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Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Patrícia Jakeliny F. S. Moraes


Vicente de Paula Faleiros

ADO ÇÃO E
DEVOLUÇAO
Resgatando Histórias
PACO || EDITORIAL
Conselho Editorial

Profa. Dra. Andrea Domingues


Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi
Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna
Prof. Dr. Carlos Bauer
Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha
Av Carlos Salles Block, 658
Ed.Anhangabaú
Altos
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do Anhangabaú,
- Jundiaí-SP2º-Andar, 13208-100 Sala 21 Prof. Dr. Fábio Régio Bento
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Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes
Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira
Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins
Prof. Dr. Romualdo Dias
Profa. Dra. Thelma Lessa
Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2015 Patrícia Jakeliny F. S. Moraes


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pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar,
em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a
permissão da editora e/ou autor.

M8275 Moraes, Patrícia Jakeliny F. S.; Faleiros, Vicente de Paula


Adoção e Devolução: Resgatando Histórias/Patrícia Jakeliny F. S. Moraes;
Vicente de Paula Faleiros. Jundiaí, Paco Editorial: 2015.

148 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-8148-787-8

1. Adoção 2. Vínculo familiar 3. Filiação 4. Direitos da criança e do adoles


cente. I. Moraes, Patrícia Jakeliny F. S. II. Faleiros, Vicente de Paula.

CDD: 150
Índices para catálogo sistemático:
Família 306.85
Relacionamento entre pais e filhos 306.874
Psicologia 150

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal
A Ana Beatriz, Maria Eduarda e João Pedro
pelo tempo roubado e pelo prazer de viver a
maternidade e a fecundidade do afeto todos
os dias de nossas vidas.
Patrícia Jakeliny Ferreira de Souza Moraes

Para meu filho Álvaro e minha nora Rita,


que estão construindo uma família adotiva.
Vicente de Paula Faleiros
Sumário
Prefácio 11

Os porquês deste estudo 13

Capítulo 1 – Breve percurso histórico sobre a adoção 17


1. Adoção no Brasil 17

Capítulo 2 – Aproximação do conceito de família 35


1. Da família idealizada à família possível 35
2. Pensando família a partir da estrutura sistêmica 39
3. Aproximação teórica com o conceito de vínculo 43

Capítulo 3 – O fenômeno da adoção


em um contínuo desvelar-se 49
1. Análises dos fragmentos dos discursos:
a adoção a partir das falas das famílias e
da expressividade das crianças adotivas 49
2. Família [1][D] Joana e Isabel 51
3. Família [2][D] Janete e Cláudia 64
4. Família [3][AP] Débora, Vilmar e Guilherme 74
5. Família [4][AP] Lilian, Mônica e Júlia 86

Capítulo 4 – Retomando as zonas de sentido 97


1. Indicadores favoráveis e indicadores
desfavoráveis no processo de adoção 97
2. O desejo e sua falta 98
3. A relação entre as motivações, o altruísmo e
a realidade vivenciada no processo de adoção 100
4. A desvelação da família de
origem como condição do vínculo 104
5. A criança imaginária e a criança real 109
6. A preparação da(s) criança(s) e do(s) requerente(s)
para adoção, a partir da viabilização institucional 114
7. Vínculo familiar estendido 120
8. A devolução: o silêncio dos pais
versus o sofrimento dos filhos 123

Considerações finais – Encontros e desencontros


nos processos de adoção 127

Referências 133

Glossário 141
SIGLAS

ABT Associação Brasileira Terra dos Homens


BPC Benefício de Prestação Continuada
BSB Brasília
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior
CF Constituição Federal
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

CRAS Centro de Referência da Assistência Social


CREAS Centro de Referência Especializado da Assistência Social
CT Conselho Tutelar
DF Distrito Federal
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
GT Grupo de Trabalho
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LOAS Lei Orgânica de Assistência Social
MDS Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MP Ministério Público
NOB Norma Operacional Básica
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PAIF Proteção e Atendimento Integral à Família
PAEFI Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos

PNCFC Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito


de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária
PSE Proteção Social Especial
SAC Serviço de Ação Continuada
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos
SGD Sistema de Garantia de Direitos
SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social
Suas Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
UNICEF Fundo das Nações Unidas para Infância
VIJ Vara da Infância e Juventude
PREFÁCIO
O título impactante deste livro, resultante da dissertação de
mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília por
Patrícia Moraes sob a orientação de Vicente Faleiros - e a qual
também acompanhei na qualidade de co-orientadora - reflete de
imediato a coragem e a sensibilidade de ambos os autores. Cora
gem na escolha do tema, sensibilidade na sua abordagem, poesia
no título da obra.
Mas a poesia de que falam aqui os autores não é aquela que
apenas embeleza, enleia, floreia ou torna a vida mais amena. A
poesia aqui declarada é realista, de denúncia e revelação do que
há de mais humano, mas também de mais sofrido e contunden
te, conflituoso e paradoxal: o gesto de amor – adotar uma criança
– mostrando também sua outra face, de violência, simbólica ou
visceral – devolver esta mesma criança à instituição de origem.
O poema aqui enunciado não é aquele que se faz em versos,
mas é daqueles que se faz em prosa, descrevendo sistemática e
analiticamente os diversos aspectos que favorecem ou dificultam
o processo de filiação adotiva, a partir do contato com quatro
famílias e seus respectivos filhos adotivos. Ele revela, simultanea
mente, a alegria, a dor e a coragem destas famílias e suas crianças
que compartilharam com a pesquisadora suas experiências subje
tivas e relacionais, inclusive aquelas mais sombrias e que culmina
ram na “rejeição” dos filhos adotados ou das famílias requerentes.
E se a poesia dos dados oficiais sobre a adoção no país tende a
apresentar sempre um final feliz, a poesia aqui expressa vem mos
trar a complexidade da transposição de um vínculo de filiação,
que muitas vezes não se realiza na sua inteireza. Sem dúvida, isto
é pleno de impactos sobre a criança devolvida à instituição de
acolhimento depois de um período de convivência com os seus

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

pais adotivos, requerendo um olhar mais atento por parte dos


profissionais que lidam com o tema da adoção.
E se em lugar de ver poesia, o leitor preferir ver esta obra
como sendo objetivamente de teor acadêmico, científico e psi
cossocial, terá ao menos que se convencer que aqui não há lugar
para uma visão meramente reducionista, na medida em que o
trabalho proclama e promove uma profunda reflexão sobre am
bos os lados da moeda: a) de um lado, o percurso das famílias
requerentes da adoção e suas próprias vicissitudes no processo
de constituição do vínculo com a criança adotada; e b) de outro
lado, o percurso do filho adotivo e seu processo de vinculação a
essa nova família, processo esse que passa também e necessaria
mente pelo modo como essa criança elabora – ou não – o luto
pela perda de sua família de origem.
Considerar os dois lados da moeda – o da família e o da
criança - deixa de ser, agora, apenas uma metáfora poética ou me
ramente uma preocupação técnico-científica para se tornar uma
questão de ordem sobretudo ética. Onde o bem e onde o mal?
Onde há mal no bem ou bem no mal? A sensibilidade de ambos
os autores os levam para um caminho muito além daquele que
seria o mais trivial: o de simplesmente buscarem identificar quem
é a vítima ou quem é o vilão nas histórias que buscam resgatar
neste estudo. Em vez disso, tal resgate permite aprofundar uma
perspectiva compreensiva e proativa, contemplando os fatores le
gais, culturais, sociais, psicodinâmicos, emocionais e relacionais
envolvidos na realidade da adoção e respectiva dinâmica de filia
ção, incluindo-se aqui o relevante papel dos agentes mediadores,
sejam os das próprias instituições de acolhimento ou os membros
da família de extensão.

