impossível, pois bem sabem que
a grade horária da maioria das universidades públicas o impossibilita radicalmente de dispor
de um tempo integral, já que a maioria dos excluídos são obrigados a trabalhar de maneira
desumana e precocemente.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias está ciente do discurso. Indignados estamos
ao saber que uma expressiva parcela da comunidade acadêmica faz coro juntamente com
os segmentos conservadores e que sempre abocanharam a grande fatia do bolo do dinheiro
público.
Quero ressaltar que não estou autorizado a falar oficialmente em nome da Comissão, mas
creio expressar o sentimento dominante naquela Casa.
Tal discordância absurda nos faz perguntar e refletir sobre o papel ideológico da
universidade pública. Alegam os defensores de uma universidade monocultural, dotada de
um purismo social, intelectual e cultural, que cairá o nível e a qualidade do ensino e da
formação profissional, baseados em igual premissa ilógica estatística.
Nesses anos de existência da universidade pública no Brasil devemos ter a coragem de
perguntar a quem ela serviu. Seria interessante as minorias étnicas elaborarem uma
pesquisa nos assentos das universidades públicas para saberem sobre a árvore
genealógica das famílias que usufruíram da gratuidade e do espaço acadêmico público.
Teremos resultado óbvio e irrefutável, pois todos os cidadãos das periferias, das favelas e
dos cortiços sabem muito bem que o espaço das universidades públicas é elitizado,
excludente e etnocêntrico.
A atual configuração da universidade brasileira já é de baixo nível e de qualidade duvidosa,
quando se percebe ausência da diversidade e multiculturalidade humana. Não se pode
reconhecer um parâmetro sem a possibilidade e a recusa de outros diversos experimentos
e ou de formas de convivência. A ciência só reconhece um pressuposto teórico depois de
várias experiências. Dizer que a universidade pública tem uma tradição de excelência
acadêmica a partir de um único foco étnico chamar-se-á de nazismo, preconceito, ideologia
com o único propósito de manter o privilégio de uma determinada classe social que se julga
acima dos demais segmentos. Afinal, universidade é poder. E aí é onde reside o fulcro do
debate.
Acessar e democratizar a universidade significa dividir um poder, o poder dos diplomas e
dos bacharéis, que infelizmente persiste no imaginário social e estatal como paradigma de
mando e status social. Não bastasse a reação negativa de uma fatia da comunidade
acadêmica, também temos que enfrentar o discurso da comunidade jurídica conservadora.
Já estamos ouvindo que as medidas sobre a reparação e a inclusão dos negros e índios no
sistema de cotas é inconstitucional. Que legitimidade tem o ordenamento jurídico neste País,
quando esta mesma estrutura convalidou a escravidão e o roubo das terras por Cabral, que
pertenciam aos índios? Não devemos esquecer que o direito é parte integrante dos
aparelhos de reprodução ideológica do estado das elites.
Por essas razões é que estamos aqui, para nos indignarmos e colocarmos a Comissão de
Direitos Humanos e Minorias ao dispor integralmente na luta dos negros e dos índios nesta
empreitada, não só de democratização da acessibilidade, mas de multiculturalização do
espaço acadêmico, que até então pertence a uma minoria histórica e socialmente
privilegiada e protegida pelo Estado Democrático de Direito.
É esta a singela mensagem que trago na abertura desses trabalhos.
Deputado Carlos Abicalil (Presidente da Comissão de Educação e Cultura) - Anuncio a
presença do doutor Hédio Silva Júnior, a quem solicito que faça também parte integrante
desta Mesa.
Anuncio a primeira relação de personalidades e representações importantes que se
encontram nessa audiência pública: José Adalberto Macuxi, da Coordenação da
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira — COIAB; Claudete Alves, Vereadora de
São Paulo; Edmar Silva, Coordenador-Geral de Assuntos da População Negra de São
Paulo; Gilberto Neves, Vereador do Município de Uberlândia, Minas Gerias, e Líder da
bancada do Partido dos Trabalhadores.
Senhoras e senhores, evidentemente que o cenário e a retrospectiva histórica e social
trazida no discurso de abertura do colega Deputado Jairo Carneiro é a mais pura expressão
dos desafios que temos de enfrentar. Com determinação, boa parcela das bancadas querem
fazê-lo com êxito, no sentido de fazer não apenas da reparação, mas sobretudo da
participação democrática e republicana, que deve constituir o horizonte de consolidação da
Nação brasileira no início do século XXI, um cenário que evidentemente respeite as
manifestações levantadas. Vocês que estão de frente para a mesa não puderam ver essas
manifestações. Com as mais diversas cores, de maneira organizada, no final de nosso
plenário, levantavam duas palavras de ordem: "Inclusão já" e ações afirmativas.
E mais na primeira fila tem "Inclusão já", se não estou enganado.
Essas duas palavras de ordem estão presentes no importante discurso feito em nome de
muitos Parlamentares. Comungamos com a opinião do Deputado Jairo Carneiro. Elas nos
fazem abrir esta audiência pública reiterando formalmente, para o registro nos Anais da
Casa, a faixa que parabeniza instituições oficiais de ensino estadual pela adoção de ações
afirmativas de cotas étnicas, como é o caso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
da Universidade Estadual do Norte Fluminense — UENF, que tem inclusive um campus na
minha cidade natal, Nova Friburgo, da Universidade Estadual da Bahia — UNEB, e a única
universidade federal já presente neste cenário, a Universidade de Brasília, que foi abraçada
hoje pela manhã por diversas manifestações do movimento.
O Deputado Jairo Carneiro recorda que a Universidade Federal da Bahia também já aprovou
essas cotas e, portanto, merece o registro neste mesmo plenário, de igual natureza.
Como temos multiplicidade de opiniões e, ao mesmo tempo, houve importante interação de
três Parlamentares que simultaneamente apresentaram requerimento para a realização
desta audiência pública, faremos a prática do revezamento na coordenação da Mesa, de
modo que os diversos requerentes façam mediações e interações importantes nesse cenário
de debates e evidentemente conduzam o que é importante para o sucesso da empreitada
de hoje, que aposta nos seus exitosos desdobramentos para o futuro.
Convido, para a primeira coordenação da Mesa, o Deputado Luiz Alberto, do Partido dos
Trabalhadores da Bahia, de modo a dar início aos depoimentos da tarde de hoje.
Muito obrigado.
Deputado Luiz Alberto (Coordenador) — Boa-tarde a todos, aos companheiros e
companheiras Parlamentares, aos estudantes de alguns Estados, principalmente de São
Paulo, aos Vereadores e Vereadoras.
Saúdo o Presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados,
companheiro Carlos Abicalil, e o Deputado Jairo Carneiro, que representa a Comissão de
Direitos Humanos e Minoria. Agradeço aos debatedores pela presença. Quero dizer que a
iniciativa que tomamos, eu, a Deputada Iara Bernardi e o Deputado Gilmar Machado, tem
o sentido de democratizar o debate sobre as políticas de ações afirmativas, ora em
discussão no nosso País.
Quando o Presidente Lula enviou a esta Casa os dois projetos de lei, um que institui o
Programa Universidade para Todos, dirigido às universidades e faculdades privadas, e o
que estabelece cotas para escolas públicas e estudantes afro-brasileiros e indígenas, na
verdade teve o intuito de cumprir parte do programa de Governo que apresentou no período
da campanha.
Quero lembrar que foi em Salvador, na Bahia, que o Presidente Lula lançou uma parte de
seu Programa Brasil sem Racismo, e lá estabelecia essa ação que ora se concretiza com o
envio a esta Casa dos dois projetos.
Evidentemente, esse debate tem tomado a consciência da população brasileira. Hoje pela
manhã, tivemos um grande debate na CCJ, com a presença majoritária de parte desta
assistência. Inclusive, naquela ocasião, Frei David citou matéria da Folha de São Paulo e
do jornal O Globo. Também hoje, no jornal O Globo, foi divulgado o artigo de um jornalista,
Ari Kamel, que faz um discurso evidentemente na contramão desse processo ora em debate.
Vai mais além. Não só se define como contrário à proposta de inclusão de uma política de
ações afirmativas e cotas em particular, mas vai além disso. Ele nega de forma enfática a
existência de racismo no nosso País.
Portanto, nós — eu particularmente, antes de ser Parlamentar, como militante de movimento
negro, coordenei até pouco tempo nesta Casa o Núcleo de Parlamentar Negro do PT, que
hoje está sob o comando do nosso companheiro João Grandão, presente à nossa audiência
— sabíamos que esse debate seria talvez a porta de entrada para que a sociedade brasileira
se posicionasse de forma objetiva sobre a existência ou não de racismo em nosso País.
Além dessas proposições ora expostas aqui pelo Presidente, também tramita nesta Casa o
Estatuto da Igualdade Racial, um instrumento importante, que já está na mesa da Câmara
para ser votado. Tanto aquele projeto de lei, quanto esses dois e o debate que estamos
realizando aqui nada mais são do que uma emenda à lei que estabeleceu o final da
escravidão no Brasil. Aliás, em 1988, dissemos isso nas ruas, a Princesa Isabel esqueceu-
se de completar aquela lei e de assinar a carteira de trabalho da população negra. Portanto,
esse debate é uma reforma que se faz à Lei Áurea, que esqueceu de estabelecer uma
política de inclusão da população negra no nosso País.
Passo a palavra ao primeiro expositor, Frei David Raimundo dos Santos, Diretor Executivo
da EDUCAFRO.
Frei David (EDUCAFRO) - Com alegria participo deste momento, junto com meus irmãos
Deputados, pessoas eleitas pelo povo, de vários estados do país, com a missão de fazer
um Brasil melhor. Sinto-me honrado em poder partilhar reflexões nessa linha.
Começo dizendo que com grande alegria partilho neste plenário a informação nova que não
foi bem trabalhada ainda — talvez por falta de espaço — pela grande imprensa.
A UERJ já fechou a pesquisa, após um ano, com alunos cotistas, estudando na UERJ.
Espero que a imprensa possa trabalhar com mais tranqüilidade o conjunto dos resultados.
A UERJ dividiu os alunos que entraram por cotas, após um ano de estudo, em quatro
blocos.
O primeiro bloco, alunos que tiraram nota zero (ou abandonaram os estudos); segundo
bloco, alunos que tiraram abaixo de cinco; terceiro bloco, alunos com notas medianas, entre
cinco e sete; quarto bloco, alunos que tiraram notas de sete a dez.
Alguns jornais, talvez por falta de tempo, dão mais ênfase a um desses blocos, e não ao
conjunto.
A Comissão de Educação está atingindo sucesso total. Menciono também a Comissão de
Direitos Humanos. O público não está cabendo no plenário e já se abriu uma segunda sala
com telão. As duas comissões juntas são centrais nesse bonito trabalho de inclusão social
e étnica.
Segundo pesquisas da UERJ, dos alunos não cotistas, alunos que não tiveram auxílio de
cotas, mas tiveram dinheiro do pai e da mãe para fazer cursinho caro, 13,7% tiraram nota
zero em alguma matéria; dos cotistas, apenas 6,9%. Olhem só esse detalhe bem menos!
Nota inferior a cinco. Entre os alunos não cotistas, 21,1% tiveram nota abaixo de cinco; entre
os cotistas, 22,4%. É empate técnico. Para quem trabalha com pesquisas e estatísticas e
experimenta eleições, como no caso dos Deputados, isso é empate técnico.
Nota entre 5,1 e sete notas medianas, mais uma vez houve empate técnico. As notas dos
cotistas e as dos não cotistas estão bem próximas.
O ponto central é quando se avaliam os alunos cotistas que tiraram nota acima de sete. Este
é o ponto mais importante. Nesta escala de notas é que verificamos o maior potencial
acadêmico de uma universidade. Aqui estão os melhores de cada turma em todos os
cursos!
Qual era o discurso do pessoal contrário às cotas? O discurso foi sempre este: "Esses
negros, esses brancos pobres vão fazer cair o nível acadêmico das universidades". Mais
uma vez, derrubamos, com qualidade máxima, essas falas discriminatórias e ingênuas.
Pessoas pré-conceituosas sentenciaram que as cotas iriam baixar a qualidade acadêmica.
Isto beirou à hipocrisia.
Dos alunos não cotistas, que tiveram "bifinho e Danoninho" o ano inteiro, ou seja, os
riquinhos, 47,1% tiraram nota acima de sete. Quanto aos negros, de chinelos, sem dentes,
que vão para a faculdade a pé ou de bicicleta, os cotistas, a percentagem de alunos com
nota acima de sete é 48,9%. Portanto, esse dado é fundamental para entendermos a
questão. A implantação das cotas está melhorando a qualidade das universidades.
Qual a explicação deste fenômeno? O vestibular mede igualmente dois públicos que sempre
tiveram oportunidades desiguais. O vestibular não mede a capacidade. Só confirma quem
teve oportunidade. Agora, em uma mesma sala de aula, com o mesmo professor, os cotistas
estão provando que são capazes de aprender rápido e ter melhor desempenho, quando se
concede oportunidades iguais. Não podemos esquecer que há erros de enfoque em muitos
dos que são contra as cotas: o que define o futuro profissional não é a nota obtida no
vestibular e sim o seu desempenho acadêmico ao longo do curso universitário. O mérito
deve ser medido após cada ano. Assim mede-se também o mérito e qualidade dos
professores em dar aulas de qualidade, que realmente ajuda os fracos.
Proponho aos senhores deputados uma análise da pesquisa da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS), que adota cotas desde 2003. Ali os índios e negros estão
surpreendendo com excelentes notas! É o que também revelam os números da PUC-RJ: há
dez anos aquela Universidade desenvolve um programa de inclusão que já beneficiou a
mais de mil jovens pobres da periferia do Rio de Janeiro. Pois bem: Os alunos pobres e
negros estão com um desempenho acima do esperado.
Como o tempo é curto, passemos logo para os slides, que nos vão ajudar a entender o
drama do Brasil, o Brasil do nosso sonho.
Entendemos a ação de Zumbi em vários momentos difíceis que temos enfrentado na luta
pelas cotas. Em plena celebração do mês de Zumbi, em 2003, a sociedade brasileira foi
agraciada com esta notícia em 24 de novembro:
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro nega suspensão da lei de cotas.
O Desembargador Celso Guedes, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, negou o pedido
de liminar para suspensão da lei de cotas referente à reserva de vagas nas universidades
estaduais para negros, integrantes de minorias étnicas, deficientes e estudantes oriundos
do ensino público.
Com essa vitória, o processo começou a solidificar-se no Brasil inteiro.
Qual é o significado dessa vitória? Na primeira abordagem desse assunto, na Justiça do
Rio, as reações dos Juizes foram desastrosas. Agiram sem conhecer o assunto. Houve um
grande trabalho da comunidade negra. A Revista da Magistratura foi acionada e fez ricas
reportagens, dando aos Juizes os subsídios para sua reflexão. Para canções novas, ouvidos
novos. Dezenas de seminários foram realizados no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro,
inclusive na Escola de Magistratura daquele Estado. Cada Juiz e cada Desembargador
recebeu em sua mesa um dossiê fruto desse seminário.
A postura contrária da imprensa acabou gerando resultados positivos para a comunidade
negra, pois obrigou que o assunto ficasse na ordem do dia por longo período — e está até
hoje. Nove meses depois, os Juízes são novamente provocados a se posicionar. Surpresa:
a grande maioria amadureceu no que diz respeito ao conhecimento das ações afirmativas.
A estratégia deu certo! Até mesmo o Supremo Tribunal Federal, através de seu Presidente,
Ministro Nelson Jobim tem nos ajudado muito a aprofundar o entendimento sobre a
constitucionalidade das cotas e a necessidade de trabalharmos para redução das
desigualdades, como manda a nossa Constituição Federal em seu artigo 3º. O fato de que
o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério da Justiça terem implantado cotas
em seus quadros de funcionários dão a todos nós tranqüilidade no campo jurídico para
defendermos as ações afirmativas.
Sobre o tempo para aplicação das ações afirmativas, queremos ressaltar o seguinte: cotas,
instrumento temporário para provocar reflexão. É bom deixar bem patenteado que a
EDUCAFRO defende cotas como sendo um instrumento temporário. Lutamos com essa
posição desde o início, há 10 anos. Esta estratégia visa possibilitar mobilidade social e
empoderamento dos grupos historicamente marginalizados, como negros e indígenas.
As universidades públicas se afastaram das escolas públicas de ensino médio. De maneira
estranha, prenderam-se aos interesses mercantilistas dos cursinhos caros, fonte de altos
lucros, e das escolas particulares. O vestibular passou a medir informações sonegadas nas
escolas públicas, só veiculadas nas particulares. O conteúdo dos vestibulares passou a se
caracterizar por ser descartável. Exemplo: coloque-se em uma sala, um ano depois, os
alunos aprovados em Medicina na USP; aplique-se o mesmo vestibular; vai-se descobrir
que a maioria será reprovada. O vestibular foi apenas um instrumento para premiar quem
fez cursinhos caros e decorou os macetes.
O vestibular é um poderoso e eficiente instrumento de exclusão de negros e pobres. Por
isso tem que ser derrubado. É um concentrador de rendas, porque dá de graça a faculdade
pública para alguns.
Próximo item: USP, doutora em exclusão de pobres e negros.