Marta Helena de Freitas


de
Programas Mestrado e Doutorado em Psicologia
Universidade Católica de Brasília – UCB
mhelenadefreitas@gmail.com

12
Os porquês deste estudo
A sobrevivência da ligação diante das “tempestades
emocionais” ou das pequenas “ventanias” dá aos in
tegrantes do grupo familiar o sentimento de uma
vinculação sólida e real. Estamos falando aqui do
que eu chamaria da verdadeira adoção, que é a que
todos almejam, e se caracteriza pelo sentimento vivo
de estar ligado e em sintonia com alguém importan
te. (Levinzon, 2004, p. 133)

Este livro é fruto da dissertação de mestrado Ressignificando o


processo de adoção: encontros e desencontros, defendida em junho de
2011, na Universidade Católica de Brasília – UCB. Essa jornada
teve início no Abrigo Lar de São José, situado em Ceilândia, cidade
do Distrito Federal, no ano de 2005, período em que foram rea
lizados os primeiros contatos com a realidade de crianças1 e ado
lescentes que vivenciam situações de abandono, e aguardam seu
retorno às suas famílias de origem ou uma colocação em família
afetiva. Nesta obra, as famílias adotivas são chamadas de famílias
afetivas, que juridicamente recebem o título de substitutas.
Este estudo surgiu de várias indagações que foram respondidas
ao longo dos cinco capítulos descritos neste livro. Dentre as prin
cipais instigações destacam-se: quais as motivações dos requerentes
para a adoção? Qual o espaço que a criança adotada tem na família,
para expressar sua história, seus medos e desejos? Como uma boa
orientação favorece a vinculação da criança aos pais adotivos? Qual
a contribuição da família e amigos no processo de adoção? Como
a interrupção de um processo de adoção, por meio da devolução,
pode reeditar o abandono na criança adotada? O que faz com que
a adoção se torne um verdadeiro encontro ou um verdadeiro de
sencontro para o requerente e para a criança envolvida? Como esse
processo pode ressignificar a vida dos envolvidos?
1. No decorrer deste trabalho todas as referências às crianças adotivas incluem o
adolescente adotado.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Essas curiosidades foram o ponto de partida que iniciou uma


jornada de dois anos de estudo, mas sobretudo, uma autorre
flexão sobre o processo de vinculação adotiva entre pais e filhos
biológicos ou adotados. As respostas às questões apresentadas
acima foram obtidas a partir da interação e entrevistas com qua
tro famílias adotantes e seus respectivos filhos adotados, sendo
que dois dos casos estudados dizem respeito a duas adolescentes
“devolvidas” ao serviço de acolhimento, devido a não efetivação
do vínculo parental com a família adotiva. Acreditamos que os
estudos que verdadeiramente respondem a questões tã complexas
como a vinculação adotiva estejam vinculados a vivências muito
próxima dos pesquisadores, sendo esta nossa realidade. Assim,
para um melhor entendimento desta discussão este livro foi divi
dido em cinco capítulos.
No primeiro capítulo, encontra-se uma revisão teórica sobre
o tema, onde há considerações sobre a legislação da adoção, sobre
o processo da adoção no Brasil, os procedimentos técnicos e os
parâmetros institucionais que nortearam a prática do acolhimen
to institucional.
O segundo capítulo foi dedicado ao estudo da família fun
damentado na teoria sistêmica abordada por Minuchin (1982) e
Andolfi (1989) e a discussão do vínculo interno e externo referen
ciado por Pichon-Rivière (1986). Este estudo está contextualizado
aos paradigmas apresentados pela Política Nacional de Assistência
Social (PNAS/2004), ao Plano Nacional de Promoção, Proteção
e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente à Convivência
Familiar e Comunitária (PNCFC/2006) e a Lei 12.010/09.
No terceiro capítulo, é apresentado uma discussão da meto
dologia utilizada para acessar os sujeitos da pesquisa. Como re
ferência utiliza-se González-Rey (2002) que considera o conhe
cimento como uma produção não linear que envolve aspectos
passíveis de uma construção interpretativa e interativa com os
sujeitos pesquisados e a significação da singularidade como nível
legítimo da produção do conhecimento científico.

14
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

O quarto capítulo refere-se à análise dos resultados da pes


quisa, realizada com as famílias e seus respectivos filhos adotados,
no qual onde se discute algumas reflexões teóricas a partir da
fala e interpretações dos desenhos realizados pelos filhos adoti
vos. Esse momento é dedicado a uma reflexão teórica a partir dos
autores que são referência nesse tema: Levinzon (2004), Ghirardi
(2008), Schettini (2009), Hamad (2010) e Lévy-Soussan (2010).
No quinto capítulo, a partir de uma análise mais aprofunda
da, retomam-se as zonas de sentido identificadas nos discursos
dos pais e nos desenhos dos seus respectivos filhos. Essa costura
com a teoria possibilitou vislumbrar alguns indicadores que faci
litaram a construção dos vínculos de filiação e alguns indicadores
que inviabilizaram o encontro parental no processo de adoção.
As considerações finais apontam para uma reflexão sobre o
não dito por aqueles que estão direta ou indiretamente envolvi
dos no processo de vinculação adotiva.

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Capítulo 1
Breve percurso histórico
sobre a adoção
1. Adoção no Brasil
Para entendermos a adoção nos tempos atuais é preciso, an
tes de tudo, refletirmos sobre os principais motivos que levam
crianças e adolescentes a serem acolhidos em instituições que re
cebiam o nome de orfanatos e abrigos para menores. O intuito
deste livro não é um resgate histórico sobre esse processo, pois
muitos outros estudiosos já o têm feito de forma exemplar. Esta
colaboração busca contribuir com a discussão sobre adoção cor
relacionando o tema com a legislação atual, especificamente no
que se refere às propostas e determinações da Política Nacional
de Assistência Social (PNAS/2004), do Plano Nacional de Pro
moção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adoles
cente à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC/2006), do
Plano Distrital de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária
(PDCFC/2007) e da Lei 12.010/09.
A adoção constitui-se em uma medida legal2, com caráter de
excepcionalidade e irrevogabilidade, o que vem ganhando grande
repercussão, inclusive em nível jurídico, permitindo maior aber
tura e análise da atuação dos profissionais que trabalham com
a questão. Ainda assim, vislumbramos lacunas acerca de alguns
aspectos práticos que interferem sobre as possibilidades da vincu
lação afetiva e que serão explorados ao longo desta obra.

2. As outras medidas legais de colocação da criança são: a guarda e a tutela em


família substituta, o acolhimento institucional e a família acolhedora, com caráter
de medida protetiva “transitória e provisória”.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

O tema adoção começa a ser tratado como política social,


principalmente nos países europeus, durante a emergência das
guerras mundiais, sendo impulsionado pelas novas concepções
de criança e o novo papel que o Estado assume sobre a vida pri
vada. Até esse ponto da história, a adoção, quando existia, dizia
respeito principalmente à transmissão de bens, de um nome fa
miliar e, eventualmente, de poder político.

O adotante, via de regra, tinha que ser de idade avançada (50


anos era o mínimo colocado, por exemplo, no Código Napo
leônico) e os adotados eram frequentemente adultos. Os po
deres centrais agiam em geral contra a adoção. Assim manti
nham relativamente alto o número de pessoas sem herdeiros,
fazendo com que o patrimônio de muitas famílias escoasse
para o senhor feudal ou para a Igreja. (Fonseca, 2002, p. 118)

Apesar do grande número de enjeitados deixados na roda


de expostos, assim como os jovens que viviam nas vias públicas
(Donzelot, 1980; Rizzini, 1993; Cabral, 2002), antes do século
XX houve poucos movimentos ou debates para adaptar as leis
sobre adoção ao problema dessas “crianças abandonadas”. Não
raro, as pessoas recebiam em seus lares um jovem desamparado.
Filhos de criação existiam de fato. Mas raras vezes pensava-se em
legalizar sua situação pela adoção.
A desigualdade entre filhos “legítimos” e “criados” era um
fato pacífico da vida social. Havia o perigo de a adoção ser usada
para legitimar filhos adulterinos, um ato que, ferindo a moral
familiar, era expressamente proibido na legislação de diversos pa
íses. Em uma sociedade estamental, em que cada um conhecia
seu lugar, um indivíduo sem herdeiros podia achar mais honroso
deixar seu patrimônio à Igreja do que a um filho ilegítimo ou ao
criado que tinha abrigado durante anos.
Foi só depois da virada do século XX que o estado tomou a
iniciativa de intervir no que, até esse momento, tinha sido admi
nistrado seja por acordos informais, seja pelo direito contratual.