Esse exemplo da USP, com certa tristeza, verifica-se em quase todas as universidades
federais. Etnia dos alunos: indígenas, 0,48%; outros, 0,50%; pretos, 1,3%; pardos, 8,34%;
amarelos, 9,84%; brancos, 79,54%. Definimos que a palavra negro é a soma de preto e
pardo. É bom que isso fique bem entendido, para evitar confusão na leitura dos dados. Estes
dados são gerais, de todos os cursos. Quando olhamos os cursos de elite, como medicina,
direito e engenharia, quase não há negros, quase não há pobres. Na ocupação realizada
por alunos da Educafro no dia 1º de março, no primeiro dia de aula de 2004, na sala de aula
do curso de Administração encontramos somente um aluno negro. Trata-se de um angolano,
que conseguiu a vaga por intercâmbio. Isso tem que mudar, pois é desonesto e fere o
princípio constitucional da isonomia.
É bom que os senhores entendam que, na rede pública superior do Estado de São Paulo,
em 1968, 57% dos que nela ingressavam vinham da rede pública; em 1993, o índice caiu
para 32,5%; em 1998, para 21%; em 2000, para 19%. Ou seja, o aluno pobre da rede pública
estava sendo jogado para fora do sistema de ensino superior federal e estadual. E os
reitores, homens de grande saber, não queriam enxergar isso. Essa questão deve ficar bem
patenteada.
A comunidade negra de São Paulo se organizou e realizou grandes lutas pela isenção da
taxa do vestibular. A comunidade negra teve que abrir — é com certa vergonha que digo
isto aos senhores — mais de 200 processos na Justiça contra a USP. Só a partir daí, com
mandado de segurança, os negros, os pobrezinhos sem dente, conseguiram se inscrever
no vestibular e fazer a prova. A taxa do vestibular é o primeiro instrumento discriminador,
joga no lixo brancos pobres e negros, só porque não têm o dinheiro para pagá-la. Contudo,
com esse movimento, mudamos a questão. Em 2001, recuperamos um pouquinho a nossa
presença na USP. Ou seja, voltou a crescer, na medida em que a USP cedeu à pressão dos
Juizes e concedeu a isenção da taxa de vestibular para os pobres que entraram com
processo. Logicamente, depois ela cedeu em alguns pontos.
A USP publicou uma grande matéria na imprensa dizendo que vai conceder 60 mil isenções.
No Estado de São Paulo, por ano, 540 mil jovens terminam o estudo na rede pública, e a
USP dá sessenta mil isenções, e ainda toca trombone. Faça-me o favor, USP, coloque o pé
no chão.
Em 2003, dos 4.194 alunos da EDUCAFRO que solicitaram isenções, 2.850 não
conseguiram isenção da taxa e não prestaram vestibular; estudaram o ano inteiro, e não
puderam prestar vestibular. Ao longo do ano, centenas de professores deram aulas
voluntárias, cumprindo sua parte. A USP, instituição pública, jogou no lixo todo o trabalho
de 1 ano de professores, alunos e coordenadores e atropelou a Constituição, que proíbe
qualquer forma de discriminação, principalmente por pobreza.
Os pré-vestibulares comunitários são uma realidade brasileira. Estimamos que, em todo o
País, haja mais de 2.200 experiências acontecendo para ingresso de pobres e negros na
universidade. A EDUCAFRO é um desses órgãos e coordena 255 pré-vestibulares
comunitários nos Estados ali indicados.
Os princípios básicos estão delineados. Vamos deixar de abordar essa parte.
Quanto ao trabalho voluntário, está contido no material dos senhores.
Podemos deixar de mencionar agora o funcionamento e os dos locais do projeto. Esses
tópicos estão bem explícitos também.
Este slides trás um problema grave: desistência. Alunos são obrigados a deixar o pré-
vestibular por conseguirem trabalho com a remuneração de um salário mínimo ou por
ficarem desempregados durante o estudo, não têm dinheiro para ir ao cursinho pré-
vestibular. No começo do ano, cada turma tem, mais ou menos, 59 alunos; no final do ano,
o número cai para 22, em média. A evasão é grande, porque os alunos não têm dinheiro
para fazer o pré-vestibular.
Este slides apresenta uma luta nova: currículo afro. O Governo Lula assinou, em 2003, a Lei
n.º 10.639, mas ainda não foi colocada em prática. Propomos, desde 1992, que o Ministro
da Educação baixe portaria determinando que todas as universidades públicas federais
criem curso de especialização, de mestrado e de doutorado em história dos afro-brasileiros,
com o objetivo de preparar essas pessoas para as demandas que surgem.
Esse slide mostra um dos atos que aconteceram recentemente no Rio de Janeiro. Esse é o
plenário da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Os jovens, nas galerias, lutam também
por cotas no serviço público naquele Estado.
Entre os alunos do ensino médio público, os 20% mais ricos ocupam 16% das vagas, e os
20% mais pobres, só 11,5%. Hoje, o que mudou???
Ao longo dos anos houve um grande desvio de verba da filantropia. É preciso criar uma lei
que determine que todas as universidades particulares que gozam dos benefícios da
filantropia transformem essa verba em uma bonita política pública de inclusão de pobres e
negros através de bolsas de estudo. Delas, 50% seriam destinadas a negros cuja renda per
capita seja igual ou inferior a 1 salário mínimo e 50%, a alunos da rede pública. Era a
proposta original. Dela nasceu a que hoje se discute: o PROUNI e a Educafro torna pública
sua posição: Queremos ações afirmativas nas Universidades Públicas. Não abrimos mão
de ações afirmativas nas Universidades Particulares! É bom lembrar que, no Estado de São
Paulo, em 2001, as Universidades Públicas ofereceram apenas 6,8% do total de vagas e
93,2% foram oferecidas pelas Universidades Particulares.
No resto do Brasil, as universidades particulares representam 76,7%, do total de vagas do
ensino superior. As universidades públicas somam 23,3% deste total.
Concluo conclamando os nossos irmãos Deputados a nos ajudar a fazer um Brasil melhor,
para que a imprensa estrangeira possa mostrar, para o mundo inteiro, o contrário do que foi
hoje exibido aqui com esse vídeo. Acreditamos que é possível construir um Brasil com
diversidade e pluralidade nas universidades, no mercado de trabalho, na política, no Poder
Judiciário. Os deputados e senadores precisam ser corajosos e não só atenderem a pressão
dos interesses econômicos. Contamos com o Congresso Nacional neste importante
empreendimento! É questão de honra para nós, brancos e negros: mostrar que somos
capazes de dividir.
Obrigado.
Deputado Luiz Alberto (Coordenador) — Informo que a Universidade Federal do Paraná
aprovou o sistema de cotas também.
Como foi dito pelo Deputado Carlos Abicalil, a Universidade Federal da Bahia instituiu, já
para este vestibular, o sistema de cotas que garante, além das cotas tradicionais que
estamos debatendo, duas vagas em todos os cursos para membros das comunidades
remanescentes de quilombos. Esse é um grande avanço.
O companheiro Deputado João Grandão teve que se retirar, porque vai defender uma
posição no plenário. Sua Excelência foi chamado pela Liderança da nossa bancada.
Quero também registrar algumas presenças. Não vou falar o nome de todo mundo, porque,
como diz um Deputado na Bahia, excelências são todos e não nós, Deputados. Registro a
presença da doutora Dora Lúcia Bertúlio, que teve uma participação importantíssima pela
manhã no seminário da CCJ, e da companheira Edna Roland, que representa o
Departamento de Combate ao Racismo da UNESCO. No decorrer da audiência,
registraremos a presença de outras personalidades.
Quero também fazer um convite. Será realizado, hoje, no Salão Verde da Câmara dos
Deputados, o lançamento do livro Rompendo Silêncios — História da África nos Currículos
da Educação Básica.
Passo a palavra ao senhor Marcelo Brito da Silva, Presidente da União Brasileira de
Estudantes Secundaristas — UBES.
Marcelo Brito (Presidente da UBES) — Boa-tarde. Saúdo a Mesa, na pessoa do Presidente
da Comissão de Educação e Cultura, Deputado Carlos Abicalil, e a todos os estudantes
presentes neste debate.
Penso que, o sentimento da União Brasileira de Estudantes Secundaristas é o mesmo
sentimento das dezenas de estudantes que neste momento participam deste debate tão
importante que o Brasil trava acerca da reforma universitária.
No tempo que nos é dado aqui, quero emitir a opinião da União Brasileira de Estudantes
Secundaristas sobre essa questão.
Em 1995, a UBES, no seu congresso nacional, realizado em Goiânia, aprovou a proposta
que versava sobre a defesa da reserva de vagas para estudantes de escolas públicas nas
universidades públicas. Desse ano para cá, a UBES trava um debate, no movimento
estudantil com a sociedade brasileira, dizendo que as universidades públicas brasileiras,
sejam elas estaduais ou federais, deveriam reservar metade das suas vagas a estudantes
egressos de escolas públicas. Essa luta tem feito com que a UBES enfrente diversos
desafios e obstáculos.
Sabemos que o sistema público educacional brasileiro é ainda muito recente. O Brasil tem
pouco mais de cem anos de experiência no sistema educacional. A primeira escola pública
no Brasil teve como grande líder, pensador e criador o negro Cosme, que instituiu, naquele
período de muita dificuldade e de muita luta contra a escravidão em nosso País, a primeira
escola que atendia negros, índios e também brancos que, já naquele período, eram
excluídos da nossa sociedade e do processo educacional.
O modelo educacional brasileiro, que tem cerca de cem anos, é marcado por uma grande
dualidade, pois atende dois interesses diferentes. Existe a educação voltada para preparar,
digamos assim, "os filhos da elite brasileira" - entre aspas -, da elite dominante, e a educação
voltada para preparar a mão-de-obra barata, que capacita grande parte da população
brasileira para o exercício das tarefas físicas do setor produtivo da nossa sociedade.
Esse modelo vem se agravando e tem na universidade pública seu maior reflexo, porque a
universidade brasileira — vamos falar da universidade como conjunto — que deveria ser o
instrumento ou o espaço que possibilitasse o debate acerca de um projeto de
desenvolvimento econômico e social pautado na inclusão social, é hoje justamente o
contrário. Então, na universidade brasileira, pode-se identificar, talvez, o maior instrumento
de desigualdade ou de reprodução das desigualdades sociais do nosso País, tendo em vista
as dificuldades já há muito debatidas por nós.
Na luta da UBES para aprovar essa proposta, diversos argumentos foram apresentados, foi
preciso superar muitas barreiras, para que hoje conseguíssemos pautar neste espaço da
Câmara dos Deputados este debate. Há alguns anos, era inimaginável que a UBES
participasse de uma mesa, junto a representantes de outras entidades, como a EDUCAFRO,
e à Comissão de Educação da Câmara, para tratar desse tema ainda hoje polêmico. Antes,
era bem mais polêmico.
Lembro-me bem que, depois de aprovada no congresso de 1995, a UBES lançou a
campanha Universidade pública, é para lá que eu vou. Essa campanha promoveu nas
principais escolas do nosso País e nas principais universidades, junto a reitores de
importantes universidades brasileiras, debates para ganhar da sociedade brasileira o apoio
para a proposta.
Nossa primeira experiência foi com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ,
que a faixa estendida ali atrás trata de ressaltar e parabenizar. Lembro-me bem que, naquele
período, a UBES sugeriu à Professora Nilcéa, então Reitora da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, hoje Ministra do Governo Lula, que fizesse o debate acerca da reserva de
vagas na UERJ. A Professora Nilcéa era completamente contra a política de reservas de
vagas e a adoção de políticas de cotas, seja social ou racial, enfim, toda e qualquer tipo de
política de cotas. A UBES não abaixou a cabeça. Muito pelo contrário, lançou um desafio à
então Reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e travou, dentro daquela
universidade e junto à sociedade do Rio de Janeiro, um grande debate.
Foram necessárias, para garantir essa aprovação na UERJ, diversas mobilizações,
assembléias e debates. Como resultado dessa luta, foi a UERJ a primeira universidade
estadual do País a adotar a política de cotas, que apresenta dados que só reforçam a nossa
tese. Mais do que isso, a Professora Nilcéa, hoje Ministra, é uma das pessoas públicas que
mais defende a política de cotas e de reserva de vagas.
Essa é uma vitória dos estudantes, do movimento social e das entidades, que durante todo
o tempo pautaram esse debate para a sociedade no Estado do Rio de Janeiro. O exemplo
da UERJ abriu espaço para que o debate fosse pautado com mais força em outros Estados.
Alguns questionavam essa nossa proposta. Um dos argumentos era que a reserva de vagas
rebaixaria a qualidade do ensino na universidade pública brasileira. Companheiros, acreditar
nesse argumento é acreditar na tese segundo a qual o estudante da escola pública é menos
capaz que o estudante da escola privada, o que não é verdade.
Esse nosso debate é pautado na questão da oportunidade. A escola privada no Brasil não
tem como objetivo formar o cidadão crítico e consciente - capaz de interagir na sociedade
- e tampouco formar um profissional competente. O objetivo da escola privada brasileira
hoje é simplesmente moldar, ou melhor, adestrar o estudante para que tenha um bom
desempenho no vestibular. Essa não é a educação que queremos. Não queremos uma
educação que tenha simplesmente o objetivo de preparar o estudante para ter um bom
desempenho numa prova de vestibular. Por conta disso, as instituições de ensino privado
conseguem hoje abocanhar grande parte das vagas das instituições públicas de ensino do
nosso País.
Acreditar nessa tese é não reconhecer que, mesmo nas condições precárias em que se
encontra, a escola pública tem muita gente capacitada, capaz de preencher as vagas nas
universidades públicas brasileiras. Muita gente, de maneira que é um absurdo acreditar na
idéia que uma escola que forma por ano dois mil estudantes no ensino médio não tenha,
entre esses dois mil, ao menos dez alunos capazes de fazer, por exemplo, o curso de Direito
na Universidade do Estado de São Paulo, conseguir um bom desempenho e, depois de
formado, conseguir ser um bom profissional.
Outro argumento que se levantava é o de que adotar a política de cotas é inconstitucional.
Esse foi um argumento que ouvimos muito neste debate. Digo o seguinte: isso não é
verdade. Está na Constituição brasileira. Toda vez que for preciso utilizar medidas que
tratem de maneira desigual as pessoas mas cujo objetivo seja a promoção da igualdade, a
Constituição brasileira assegura ao Estado esse direito. Então, diferentemente dos
argumentos levantados no sentido da inconstitucionalidade, nossa proposta é constitucional.
Não podemos continuar a tratar de maneira igual pessoas em situações desiguais. Temos
de tratar o que é desigual de maneira desigual, com o objetivo de promover a igualdade.
Não podemos continuar a esconder este debate, a maquiar a forma de tratar as
pessoas, fingir que no Brasil não há racismo e que todos são tratados de maneira igual —
porque o que se diz é isso. Por exemplo, perante a lei todo mundo é igual. Agora, se eu
cometo um crime e se, permita-me o Deputado citar este exemplo, Vossa Excelência comete
um crime também, e o crime é o mesmo, nós dois somos iguais perante a lei, mas o
Deputado tem condições de contratar o melhor advogado do País para fazer sua defesa,
enquanto eu, que sou pobre, vou ter de ficar à mercê da Defensoria Pública. Então, como é
que, dessa maneira, todo o mundo é igual perante a lei?
Portanto, precisamos travar um debate que nos permita, primeiro reconhecer que existe o
preconceito e o racismo em nosso País, e depois buscar superá-lo.
Para concluir, porque o tempo aqui já está esgotando, existem mais dois argumentos contra
essa proposta. É bom tratarmos desses argumentos contrários, porque eles são os que mais
ganham força na sociedade brasileira. O terceiro argumento para combater a política de
cotas — e esse, na minha opinião, é o pior deles — é o seguinte: a universidade não é um
espaço para todos; a universidade brasileira é um espaço para quem tem que pensar o
projeto de desenvolvimento do País e de pensar a direção do País. Aí pergunto: quem é que
escolhe essas pessoas que têm de pensar o desenvolvimento do Brasil? Esse é o pior dos
argumentos contra a política de cotas e contra a política de reserva de vagas que temos
ouvido por aí.
O quarto argumento é o do mérito. Muita gente, pautada no argumento do mérito, diz ser
contra a política de reserva de vagas porque defendem que para entrar na universidade o
aluno tem de ter mérito. Vamos aqui fazer uma análise muito breve, para não ultrapassar o
nosso tempo, já que não é esse o meu objetivo. Vamos avaliar um estudante da escola
pública e outro da escola privada, e verificar qual dos dois tem mérito para entrar na
universidade. Hoje, no Estado de São Paulo por exemplo, 89% dos estudantes que
concluem o ensino médio freqüentam escolas públicas. Desse total, apenas 34% prestam
vestibular. Sabem por quê? Porque eles não vêem a menor possibilidade de obter acesso à
universidade pública, então sequer se inscrevem para o vestibular.
Analisemos aqui a situação do estudante da escola pública e a do aluno da escola privada.
Vejam que não é o objetivo da UBES provocar uma guerra entre escolas públicas e escolas
privadas, ou entre negros e brancos; nosso objetivo é promover o debate que permita
democratizar o acesso à universidade. A realidade, porém, é que o estudante da escola
privada acorda às 6h da manhã, toma um café bastante reforçado, a mãe prepara-lhe um
lanche que ele leva para a escola, uma merenda para ser consumida no intervalo das 10
horas, que pode ser Danoninho, ou Mirabel, ou biscoito, e mais algum dinheiro para que ele
possa tomar um suco, no caso de sentir sede. Ele vai à escola. Chega lá às 7 horas e fica
até o meio-dia, e tem todas as aulas, porque na escola privada se o professor faltar é
demitido. Se faltar por motivo de doença é obrigado a repor aquela aula. Então, ao término
desse período, esse aluno teve aulas de todas as matérias: Português, Física, Química,
Biologia, Matemática etc. Uma hora da tarde ele volta para casa e depara-se com um
cardápio super-variado. Podendo optar se vai comer naquele dia frango, peixe, carne,
porque está tudo pronto. Portanto, ele alimenta-se muito bem. Duas horas da tarde o mesmo
aluno sai de casa para fazer a aula de reforço de Matemática, porque ele vai prestar
vestibular na área de Exatas - nessa área Matemática pesa muito e ele precisa ter um bom
desempenho nessa matéria. Depois da aula de Matemática, ele vai fazer aula de Inglês,
porque o Inglês dado na escola não prepara suficientemente o estudante, e ele sabe que
precisa ter um bom desempenho, mesmo porque no final do ano ele pretende ir à Europa.
Afinal se ele passar de ano, seus pais vão dar-lhe essa viagem. Então, ele precisa falar
inglês, senão não conseguirá viajar no final do ano. Seis horas da tarde ele volta para casa.
E vai alimentar-se mais uma vez. Depois, talvez, terá acesso ao meio de comunicação mais
democrático do nosso País: a Internet. Quem é estudante sabe qual é a importância hoje do
acesso à Internet para o auxílio na sua formação. Então, ele vai acessar a Internet e navegar
pelas páginas dos principais jornais e sites de educação e cultura do País e do mundo. Nove
horas da noite ele vai dormir, e no outro dia vai enfrentar a mesma rotina. Esse estudante
passa o ano inteiro nessa rotina, faz a prova do vestibular e dos cem pontos possíveis ele
alcança 85.
Já o estudante da escola pública acorda de manhã com muita fome e, na maioria das vezes,
tem de dividir sua refeição. O café da manhã é insuficiente para que ele consiga ter um bom
aproveitamento em sala de aula. Às vezes tem até mesmo que dividir um pão francês para
tomar seu café. Estou dizendo isso não só para fazer discurso, mas porque essa é a
realidade da escola pública, está aí do nosso lado e às vezes não conseguimos perceber.
Ele vai à escola, chega lá às 7h30min, o horário em que começa a aula, mas o professor da
primeira matéria, Português, não veio. O professor da segunda matéria, que é Ciências, ou
História, apesar de já estar na segunda unidade, também não chegou ainda. A terceira aula,
a de Química, essa ele tem. O professor chegou em mês depois do início do ano letivo
e passou muitos trabalhos, apenas para poder garantir a nota do estudante. Depois o aluno
vai para o intervalo, mas não há merenda na escola naquele dia, porque o Estado ou o
Governo Federal não repassaram a verba, ou ainda porque o Município não fez a aplicação
correta da verba destinada à merenda escolar. E aí, sem merenda, o aluno não consegue
ter um bom aproveitamento. Ele passa ali todo o período das aulas. Ao meio-dia, das 5 aulas
que deveria ter, teve apenas três. Aí ele vai trabalhar, porque sua família passa por uma
situação de muita dificuldade; portanto, ele deve trabalhar. Trabalha de 13 horas até às 18
horas. Às 18 horas ele vai para casa. Com muito esforço ele conseguiu pegar umas apostilas
com um amigo que concluiu o curso no ano passado e está na universidade, ou procurou
um professor extra-aula que lhe deu algumas orientações para poder estudar. Ele fica das
18 horas até a meia-noite estudando, lendo, esforçando-se para conseguir suprir as
dificuldades daquela escola pública. No outro dia ele começa a mesma rotina. No final do
ano esse aluno presta vestibular e tira 80 pontos na prova. Quem tem mais mérito para ter
acesso a essa vaga na universidade? Onde está o mérito?
E este debate do mérito nós precisamos fazer, porque o nosso objetivo não é colocar na
universidade quem não tem condições de se formar como um bom médico ou um bom
advogado. Nosso objetivo é colocar na universidade os melhores estudantes de escolas
públicas, os melhores estudantes negros, porque achamos que essa turma tem capacidade;
o que lhe falta é oportunidade.
Para concluir a minha fala, pedindo perdão por ter-me estendido muito por conta do
exemplo, quero dizer que essa nossa proposta tem de estar vinculada a uma segunda, que
trata da assistência estudantil. Para nós aqui, não adianta só garantir o acesso à
universidade; é preciso dar condições para o aluno concluir seu curso. De modo geral, as
universidades públicas brasileiras têm 45% das suas vagas preenchidas por estudantes de
escolas públicas. O problema é quando se analisa por curso. Nos cursos de Direito, Medicina
e Odontologia, por exemplo, quase 100% das vagas são preenchidas por estudantes de
escolas privadas.
A proposta que o Governo Federal enviou — e inclusive já quero encaminhar à Comissão
de Educação da Câmara dos Deputados uma proposta de emenda — não prevê que seja
por curso e por turno. Cada curso e cada turno tem que ter o sistema de reserva incorporado.
No Rio de Janeiro, por exemplo — o Frei Davi citou o exemplo da UERJ —, o estudante da
escola de ensino médio tem o passe livre. Fardado e com carteira da UBES, ele não paga
transporte. Se não fosse o passe livre, provavelmente não conseguiria concluir o ensino
médio. Quando passa para a universidade, simplesmente deixa de ter esse direito. Seria
necessário também, um restaurante universitário que cobrasse R$ 1,00 por almoço, ou até
mais barato. Precisaria de políticas de incentivo que dessem acesso ao material de trabalho,
para que não tivesse de gastar "fortuna" com xerox, e daí por diante.
Nossa proposta, além de democratizar o acesso à universidade, também trava um sério
debate acerca da valorização da educação básica em nosso País. Nas últimas duas
semanas, sugeri aos Parlamentares que fizessem o lançamento da Frente Parlamentar em
Defesa da Reserva de Vagas. Ao circular nos corredores, deparei-me várias vezes com
empresários do setor privado da educação básica brasileira, que estão com medo de que
essa proposta tire da educação privada o que eles mais valorizam e comercializam que é a
preparação para o vestibular, que para eles é o maior chamariz de estudantes para suas
escolas. Temem que a consolidação dessa proposta provoque uma migração de estudantes
das escolas privadas para as escolas públicas.
Penso que talvez essa seja a maior vitória dessa proposta: promover a valorização da
educação pública brasileira, trazendo para ela mais investimento, para que se possa
transformar a educação pública em uma educação de fato, digna e decente.
Obrigado.
Hédio Silva Júnior (Professor-Doutor) - Antes de mais nada, quero agradecer aos
organizadores desta audiência pública, ao Deputado Carlos Abicalil, ao Presidente da
Comissão de Educação e Cultura, ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias, aos companheiros da Mesa — Frei Davi, Deputado Luiz Alberto, Deputada Iara
Bernardi — e ao companheiro da UBES.
Trago três pontos para reflexão que, a meu juízo, têm a ver com três das principais ordens
de objeção que têm sido contrapostas às políticas de ação afirmativa no Brasil. Uma objeção
é a que entende que a política de inclusão racial na universidade pública no Brasil seria
inconstitucional ou ilegal. Então, é uma objeção de natureza formal, uma objeção legal. Uma
outra é a de natureza operacional. Argumenta-se, entre outros obstáculos operacionais, que
o Brasil é tão miscigenado que seria impossível identificar racialmente os brasileiros. O jornal
Folha de São Paulo, por exemplo, hoje o mais compulsiva militante de qualquer política de
inclusão racial no Brasil, fez esses dias um editorial intitulado Tribunal Racial, em que
descobre que a proposta de inclusão de alunos negros na UnB estaria criando um tribunal
racial, como se o País não tivesse nenhuma tradição de identificação ou classificação racial.
E a terceira objeção é a de natureza ética, porque se diz que as políticas de inclusão racial
na universidade pública ferem o princípio meritocrático e criam uma injustiça para os brancos
pobres, não contemplados nas cotas raciais.
Sobre a primeira objeção, diria muito rapidamente que, se não fosse a baixa auto-estima
dos brasileiros em geral, o Brasil já teria patenteado a política de ação afirmativa como um
produto genuinamente nacional, porque, ao contrário do que muitos crêem, as políticas de
ação afirmativa nas Américas não nasceram nos Estados Unidos na década de sessenta.
Em 1929 surgiu a Justiça do Trabalho no Brasil, que até hoje qualifica juridicamente o
empregado como hipossuficiente, de maneira que facilita, do ponto de vista processual, a
defesa de certas categorias de direitos do empregado em relação ao empregador, e depois
a CLT, que inaugurou, com a Lei da Nacionalização do Trabalho, de 1931, depois
incorporada à CLT, a política de cotas, ao determinar que qualquer empresa brasileira tem
que ter entre seus empregados 2/3 de nacionais. Isso até hoje está na CLT. Depois, em
1968, tivemos uma lei que criou um tipo de cota no ensino superior público no Brasil, a
chamada Lei do Boi, já revogada, Lei n.º 5.465, de 3 de julho de 1968, que fixava, nas
escolas de nível médio e nas faculdades com cursos ligados à disciplina agrária, cotas para
filhos de fazendeiros e de agricultores.
Alguns desavisados ou detratores das ações afirmativas no Brasil querem fazer-nos crer,
entorpecidos pelos filmes de Spike Lee sobre a realidade do negro norte-americano, que
fazem muito sucesso no Brasil, que iríamos transportar para cá uma coisa que é criação
nossa. Com um pouco menos de baixa auto-estima, diríamos que os Estados Unidos nos
imitaram. Foram uma espécie de quintal do Brasil na adoção, em 1965, de ações afirmativas
que já existiam aqui desde 1931. Então, é preciso que se diga que essa idéia de
transposição, de imitação grotesca e barata de uma política estrangeira não resiste à menor
análise histórica, não resiste a qualquer consideração minimamente imparcial e eqüidistante
da história do sistema jurídico brasileiro e do norte-americano. Isso para não falar da
Constituição de 1988, que fixou um incentivo específico ao trabalho da mulher, que é um
dos incisos do art. 7º, ainda não regulamentado, nas cotas para portadores de deficiência,
que também têm previsão constitucional, nas cotas das candidaturas partidárias para as
mulheres, na facilitação do acesso, na lei de licitação pública, para as associações de
portadores de deficiência sem finalidade lucrativa. Além do mais, o Código de Defesa do
Consumidor prevê a possibilidade da inversão do ônus da prova, em certas circunstâncias,
em favor do consumidor, porque se presume que o fornecedor esteja em condições
vantajosas.
Em todas essas políticas considera-se o conceito de hipossuficiência. No processo do
trabalho, na lei dos 2/3, o Código de Defesa do Consumidor, na previsão de cota nas
candidaturas partidárias, o substrato ideológico de todas essas normas é o princípio de que,
se há grupos que enfrentam situações materialmente desiguais, o Estado, para assegurar a
igualdade, deve intervir e igualizar juridicamente essa desigualdade. Na verdade, isso não
tem nada de novo. Muita gente atribui a Rui Barbosa, mas, na verdade, com um pouco mais
de paciência, pode-se verificar que esse é um princípio que vem do Século V a.C., vem de
Aristóteles essa máxima de que uma norma, para ser justa, deve tratar desigualmente os
desiguais.
Portanto, seria muito pitoresco, para dizer o mínimo, se o Supremo Tribunal Federal vier a
dizer que o sistema de cotas para negros é inconstitucional. Primeiro, alguém sempre
poderá dizer que isso seria racismo, porque é uma política que desde 1931 tem servido para
favorecer outros grupos, e agora, porque pensada para os negros, passaria a ser
inconstitucional. Tenho certeza de que o senso de responsabilidade e a formação jurídica
dos Ministros do Supremo não permitirão que a Corte tome uma decisão dessa. Segundo,
se o Supremo disser que as políticas de ação afirmativa para negros são incompatíveis com
a Constituição brasileira, todas essas outras políticas, obviamente, estarão
automaticamente invalidadas, do ponto de vista jurídico, além dos tratados internacionais
dos quais o Brasil é signatário. Nosso País tem feito um esforço muito grande, já não é de
hoje, para criar uma imagem de bom moço perante as Nações Unidas. Nesse caso, o Brasil
teria de denunciar tratados internacionais importantes, ratificados, alguns, desde o final da
década de 60, que prevêem políticas de inclusão racial.
A segunda ordem de objeção sustenta-se na idéia de que as políticas de ação afirmativa
criam sistemas de classificação racial no Brasil, o que também é uma falácia. Vejam que
desde 1941, talvez por mera casualidade, qualquer cadastro da área de segurança pública
e justiça no Brasil tem informação sobre cor. Por exemplo, uma pessoa vai fazer um boletim
de ocorrência numa delegacia da esquina, e ali é catalogada a cor da vítima e a cor dos
suspeitos, se for conhecida. E essa cor acompanha depois o acusado, o réu, o condenado,
até a execução da pena. E quem faz a classificação é o escrivão de polícia, o que também
é interessante. O escrivão de polícia, com os conhecimentos etnográficos que tem, em geral
com uma sólida formação antropológica, etnográfica, faz a classificação. Então, entra o
sujeito lá, ele dá uma olhadinha e classifica a cor. O Vereador Gilmar, de Uberlândia, poderia
entrar, eventualmente, na categoria de pardo, embora ele reivindique a cor negra. A
Professora Edna Rolan o escrivão diria que é preta.
Há um caso interessantíssimo em São Paulo. Dois sujeitos foram acusados da prática de
um crime, um branco e um negro. A polícia só conseguiu prender o negão, vejam que
coincidência. Aí a vítima foi levada à presença do delegado para fazer o reconhecimento
pessoal, que é um procedimento absolutamente complexo, e importantíssimo, como prova.
A vítima, entretanto, não se lembrava da altura do acusado, não sabia se ele era gordo,
magro, calvo, banguela; lembrava-se apenas de que era preto. O delegado, então, disse: "É
esse aí", e indiciou. Em seguida o promotor denunciou. A vítima foi novamente chamada,
agora para depor em juízo; o juiz perguntou-lhe: "A senhora lembra se era alto, era baixo,
era gordo, era magro, era banguela?" "Não." "A senhora lembra-se de quê?" "Eu lembro que
ele era preto." Aí o juiz — pimba! — condenou-o. É claro, perfeitamente. A defesa recorreu,
e o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo disse o seguinte: não, de fato o
reconhecimento pessoal pode dar-se pelo resgate de traços, de expressão fisionômica ou
de compleição física, de vários traços, ou de um: a cor. Era preto, pimba! Está mantida a
condenação.
Então, vejam que o sistema de classificação racial no Brasil sempre funcionou perfeitamente
bem, obrigado. Agora, alguns cientistas políticos e biólogos começam a ter uma crise
existencial brutal para classificar as pessoas. Será que o Deputado Chico Alencar é negro,
é mulato? Como se classifica o Deputado Chico Alencar? Até algum tempo atrás, eu dizia
que, se os cientistas estivessem com poucos recursos teóricos para fazer a classificação
racial, no caso de São Paulo chamariam um policial da ROTA, porque de cada quatro
pessoas que a ROTA mata trrês geralmente são negros. Então, a margem de erro seria de
um quarto para baixo ou para cima. Ou os produtores em geral de qualquer programa infantil
no Brasil, porque no caso das Paquitas, por exemplo, ali não há nenhuma que tenha a
expressão do Deputado Chico Alencar, ou da Doutora Edna Rolan, ou do Deputado Jorge
Almeida. Ali são todas arianas, com um pouco desse arianismo que povoa o imaginário
social brasileiro.
Até 1975, a Lei de Registros Públicos previa a classificação racial no Brasil. Quem nasceu
até 1975 tem a informação sobre a cor em qualquer cadastro. O alistamento militar classifica
racialmente o indivíduo, e as Forças Armadas têm até uma tabela, notem bem, que vai do
pardo claro ao pardo de tez mais escura, caminhando para o moreno, depois para o preto,
chegando ao preto último tom, o preto retinto, que chamávamos em Minas Gerais de preto
azul anil, que é aquele último tom, muito próximo do tipo africano. As Forças Armadas,
portanto, instituem pequenos tribunais raciais no Brasil há séculos.
O sujeito que deseja tirar um Registro Geral — RG - em São Paulo deve comprar um
formulário na papelaria. Nele consta um neologismo para cútis, que se grafa ali "cutis", sem
acento no "u". "Cútis" é a cor da pele. Quem faz a classificação aqui em Brasília é o policial
civil, porque aqui o formulário de identificação civil não é comprado. Disseram-me por
telefone que o formulário de identificação civil seria uma informação sigilosa e para obtê-lo
eu teria de peticionar ao ilustre Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, mas ali
tem informação sobre cor. Então, vejam, o Brasil é um país que classifica racialmente os
indivíduos.
Não vou entrar no mérito do problema da classificação racial, do genótipo, do fenótipo, muito
embora o Frei David tenha razão, e também tinha Lamartine Babo quando escreveu aquela
famosa marchinha: "O seu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor". Então, aqui
importa a aparência, importa o fenótipo. Quando o racismo vitima alguém na rua, como fez
com o dentista Flávio Ferreira Santana, morto pelo racismo nas ruas de São Paulo, não se
pede a carta genética do indivíduo, não se pede um mapa sangüíneo dele, a linhagem
sangüínea dele. Ele é tratado como negro. Portanto se o racismo trata pela aparência, a
desconstrução do racismo — cujos instrumentos são, entre outros, as políticas de ação
afirmativa — também pode utilizar o critério da aparência, a exemplo do que fez a UnB.