18
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

A reorientação da filosofia jurídica para o bem-estar de crianças,


antes de ser interpretada como uma mera evolução humanista
deve ser vista em função do campo político em que ocorreu.
O Estado moderno não tinha os mesmos motivos que a Igre
ja para colocar obstáculos à adoção, já que seu poder econômico
residia em outras bases, que não o patrimônio de famílias sem
herdeiros. Tinha interesse, isto sim, na ordem pública, na socia
lização adequada dos jovens sem família. É sem dúvida por este
motivo que, durante a primeira metade do século XX, as dis
cussões jurídicas centraram-se na transferência do pátrio poder,
deixando a questão de herança em segundo plano. Mas a adoção
também vinha ao encontro das necessidades de um poder públi
co que estendia sua influência cada vez mais para dentro da in
timidade familiar. Aproveitava-se a responsabilidade de garantir
direitos individuais para, assim, estreitar o controle sobre a vida
dos súditos. Simultaneamente, consolidou-se a noção moderna
de infância enquanto fase crucial para o desenvolvimento da per
sonalidade adulta, necessitando de orientação especializada, o
que teve contribuição da Psicologia.
Ariès (1973) é precursor na discussão dessa nova concepção
de infância. Sua obra foi um marco de um novo campo que ficou
conhecido como “história da infância” e gerou diversos trabalhos
subsequentes. Para o autor, a constituição desse novo conceito
de infância está na transição dos séculos XVII e XVIII, quando
ela passa a ser definida como um período de ingenuidade e fra
gilidade do ser humano, que deve receber todos os incentivos
possíveis para sua felicidade. O início do processo de mudança,
por sua vez, nos fins da Idade Média, tem como marca o ato de
mimar e paparicar as crianças, vistas como meio de entreteni
mento dos adultos (especialmente da elite). A morte das crianças
também passa a ser recebida com dor e abatimento.
Já no século XVII, as perspectivas transitam para o campo
da moral, sob forte influência de um movimento promovido por
igrejas e Estado, por meio de suas leis, no qual especialmente a

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

educação ganha terreno: trata-se de um instrumento que surge


para colocar a criança “em seu devido lugar”. Embora tenha uma
função disciplinadora, a escola não nasce com uma definição de
idade específica para a criança. Isso porque os referenciais não
eram o envelhecimento (ou amadurecimento) do corpo. A ciên
cia moderna ainda não havia triunfado e a educação nascia, por
tanto, com uma função prática, ora de disciplinar, ora de propor
cionar conhecimentos técnicos, que posteriormente configuram
uma escola para a elite e outra para o povo.
A análise feita por Ariès (1973), logo, destaca-se por fornecer
elementos para problematizarmos a infância em uma sociedade
que, da obra, apresenta um individualismo acentuado. Muitas
vezes nos deparamos com crianças (e, mais recentemente, ado
lescentes) que são vistas como projeções de expectativas dos pais
ou que são protegidas ou mimadas, reinventando os hábitos de
fins da Idade Média. Os perigos e consequências desta situação
podem, sem dúvida, ser mais bem compreendidos a partir das
reflexões presentes na obra de Ariès (1973) – História Social da
Criança e da Família.
O Código Civil de 1916 recupera uma prática antiga: a trans
ferência por escritura de responsabilidade tutelar entre um adul
to e uma criança. Segundo esta lei, qualquer pessoa com mais
de 50 anos, sem prole legítima ou legitimada, podia adotar uma
criança mediante contrato com os pais biológicos. Não havia res
trição quanto a sexo, estado civil ou nacionalidade. O adotado
podia ter qualquer idade desde que fosse respeitada uma diferen
ça de 18 anos entre ele e os pais adotivos. A relação adotiva era
revogável e não anulava o vínculo entre a criança e seus genitores.
Em suma, a posse da criança era regulamentada em cartório da
mesma forma que se regulamentava a posse de bens e imóveis.
Em 1957, com algumas alterações introduzidas no Código
Civil, vemos surgir um interesse no bem-estar da criança. Sob a
bandeira da “proteção jurídica ao menor, fala-se, nos tratados da
época, da necessidade urgente de corrigir a legislação em benefício

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Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

da grande legião de crianças desamparadas” (Fonseca, 1995, p.


119). A idade mínima dos pais adotivos baixou para 30 anos e a
diferença de idade para 16 anos. Também nessa época os juízes de
menores começaram a exercer pressões no sentido de que os car
tórios somente lavrassem escrituras mediante autorização judicial.
Com a Lei 4.655, de 1965, sobre a “legitimação adotiva”, ve
mos, pela primeira vez a ideia de um laço irrevogável que confe
re direitos hereditários (se bem que limitados) à criança, fazendo
cessar qualquer ligação com a família anterior. A lei diz respeito a
órfãos, crianças de pais desconhecidos, ou a “menores abandona
dos”, até a idade de sete anos. Com o Código de Menores de 1979,
passaram a coexistir duas formas de adoção – plena (à imagem da
legitimação adotiva) e simples (à imagem do Código Civil).
Em 1988, a nova Constituição Federal do Brasil, com o in
tuito de promover a proteção integral da criança e do adolescente
e de mudar a concepção prevalente vinculada ao tema “menor”, e
dando prioridade à promoção social da criança e do adolescente,
revogou as leis anteriores, instaurando uma só forma de adoção. A
nova filosofia, consolidada no Estatuto da Criança e Adolescente
(ECA), de 1990, facilitou a adoção – ampliando tanto a categoria
dos adotantes (agora com idade mínima de 21 anos), como dos
adotados (crianças e adolescentes até 18 anos de idade).
Quase 24 anos depois da aprovação do ECA, novas mudan
ças alteram o processo jurídico de adoção, conforme pode ser
visto na Lei 12.010/09, a qual altera a Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990 (ECA), a Lei 8.560, de 29 de dezembro de 1992, que
revoga dispositivos da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 –
Código Civil –, e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943, a qual
altera o ECA. Todavia, cabe-nos refletir sobre como essas mu
danças vêm influenciando de forma direta a vinculação adotiva
entre crianças e pais afetivos.
De forma simplificada, destacamos a seguir as principais mu
danças que a Lei 12.010/09 trouxe no âmbito da adoção, com

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

destaque para a criação do Cadastro Nacional de Adoção (CNA),


o qual reúne os dados das pessoas que querem adotar e das crian
ças e adolescentes aptos para a adoção, de modo a impedir a
“adoção direta”, mais conhecida como adoção “intuitus perso
nae” em que o interessado já comparece no Juizado da Infância e
Juventude com a pessoa que quer adotar.
a) a Lei estabelece como critério para habilitação dos requerentes
uma melhor preparação psicológica, promovendo uma dis
cussão mais ampla sobre o perfil das crianças e dos adolescen
tes cadastrados para adoção;
b) traz o conceito de família extensa (ou ampliada), pelo qual se
deve esgotar as tentativas de a criança ou adolescente ser ado
tado por parentes próximos com os quais convive e mantém
vínculos de afinidade e afetividade, para só depois ser encami
nhado para o cadastro nacional de adoção. Assim, por exemplo,
tios, primos e cunhados têm prioridade na adoção (não podem
adotar os ascendentes e os irmãos do adotando);
c) estabelece a idade mínima de 18 anos para adotar, independen
temente do estado civil (casado, solteiro, viúvo etc.). Contudo,
em se tratando de adoção conjunta (por casal) é necessário que
ambos sejam casados ou mantenham união estável;
d) a adoção dependerá de concordância, em audiência, do adota
do se este possuir mais de 12 anos;

e) irmãos não mais poderão ser separados, devem ser adotados


pela mesma família, salvo raras exceções;
f) a adoção conjunta por união homoafetiva (entre pessoas do mes
mo sexo) é vedada pela lei. Não obstante, o Poder Judiciário já
se decidiu em contrário, em caso de união homoafetiva estável;
g) a gestante que queira entregar seu filho (nascituro) para adoção
terá assistência psicológica e jurídica do Estado, devendo ser
encaminhada à Vara da Infância e Juventude, de sua comarca;