Inclusive, a Constituição refere-se à cor e à raça.
No que tange à raça, obviamente, poderia haver longa discussão sobre o seu significado,
muito embora o Supremo tenha dito, textualmente, quando do julgamento daquele editor de
livros do Rio Grande do Sul, que a noção de raça e de racismo é construída socialmente;
não está ligada à biologia, mas à forma como o sujeito é tratado socialmente.
Por fim, há a objeção de natureza ética. Diz-se que o vestibular tornaria vulnerável o princípio
meritocrático, além disso haveria possível injustiça contra os brancos pobres.
Vou começar pela meritocracia. Primeiro, a própria etimologia da palavra vestibular é ante-
sala — foi o que disse o representante da UBES, de forma voluntária, contundente,
grandiloqüente, mas muito incisiva —, é uma prova. Sou um professor que não acredita em
provas, mas aplico-as porque o MEC obriga-me a fazê-lo.
A Doutora Dora Lúcia me disse hoje pela manhã que a Universidade Federal do Paraná tem
dados que atestam que o fato de o sujeito ter obtido uma nota "x" ou "y" no vestibular não
implica um desempenho equivalente a "x" ou "y". Pode-se receber uma nota não tão
brilhante na prova e ter um excelente desempenho.
Segundo, o mérito se mede em sala de aula e ninguém propõe flexibilizar o sistema de
avaliação do ensino superior público no Brasil; a idéia é flexibilizar o acesso.
Desde os anos setenta, o Brasil assina acordos de cooperação científica e tecnológica com
países africanos. Vêm de lá para cá negros último tom, indiscutivelmente negros. Não
prestam exame vestibular, são selecionados em seus países de origem e vêm para as
melhores universidades do Brasil. Nunca ouvi falar que caiu o nível da universidade pública
no Brasil por causa da presença de africanos. É óbvio que se o aluno não tiver desempenho
satisfatório em sala de aula será espirrado do sistema. Certamente temos que pensar em
políticas de permanência, apoio, sustentação etc., mas o desempenho tem de ser o mesmo
para todos.
Quanto ao fato de que a política de inclusão racial criaria certa injustiça é interessante notar
que a consciência democrática no Brasil nunca se indignou com o fato de que — lembro-me
bem das fotografias de alunos das universidades públicas da Bahia, Estado de origem do
Deputado Luiz Alberto entre outros Parlamentares que aqui estão — só havia alunos
brancos nas universidades públicas no Estado mais negro do Brasil.
Não morro de amores por cotas, nem cota de 100% para branco — como é hoje em alguns
cursos — nem cota de 20%, 30% ou 40% para negros, mas, para render algum tributo ao
meu passado possivelmente comunista, gostaria de lembrar uma frase que ouvi, associada
ao Lenin, segundo a qual quando uma vara está muito torta para um lado, para adquirir um
ponto de equilíbrio é preciso entortá-la com a mesma força na direção oposta.
Essa cota mínima para negros é a forma encontrada para quebrar a cota de brancos de
100% na Medicina e Arquitetura, e de 99,2% na Odontologia. Ou reconheço que os negros
só têm mérito para ser vigilantes, faxineiros e cozinheiros de universidade pública, ou
reconheço que este País tem um problema racial gravíssimo que só poderá ser enfrentado,
ainda que temporariamente, com medidas contendo políticas de inclusão racial.
Muito obrigado.
Deputada Iara Bernardi (Coordenadora) — Concedo a palavra a senhora Maria José de
Jesus Alves Cordeiro, pró-Reitora de Ensino da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul.
Maria José de Jesus Alves Cordeiro (pró-Reitora de Ensino da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul) - A Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul completou dez anos,
em dezembro de 2003. É uma universidade nova e, como todo elemento novo, também é
um pouco subversiva. Nos últimos três ou quatro anos, ela está implementando uma série
de políticas diferenciadas, principalmente no que diz respeito à inclusão no Ensino Superior.
Há várias ações de inclusão, mas, hoje, o que estarei registrando oficialmente é a questão
de cotas para negros e indígenas. Esta foi é primeira universidade do Brasil a criar cotas
para negros e indígenas, simultaneamente, o que já executamos no vestibular de dezembro
de 2003, e os alunos estão em sala de aula desde fevereiro de 2004.
Trouxe dados e informações que mostram desde a formulação da legislação até os
resultados do vestibular, incluindo comparativo de notas obtidas pelos candidatos durante
as provas. Tenho outros gráficos referentes ao desempenho apenas daqueles que estão em
sala de aula, mas não vou apresentá-los, pois são aspectos preliminares dos primeiros
meses de aula e que merecem outros estudos. O assunto que já é objeto de teses de
mestrado e de doutorado de alguns professores, por conta dos resultados das provas do
vestibular os senhores terão agora a oportunidade de ver.
A sede da universidade é na Cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, a 230
quilômetros da Capital, Campo Grande. Dispõe de unidades de ensino, com prédios próprios
em mais treze Municípios e uma unidade de representação na capital, com apenas um
curso de formação de professores.
Podemos observar que a instituição tem uma estrutura que praticamente abrange todo
Estado. São atualmente dezenove cursos, ofertados várias vezes em diversos lugares numa
média de 56 ofertas de cursos. Por exemplo, o curso de Letras é encontrado em cinco locais
do Estado, com o mesmo projeto pedagógico, ou seja, o mesmo curso, mas, com várias
ofertas e maior número de vagas.
Nesses dez anos, tivemos um ano em que não houve vestibular, por conta da interferência
do Governo, anterior ao do PT, que tentou fechar a universidade. Isso prejudicou o
crescimento da instituição, tanto que hoje estamos chegando aos sete mil alunos, apesar de
todo o esforço e aumento da oferta de vagas no vestibular.
Diante de tudo isso, em dezembro de 2002, o Deputado Estadual Pedro Kemp apresentou
o projeto que estabelece cotas para negros, aprovado em janeiro de 2003, reservando 20%
das vagas da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul para negros. Outro Deputado
apresentou projeto de cotas para indígenas, sem estabelecer de quanto seria o percentual.
Os dois projetos foram aprovados. Cada lei estabelecia a obrigatoriedade de
regulamentação por parte da universidade no prazo de noventa dias, dos critérios para a
inscrição e concorrência nas cotas.
A universidade tem hoje autonomia pedagógica, financeira etc, garantida em lei concedida
no último Governo. Diante disso, o corpo docente e o discente, não podemos ser hipócritas,
ficaram bastante revoltados, pois as leis vinham de cima para baixo, sem consultar a
universidade. Naquela época, a Reitoria chamou a Pró Reitoria de Ensino, neste caso eu,
para tomar as providências necessárias. Ótimo, Lei não se discute, se cumpre, já estava
posta e o que tínhamos a fazer era regulamentá-la.
Nosso Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão foi convidado a se reunir através da
Câmara de Ensino, que presido. Chegamos a seguinte conclusão após horas de discussão:
"Nós somos incompetentes para regulamentar isso". Essa foi a postura mais adequada que
ouvi dentro de uma universidade. E mais ainda: "Nós queremos a participação da sociedade,
do movimento negro e das lideranças indígenas para regulamentar os critérios de acesso".
Assim foi feito. Constituímos uma comissão presidida por um professor conselheiro, da área
do direito, com representação do Movimento Negro. De fevereiro a agosto de 2003,
trabalhamos em perfeita sintonia com várias instituições do Movimento Negro organizado
no Estado do Mato Grosso do Sul, com participação de elementos da Fundação Palmares
de Brasília, da Coordenadoria de Políticas contra o Racismo, do governo do Estado e de
lideranças indígenas das várias etnias existentes no Estado — principalmente as que
realmente representavam essas etnias.
Durante o processo de discussão realizamos no dia 13 de maio de 2003, um fórum de
discussão em todo o Estado, levando pessoas, professores ou representantes que eram
contra ou a favor das cotas para as mesas de debate em todas as nossas unidades de
ensino. Foi um grande evento que durou um dia inteiro, manhã, tarde e noite, e, depois,
realizamos várias audiências públicas com o Deputado autor da lei para negros, a
Coordenadoria de Políticas contra o Racismo, e o Movimento Negro em vários lugares do
Estado, sempre apresentando os critérios e discutindo com a comunidade o que estava
sendo proposto.
Diante disso, chegamos ao final de julho com uma proposta de critérios elencados por esta
comissão para a resolução do vestibular. Não elaboramos uma resolução à parte, mas
incluímos os critérios como artigos da resolução maior que normatiza o vestibular da
universidade, pois não queríamos algo solto, que alguém pudesse cassar, por exemplo.
Portanto, ficava um pouco mais complicado mexer na resolução do vestibular porque
normatiza todo o processo.
Assim, foram baixadas as resoluções, que se encontram em vigor. Primeiro, no Conselho
Universitário, determinando que a cota de negros era para negros oriundos de escolas
públicas ou bolsistas de escola privada — reivindicação do Movimento Negro — e, depois,
no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, determinando todos os critérios para negros
e indígenas, apreciados numa platéia repleta de indígenas e representantes do Movimento
Negro. No caso dos indígenas, foi estabelecida uma cota de 10% pelo Conselho e, para
negros, já havia 20%.
Pela primeira vez, nosso Conselho votou unanimemente por uma resolução de vestibular.
Foi unanimidade, até porque ninguém tinha coragem de votar contra diante dos argumentos
das representações. Esse foi um ganho da sociedade dentro da universidade. É o que está
posto na lei e nos slides que apresento.
Na Resolução CEPE/ UEMS n.º 382/03 de 24 de agosto de 2003 foram instituídos os artigos
10, 11 e 12 que falam dos critérios de acesso, ou seja, refere-se às questões do fenótipo
e documentação pessoal que inclui o comprovante de escolaridade de escola pública — o
histórico escolar — e uma foto 5x7 colorida e recente.
Com a regulamentação também foi criada uma comissão com sete membros, dos quais três
pertenciam à universidade e quatro eram membros da sociedade representando o
movimento negro, evitando que a universidade tivesse maioria de votos, para analisar
e deferir ou indeferir inscrições dos candidatos a cota de negros.
Essas inscrições passaram pela análise da comissão sendo 76 inscrições indeferidas. Na
visão da comissão estas não se constituíam como fenótipos do negro; não do afro-
descendente, mas do negro. Inclusive, isso nos valeu uma ressalva no relatório da Justiça
Social (p. 89) que contém uma crítica sobre o fato da comissão ter realizado esse tipo de
trabalho.
Além disso, para os indígenas foi decidido que apenas o RG indígena não mais representava
ser indígena. Inclusive, tomamos isso como denúncia na universidade, porque eles dizem
que hoje nas aldeias, quem quer tem RG indígena, mesmo não o sendo. Portanto, não
aceitaram apenas o RG como documento e inseriram uma declaração de descendência
indígena elaborado por pessoas da comunidade, da aldeia, em conjunto com a FUNAI. Em
cada aldeia, foi criada uma comissão, que conhece os candidatos e têm todo o
acompanhamento da descendência. Assim, aqueles indígenas que desejavam realizar o
vestibular deveriam dirigir-se a essa comissão onde receberiam aprovação ou não como
descendente legítimo daquela etnia para fazê-lo. Assim, tudo correu normalmente dentro do
processo.
Esse processo foi acompanhado o tempo todo tanto pela nossa Procuradoria Jurídica
quanto pela FUNAI, pois chamamos as três regionais da FUNAI no Estado de Mato Grosso
do Sul para acompanhar o processo e também o Movimento Negro e a Coordenadoria de
Políticas contra o Racismo do Governo do Estado. O processo foi bastante visto pelas
pessoas de fora e não apenas pelos que estavam dentro da universidade.
Foi decidido, ainda, que ninguém podia se inscrever em mais de um regime de cotas. Então,
aqueles que não quisessem se declarar como negros ou indígenas, concorreriam naquilo
que chamamos de vagas gerais, que eram os outros 70%. Traçamos também os critérios
de aprovação para os candidatos que, na época, o movimento negro exigiu fossem os
mesmos adotados para todos os candidatos da universidade. No caso, temos a prova de
conhecimentos de gerais, que é equiparada à prova do ENEM. Lembrando que somos a
primeira universidade a utilizar os resultados do ENEM no Brasil e até hoje utilizamos.
Então, adequamos também o formato da nossa prova de conhecimentos gerais. Exigimos
um escore mínimo de 20% de acerto nas provas para entrar no processo de concorrência,
não podendo zerar na redação.
Portanto, os critérios adotados foram os mesmos, uma exigência também dos indígenas que
diziam não querer favor, mas sim, a oportunidade de fazer o processo seletivo e de estar
participando.
Estabelecemos também como seria a redistribuição das vagas das cotas, pois não somos
ingênuos e sabíamos de antemão que no primeiro processo não haveria, com certeza, o
preenchimento das vagas oferecidas. Primeiro, porque o negro ainda tem resistência em se
autodeclarar negro, principalmente no Estado de Mato Grosso do Sul, que tem toda uma
característica de coronelismo, aquela coisa de latifúndio etc. Segundo, há um problema sério
com os indígenas, porque nem todas as aldeias têm ensino médio.
Portanto, como não há ensino médio em todas as aldeias, fizemos um levantamento prévio
para estabelecer esses 10%. Sabíamos que esse percentual era muito, pois o total de alunos
cursando ensino médio nas aldeias era suficiente, no máximo, para preencher as vagas.
Mas, num processo de concorrência entre eles, com certeza, não se preencheria.
Que ficou estabelecido? Que as vagas remanescentes das cotas de negros que não fossem
preenchidas, havendo aprovados na cota de indígenas, estes seriam chamados dentro do
mesmo curso e vice-versa. Sobrando vagas indígenas, chamar-se-iam os negros. Uma
hipótese: em sobrando vagas nas cotas e não havendo nem negros nem indígenas
classificados para o curso , porque, como já disse, o nosso vestibular é classificatório,
chamaríamos, então, os candidatos das vagas gerais para preenchê-las.
Trouxe também um quadro para mostrar mais ou menos como isso funcionou. Em 2001,
ofertamos um vestibular específico para indígenas, um curso Normal Superior Indígena, que
forma agora a primeira turma composta de indígenas Terenas no Município de Aquidauana.
No ano que vem, formaremos outra turma de indígenas Guaranis nos Município de
Amambaí.
Diante disso, já havia na universidade mais de 100 indígenas fazendo cursos. As cotas já
não representavam para os indígenas algo como se fosse a salvação da lavoura, de jeito
nenhum. Eles até diziam que não precisavam de cotas, mas querem programas específicos.
Em 2003, ofertamos 1.640 vagas nos cursos de graduação, das quais 328 eram para negros
e 164 para indígenas, distribuídas em todos os cursos que a universidade estava oferecendo
em todos os lugares.
O quadro apresentado mostra o número de candidatos indígenas que se inscreveram e as
etnias que estavam presentes. Temos nove etnias no Estado, sendo que algumas delas
estão em alguns lugares que realmente não têm acesso à escolaridade de ensino médio. E
se ele, o índio sair de lá, não tem a mínima chance de sobreviver sem auxílio, por exemplo,
em uma das unidades da universidade, pois não temos morada estudantil. Somos
interiorizados.
Temos aí todas as etnias que participaram: os guaranis, os kadwéus, os Kinikanawa, os
terenas e outros doze que formam outras etnias, inclusive com alguns indígenas vindos do
Amazonas, de Goiás e de outros lugares que se inscreveram em alguns dos nossos cursos.
No processo de inscrição indígena, enfrentamos muitas dificuldades. Por que estou
destacando essa questão indígena? Porque sei também que tem isso no processo de
discussão e muita gente está tentando fazer, mas encontra uma série de dificuldades. A
FUNAI ( Fundação Nacional do Índio) pagou todos os manuais de vestibular, a universidade
isentou todos os indígenas da taxa de inscrição e fomos até as aldeias para fazer as
inscrições com apoio da FUNAI.
Quanto às inscrições dos negros, temos a seguinte visão: há dificuldades, e temos de lutar,
por exemplo, por assistência estudantil, bolsas etc. Para os indígenas, as coisas se
complicam um pouco mais. Eles têm que deixar a aldeia para vir morar na cidade, o que já
descaracteriza, em grande parte, a vida, o aspecto de vivência e da cultura desses
indígenas.
Os cursos mais concorridos, tanto pelos negros quanto pelos indígenas, foram:
Enfermagem, Direito e Agronomia. Entre os indígenas, ainda aparecem os cursos de
História e Letras como os mais preferidos.
Há um quadro das vagas que não foram preenchidas na primeira chamada. Notem que em
alguns lugares do Estado não houve inscrição de indígenas porque não há aldeias, como
nas regiões de Paranaíba, Cassilândia e Coxim localizadas ao norte do Estado.
Depois, tenho o número de matriculados, de acordo com os resultados. Hoje, das 328 vagas
ofertadas aos negros, 236 foram preenchidas e estão matriculados, porque a concorrência
foi praticamente abaixo do número de vagas. Entre os indígenas, das 164 vagas ofertadas
dentro do sistema de cotas, somente 67 estão matriculados.
O número de indígenas que concorreram às cotas foram 186 inscritos para 168 vagas.
Houve muitos aprovados, mas por questão de local, de ter que sair da aldeia, só 67 se
aventuraram a fazer a matrícula.