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Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

h) a lei estabelece também como medida protetiva a figura do


acolhimento familiar, na qual a criança ou o adolescente é
encaminhado para os cuidados de uma família acolhedora,
que cuidará daquele de forma provisória;
i) a lei ainda determina que crianças e adolescentes que estejam
sob medida protetiva nos serviços de acolhimento institucio
nal tenham sua situação reavaliada de seis em seis meses, ten
do como prazo de permanência máxima no serviço dois anos,
salvo exceções;
j) em se tratando de adoção internacional (aquela na qual a pes
soa ou casal adotante é residente ou domiciliado fora do Bra
sil), esta somente ocorrerá se não houver, em primeiro lugar,
alguém da chamada família extensa habilitado para adotar,
ou, em segundo, forem esgotadas as possibilidades de coloca
ção em família substituta brasileira (se adequado, no caso sob
análise, a adoção por esta). Por fim, os brasileiros que vivem
no exterior ainda têm preferência aos estrangeiros.

Dentro desse novo contexto legislativo que valoriza o direito à


convivência familiar e comunitária, em que os princípios igualitários
e individuais estão instaurados, é que temos o intuito de trabalhar
o tema adoção, visto que, conforme podemos observar ao longo da
história da adoção, a institucionalização de crianças e adolescentes é
uma prática comum, aplicada em sua maioria por motivos de pobre
za e abandono, sendo que a prática de avaliação e monitoramento
teve grande repercussão a partir de levantamento realizado pelo Ins
tituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2004).
Somado a isso, verificou-se que no Brasil o número de
interessados em adotar é quase seis vezes maior do que o nú
mero de crianças e adolescentes inscritos no CNA. Conforme
levantamento realizado em 2011 pelo Conselho Nacional de
Justiça3 (CNJ), o número de pretendentes chega a 26.694, em
3. Fonte: <http://www.conjur.com.br/2011-abr-14/existem-seis-vezes-adotantes
criancas-adocao-pais>.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

contrapartida o número de crianças e adolescentes cadastra


dos somam 4.427.
O levantamento traz detalhes acerca do perfil dos cadas
trados. Entre os interessados, 10.129 aceitariam adotar apenas
crianças brancas. Outros 1.574 adotariam somente crianças par
das, e 579 aceitariam só crianças negras, enquanto que 8.334
são indiferentes à raça. O cadastro mostra ainda o desinteresse
dos pretendentes em adotar crianças com irmãos. Do total de
interessados, 21.978, o que equivale a 82,37%, disseram que não
fariam esse tipo de adoção. Outros 21.376 (80,8%) afirmaram
ainda que sequer aceitariam adotar gêmeos.
Por outro lado, a realidade das crianças e adolescentes cadas
trados no CNA é outra, a maior parte é de grupos de irmãos que
somam 3.352 (75,72%). Com relação à idade, o levantamento
explicitou que quanto mais velha a criança, menores as chances
de ela ser inserida em uma nova família. Segundo o levantamen
to, a predileção dos pretendentes é maior por bebês, 5.373 dis
seram que adotariam crianças com até 1 ano de idade, e 5.474
disseram que adotariam crianças com até 2 anos de idade.
A Lei 12.010/09 abre espaço para uma discussão que ne
cessita estar afinada com a prática dos profissionais que traba
lham com o tema da adoção. Por um lado, obriga-nos a refletir
sobre a eficácia dessas práticas, principalmente no que se refere
ao trabalho de retorno dessas crianças às suas famílias de origem
e, por outro, a pensarmos sobre como as mudanças legislativas
têm influenciado nas novas inclusões de crianças e adolescentes
às famílias afetivas. Essas análises nos desafiam a repensarmos
nossas práticas profissionais e como estamos colaborando a para
efetivação da garantia de proteção dos direitos das crianças e ado
lescentes institucionalizados. Todavia, faz-se necessário antes de
desenvolvermos esse raciocínio, discutir os procedimentos técni
cos utilizados no processo de adoção.

24
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

1.1 Procedimentos técnicos para adoção

Quem decide adotar uma criança se depara com uma série de


exigências que devem ser atendidas. Geralmente os interessados
à adoção peticionam, por meio de advogado particular ou defen
soria pública, pedido de adoção seguido da apresentação de do
cumentos de identidade do(s) requerente(s) (cópia); Certidão de
casamento ou Declaração de Convivência Marital; comprovantes
da situação econômica dos candidatos à adoção, comprovante de
residência, certidão de nascimento dos filhos biológicos, atesta
do de antecedentes criminais, declaração de idoneidade moral e
atestado de saúde física e mental.
Em seguida os requerentes são chamados para participarem de
cursos preparatórios para adoção. Cada comarca define a quanti
dade de encontros que melhor proveja sua necessidade de prepa
ração dos candidatos. Essa obrigatoriedade da preparação está pre
vista na Lei 12.010/09 no art. 50, conforme especificado abaixo:

§ 3º A inscrição de postulantes à adoção será precedida de


um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado
pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política municipal de garantia do direito à con
vivência familiar.
§ 4º Sempre que possível e recomendável, a preparação re
ferida no § 3º deste artigo incluirá o contato com crianças
e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional em
condições de serem adotados, a ser realizado sob a orienta
ção, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da
Infância e da Juventude, com apoio dos técnicos responsá
veis pelo programa de acolhimento e pela execução da polí
tica municipal de garantia do direito à convivência familiar.

Após a conclusão dessa preparação e aprovação pelo juiz, os


candidatos passam a ser considerados habilitados à adoção e en
tram no cadastro de pretendentes. Em seguida, os candidatos já

25
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

habilitados inscrevem-se para as entrevistas com a equipe técnica


da VIJ, composta por psicólogos e assistentes sociais. Neste mo
mento, reforçam por meio do preenchimento de um formulário
as características da criança que desejam adotar (sexo, idade, cor,
condições de saúde etc.), apresentando suas expectativas e motiva
ções em relação à adoção. Os candidatos habilitados esperam pelo
estudo do cadastro psicossocial de crianças abrigadas e então são
convocados para uma nova entrevista, respeitando-se sua ordem
de inscrição4. Uma vez encontrada a criança que melhor se encai
xa no perfil estabelecido pelos candidatos, é feita uma aproxima
ção entre as partes, no sentido de estabelecer vínculos de afinidade
entre um e outro. Ressalta-se que segundo dados do CNJ, o tem
pode espera pela criança varia conforme o perfil estabelecido pela
família habilitada.
Estudos desenvolvidos por Levinzon (2004) e Schettini
(2009) recomendam que essa aproximação seja gradativa, res
peitando os momentos da criança em relação à sua separação do
serviço de acolhimento, que muitas vezes é seu único lugar de
referência. Embora a reflexão acerca das razões desses procedi
mentos não seja objeto deste estudo, é importante considerar as
necessidades subjetivas dos envolvidos na constituição do víncu

4. O CNA é uma ferramenta criada pelo CNJ como objetivo de otimizar um


diálogo maior entre o próprio judiciário, visando diminuir o tempo de espera das
crianças por uma família adotiva. Conforme previsto nos incisos abaixo do art. 50
da Lei 12.010/09:
§ 5º Serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional de crianças e
adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados
à adoção.
§ 7º As autoridades estaduais e federais em matéria de adoção terão acesso integral
aos cadastros, incumbindo-lhes a troca de informações e a cooperação mútua, para
melhoria do sistema.
§ 8º A autoridade judiciária providenciará, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas, a inscrição das crianças e adolescentes em condições de serem adotados
que não tiveram colocação familiar na comarca de origem, e das pessoas ou casais
que tiveram deferida sua habilitação à adoção nos cadastros estadual e nacional
referidos no § 5º deste artigo, sob pena de responsabilidade.

26
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

lo adotivo. Para ilustrar a importância disso, será feita referência


à fala de uma das famílias entrevistadas:

F[2] [AP]: (...) mas ao mesmo tempo ela chorava e me se


gurava e perto de mim o tempo todo no meu colo, e depois
me segurando enquanto a equipe do Abrigo fazia todo o
processo de despedida, que eu achei bonito, de despedir da
quele lugar, daquelas pessoas, daquilo que tinha sido parte
da vida dela (...).

A sentença da adoção é promulgada após um tempo de con


vívio, paralelo aos trâmites judiciais, com comprovações objeti
vas, via relatório técnico, da vinculação entre a criança e a família
requerente. Entende-se que a aproximação gradativa auxilia na
elaboração do luto da criança em relação à família biológica e
facilita sua integração à família adotiva.
É o juiz a autoridade competente para proferir a sentença que
definirá e legalizará o vínculo de filiação por adoção. Nesse mo
mento, é emitida uma nova certidão de nascimento para a criança
e se apagarão as referências ligadas à sua história anterior, em sua do
cumentação. Ela passa a ser reconhecida como filha(o) legítima(o)
dos novos pais. Nesse caso, conclui-se que é a sentença de adoção
que dá legitimidade para essa nova filiação e não o processo psí
quico que se estabelece durante o período de convivência.
Antes de aprofundarmos os conceitos sobre vinculação ado
tiva discutiremos algumas alterações legais que têm norteado re
flexões importantes sobre o tema da adoção apenas faremos uma
breve reflexão sobre as mudanças legais que dizem respeito ao
“acolhimento institucional”.

1.2 Novos parâmetros legais do acolhimento institucional

Enquanto o Acolhimento for necessário, é funda


mental ofertar à criança e ao adolescente um am
biente e cuidados facilitadores do desenvolvimento,

27
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

de modo a favorecer, dentre outros aspectos: i. Seu


desenvolvimento integral; ii. A superação de vivên
cias de separação e violência; iii. A apropriação e res
significação de sua história de vida; iv. O fortaleci
mento da cidadania, autonomia e a inserção social.
(Conanda, 2009, p. 29)

Antes da discussão dos novos parâmetros legais que perpassam


o tema da adoção vale ressaltar a mudança de nomenclatura do
termo abrigo para “acolhimento institucional” que, por sua vez,
substitui também o termo “orfanato”, sendo fruto de uma ampla
discussão em âmbito nacional do Grupo de Trabalho (GT), com
posto por representantes de ONG’s de todo o território nacional.
A discussão do tema da adoção vem ganhando grande visibi
lidade, na última década e maior ênfase a partir da promulgação
da Lei 12.010/09, a qual altera a Lei 8.069/90 – ECA. Ressalta
-se que o marco que impulsionou essa mudança foi à reportagem
do Correio Brasiliense, em 2002, “Órfãos de Pais Vivos”, de Ana
Beatriz Magno, e o Projeto de Lei de Adoção, do deputado João
Matos (1.756/2003). Estes motivaram o estudo realizado em
2004 pelo Ipea5, o qual teve certa continuidade com nova pes
quisa realizada pelo MDS em parceria com a Fiocruz em 2010.
Ambas as pesquisas trazem uma série de reflexões e destacam a
urgência da efetivação das leis já existentes no que se refere à

5. Levantamento realizado pelo Ipea em 2003 e promovido pela Secretaria


Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, por meio
da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA)
e do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Das cerca de 670 instituições de abrigo que eram beneficiadas, naquele ano, por
recursos da Rede de Serviços de Ação Continuada (Rede SAC) do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foram investigados 589 abrigos,
ou seja, 88% do total. Essas instituições acolhiam, no momento da realização
da Pesquisa, 19.373 crianças e adolescentes. Ver Ipea/Conanda. O direito à
convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no
Brasil / Enid Rocha Andrade da Silva (coord). Brasília, 2004.

28
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

proteção integral às crianças e adolescentes privados da convi


vência familiar e comunitária. Paralelamente a esse processo, em
2004 foi aprovada pelo CNAS a Política Nacional de Assistência
Social (PNAS), com o objetivo de concretizar direitos assegurados
na Constituição Federal (1988) e na Lei Orgânica de Assistência
Social (1993). A PNAS organiza a matriz de funcionamento do Sis
tema Único de Assistência Social (Suas), inaugura no país um novo
paradigma de defesa dos direitos socioassistenciais. Na sequência, a
aprovação da NOB/Suas estabelece parâmetros para operacionali
zação do Suas em todo o território nacional. Em 2006, foi apro
vada a NOB-RH do Suas que, dentre outros aspectos, estabeleceu
parâmetros nacionais para a composição das equipes que devem
atuar nos serviços de acolhimento.
Dentre outros resultados, a pesquisa realizada pelo Ipea apon
tou que 50,1% das crianças e adolescentes foram abrigados por
motivos relacionados à pobreza; 24,1% estavam acolhidos em
função da situação de pobreza de suas famílias; 86,7% tinham
família, sendo que 58,2% mantinham vínculos familiares, com
contatos regulares; apenas 43,4% tinham processo na justiça e
somente 10,7% estavam em condição legal de adoção; 20% esta
vam institucionalizados há mais de seis anos.
O objetivo do levantamento realizado pelo Ipea, sob coorde
nação e solicitação da SEDH/Conanda, era construir um perfil
atualizado dessas instituições para subsidiar o processo de reorde
namento dos serviços de acolhimento nas capitais e em diversos
municípios brasileiros e, deste modo, promover a adequação das
práticas institucionais aos princípios previstos no ECA. Visava-se
identificar as medidas institucionais que segregam, confinam e
dificultam a preservação dos vínculos familiares, a fim de estabe
lecer estratégias para sua correção. No que se refere ao Distrito
Federal6, constava um número significativo até o ano de 2011
6. Conforme pesquisa realizada pela Comissão Intersetorial criada pelo Decreto
Governamental 28.075 de 28/06/2007, visando à elaboração do Plano Pró
Convivência Familiar do Distrito Federal, aprovada pelo Conselho de Assistência

29
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

de 22 instituições7 de acolhimento de infantes entre 0-18 anos.