Temos aí o relatório socioeconômico da UEMS. A universidade estadual já discutiu se abriria
ou não cotas para escola pública. E qual é a conclusão? Primeiro, que a cota de negros já
é para escola pública; segundo, que o indígena não tinha necessidade disso; terceiro, que
a universidade estadual já é uma universidade com cota para a escola pública. No último
vestibular, por exemplo, 80,04% dos inscritos são oriundos da escola pública. E nos anos
anteriores, temos a média de 78,6% dos alunos oriundos da escola pública.
Temos também dados sobre quem se declarou negro e de quem se declarou índio.
Podemos ver que só 3,3% dos candidatos se declararam negros para concorrer às cotas.
Muitos concorreram às vagas gerais para não ter que se declarar negro. E 1,73% nada
declararam , não disseram se tinham cor ou não ou etnia.
Analisando as notas obtidas no vestibular, constata-se que o sistema de processamento
classificou de zero a vinte, de vinte a quarenta, de quarenta a sessenta, de sessenta a
oitenta e de oitenta a cem. Fez-se uma escala de variação de vinte pontos.
Entre os candidatos às vagas gerais (ou brancos), na prova de conhecimentos gerais, os
senhores podem observar que dos 8.976 candidatos, 66% ficaram com desempenho entre
20 e 40. Leiam-se aí os brancos. De 40 a 60, 22%; de 60 a 80, só 1%; e de 80 a 100, 0,0%.
Nenhum destes candidatos tirou nota máxima na prova de conhecimentos gerais.
Na prova de conhecimentos gerais, os negros que tiveram o seguinte desempenho: entre
20 a 40, 70%, entre 40 e 60 21%; e entre 60 e 100, 0,0%. Ou seja, perderam apenas 1%
em relação às vagas gerais nas duas últimas escalas; os indígenas tiveram o seguinte
desempenho: de 20 a 40, 65%, de 40 a 60, 29% que é o índice mais alto entre as três etnias;
de 60 a 100, 0,0%.
Se considerarmos as notas de conhecimentos gerais e somar as notas dos dois gráficos,
de quarenta a oitenta, teremos o seguinte resultado geral: os brancos passam a representar
23%, os negros, 21% e os indígenas, 29%.
Na prova de conhecimentos específicos, realizada no segundo dia, nas áreas de: ciências
exatas e tecnológicas, humanas e sociais, agrárias, biológicas e da saúde e conhecimentos
sociais e pedagógicos (esta última específica para formação de professores) de acordo com
a opção do candidato, podemos ver que os brancos que tiraram de oitenta a cem somam
apenas 0,11%. Os negros e os indígenas 0,0%. Na escala de quarenta a sessenta, os
brancos representam 26,64%, os negros 25,29% e os indígenas 9,59% . No âmbito dos
conhecimentos específicos, os negros que tiraram notas de 60 a 80 são 4,07%, os brancos
4,64 % , os indígenas 0,68%.
Considerando apenas um item para fazer comparação, vamos somar as notas de quarenta
a oitenta, nos gráficos de conhecimentos específicos, os brancos passam a ter 31,28%; os
negros, 29,36% e os indígenas 10,20%. Entretanto, quando analisamos os gráficos de vinte
a quarenta, podemos observar que tanto na prova de conhecimentos gerais quanto na prova
de conhecimentos específicos os negros e os indígenas conseguiram melhor desempenho.
Quanto ao desempenho dos indígenas na prova de conhecimentos específicos, sabe o que
isso representa? As aldeias não têm professores de ensino médio qualificados em química,
física, biologia, matemática etc., áreas que no Brasil como um todo praticamente não tem
no interior e nas escolas de periferias onde estudam os mais pobres, principalmente os
negros.
Os últimos gráficos que são os da redação. Vamos pegar só o último. Aqui utilizamos um
parâmetro diferenciado de pontuação por conta do critério de correção.
Nas notas de 8,5 a dez nas vagas gerais, tivemos o seguinte resultado: os candidatos
brancos somaram 0,91%; os negros, 0,63%; e os indígenas, 3,55%. Quando juntamos as
notas de 4,5 a 8, os brancos somam 44,53%; os negros, 41,64% — a diferença é mínima; e
os indígenas, 65,25%. Então, de uma forma geral, os indígenas foram os melhores nas
provas de redação.
Somando todos os percentuais de vinte a cem que representa todos os candidatos com
desempenho em situação de acesso as vagas, temos os seguintes resultados na prova de
conhecimentos gerais: brancos 89,00 %, negros 91,00% e os indígenas 94,00%. Na prova
de conhecimentos específicos: brancos 85,64%, negros 84,59% e os indígenas 72,10%. Na
redação: brancos 78,19%, negros 82,96% e os indígenas 89,37%. Portanto, os dados
mostram que não diferenças de desempenho que provem que os brancos que fizeram o
vestibular da UEMS são academicamente melhores que os negros e os indígenas que
também fizeram.
O último item, para encerrar, são as notas de 0 a 20. Estas notas representam o índice de
candidatos que não conseguiram o desempenho mínimo de 20% de acerto para entrar no
processo de concorrência das vagas. Na prova de conhecimentos gerais: brancos 11%,
negros 9% e indígenas 6%. Juntando as três provas, os brancos somam 57,15%, os negros
41,44%,; e os indígenas 34,53%.
Esses dados representam a qualidade do ensino superior com a entrada de negros e
indígenas.
No curso de Enfermagem, fizemos um concurso para eleger a logomarca que melhor
representasse a enfermagem no contexto atual. O candidato indígena do primeiro ano foi o
primeiro colocado, algo que não se esperava em termos de logomarca e outras coisas.
No curso de Direito, na hora de disputar as lideranças, o candidato negro teve os melhores
discursos e venceu as eleições para líder de sala e no curso de Turismo um indígena foi
eleito líder de sala.
Então, há uma série de coisas que estamos acompanhando e que indicam que a entrada de
negros e indígenas na universidade só melhora a qualidade do ensino. E digo isso não só
porque sou negra, mas ainda bem que sou negra e posso dar credibilidade às minhas
palavras. Mas, é muito difícil encontrarmos negros numa plenária de deputados, na gestão
superior de uma universidade ou de qualquer outra coisa.
As cotas podem ser temporárias ou permanentes. Mas não é isso que importa. O que
importa é dar acesso a todas essas pessoas que estavam em escolas públicas, com
professores leigos, etc. Que elas venham para a universidade e mostrem que não é apenas
a nota do vestibular que importa, até porque o nosso vestibular não é de sair matando, ele
é classificatório. Nós acreditamos e já estamos propondo mudanças, que o vestibular não é
a melhor porta de entrada para a universidade. Muitos cursos já estão mudando e para os
nossos professores, este novo quadro exige mudança de atitude e metodologia para atender
à diversidade em sala de aula.
Era isso o que eu tinha a dizer e a mostrar aos senhores.
Muito obrigada.
Deputada Iara Bernardi (Coordenadora) - Muito obrigada, professora.
Quero destacar a presença do senhor Carlos Eduardo Trindade, Diretor da Secretaria
Especial de Políticas para Promoção de Igualdade Racial; da senhora Dora Lúcia Bertúlio,
Procuradora-Geral da Universidade Federal do Paraná; senhor Darci Bertoldi, representante
da Casa Civil e da Presidência da República; senhora Edna Roland, representante da
UNESCO; senhora Valdineide Nascimento, representante da Secretaria Nacional de
Movimentos; senhora Maria das Graças Santos, Aro Nzinga; senhor Alexandre Braga,
representante da UNEGRO.
Passo a palavra ao senhor Flávio Jorge Rodrigues da Silva, representante da Coordenação
Nacional das Entidades Negras.
Por favor, Deputado Luiz Alberto, gostaria que assumisse a Mesa.
Flávio Jorge Rodrigues da Silva (Coordenação Nacional das Entidades Negras) - Vou falar
em nome da Coordenação Nacional de Entidades Negras — CONEN, mas também queria
registrar minha fala em nome de uma delegação de São Paulo, que infelizmente não
conseguiu entrar aqui, composta por militantes de movimento negro; assim como do
Movimento dos Sem-Universidade — MSU de São Paulo; do companheiro José Adalberto
Macuxi, representante da COIAB — Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira. Se possível, se for aberta a palavra, este companheiro também
gostaria de expressar a visão dos povos indígenas quanto a este debate.
Começo com saudação aos reitores, que, a exemplo do que foi apresentado pela
companheira de Mato Grosso do Sul, resgatam princípio importante neste debate, o da
autonomia universitária.
Esse princípio foi construído com muita luta, e neste momento, como ela demonstrou, pode
ser utilizado para que, independentemente deste debate, já possa ser executado nos seus
locais de ensino. É exemplo que deve ser seguido o que está sendo feito em Mato Grosso
do Sul, na Bahia, por uma série de universidades, que constam naquela faixa exposta ao
fundo. Dele deve ser resgatado, é um aliado nesse debate sobre cotas, o princípio da
autonomia universitária.
Quando se fala por último, tem-se dois problemas: é preciso falar rapidamente, porque as
pessoas já estão cansadas de ouvir, embora sejam coisas importantes; ao mesmo tempo,
há o dado positivo de que muito do que se poderia falar já foi dito. Mas, quero ater-me a
duas questões fundamentais, que têm como objetivo principal convencer nossos Deputados
que fazem parte desta Comissão a votarem e se posicionarem favoravelmente ao projeto
de cotas nas universidades públicas.
Quanto à primeira questão, uso exemplo pessoal: estudei na PUC de São Paulo,
universidade privada, e no ano de 1981 fizemos um censo dentro da universidade —
naquela época, éramos em torno de quinze mil estudantes —, para averiguar a presença
negra na universidade. A universidade discutia várias questões e conseguimos introduzir no
censo que se realizaria o item cor.
Constatamos que no universo de quinze mil estudantes, éramos cerca de trezentos, homens
e mulheres, situados naqueles cursos que facilitavam, na nossa visão da época, o acesso
ao emprego. Os homens, mais diretamente ligados aos cursos de Contábeis e de
Administração, e as mulheres quase que todas nos cursos de Assistência Social. Em cursos
de período integral, tais como Medicina, Fonoaudiologia, Psicologia, encontramos na
Psicologia uma menina negra, que posteriormente se tornou militante de um movimento
negro e hoje dirige uma editora de selo negro e tem ajudado muito na divulgação de teses;
não encontramos nenhum negro em Medicina e Fonoaudiologia. Foi uma coisa que nos
chocou e nos obrigou a construir naquele momento um dos primeiros agrupamentos dentro
da universidade, o Grupo Negro da PUC.
Tivemos também o prazer, naquela época, de conhecer o Prof. Octaviani. Faço parte de
uma geração formada por esse professor, que recentemente faleceu, e que neste debate
merece nossa homenagem. Ele nos dizia o seguinte: "Vou ajudar vocês, que estão na PUC
e que constataram sua pouca presença. Vocês precisam se formar para que tenham êxito
na luta de combate ao racismo no País". Aquilo a que ele chamava de uma elite intelectual.
Ele falava: "Nós, brancos, temos essa elite intelectual e, a partir dessa elite intelectual e
desse acúmulo de conhecimento que temos há quase 500 anos de Brasil, é que exercemos
o poder, o mando e a dominação aqui no País. Vocês precisam se apropriar desse
conhecimento, e essa questão é fundamental". E ele nos dizia também o seguinte: "Não
basta vocês trabalharem com essa visão unicamente de acesso a essa elite. Vocês têm que
fortalecer algumas questões que são fundamentais, um projeto de transformação na
sociedade brasileira".
Quem conheceu o Professor Octaviani sabia que ele primava muito pela defesa do ensino
público, e ele dizia: "Vocês, ao incorporarem, dentro de um projeto nacional de combate ao
racismo, a importância do ensino público na sociedade brasileira, estarão incorporando
vocês próprios a essa chamada elite intelectual tão necessária para vocês terem um projeto
político de Nação, um projeto político de transformação para a sociedade brasileira".
Portanto, acho que esse debate que estamos realizando aqui hoje tem uma importância
fundamental, como o Hédio mencionou. Além das cotas, além do acesso de um conjunto da
população brasileira ao ensino público, há um ponto principal que também devemos resgatar
nesse debate de cotas, é a necessidade de resgatarmos, de forma mais intensa, a discussão
sobre o fortalecimento do ensino público no Brasil. Creio que esse aspecto deve ser levado
em conta no posicionamento das senhoras e dos senhores Deputados.
Discutir cotas nas universidades públicas também coloca em questão o fortalecimento do
ensino público no nosso País. Esse é um aspecto que não devemos deixar de lado. Não é
um debate só nosso, negros, índios e pobres, que estamos envolvidos nesse projeto, mas
de todos aqueles que desejam uma sociedade justa e igualitária em nosso País. Então, a
questão do ensino público deve estar embutida também nesse debate, porque não é o
debate de um setor que está querendo privilégios, mas o debate de um setor que quer, sim,
um ensino de qualidade, um ensino público que faça com que nós, que temos acesso à
universidade, saibamos utilizá-la da forma mais produtiva possível, a fim de construirmos,
de fato, um projeto de nação, um projeto de país diferenciado no Brasil. Essa é uma questão
que considero fundamental, independentemente dos vários dados e argumentos
apresentados pelos que me antecederam.
Há outro ponto que é fundamental lembrar, que está associado também a essa discussão
de projeto de nação: entender que não estamos discutindo um projeto de índios, negros e
pobres, voltado a uma minoria. Não se trata de uma minoria. No caso de nós, negros, as
estatísticas estão aí. No mínimo metade do País está reivindicando nesse momento a
aprovação de um projeto. Trata-se também de darmos atenção a um conjunto da população
que quase foi exterminado em nosso País e que hoje resiste, que está aqui presente, na
figura do José Adalberto, que resiste e está dizendo que quer continuar a construir esse
projeto de nação, quer ter acesso à universidade pública.
Então, infelizmente, ou felizmente, não se trata de uma discussão de minoria, como disse o
nosso Vice-Presidente da Comissão , com quem eu queria fraternalmente dialogar, no início
de sua fala. Sua Excelência disse que estávamos discutindo um projeto que favorecia uma
minoria no nosso País. Não é isso. Esse é um dado fundamental que aumenta a
responsabilidade dos nossos Deputados neste momento nesta Comissão, que é a de
fortalecer esse projeto, fazer com que ele tramite o mais rápido possível e seja votado no
mais breve espaço de tempo, porque ele tem dentro de si uma visão fundamental, que diz
respeito não somente a uma parte, mas à maioria da população do nosso País.
Quero deixar registradas, até para fortalecer o debate, essas duas questões fundamentais,
independentemente dos argumentos aqui apresentados, com bastante eloqüência e
bastante firmeza, pelo Hédio, pelo companheiro da UBES, pela nossa reitora, pelo Frei
David. Acho que está embutido nessa discussão algo maior do que pensamos, que não diz
respeito a uma política restrita, uma política específica. Estamos tratando de algo muito
maior do que imaginamos, e a nossa responsabilidade neste momento é muito grande.
Se nós, no Congresso Nacional, conseguirmos aprovar o projeto de cotas nas universidades
públicas, se conseguirmos aprovar também o projeto do Estatuto de Promoção da Igualdade
Racial, que está aqui em tramitação, este Governo, os nossos Deputados e o Congresso
Nacional estarão dando um grande salto para recuperar aquilo que temos perdido ao longo
dos anos que a população negra está presente no nosso País. Só gostaria de registrar isso,
para ser bastante breve.
Deputado Luiz Alberto (Coordenador) — Anuncio a presença do ex-Deputado do PT, Ben-
Hur Ferreira, um dos nossos grandes Parlamentares.
Para estimular os Parlamentares inscritos, quero dizer que, quando estive na África do Sul,
toda manifestação política ou social era sempre feita à base da música. Daqui a pouco a
Banda Mirim Olodum, da escola criativa, estará aqui se apresentando para os Parlamentares
e assistência presentes.
Deputado Carlos Abicalil (Presidente) - Companheiro Flávio, só para esclarecimento, com
razão você se referiu à maioria populacional identificada com esse movimento pela inclusão
do ponto de vista da sua cor, origem étnica e também pelo grande universo de exclusão,
que igualmente é maioria entre os mais pobres do País.
Apenas, por dever de justiça, quero dizer que o argumento utilizado pelo nosso companheiro
Deputado Jairo Carneiro, Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos, diz respeito
ao conceito utilizado na Câmara dos Deputados e no universo do debate sociológico de
minoria étnica em relação àqueles que tenham ou não protagonismo no exercício do poder.
Aliás, muito bem revelado com o exemplo citado em relação à participação do Octaviani na
formação de quadros de elite, tendo em vista, sobretudo, a ampliação dos espaços de
poder.
Faço esse registro de modo a corrigir qualquer possibilidade de injustiça com aquilo que foi
a consideração do nosso colega da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Aliás, o
próprio termo minoria está inscrito na Comissão da Câmara dos Deputados por derivação
desse tipo de conceituação. Por essa razão, então, até para justificar a existência dessa
Comissão de caráter permanente que, como muito bem foi lembrado, foi instituída com a
reforma do Regimento, no ano passado para este ano, é que essa referência foi explicitada.
Obrigado.

(Apresentação da Banda Mirim Olodum)

Embalados ainda pelo som, pelas vozes, pelas cores, parabéns ao grupo Olodum pela
esperança e pela alegria trazidas a esta audiência pública.
Temos a convicção de que a força da participação popular, a expressão necessária,
indispensável e urgente da diversidade estarão encaminhando, com essa presença forte
nesta na audiência pública, o avanço significativo para confirmação desse pleito urgente,
indispensável, necessário e absolutamente justo.