Porém, 38% dessas instituições restringem sua oferta de vagas a
faixas etárias de até 6 anos, o que contraria o princípio da prima
zia de crianças e adolescentes receberem proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias (art. 4º, parag. único do ECA, 1990).
Das instituições de acolhimento do Distrito Federal, apenas uma
é pública, sendo as demais filantrópicas. Contudo, ressaltamos
que nenhuma atende com serviços específicos, de forma parcial
ou gradual, à demanda de crianças e adolescentes em situação e
vivência crônica de rua e uso de drogas. Visando nortear parâme
tros de atendimento para crianças institucionalizadas no Brasil,
em 2009 o CNAS juntamente com o Conanda, através da reso
lução conjunta n. 1, de 18 de junho de 2009, aprovou as orien
tações técnicas que têm como finalidade regulamentar em todo
o território nacional os Serviços de Acolhimento para Crianças
e Adolescentes, no âmbito da política de assistência social. As
orientações e exigências legais que passaram a vigorar desde 2009
exigem dos serviços de acolhimento institucionais uma mudança
de postura da profissionalização de um serviço tradicionalmente
filantrópico para um serviço que garanta os direitos fundamen
tais das crianças e adolescentes. Esses instrumentos normativos
passam a ser referências para o sistema de Justiça, responsável
pela fiscalização desses serviços, bem como para as exigências co
tidianas que faz em decorrência do acompanhamento da situação
de acolhimento institucional de crianças e adolescentes. A regu

Social do DF e Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do DF, publicada


no DODF de 27/06/08. Tal Plano tinha por fundamento o Plano Nacional de
Convivência Familiar e Comunitária (Brasil, Conanda, 2006).
7. Serviços de acolhimento no Distrito Federal: Ampare, Casa Abrigo ABA,
FALE, Grupo Luz e Cura, Instituição Dom Orione, Instituição Vicenta Maria,
Lar Chico Xavier, Nova Acrópole, Padre Cícero, Lar São José, Serviço Integrado
de Amparo e Orientação – SIAO, Transforme, Vida Positiva, Abrigo – Reencontro
Abrire, Nosso Lar – Sociedade Cristã Maria e Jesus, Aldeias Infantis SOS Brasília,
CRIAMAR, Casa Transitória BSB, Casa de Ismael, Sociedade Casa do Caminho,
Nossa Senhora das Graças e Casa da Criança Batuíra.

30
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

lamentação ora apresentada era uma ação prevista no PNCFC e


representa um compromisso partilhado entre o MDS, a SEDH, o
Conanda e o CNAS, para afirmação no Estado brasileiro do direi
to de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária.
Além de ser fruto de amplas discussões travadas em diferentes fó
runs regionais, nacionais e internacionais, conferências estaduais
e nacional dos direitos da criança e do adolescente realizadas prin
cipalmente em 2007 e encontros do Grupo Nacional de Trabalho
Pró-Convivência Familiar e Comunitária – GT Nacional8.
Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes inte
gram os Serviços de Alta Complexidade do Suas, sejam eles de na
tureza público-estatal ou não-estatal, e devem estar pautados nos
pressupostos do ECA, do PNCFC, PNAS, NOB-RH do Suas e
no Projeto de Diretrizes das Nações Unidas sobre Emprego e Con
dições Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças.
Elaborado a partir de um amplo processo de discussão con
duzido pelo Comitê dos Direitos da Criança da Organização das
Nações Unidas (ONU), Unicef e Serviço Social Internacional, o
documento contou com a contribuição de especialistas, governa
mentais e não governamentais, de diversas nacionalidades. Em
agosto de 2006, o documento foi discutido no Brasil em uma
reunião intergovernamental que reuniu especialistas representan
tes de mais de 40 países, o Comitê dos Direitos da Criança da
ONU, o Serviço Social Internacional e o Unicef. Em junho de
2009, durante a 11ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos
da ONU, foi aprovado o Projeto de Resolução sobre as Diretrizes
para Cuidados Alternativos para Criança. (Conanda, 2009, p. 6).

8. Iniciado em 2005 por iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância
e Juventude (Unicef), com cooperação técnica da Associação Brasileira Terra dos
Homens e apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), do Instituto
Camargo Corrêa e do Instituto C&A, o GT Nacional Pró-Convivência Familiar
e Comunitária reuniu representantes governamentais (estados e municípios) e
não governamentais para a discussão e proposição de parâmetros nacionais para o
atendimento em serviços de acolhimento para crianças e adolescentes.

31
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

A organização do Suas como sistema pressupõe a articulação


da rede Socioassistencial com as demais políticas públicas e com o
Sistema de Garantia de Direitos (SGD)9 e elege a família como foco
central de atenção. A previsão de serviços de caráter preventivo e de
fortalecimento de vínculos familiares e comunitários10, de atendi
mento especializado a indivíduos e famílias em situação de ameaça
ou violação de direitos11 e de serviços de acolhimento para crianças
e adolescentes12 tem importância basilar no que diz respeito à con
cretização do direito à convivência familiar e comunitária.
As orientações metodológicas do referido documento ex
plicitam a importância de um estudo diagnóstico para subsidiar
a decisão acerca do afastamento da criança ou adolescente do
convívio familiar; da necessidade de elaboração de um Plano de
Atendimento Individual e Familiar no qual constem objetivos,
estratégias e ações a serem desenvolvidas tendo em vista a su
peração dos motivos que levaram ao afastamento do convívio
e o atendimento das necessidades específicas de cada situação;
da implementação de uma sistemática de acompanhamento da
situação familiar a ser iniciada imediatamente após o acolhimen
to; de os serviços de acolhimento manterem uma interface com
outros serviços da rede socioassistencial e com os demais órgãos
do SGD, por meio de uma articulação intersetorial; da elaboração
de um Projeto Político-Pedagógico que oriente a proposta de fun
cionamento do serviço como um todo, tanto no que se refere ao
seu funcionamento interno quanto ao seu relacionamento com a
rede local, as famílias e a comunidade. Atualmente, os serviços de
acolhimento ainda caminham para as mudanças previstas na Lei
12.010/09. Normalmente com práticas ainda disciplinadoras,
parecem carecer de uma estrutura capaz de propiciar condições
promotoras de um acolhimento adequado. Todavia, compreen

9. Sistema de Garantia dos Direitos – SGD (ver glossário)


10. Proteção Social Básica (ver glossário)
11. Proteção Social Especial de Média Complexidade (ver glossário)
12. Proteção Social Especial de Alta Complexidade (ver glossário)

32
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

de-se que nem todos os serviços oferecem riscos danosos a esse


público. Alguns, mesmo com a ausência de recursos financeiros,
têm mostrado resultados positivos, com a integração de jovens à
sociedade através das repúblicas. Há de se mencionar que alguns
desses adolescentes chegam ao serviço de acolhimento prestes a
completarem 18 anos, necessitando, assim, de alternativas emer
genciais que visem sua inserção à sociedade.
Por outro lado, vê-se nas práticas repetitivas de acolhimento
a falta de uma maior reflexão sobre as consequências que uma
longa institucionalização pode causar nesses sujeitos, sobretudo
quando há ausência de afeto nas relações dentro dos serviços, há
falta de atendimento individualizado à criança, há carência de
recursos financeiros e humanos, e principalmente quando não há
capacitação das pessoas que atuam na proteção social especial de
alta complexidade. É sabido que em determinadas situações faz-se
necessária a aplicação da medida protetiva prevista no ECA, no
art. 10113, mas antecede a essa medida o amplo funcionamento
da Proteção Social Básica dessas famílias prevista no Suas.
Por outro lado, cabe um estudo mais minucioso e acelerado
por parte dos serviços de acolhimento e do Judiciário sobre essas
crianças e adolescentes, conforme previsto na Lei 12.010/09, a
qual estipula sua permanência de no máximo dois anos, salvo
raras exceções. Esse estudo deve ser feito a partir do que propõe o
Plano de Atendimento Individual e Familiar da Criança, previsto
nas orientações técnicas. A celeridade oportuniza a colocação de
crianças desprovidas de vínculos familiares, a partir de sua co
locação em família acolhedora ou adotiva, dando assim a elas a
oportunidade de um convívio familiar.

13. ECA, art. 101- Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a
autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: (...)
VII – Acolhimento Institucional; VIII – Inclusão em programas de atendimento
familiar; IX – colocação em família substituta.

33
Capítulo 2
Aproximação do conceito de família
1. Da família idealizada à família possível
[...] mas as coisas tem que mudar, as famílias estão
se desfazendo. Houve um descompasso da vida fa
miliar. A gente foi criada nesse ambiente de família
[...].F[2][D] (Janete, 2010)

Não é o objetivo deste capítulo fazer uma historização do


conceito de família, mas sim tecer uma breve explanação sobre
o tema, considerando-se os avanços teóricos a ele relacionados,
inclusive em nível da aplicação das políticas públicas.
A referência feita à família14 na CF/88 no artigo 226 §4º defi
ne como “entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes”. Tal conceito ganha ampliação atra
vés da Lei 12.010/09, no art. 25(...) parágrafo único, no qual:

entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se


estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade
do casal, formada por parentes próximos com os quais a
criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afi
nidade e afetividade.

Essas concepções ampliam o conceito e possibilitam ver a fa


mília como todo o grupo de pessoas com laços de consanguinida
de e/ou de aliança e/ou de afinidade, cujos vínculos circunscrevem
obrigações recíprocas, organizadas em torno de relações de geração
e de gênero. A amplitude destas definições derruba qualquer ideia
preconcebida de modelo familiar “normal”. Trata-se, portanto, de

14. Para detalhamento sobre o conceito de família ver Kowalik. Noções do Direito
Familiar, Panóptica, p. 129-149.

35
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

saber se a família é capaz de realizar as funções de proteção e de


socialização (Minuchin, 1982).
O PNCFC/2006 chama a atenção para a necessidade de des
mistificar a idealização de uma dada estrutura familiar como sen
do a “natural”, abrindo-se caminho para o reconhecimento da di
versidade das organizações familiares no contexto histórico, social
e cultural. O mesmo Plano (PNCFC, 2006) chama ainda a aten
ção para a necessidade de compreender a complexidade e riqueza
dos vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados nas
diversas frentes de defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
E enfatiza a necessidade de uma definição mais ampla de “famí
lia”, com base socioantropológica. “A família pode ser pensada
como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consan
güinidade15, de aliança16 e de afinidade17” (PNCFC/2006, p. 27).
Ressalta, ainda, a necessidade de reconhecer outros tipos de
vínculos que pressupõem obrigações mútuas, mas não de caráter
legal e sim de caráter simbólico e afetivo – relações de vizinhança,
apadrinhamento, amizade – que não raramente se revelam mais
fortes e importantes para a sobrevivência cotidiana do que mui
tas relações de parentesco.
Ao mesmo tempo em que amplia o conceito de família e reco
nhece os vínculos para além da consanguinidade, aponta para que,
uma vez utilizado qualquer desses recursos como possibilidade,
torna-se necessária a sua regulamentação legal.
A Constituição Federal, no seu artigo 227, determina que
sejam assegurados às crianças e adolescentes os direitos inerentes
à cidadania, através de sua rede familiar:

15. A definição pelas relações consanguíneas de quem é “parente” varia entre as


sociedades, podendo ou não incluir tios, tias, primos de variados graus etc. Isto faz
com que a relação de consanguinidade, em vez de “natural”, tenha sempre de ser
interpretada em seu referencial simbólico e cultural (PNCFC, 2006).
16. Vínculos contraídos a partir de contratos, como a união conjugal (PNCFC, 2006).
17. Vínculos “adquiridos” com os parentes do cônjuge a partir das relações de
aliança (PNCFC, 2006).

36
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profis
sionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, explora
ção, violência, crueldade e opressão. (CF/88, art. 227)

É importante considerar que as normas legais mencionadas


centralizam a questão no direito que a criança tem de ser criada e
educada pela família e, ao mesmo tempo, refere-se à necessidade
de proteger e assistir essa mesma família no adequado exercício
de suas funções. A CF/88, no artigo 226, afirma que “a famí
lia, a base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Não
obstante, é preciso refletir que os avanços nas leis não garantem
mudança nas ações se estas não forem fortemente embasadas em
um compromisso em atender às famílias, tornando-as capazes de
gerir suas necessidades físicas e psíquicas.
Ao contrário, temos visto na realidade brasileira crianças e
adolescentes sendo encaminhados para os serviços de acolhimen
to, expressando uma família que também precisa ser cuidada. Por
um lado, encontram-se estas famílias que não conseguem acessar
serviços públicos, que quando existentes não conseguem atender
toda a demanda; por outro lado, vemos essas crianças e adoles
centes sendo violados nos seus direitos à convivência familiar e
comunitária quando são encaminhados por motivos estruturais e
sociais para os serviços de acolhimento, reproduzindo assim, um
ciclo interminável de dependência com os programas e serviços.
De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos das Crianças, aprovada em 20 de novembro de 1989:

[...] os Estados velarão para que as crianças não sejam sepa


radas de seus pais contra a vontade desses, exceto quando, de
acordo com decisão judicial, as autoridades competentes de
terminem, de acordo com a Lei e os procedimentos aplicáveis,
que tal separação é necessária ao interesse superior da criança.

37
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

A proteção pressupõe um protetor e um protegido, posto


que, necessariamente, o primeiro exerce um poder, uma auto-
ridade em relação ao protegido, principalmente no que tange às
decisões. Mas como isso se dá na prática, uma vez que a família
que deveria agir como rede de proteção encontra-se desprotegida
em seus direitos? A certeza que temos é que essa mesma família
também precisa ser cuidada, para que a mesma consiga cuidar
daqueles que são seus dependentes diretos.
Mas o que fazer quando as condições de proteção à criança e ao
adolescente não se fizeram presentes? Esgotadas todas as possibili
dades do retorno dessas crianças para suas famílias de origem estas
deverão ser encaminhadas para o serviço de acolhimento familiar,
art. 3418 §1º e §2ª da Lei 12.010/09, ou para o serviço de acolhi
mento institucional, detalhado anteriormente ou, ainda, em última
instância, para adoção (art. 9219, princípio II do ECA, 1990).
Todavia, cabe ressaltar que existem importantes diferenças
legais no acolhimento familiar20 e na colocação em família ado
tiva. Embora ambos ofereçam a proteção integral em ambiente
familiar e comunitário no acolhimento familiar a transferência dos
deveres e direitos da família de origem para outro adulto ou famí
lia é temporária. Não há substituição, há parceria e colaboração e
são preservadas a identidade, os vínculos e a história da criança,
sem que haja qualquer alteração legal na certidão de nascimento.
Já na adoção a transferência dos direitos e deveres parentais é to
tal e irrevogável: a criança assume a condição de filho; há a substitui

18. Art. 34 §1º - A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento


familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso,
o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta lei. §2º Na hipótese
do §1º deste artigo a pessoa ou casal cadastrado no programa de acolhimento familiar
poderá receber a criança ou adolescente mediante guarda, observado o disposto nos
arts. 28 e 33 desta Lei.
19. Art. 92 princípio II integração em família substituta, quando esgotados os
recursos de manutenção na família natural ou extensa.
20. Sobre o tema Acolhimento Familiar consultar a tese de mestrado de Valente (2008).

38
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

ção dos direitos, das obrigações e a identidade legal pode ser alterada.
A família adotiva deve cumprir com todas as funções de família, não
só as de subsistência material, mas também permitir espaço para a
reconstrução dos vínculos de filiação e colaborar amplamente na in
ternalização do sentimento de autoestima, chave para o processo de
desenvolvimento de uma personalidade sadia e construtiva.
Devido ao recorte dado ao presente trabalho, não estende
remos a discussão sobre as propostas do acolhimento familiar,
porém ressaltamos que essa possibilidade caracteriza também
uma via de proteção à criança e adolescente vítima de abandono.
Assim como a adoção, essa modalidade de acolhimento familiar
também representa uma resposta às necessidades não satisfeitas
pela família biológica, uma resposta que oferece à criança ou
adolescente vítima de abandono uma possibilidade de ter um
ambiente acolhedor, indispensáveis para o seu desenvolvimento.