Atenderemos uma extensa lista de Parlamentares inscritos para participação no debate. Em
função do adiantado da hora e da possibilidade de instauração da Ordem do Dia no plenário,
vamos proceder da seguinte maneira. Faremos a oitiva das senhoras e dos senhores
Parlamentares inscritos em um único bloco de modo que, na seqüência, possamos devolver,
para réplica, a palavra aos nossos convidados e convidadas para a Mesa de hoje. Em
havendo possibilidade de tempo, como havia mencionado, atenderemos algumas inscrições
solicitadas por outras representações do movimento organizado, que não tiveram
oportunidade na Mesa de hoje.
Deputado Paulo Rubem Santiago - Faço questão de compartilhar, além da alegria de estar
presente e, na condição de militante cultural no meu Estado, ter assistido à brilhante
apresentação dos jovens que acabaram de estar aqui conosco, da alegria de ser de
Pernambuco, um Estado que tem participação expressiva na resistência de seu povo; um
Estado de comunidades quilombolas conhecidas pela sua garra e fibra.
Faço questão de lembrar a Comunidade do Castainho, na cidade de Garanhuns; de
Conceição das Crioulas, no Município de Salgueiro, no sertão central de Pernambuco; da
Comunidade do Livramento, na cidade de Triunfo, no sertão do Pajeú. Luiz Gonzaga
cantava que "o Pajeú vai despejar no São Francisco e o Rio São Francisco, um dia, antes
que seque, vai bater no meio do mar".
Pernambuco é também um Estado com grande quantidade de povos indígenas — kapinawá,
xukuru, atikun, pankararu, pipipan, fulni-ô, truká e kambiwá. É o Estado da nossa Federação
com a maior quantidade de povos indígenas. Foi também o Estado que, há 300 anos, pôde
registrar a presença de um negro, Henrique Dias, como um dos comandantes da Batalha
dos Guararapes, quando definitivamente foram expulsos do País os holandeses. Foi
também o Estado onde nasceu e viveu Malunguinho, herói quilombola que, por sua prisão,
a Assembléia Legislativa de Pernambuco oferecia, no século XVII, uma grande soma, que
hoje talvez representasse alguns milhões de reais, a serviço dos senhores de engenho, dos
latifundiários da Coroa.
Não poderia deixar de fazer essa saudação aos integrantes desta sessão, saudando
também Solano Trindade, poeta negro pernambucano, e a nossa querida, já falecida, Dona
Santa, rainha da mais antiga nação de maracatu de baque virado deste País, a Nação
Maracatu Elefante.
O Deputado Luiz Alberto vai ficar me devendo essa, por ter sido discriminatório, porque só
trouxe para cá a belíssima percussão da Bahia. Faltou o maracatu de baque virado do norte
do País, do Estado de Pernambuco, como terá faltado o boi, do Maranhão, também de
tradição negra e indígena.
Senhor Presidente, apenas quero dizer que queremos muito mais do que as cotas.
Queremos muito mais do que o acesso à universidade. A exemplo do que alguns
componentes da Mesa expuseram, queremos o acesso e a permanência: condições para
que a construção do conhecimento não se evada em função das desigualdades de rendas
e das imensas injustiças urbanas que afligem grande parte da nossa população afro-
descendente.
Lembraria também a situação do nosso ensino médio, da enorme, imensa defasagem
idade/série, que chega a quase 40% dos jovens de quinze a dezenove anos, que não têm
as condições necessárias para concluir adequadamente o ensino médio. Desceria um pouco
mais, ao acesso ao ensino fundamental e à educação infantil, para o qual a maior parte das
vagas neste País não são públicas. São públicas não-estatais, comunitárias, muitas delas
sem as devidas condições pedagógicas e, sobretudo, privadas. É aí que vemos o montante
da exclusão social pedagógica que sofremos, especialmente nós, a população afro-
descendente.
Não poderia deixar de tocar na questão da erradicação do analfabetismo e da educação de
jovens e adultos.
Na verdade, temos um conjunto de políticas que precisam tocar coração e mente das
equipes econômicas, dos que administram orçamentos, dos que são secretários do Tesouro
Nacional. As metas históricas que Otávio Ianni, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Anísio Teixeira, que os pioneiros da educação pública construíram ao longo dos anos
não serão atingidas se não quebrarmos a tutela financeira sobre os recursos que este País
é capaz de produzir.
Lembraria outro debate em curso nesta Casa, o da Universidade para Todos, que também
não aponta os mecanismos necessários à permanência e à condição de conclusão dos
cursos dos estudantes que por ventura vierem a entrar ou por nível de renda ou por condição
afro-descendente e indígena no Programa Universidade para Todos — Projeto de Lei n.º
3.582.
Concluo, senhor Presidente, lembrando nossas grandes expressões. Como afirma o Prefeito
de Recife, João Paulo, somos um país multicultural.
Registro neste momento a crença e a esperança de que é possível construir uma
universidade democrática, plural, universalizadora, sobretudo, e não uma universidade
excludente, que represente, apenas no Brasil, menos de 20% de toda a nossa população
de dezoito a 24 anos.
Portanto, senhor Presidente:
Jovelina, Clementina e Pixinguinha, D. Santa, Solana e Gilberto Gil, nesta terra que é
multicultural a igualdade é algo que não se viu.
Malunguinho lá nas matas de carpina, Henrique dias forjando a libertação,
são talentos de coragem e de bravura bem escritos nas histórias da Nação.
Nos plantios, nos engenhos e nos campos, nas escolas forjando conhecimento,
ensino pautando e fazendo arte, resistindo e vencendo o sofrimento.
Tão plural e contudo desigual, o Brasil nos instiga a querer mais,
Melodia, Cartola, Daiane e muitos, nossa fibra é o eixo que mais faz.
Assim sendo, no batuque aqui ouvido, vêm os sonhos que nos fazem ir adiante
nas palavras que reforçam compromisso, que nos levam à luta a cada instante.
Deputado Chico Alencar - Vou ser bem sucinto, a partir do que colhi desta audiência pública
e das importantíssimas exposições, que vão fundamentar a nossa batalha na Câmara dos
Deputados e no Congresso Nacional para aprovação da política de cotas. Não está
garantido. Vamos enfrentar resistências com base na argumentação legalista de pseudo-
igualdade, que todos conhecem bem.
É preciso que trabalhemos com quatro pontos fundamentais.
O primeiro deles diz respeito ao total empenho para garantir o acesso. Mas é preciso
reconhecer que não possibilitar a permanência enfraquece inclusive o pleito pelo acesso.
Passa a ser, nesse caso — só garantir o acesso, deixando para lá —, quase uma demagogia
populista.
As experiências que já ouvimos da UnB e Universidade da Estadual de Mato Grosso do Sul
mostram que a universidade, como instituição, comprometeu-se com o bom desempenho
desses discentes, que, aliás, revolucionam sobretudo a cabeça dos docentes.
Sou professor da UFRJ e vejo como muitos professores têm medo do aluno pobre, do aluno
historicamente discriminado, daquela novidade que vai fazer-nos rever conceitos. É comum,
no meio educacional, o termo "repetir o ano", que o Deputado Abicalil conhece bem.
Quem mais repete o ano é o professor, que não se renova, não se atualiza, tem medo do
aluno que questiona. A presença de um aluno de classe popular no banco da universidade
encarna todos os temores e inseguranças do professor, que é moldado para ser, às vezes,
mero papagaio da burguesia. Agora, temos de garantir a sua permanência na universidade,
senão teremos um engodo.
Quanto ao segundo ponto — o companheiro da UBES lembrou bem —, em geral as cotas
são semicotas ou quase um discurso. É preciso garanti-las por curso e turno.
O Professor Hédio afirmou que já existe há muitos anos — talvez desde sua instituição — a
cota de 100% para os brancos, a classe média e os ricos. Então, por que esse escândalo?
Mas vejo que — sou professor da Faculdade de Educação e de Metodologia e Prática do
Ensino de História —, em relação aos cursos de licenciatura, provavelmente metade já seja
das escolas públicas. A representação negra — não a indígena —, no caso do Rio de
Janeiro, é grande também. E na Odontologia, na Medicina, no Jornalismo, no Desenho
Industrial etc.?
Terceiro ponto: é importante possibilitar o acesso ao nível superior, mas, se mantivermos o
processo de degradação dos ensinos fundamental e médio, também não vai adiantar nada.
Será um emblema bonito, mas em pouco tempo vai desbotar. Não garantir o ensino público
fundamental e médio de qualidade é perpetuar as discriminações — tanto as negativas
quanto as positivas.
Último ponto: na minha opinião, temos de ter coragem também de dizer que a política de
cotas é, por definição, transitória.
Certa vez fui em um acampamento do MST e disse: "Eu quero que o MST acabe". Quase
fui preso, como agente da UDR — União Democrática Ruralista - ali infiltrado. Expliquei: "No
dia em que não houver mais semi-reta, no dia em que houver uma reforma agrária plena,
não será mais preciso o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra". Queremos
também que a política de cotas seja transitória, temporária. Em primeiro lugar, e não por
ordem de importância, por questão de concepção pedagógica. Trata-se de política
educacional. Toda política educacional é transitória — não é perene — e tem de estar em
permanente avaliação.
Sonhamos — talvez não o vejamos — com o dia em que não vai mais haver discriminação
e espoliação de afro-descendentes, de nativos e índios. Assim, a política de cotas faz-se
desnecessária. Teremos a universidade popular e pública no Brasil como elemento
hegemônico do ensino superior.
Com esses argumentos, venceremos a batalha. E também com a luta dos senhores. Se não
nos mobilizarmos, se não colocarmos os tambores para rufar — os meninos da Mangueira
estão à disposição —, não ganharemos esta briga.
Obrigado.
Deputado Jairo Carneiro - Tenho posição clara em favor da causa. Sou da Bahia, Estado de
grande miscigenação, de Salvador, com 80% de afro-descendentes. Digo isso com muita
honra e orgulho.
Este é o momento oportuno para recolher as contribuições desta audiência pública para
oferecimento, formulação e elaboração de emendas ao projeto que se encontra na
Comissão de Direitos Humanos e Minorias, com o Relator, Deputado Miro Teixeira.
O prazo para oferecimento de emendas ainda está por esgotar-se — faltam três sessões.
Considero mais três sessões — são contadas as sessões do plenário da Câmara dos
Deputados.
É importante que os senhores produzam essas sugestões. Creio que a Assessoria da
Comissão de Educação e Cultura, por intermédio de seu Presidente, Deputado Carlos
Abicalil, estará à disposição para formatar as propostas. E a Assessoria da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias — o senhor Rui (Secretário da Comissão de Direitos Humanos
e Minorias) —, também vai colocar a equipe à disposição para elaboração dos textos, com
base nas idéias que os senhores entendem que são válidas e legítimas.
Dirijo-me a todos os presentes, inclusive aos componentes da Mesa, e me incluo entre
aqueles que estão como soldados em defesa desta causa.
Não vou mais argumentar em relação à defesa da proposta que ora tramita na Casa. As
falas dos expositores, pelo menos nesta audiência pública, foram no sentido de não só
apoiar a proposta, mas também aperfeiçoá-la no que for possível.
Inclusive, gostaria de deixar uma sugestão para a Comissão de Educação, Cultura e
Desporto e os que vão participar formalmente do debate. Seria interessante ouvir as
experiências das universidades que já implementam a política de reserva de vagas das suas
unidades.
Por que digo isso? Muito se falou — o Deputado Chico Alencar já se referiu ao assunto e
outros companheiros com certeza vão fazê-lo — da necessidade de aprovar não só a política
de acesso, mas também um programa de permanência dos estudantes nas universidades.
A Universidade Federal da Bahia aprovou um sistema que está de acordo com essa idéia
— a reserva de vaga também para pós-graduação e, conforme está dito no programa, pós-
universidade; ou seja, quando o estudante sai da universidade formado e vai para o mercado
de trabalho, vai se transformar num profissional.
Considero importante relatar essa experiência não só para tentar convencer aqueles
Parlamentares que ainda têm alguma resistência, mas também para consolidar a posição
dos que já são favoráveis à instituição das cotas nas universidades brasileiras.
Quero também me referir ao debate ocorrido pela manhã. Alguns argumentos apresentados,
principalmente pelo representante da CONFENEN - Confederação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino, são aparentemente atuais, mas são os mesmos utilizados no
período da escravidão para justificar sua permanência.
Lembrei-me inclusive de um juiz dos Estados Unidos, que se dizia contrário à manutenção
das políticas de ação afirmativa, com o argumento de que ficaria muito preocupado, pois,
quando um estudante afro-americano ingressasse numa universidade pelo sistema de ação
afirmativa, poderia sofrer grandes danos psicológicos, porque seria discriminado dentro da
universidade.
Provavelmente esse tipo de argumento também passe pela cabeça de alguns juristas do
nosso País, que defendem posição contrária a essa proposta. Mas quero crer que este
debate tem avançado, não tem mais como recuar. Acredito, inclusive, que esse projeto de
lei veio num momento ideal. Até porque ele vai ser, de alguma forma, impulsionado pelas
experiências já em vigor nas universidades. Os Parlamentares não estarão transitando num
ambiente desconhecido. Ou seja, as experiências estão aí; algumas já com resultados,
conforme disse o Frei David, da UERJ. Alguns resultados demonstram a importância dessa
política.
Também penso que não podemos correr o risco de tentar nos opor, no debate, à imperiosa
necessidade de uma política de qualidade na escola pública, na escola fundamental de nível
médio. Não há oposição a isso. Ao contrário, queremos que haja, sim, melhoria na qualidade
da escola pública. Mas isso não implica necessariamente o abandono da idéia das cotas.
Até porque sempre gosto de lembrar que o Brasil — alguém da Mesa já o disse —, em algum
momento, teve uma escola pública decente. Grande parte dos Parlamentares desta geração
estudou na escola pública. Mas nem naquele momento, na escola pública de qualidade, os
negros tiveram acesso à universidade.
Então, não estamos discutindo necessariamente a questão de uma escola pública de
qualidade e, conseqüentemente, a entrada dos negros na universidade. Estamos falando de
um sistema que construiu um discurso ideológico racial, que hierarquiza as pessoas a partir
da sua origem racial e que impede o seu acesso à universidade.
Para encerrar, informo que, na vigência do apartheid, havia mais negros nas universidades,
na África do Sul, do que há no Brasil, sem uma política explícita do apartheid. Por quê?
Porque lá vigorou a idéia que os norte-americanos também acolheram: dos iguais, mas
separados. Nós acolhemos a outra idéia: dos juntos, mas desiguais.
Portanto, este debate vai garantir, com certeza absoluta, que a nossa Casa dê celeridade à
aprovação do projeto que institui cotas nas universidades públicas brasileiras para os
estudantes negros.
O companheiro da UBES disse muito bem: mais de 70% dos estudantes das escolas
públicas não batem às portas das universidades. Outro detalhe: estão enganados os que
imaginam que, na instituição das cotas, os cotizados terão menor concorrência. Ao contrário,
haverá grande procura às universidades através das cotas. A disputa deverá, inclusive,
superar aquela do sistema universal do vestibular.
Era esta a minha contribuição. Muito obrigado.
Deputada Maria do Rosário - Vivemos um momento muito importante no País. Estamos nos
encontrando com a nossa própria história e trabalhando pela superação de alguns marcos,
o que é um compromisso histórico. A nossa geração tem a possibilidade de iniciar uma
mudança que certamente ficará registrada como importante resgate e o início, pelo menos,
de um processo de reparação frente a toda a história do Brasil.
Devemos saudar este momento em que vivemos, do ponto de vista da educação pública,
essa possibilidade como fruto da luta de trabalhadoras e trabalhadores negros, daqueles
que sempre afirmaram a sua condição e denunciaram a opressão. Encontram-se nesta luta,
neste momento, com a disposição de transformar a sociedade, que está sintetizada em um
projeto de governo.
A origem desse projeto de lei não é o Governo, mas a compreensão do que sejam justiça,
direitos humanos e democracia e o reconhecimento de que não vivemos, portanto,
diferentemente do que a história do Brasil afirmou, em uma sociedade justa e democrática,
na medida em que estamos em uma sociedade, na sua origem, segregadora e
discriminatória.
No Congresso Nacional e como sociedade brasileira, vivendo este momento, sem dúvida,
ao analisar esse projeto de lei e tentar melhorá-lo, ao incorporar propostas como aquelas
que vieram da Mesa, estamos qualificando um conceito que está afirmado, de que a
sociedade justa que nós temos o desafio de construir passa pela superação dessa herança
ideológica, em que o racismo, a segregação social estão mascarados de tal forma que não
permitem que os sujeitos sejam vistos.
E quando nós falamos em educação, os números aqui apresentados por todos os
integrantes da Mesa indicam que temos argumentos valiosos para ir contra todas as formas
racistas e discriminatórias de contraposição a esse projeto e que às vezes se apresentam
como análise da qualidade da universidade, ou análise revestida de um viés acadêmico, de
um mundo que a maioria da sociedade brasileira compreende muito pouco.
A universidade pública no Brasil, que é tão importante, deve ser cada vez mais valorizada
em termos de recurso, porque produz ciência, tecnologia e cultura. Ela está entre as
principais instituições deste País.
É absolutamente importante que essa universidade, para seu próprio bem, encontre o seu
projeto de desenvolvimento nacional, o caminho da inclusão, como parte da democracia
brasileira.
Defendemos a universidade pública e nunca deixaremos de fazê-lo. Se nós, acadêmicos,
não procurarmos promover dentro dessas instituições um espaço de igualdade verdadeira
e não apenas formal, não conseguiremos dar novo significado ao papel da universidade
pública brasileira e continuar justificando toda nossa abordagem sobre a sua importância.
Portanto, esse projeto de cotas valoriza a própria universidade, dá-lhe sentido democrático
e nos apresenta algo fundamental: nós podemos, a partir dos números aqui apresentados,
argumentar sobre a qualificação da universidade, com a presença de alunos oriundos da
escola pública de nível médio, especialmente os negros e os das comunidades indígenas.
Se a universidade brasileira não tem a capacidade de suprir as necessidades da sociedade
brasileira, não pode representá-la. Por isso, devemos apresentar emendas — por exemplo,
a que propõe que um terço das vagas das universidades públicas seja para o turno da noite.
Senhor Presidente, eu havia apresentado um projeto de lei sobre cotas para alunos das
escolas públicas. Um dos artigos estabelecia que um terço das vagas da universidade
pública seria para o curso noturno — obviamente, com os necessários recursos de
laboratório, materiais de biblioteca, com a mesma qualidade. O aluno do curso noturno
também tem esse direito, como trabalhador.
Devemos, portanto, apresentar emendas. Mas precisamos ter a preocupação de votar esse
projeto este ano, de garantir que esse procedimento já esteja em curso no próximo ano, de
estabelecer metas no tempo, porque a urgência da votação da matéria não é só do
Congresso Nacional ou nossa — talvez já tenhamos passado pelas universidades públicas.
Eu, particularmente, se não tivesse cursado a universidade pública, não teria tido a
possibilidade de estabelecer minha formação. Mas essa urgência não é individual, não é de
um ou de outro. Ela é de 500 anos.
Penso que devemos satisfação à sociedade, aos alunos da rede pública, àqueles que não
têm recursos para pagar a universidade privada, à juventude brasileira que tem o direito de
estar em uma universidade de grande qualidade e excelência, com a qual nos
comprometemos e na qual acreditamos. Devemos trabalhar cada vez mais para a
universidade pública do Brasil, particularmente para homens e mulheres jovens, negros e
negras, índios e índias.
Portanto, gostaria de lançar um desafio: com as emendas, com o debate, com a participação
da sociedade, especialmente dos movimentos, vamos votar esse projeto até o final do ano,
ou talvez antes, como parte da nossa responsabilidade com a sociedade.
Obrigada.
Deputado Ivan Valente - Quero dizer inicialmente que este debate é muito rico. Ele fala de
justiça, de liberdade e de igualdade.
Entendo que essa mobilização social pela criação de massa crítica na sociedade, pelo direito
à inclusão social, pelo combate ao racismo e pela criação de uma sociedade
verdadeiramente democrática é também de quem compreende o processo de luta de
classes no País.
Diferentemente do nosso "maracatu atômico", Deputado Paulo Rubem Santiago, do nosso
poeta, Deputado Chico Alencar, e de outros, temos de falar um pouco de tristeza. Pediram-
me para não falar disso, mas devo dizer que a luta vai ser dura. E vou explicar por quê.
Apresentei na Comissão de Educação e Cultura um projeto que prevê a necessidade de se
colocar, nas fichas de matrícula do ensino fundamental, o quesito "cor".
Por incrível que pareça, depois de consultadas todas as áreas, houve um parecer contrário.
O pior de tudo é que esse parecer contrário está baseado em Florestan Fernandes, o homem
que escreveu A Integração do Negro na Sociedade de Classes, um dos maiores
pesquisadores da questão negra e indígena no Brasil, talvez o maior sociólogo deste País.
O argumento, baseado exatamente em Florestan, aduzia que o projeto era racista, pedia só
a autodeclaração e visava à formulação de políticas públicas. Pensei: a coisa não é tão
simples assim.
O segundo ponto que quero apresentar é o seguinte: de acordo com pesquisa atual — tenho-
a em mão —, 61% da população apóiam o sistema de cotas; 29% são contra; e 9% ainda
não têm posição firmada. Não nos iludamos com isso, porque a batalha ainda não começou.
Há os formadores de opinião, a mídia e a elite brasileira, que controla a mídia, os meios de
comunicação e exerce grande influência. Mas também é verdade que há a luta popular,
democrática e a pressão de baixo para cima, a que estamos assistindo aqui.
Portanto, manifesto o meu total apoio a essa luta, mas ressalto que precisamos definir
alguns pontos, sob pena de perdermos força no meio do caminho. Temos aqui um público
extremamente favorável. Mas não pensem os Deputados aqui presentes que representam
a média da Câmara Federal. Não é a média que está aqui. Digo isso para que saibamos o
tamanho da briga que vamos ter.
Apóio totalmente essa proposta, mas percebo que, em termos de política governamental,
ela vai apresentar um problema grave: não vem acompanhada de um plano de expansão
do ensino superior público e de um ataque direto à melhoria da qualidade da educação
básica e da igualdade de oportunidades.
Apenas um quarto dos jovens na idade própria, de quinze a dezessete anos, freqüentam o
ensino médio no Brasil. No Cone Sul, temos de 70% a 86% desses jovens freqüentando o
ensino médio. No Brasil, apenas 9% dos estudantes na idade própria, de dezeoito a 24 anos,
freqüentam a universidade — destas, apenas um terço é pública e apenas 1,5% é federal,
abrangida pelo projeto. Então, vamos incluir apenas 0,75% dos oriundos de escola pública,
com preferência para negros e indígenas. Isso é importantíssimo e simbólico; porém, se
falarmos de inclusão social, fica rigorosamente só no simbólico. Temos de atacar os
problemas conjuntamente.
Citei esse exemplo porque essa energia da EDUCAFRO e dos movimentos sociais e étnicos
organizados, em favor de abertura de vagas nas escolas públicas e contra o racismo e a
exclusão dos negros e índios, os quais também são importantíssimos, pois constituem a
massa crítica por justiça e igualdade social, precisa ser canalizada para um programa de
expansão imediata do ensino superior público. Isso facilitará o trâmite e quebrará
resistências. Caso contrário, encontraremos mais resistência, a exemplo dos bunkers. Essa
é a questão chave.
Significa dizer concretamente que essa energia tem de ser canalizada contra a política
econômica que acumula 147 bilhões de reais para pagar juros; faz superávit primário de
doze bilhões no mês de abril, e gasta com todas as universidades federais, durante um ano,
cinco bilhões. Temos de politizar as questões. É isso que quero canalizar.
Fiquei feliz de ouvir, Frei David, no final da apresentação do seu filme, os jovens cantando:
"Che, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta por justiça, somos todos companheiros!"
Felizmente as pessoas estão pensando não só em entrar na universidade, mas em outra
sociedade, identificando nessas figuras a luta por liberdade, igualdade social, socialismo.
Espero que essa luta objetive também a ampliação das oportunidades em geral para os
pobres, negros e indígenas deste País, secularmente excluídos. Não tiro nenhum mérito
dessa luta, que é importantíssima como vanguarda.
Lembro o que o Deputado Chico Alencar disse: "Essas são lutas transitórias". Quando se
tem uma sociedade sem classes, de iguais, enfrentando-se todos esses problemas com luta
e unidade, superamos esse processo. Mesmo neste momento, em que essa questão tem
imensa simbologia política, trata-se de justiça social, é importante que essa energia também
seja canalizada para isso, sob pena de entrarmos numa luta que pode se restringir a si
mesma, sem conseguir dar conseqüência àquilo que interessa, que é a garantia de
educação pública gratuita e de qualidade para todos, com a expansão de todos os meios de
ensino público de qualidade.
Todos devem ter esses direitos. Não podemos é permitir que perdure uma situação em que
somente 1,5% de estudantes freqüenta o ensino superior no que diz respeito a essa
questão.
Deixo registrados meus parabéns à Mesa.
Era o que eu tinha a dizer.
Muito obrigado.
Deputado Babá - Falo em nome dos companheiros do Partido Socialismo e Liberdade — P-
SOL
Ainda há pouco, no estacionamento da Câmara dos Deputados, um fotógrafo negro que
trabalha na Casa dirigiu-se a mim, de forma indignada, para protestar que deveria haver
cota para brancos, que são minoria, e não para negros, que são maioria neste País.
Sabemos que esse projeto, inclusive, foi a ponta-de-lança para abrir o debate sobre as cotas
nas escolas públicas. O debate da cota dos negros não resolve o problema, devemos ter
essa clareza, mas é de um simbolismo importantíssimo na luta mais global pelo ensino
público e gratuito no 1º, no 2º e no 3º grau, inclusive naquilo que diz respeito a sua
qualificação.
É bom ver exemplos como o de Mato Grosso do Sul. A discriminação é tão grande que
setores até mesmo da intelectualidade questionam a qualidade dos estudantes que entrarão
na universidade. Por serem negros ou virem de escola pública, não teriam condição de
crescerem no ambiente universitário. A Universidade de Mato Grosso do Sul serve de
exemplo, inclusive como resgate histórico para os negros e os índios. Não nos podemos
esquecer de que quem construiu e continua construindo este País, e nele sofrendo, é a
população negra, que tem ampla maioria, e a população índia, que foi maioria, hoje é minoria
e tenta se recuperar.
Portanto, a educação é um ponto importantíssimo no que se refere à liberdade. Esses
movimentos servem para que tome consciência a própria população negra, que, às vezes,
não gosta de se reconhecer como negra, por causa da discriminação que sofre — sei o que
é isso, pois minha esposa é negra, como também o meu filho, que nasceu com as
características físicas da mãe.
Essa é uma questão de reconhecimento histórico, porém, se não aplicarmos mais verbas
públicas, federais, estaduais e municipais, para criar novas universidades públicas, não
teremos grandes avanços.
O Deputado Ivan Valente, há pouco, lembrou que na Argentina aproximadamente 39% dos
jovens entre dezoito e 24 anos têm acesso direto à universidade — portanto, não há
vestibular — e que apenas 2% das universidades são privadas. Como se vê, os jovens
argentinos, apesar das crises e dificuldades, historicamente são beneficiados, porque o
Governo investiu mais na educação.
Num país em crise, com a universidade pública sendo fortemente atacada, a reforma
universitária tem de ser discutida, especialmente quanto à cota dos negros. Inclusive, essa
questão faz parte do planejamento do Banco Mundial.
Devo dizer que não concordo com essa tese de solidariedade, pois isso não é um ato de
solidariedade, mas de reconhecimento histórico com a população. Na Guerra do Paraguai,
metade dos negros foram convocados pelo Exército e morreram. Eles foram mandados para
lá a serviço do império inglês, porque os filhos dos fazendeiros se recusaram a ir. A
população negra foi utilizada, em grande parte, justamente para intervir a serviço de um país
imperialista.
Temos de lutar bastante ainda, porque não basta que essa proposta seja aprovada. Em
âmbito federal, estadual e municipal, é preciso travarmos uma luta comum para que o
Governo invista muito mais do que investe hoje para criar novas universidades, porque isso
significa a ampliação do número de vagas para a população negra.
Parabenizo o Presidente da Comissão de Educação e Cultura, Deputado Carlos Abicalil,
pela organização desta audiência pública, bem como os Deputados membros desta
Comissão e todos os que participaram desta bela manifestação, que foi muito importante.
Vamos continuar essa luta, que, na verdade, é apenas a ponta do iceberg relativo a uma
luta muito maior que a população negra precisa travar neste País, em favor de melhores
salários, emprego, educação de qualidade, beneficiando especialmente os integrantes da
população pobre, da negra e da índia, em regra originários da escola pública.
Deputado Eduardo Valverde - Por que há discriminação? Será que depende meramente da
vontade do Governo ou do Estado? É evidente que não. Dois projetos em especial tramitam
há um bom tempo na Câmara dos Deputados. Um deles prevê a expropriação de terras
onde haja atividade análoga a trabalho escravo. Até hoje está para ser votado. Volta e meia,
há um tipo de artifício regimental que adia a sua votação. O outro projeto refere-se ao novo
Estatuto dos Povos Indígenas, que estabelece ações afirmativas e condições básicas para
que o integrante dos povos indígenas passe a ser um cidadão como qualquer outro e não
cidadão de segunda categoria, como no caso do estatuto anterior, criado no regime militar.
Vários outros projetos a respeito de cotas tramitam desde 1995 na Casa. Trata-se de um
tabu, conforme constatado anteriormente. Não basta tão-somente a vontade do Presidente
Lula, que corajosamente apresentou esse projeto, de iniciativa do Poder Executivo; é
necessária também a de alguns Deputados, que abraçarão, incontinenti, essa matéria,
independentemente do seu teor.
Este o nosso desafio, dos Parlamentares: como fazer com que a sociedade que nos ouve
se mobilize e, majoritariamente, abrace essa causa? Isso não depende apenas da vontade
política do Governo. Em tese, aqui está expressa a vontade popular. A representação da
sociedade civil, que se expressa por meio do Parlamento, é que colocará resistência a tudo
isso ou não. Diferentemente dos meus companheiros mais à esquerda, que acreditam que
é possível, com um decreto ou uma medida provisória, acabar com a discriminação ou fazer
reformas profundas, dependendo-se meramente da vontade de uma só pessoa, entendo
que temos que construir, junto com a sociedade brasileira, um movimento de hegemonia
que possa trazer a verdadeira igualdade racial no Brasil. Os preconceitos seriam rompidos
mediante uma consciência social. Isso não depende somente do Estado brasileiro, mas
principalmente da sociedade, onde fervilham todas as contradições relativas à
desigualdade.
Louvo os membros da Comissão por terem provocado este debate. Vários outros deverão
ser promovidos nesta Casa para construir um pensamento dominante que possa convencer
o lado mais reacionário do Parlamento brasileiro a transformar essa proposta em uma lei
positiva do Estado. É preciso que a sociedade a entenda e lhe dê legitimidade.
Não basta apenas que haja legalidade, formalidade no processo legislativo. É preciso
legitimidade, para que a matéria seja aceita, valha como lei e como crença. Segundo Bobbio,
temos que transformar as nossas ações e os nossos pensamentos em crença social. O
simbolismo ideológico se esvai com o tempo, mas a crença fica enraizada em nossas
mentes e nos molda o comportamento.
Por que nas universidades públicas, notadamente nas federais, há tanta resistência a esse
programa de inclusão social? Por que apenas 1 universidade pública federal, no caso a UnB,
que seria uma universidade elitista, já que fica na Capital do País, adotou o sistema de
cotas? Por que as demais universidades federais, valendo-se da autonomia universitária,
não implementaram algum programa, pelo menos o mais simples possível?
São esses os questionamentos que apresento à Mesa.
Deputado João Grandão - Senhor Presidente da Comissão de Educação e Cultura,
Deputado Carlos Abicalil; Doutor Hédio Silva, com quem tivemos a oportunidade de
participar de outros debates; senhor Flávio Roberto, Frei David Raimundo, caro
representante da UBES, desejo cumprimentar a companheira Maria José de Jesus Alves
Cordeiro, Pró-Reitora de Ensino da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, moradora
da cidade de Dourados — onde resido há aproximadamente 26 anos —, pela competência,
pela luta e pela forma como conduziu esse processo.
Isso me deixa, evidentemente, muito envaidecido. Durante período não muito longo,
trabalhamos juntos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul — eu, no curso de
História; ela, no de Pedagogia.
Deixo registrados meus parabéns às entidades pela participação. Parabenizo ainda os
autores do requerimento que deu origem a este evento, Deputados Luiz Alberto, Gilmar
Machado e Iara Bernardi. Pelo fato de não ter assento nesta Comissão, fiquei impossibilitado
de subscrevê-lo.
Recentemente, senhor Flávio Roberto, no II Encontro de Parlamentares Negras e Negros
das Américas, realizado na Colômbia, debatemos sobre a questão racial no Parlamento
brasileiro — que, aliás, será de fundamental importância para nós, no sentido de
concretizarmos o sonho de instituir o Parlamento Afro-Descendente das Américas e do
Caribe. Percebemos, por meio de conversas com os representantes dos movimentos, que
lá a situação não é diferente da de outros países.
A impressão que têm é que o Brasil é um país democrático e onde não há racismo de forma
alguma. Muitas pessoas que participaram do debate — conversei sobre isso com o
Deputado Luiz Alberto — citaram o Brasil como exemplo de democracia racial. Tivemos que
dissolver essa impressão que eles têm lá fora. Em todos os debates de que participamos,
fizemos questão de dizer que no Brasil o racismo e a discriminação são constantes. Costumo
dizer que somente o negro, porque viveu ou vive determinadas situações, pode saber
realmente o significado da discriminação. Não há outra forma de senti-la.
Essa situação aconteceu comigo, em visita a um Ministério. Cheguei lá acompanhado de
uma pessoa de cor branca. Quem nos atendeu dirigiu-se a essa pessoa e, com a maior
naturalidade, disse: "Pode entrar, Deputado". É que eu não usava o bóton de Deputado.
Estou usando-o hoje por acaso, mas não costumo usá-lo para fins de identificação. Isso não
é uma forma de discriminação? Claro que é. A desculpa que deu para justificar o erro foi a
seguinte: "Desculpe-me, mas é que o senhor não estava identificado com o bóton". Então,
eu lhe perguntei: "Mas o rapaz está identificado com o bóton?" Ele não estava identificado
com o bóton, porque não era Deputado.
É por esses exemplos, citados de forma resumida, que desejo dizer que temos de fazer
avançar essa luta. Por mais que façamos, ainda é pouco para resolvermos essa causa.
Senhor Presidente, parabenizo o Estado de Mato Grosso do Sul, na pessoa da Professora
Maria José, pela promoção do debate realizado, com muita firmeza, na Universidade
Estadual. A iniciativa foi do Deputado Estadual Pedro Kemp, do Partido dos Trabalhadores.
Eu participei e estou participando de vários debates. Na cidade de Maracaju, por exemplo,
houve um debate muito bonito sobre essa questão.
Nós, no Estado de Mato Grosso do Sul, já estamos contribuindo, cada um como pode.
Ressalte-se a grande participação da universidade e da Professora Maria José. Menciono
também o Governo popular de Mato Grosso do Sul. Como muito bem lembrou a Professora
Maria José, foi a primeira a instituir a autonomia universitária. Ainda não está do jeito que
planejamos, falta muita coisa, mas pelo menos o caminho já foi aberto.
Em relação à Universidade Estadual que primeiro instituiu e normatizou a questão das cotas,
meus parabéns.
Parabéns a todos pela organização desta audiência pública.
Edna Roland (representante da UNESCO) - Agradeço ao Deputado Carlos Abicalil a
oportunidade de me manifestar em nome da UNESCO, ressaltando especificamente o apoio
da UNESCO Brasil aos projetos de reserva de vagas nas universidades deste País.
Não tive oportunidade de analisar de forma mais aprofundada os dois projetos que estão
em discussão hoje nesta audiência pública. Gostaria apenas de alertar que o projeto de
reserva de vagas nas universidades públicas se restringe ao acesso à universidade. Não
há, nesse projeto, uma proposta de permanência.
Como já foi mencionado, certamente poderemos enfrentar muitas dificuldades mesmo para
a aprovação dos projetos como estão. Portanto, creio que cabe aos Parlamentares, às
pessoas desta Casa, como também aos movimentos sociais organizados, avaliar a
conveniência de se considerarem outros projetos que tramitam desde 1995. No caso de
haver as condições políticas, as condições objetivas de ampliação desses projetos, que se
incorporem essas contribuições.
Em relação ao Programa Universidade para Todos, que é mais complexo, não formei ainda
uma opinião definitiva a respeito, mas chamo a atenção para o fato de que as propostas de
bolsas a serem concedidas se referem a 10% dos alunos das universidades. Sobre esses
10% de bolsas é que incidirá o percentual de 50% para estudantes egressos das escolas
públicas ou para professores em escolas públicas. E sobre esses 50% é que vai incidir a
proporção de estudantes negros.
Esse projeto deve ser analisado com atenção e cuidado, verificando-se qual será o custo e
o benefício para o Poder Público com essas verbas a serem oferecidas para as escolas
privadas.
Em princípio, não tenho condição de considerar que se deva restringir a proposta às
universidades públicas. A prioridade deve ser sempre para a universidade pública, mas
temos que considerar o enorme universo de vagas existentes e de estudantes que hoje não
têm outra opção que não seja a universidade privada.
Queria enfatizar o papel absolutamente democrático que o debate acerca das cotas para
negros tem proporcionado no campo da educação. Esse debate abriu a discussão sobre as
cotas nas universidades públicas e a controvérsia a respeito do caráter elitista e excludente
da universidade brasileira.
Obrigada.
Maria José de Jesus Alves Cordeiro — Agradeço o convite da Comissão para participar
desta audiência pública. É difícil uma universidade do interior do Estado, não está no litoral,
participar de qualquer processo.
Represento o Reitor, que se encontra doente. Mas, em todo caso, com certeza eu estaria
aqui, por se tratar do tema sobre cotas.
As ações afirmativas, principalmente as cotas, neste momento ainda se constituem numa
das únicas vias que permitem ao negro e ao índio adentrar a universidade, o que só
contribuirá para o crescimento e o fortalecimento dessa instituição.
A resistência existe? Existe, tanto nas federais quanto em outras universidades. Cabe às
pessoas que estão na academia e aos movimentos organizados, como o movimento negro
e as lideranças indígenas, bater às portas das universidades para mostrar o quanto a
academia ainda está a serviço da elite brasileira.
Agradeço a presença do movimento negro, que sempre nos acompanha &mdashinclusive;,
alguns de seus representantes de Mato Grosso do Sul estavam presentes nesta reunião.
Continuamos à disposição, e muito em breve com dados novos, porque, por meio de uma
comissão, estamos acompanhando o desenrolar desse processo na universidade, a
trajetória pedagógica, dada a permanência do negro e do índio nessa instituição. Isso nos
interessa muito mais, principalmente pelo problema da permanência, tendo em vista que,
muitas vezes, a insuficiência de bolsas inviabiliza a vida acadêmica dessas pessoas.
Muito obrigada.
Flávio Roberto - Senhor Presidente, como integrante da Coordenação Nacional de
Entidades Negras, parabenizo Vossa Excelência pela importância deste debate.
Ressalto a presença de companheiros da SEPPIR, que também colaboraram bastante para
que este evento acontecesse.
Como foi dito, este não é um debate final, vamos ter muito a fazer. Concordo com os
Deputados que disseram que a aprovação desse projeto não será tão tranqüila como
imaginamos. Esse tipo de mobilização que fazemos hoje deve se repetir. As outras
organizações devem estar empenhadas para que estejamos aqui mais vezes, o que será
fundamental para que esse projeto seja aprovado.
Tenho certeza daquilo que dissemos: o projeto sobre cotas amplia o debate a respeito da
importância da universidade pública e do ensino público e gratuito em nosso País. É isso
que vai nos unificar daqui para frente.
Hédio Silva Júnior - Senhor Presidente, estive aqui em julho de 1986, primeira vez que
adentrei esta Casa — algumas pessoas conhecidas estavam aqui: o Marquinhos, o
Flavinho, a Edna Roland, o Hélio Santos, a Doutora Dora Lúcia, alguns companheiros que
não estão mais entre nós —, para pressionar os Constituintes. Nunca vi, nesses dezoito
anos, tantos Parlamentares numa audiência pública. Deixei para comentar isso no final
desta reunião. Muitas vezes, vim aqui para falar sobre algum assunto, e os Deputados
vinham, faziam uma brevíssima intervenção e depois iam embora.
Esta participação e este interesse, Deputado Carlos Abicalil, são também ilustrativos desta
luta condenada a ser vitoriosa. Possivelmente poucas idéias no Brasil foram tão
sistematicamente bombardeadas quanto o pleito por ações afirmativas no País. Ainda
assim, a cada semana uma universidade adota essa política. Em São Paulo um sindicato
de empregados assinou com uma empresa uma cláusula num acordo coletivo de trabalho
prevendo cotas de acesso ao trabalho.
Portanto, a consideração que faço é de extremo otimismo, apesar de uma ou outra variação
que qualquer Parlamentar tenha feito, o que é ótimo, pois enriquece o debate. Mas sou
absolutamente otimista, no sentido de que, se existe um movimento que tem contribuído
para mudar de fato a cara do Brasil, esse é o Movimento Negro, a consciência social
crescente nos quadros políticos. Volto a dizer o que disse ao Deputado Abicalil quando
estive com Sua Excelência a primeira vez, há duas semanas, da qualidade e da competência
de sua intervenção, e o compromisso é extremamente valioso para nós.
Portanto, deixo nossa aposta em que a sociedade civil organizada deve continuar
participando e colaborando para a vitória desse projeto e de outros, porque na verdade as
cotas que queremos são as cotas do poder, queremos acesso ao poder. Essa a discussão
de fato. Para isso precisamos criar uma elite, precisamos colocar pessoas na universidade,
precisamos de aliados, como Vossa Excelência e outros, pois verificamos que ninguém mais
do que nós, um povo que está trabalhando há 5 séculos neste País, tem legitimidade para
reivindicar o poder.
Muito obrigado.
Marcelo Brito da Silva - Quero apenas valorizar o debate nosso, que é importante e rico. Ao
longo dos anos, este debate sobre reserva de vagas e cotas vem evoluindo, porque vem
encontrando mais espaço em nossa sociedade. Se é verdade a afirmação feita de que nossa
batalha no Congresso Nacional não está ganha, é verdade também que reconhecemos o
avanço obtido nos mais diversos espaços do País.
Sobre o projeto, uma vez na Câmara, falei inicialmente das alterações de que necessitava,
e vou apenas reforçar que não se trata de quaisquer alterações, mas de alterações que
podem comprometer, no caso de não ocorrerem, a essência do nosso projeto e da nossa
defesa. Portanto, garantir que a reserva de vaga seja aprovada nesta Casa por curso e por
turno significa a certeza de que o projeto de fato vai conseguir contribuir para o combate às
desigualdades sociais que existem em nosso País.
O Ministro da Educação Tarso Genro, na última semana, anunciou alguns pontos que fazem
parte da proposta do MEC para a reforma universitária. Dentro desses pontos encontramos
essa questão da reserva de vagas. Sua Excelência levanta dois elementos que para nós
são fundamentais: primeiro, reforça a reserva de vagas como proposta provisória, transitória,
que tem como objetivo promover a igualdade, e não será uma proposta permanente. Afirma
ainda que a proposta de reserva de vagas deveria durar cinco anos, mas que esse tempo
estaria condicionado a dois fatores: primeiro, dobrar-se em quatro anos o número de vagas
nas instituições públicas federais do País. Esse não é um desafio qualquer. Nas
universidades brasileiras há cursos que há mais de quinze anos não aumentam sequer uma
vaga. Assim, a proposta de dobrar o número de vagas das universidades públicas brasileiras
é ousada e tem de ser levada a sério.
Algumas coisas jogam a favor dessa questão, como, por exemplo, a adoção de cursos
noturnos nas instituições públicas de ensino federal, que por si só poderia provocar grande
parcela desse aumento das vagas, mas outras medidas têm de ser tomadas, como a
abertura de novas instituições de ensino federal. Além disso, fala-se justamente sobre essa
questão da valorização da educação básica, pois condiciona-se o fim da política de cotas à
melhora da educação básica no País. Esse é outro debate que a Comissão de Educação da
Câmara dos Deputados tem travado com muita força, e a UBES espera, tanto nas
mobilizações como nas passeatas e nas ações características do movimento estudantil,
poder contribuir.
Penso que nossa participação neste debate, tanto a da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas quanto a da EDUCAFRO, das pessoas que compuseram esta Mesa e
daquelas que participaram e assistiram a esse debate, é fundamental. Tínhamos que sair
daqui fazendo um verdadeiro pacto de mobilização pela aprovação dessa proposta. Há
algumas iniciativas que podem e estão sendo tomadas, como por exemplo, conforme eu já
havia dito, sobre a Frente Parlamentar de Apoio às Cotas Sociais. Então, precisamos fazer
dessa Frente Parlamentar a maior já vista aqui no Congresso Nacional, para ganhar cada
vez mais apoio, para fazermos a nossa luta mais apresentável. E a segunda é pensar
alternativas, medidas que consigam dar mais visibilidade à nossa luta. O objetivo nosso, da
UBES, não é simplesmente aprovar essa proposta debaixo do tapete, sem travar com a
sociedade brasileira o debate acerca das desigualdades sociais. Então, precisamos dar
visibilidade a essa luta, que na nossa opinião deveria cominar no ato da votação dessa
proposta aqui na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, numa grande mobilização
em que nós da UBES, juntamente com a União Nacional dos Estudantes, vamos estar
exercendo um papel destacado, fazendo uma grande passeata aqui em Brasília, uma
grande mobilização para o final, não uma mobilização nos marcos que vínhamos fazendo,
nos Governos passados, para poder criticar, mas sim para comemorar a vitória dos
estudantes e de todo o conjunto do movimento social brasileiro.
Muito obrigado, senhor Presidente.
David Raimundo dos Santos - O primeiro ponto é lembrar para todos nós que para o projeto
já venceu o prazo de emenda. No entanto, nada impede que nossa comunidade negra e as
demais entidades civis, a UBES, façam uma articulação para manter um bate-papo com o
Relator. Não é pecado, acredito. O segundo é lembrar que o projeto federal está em pleno
processo, e devemos urgentemente trabalhar emendas fortes, apoiando os Deputados
solidários. Nessa linha conclamo, e deixo isto registrado aqui, nos arquivos, toda a
comunidade organizada, como as entidades negras, a UBES e as demais entidades, para
reservarmos os dias 13 e 14 de julho, porque vai passar, sim, o recesso parlamentar, e só
em agosto — portanto, isso vai antecipar o prazo limite para votação de projeto —, em 25
de agosto, como prevíamos, deverá acontecer a votação, e se acontecer temos que agir
logo.
Então, estamos conclamando todos os irmãos e irmãs da causa para mudarmos nossa
agenda e cada um de nós montarmos um grupo de pelo menos 40 pessoas para estar aqui
em Brasília nos dias 13 e 14 para, dois a dois, visitar cada gabinete de cada Deputado e de
cada Senador. Gente, é um mutirão de coragem, de olho a olho, porque sabemos que muitos
Deputados não aceitam, e não vão aceitar se não houver um trabalho de convencimento
tranqüilo e firme. Essa é a proposta que fazemos de encaminhamento da nossa luta.
Portanto, anotem: dias 13 e 14. Todos reservemos essas datas para fazermos uma grande
mobilização, não tanto um debate, mas um trabalho nessa linha. De repente, se as próximas
duas audiências da Comissão de Educação, que vão ser marcadas sobre esse tema,
coincidirem com o 13 e o 14, estaremos aqui dando força e ajudando nossos irmãos
Deputados a discutir isso com qualidade, bastante brilho e espírito de esperança.
Como terceiro ponto, para concluir, quero dizer que tenho certeza de que todos aqui
presentes entendemos que as cotas não são um benefício para negro e para índio; elas são
um benefício real para todo o Brasil. Acreditando nisso, a EDUCAFRO deve lançar hoje e
quero registrar aqui, perante as câmaras da televisão, o lançamento, no debate sobre essa
política de ações afirmativas, de cotas nas universidades públicas e particulares, depois de
70 anos de exclusão, colocando-se a USP, infelizmente, como o grande símbolo nacional
de exclusão de negros e pobres em geral. Portanto, se algum Deputado presente, de
qualquer partido, de preferência de todos os partidos, quiser ajudar-nos, estamos fazendo
parceria para o lançamento de cotas, 500 cartazes, 1.000 cartazes, em parceria com os
Deputados; eles produzem e essa quantidade fica para divulgarem essa política em suas
bases, em parceria com a EDUCAFRO.
Um abraço a todos.
Encerrando esta audiência o Presidente da Comissão, Carlos Abicalil, faz as considerações
finais.
Como Presidente da Comissão de Educação e Cultura, quero registrar a intensa qualidade
dos debates de todo o dia de hoje, que dão seqüência, reitero, ao ciclo que já se encontra
na sua terceira edição de parte da Comissão de Educação e Cultura, e com muita firmeza e
determinação prosseguiremos naquilo que for ainda importante ouvir para contribuir para o
processo de qualificação dos projetos que estão em tramitação.
Apenas quero reiterar uma distinção entre os dois projetos que hoje, por diversas vezes,
vieram à tona nas intervenções da Mesa. Com relação ao projeto intitulado Universidade
Para Todos, que significa constituição de bolsas integrais em instituições de ensino superior
que gozam de benefício fiscal de diferentes naturezas, esse projeto tramita em regime de
urgência e está sob a égide de uma Comissão Especial cujo funcionamento começou na
quarta-feira da última semana e que está prevendo já duas audiências públicas aqui em
Brasília e cinco outras nas Regiões brasileiras, de sorte que para o projeto, o Programa
Universidade Para Todos, teremos a descentralização, tendo sido aquele programa
aprovado na última reunião da Comissão Especial; o Relator é o Deputado Colombo, e
evidentemente recomendamos todas as energias no sentido de alterar aquilo que porventura
não está consignado, ainda na forma de emenda, apresentada dentro do prazo regimental;
recomenda-se, portanto, o acercamento, no bom sentido do termo, do Deputado Colombo,
que é do PT do Paraná.
Com relação ao outro projeto de lei, esse, para o qual está designado como Relator o
Deputado Miro Teixeira, encontra-se em tramitação regular. Não está em regime de
urgência, neste momento, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, e ainda o prazo
de emendas está aberto até a próxima segunda-feira; é o que trata de cotas dentro das
universidades federais, 50% de alunos oriundos de cursos realizados integralmente nas
escolas públicas de nível médio, e dentro dessa cota de escolas públicas estão as cotas
étnicas, proporcionais à participação da população em cada Unidade da Federação.
Para concluir, quero dizer que agradeço muito as participações que tivemos, agradeço aos
diversos movimentos que se fizeram representar durante todo o dia de hoje, em diversas
manifestações, que se iniciaram logo cedo, deixando meu abraço à Universidade de Brasília,
nesta importante reação que a Câmara dos Deputados não pode abdicar de fazer,
encaminhando o debate de determinadas formas de abordagem dos temas das cotas
étnicas, que buscam ou a sua deslegitimação, ou a sua ridicularização, como recentemente
ocorreu em veículos de importância para a formação da opinião pública brasileira.
Naquilo que nós da Comissão de Educação e Cultura pudermos contribuir, não tenham
dúvida de que isso não é apenas motivo de uma aliança utópica em função dos projetos que
estão ora sob nossa apreciação, mas trata-se fundamentalmente de uma aliança histórica
pela reparação de movimentos ao longo do tempo institucionalizados em desfavor da
maioria do povo brasileiro.
Muito obrigado pela presença de todos.
zT

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