2. Pensando família a partir da estrutura sistêmica


A compreensão das singularidades e especificidades dos siste
mas familiares teve como aporte teórico a abordagem estrutural
de Minuchin (1982), que abrange de formas múltiplas o sistema
familiar em seus distintos contextos sociais, culturais, econô
micos e temporais. A referida pluralidade é imprescindível para
marcar a construção de uma nova parentalidade que se institui
com a filiação adotiva.
É necessário salientar que, neste livro, cito dois sistemas fa
miliares diferentes: a família de origem e a família adotiva, to
davia, os dados coletados fazem referência à família adotiva. É
importante ressaltar que a busca da família de origem da criança
adotiva e a construção do seu genograma não foram possíveis,
uma vez que essas informações só eram viáveis com o estudo
aprofundado dos processos que, por sua vez, correm em segre
do de justiça. Porém, entende-se que isso não desqualificou o

39
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

estudo. Nesse sentido, durante todo o percurso de escrita desse


livro estaremos nos reportando à família como um sistema de
interação com outros subsistemas, conforme a teoria estrutural
proposta por Minuchin (1982).
Segundo esse autor a família é o local que propicia as relações
afetivas, bem como cria recursos necessários para o desenvolvimen
to e bem-estar de seus componentes. Este espaço de proteção cria
um ambiente de educação formal e informal, e é nesse espaço social
que são absorvidos os valores éticos e morais e onde se aprofundam
os laços de solidariedade, além, é claro, de se garantir a proteção
integral de seus membros. De acordo com Cerveny (1994), toda
família transmite seu modelo, mesmo aquelas que cuidam muito
para não o fazer. Assim, certos modelos podem passar à geração
seguinte de outra forma ou até pular uma geração. Esses modelos
definem a construção subjetiva de padrões de comportamento.
Quando descrevemos as famílias como possuindo uma estru
tura, queremos indicar algo mais que um mapa de quem perten
ce à família. Estamos nos referindo a padrões de interação recor
rentes e previsíveis. Esses padrões refletem as filiações, tensões e
hierarquias importantes nas sociedades humanas, e têm signifi
cados para o comportamento e os relacionamentos (Minuchin,
1982, Andolfi, 1989).
Esses padrões denominados de transacionais, regulam o com
portamento dos seus integrantes, organizam a hierarquia dentro
da família e definem os caminhos que são utilizados nas suas
decisões. Minuchin (1999, p. 23) aponta que:

os padrões de autoridade são aspectos particularmente im


portantes da organização familiar, eles carregam o potencial
para a harmonia e o conflito e estão sujeitos a ser desafiados à
medida que os membros da família crescem e se modificam.

O autor ainda afirma que quando esses padrões de autoridade


são claros e flexíveis, contribuem para o crescimento de seus mem

40
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

bros. Contudo, quando isso não acontece, a comunicação se torna


confusa e pode propiciar comportamentos inadequados. Isso sig
nifica que quanto mais coeso for o grupo mais fácil a diferenciação
progressiva da individualização de seus membros. Isso acaba por
torná-los menos dependentes em seu funcionamento do sistema
familiar original e, instituindo-os com funções diferentes, em um
novo sistema. Nesse sentido defende que, quanto mais flexível e
adaptável for a família, mais significativa ela se torna
Para Minuchin (1982) a maioria desses padrões transacionais
são particulares e construídos com o tempo, dentro do próprio
ambiente familiar. Quando eles são organizados refletem as regras
implícitas que definem expectativas e limites no ambiente familiar,
denominados como fronteiras nítidas. A abordagem sistêmica en
tende que cada pessoa contribui para a formação de padrões tran
sacionais, mas também é evidente que a personalidade e o compor
tamento são moldados pelo que a família espera e permite.
O autor indica que a nitidez das fronteiras dentro de uma
família é um parâmetro útil para avaliação do funcionamento
familiar. Para ele algumas famílias giram em torno de si mesmas,
o que as torna difusas. Outras desenvolvem fronteiras extrema
mente rígidas. A comunicação através dos subsistemas se torna
difícil e as funções protetoras da família ficam prejudicadas. Estes
dois extremos de funcionamento das fronteiras são chamados de
emaranhamento e desligamento, os quais se referem a um estilo
transacional ou à preferência por um tipo de interação, e não a
uma diferença qualitativa entre funcional e disfuncional.
Nesse sentido, as fronteiras assumem o papel de regular as
interações entre os indivíduos, por meio de regras explícitas ou
implícitas capazes de garantir a diferenciação entre suas partes. Mi
nuchin (1982) explica que as fronteiras protegem a autonomia da
família e dos seus subsistemas, demarcam a hierarquia, o exercício
de autoridade e poder entre seus membros e oferece a justa medida
entre proximidade e afastamento. O autor comenta que, ao mes
mo tempo em que auxilia no processo de diferenciação, a fronteira

41
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

oferece um sentido de pertencimento, estimulando apoio e solida


riedade, criando limites para expressão de conflitos e competições.
Minuchin (1982) ainda aponta que, para a família se manter
viva é necessário que ela mude e se adapte às circunstâncias his
tóricas. Lembra ainda que ela é um sistema sociocultural, aberto,
em contínua transformação, que necessita se reestruturar à me
dida que passa por determinados estágios de desenvolvimento.
Para Minuchin (1982, p. 56) “a família recebe e envia inputs
para e do extra familiar, e se adapta às diferentes exigências dos
estádios de desenvolvimento que enfrenta”.
Andolfi (1989, p. 20) contribui com esse pensamento ao
considerar que

a família é um sistema entre sistemas, e que é essencial à


exploração das relações interpessoais, e das normas que re
gulam a vida dos grupos significativos a que o indivíduo
pertence, para uma compreensão do comportamento dos
membros e para a formulação de intervenções eficazes.

O autor ainda defende a família como um organismo com


plexo e mutável de acordo com a interação com outros sistemas.
Isto significa que as relações interfamiliares são observadas numa
relação dialética com o conjunto das relações sociais. Aponta esse
processo dialético como a dinâmica que promove a continuidade
e o crescimento da família, ao mesmo tempo em que assegura a
diferenciação de seus membros. A necessidade de diferenciação
entendida como a autoexpressão de cada indivíduo funde-se com
a necessidade de coesão e manutenção da unidade no grupo com
o passar do tempo.
Assim, a família está constantemente recebendo influência de
outros subsistemas que permeiam suas relações, que por sua vez
estão intrinsecamente ligados a contextos culturais, sociais, polí
ticos e econômicos. A busca incansável das famílias é nutrir sua
capacidade de autossustentação, transmissão de valores morais,
éticos e o crescimento pessoal de todos os membros. Não diferen

42
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

te do que acontece nas famílias adotivas. E é dentro desse contex


to familiar de adoção e de vinculação que se construiu este estudo.

3. Aproximação teórica com o conceito de vínculo


O significado da palavra vínculo, segundo o dicionário da
língua portuguesa, é tudo que ata, liga ou aperta (Ferreira, 1988).
Tal conceito correlaciona-se com a palavra vincular cujo signi
ficado é tudo aquilo que liga, une ou prende com vínculo. O
ensejo de trazer seus significados nos reporta a uma reflexão sobre
um desejo maior, qual seja, entender os meandros da vinculação
afetiva desenvolvidas durante o processo de adoção.
Falar de vínculo afetivo é falar de um tipo particular de re
lação com outrem. É uma dinâmica em contínuo movimento
que funciona acionada ou movida por fatores instintivos e por
motivações psicológicas. Podemos definir o vínculo como uma
relação particular com o objeto desejado. Esta relação particular
tem como consequência uma conduta mais ou menos fixa com
este objeto (Pichon-Rivière, 1986).
De acordo com Pichon-Rivière, temos dois campos psicológi
cos no vínculo: um interno e outro externo. Sabemos que existem
objetos externos e objetos internos, que influenciam a vinculação
de um indivíduo com outro. É possível estabelecer um vínculo
com um objeto interno e também com um objeto externo.
Podemos dizer que aquilo que mais nos interessa do ponto
de vista psicossocial é o vínculo externo, enquanto que do ponto
de vista da Psiquiatria e da Psicanálise, aquilo que mais interessa
é o vínculo interno, isto é, a forma particular que o eu tem de
se relacionar com a imagem de um objeto colocado dentro do
sujeito. Esse vínculo interno, então, está condicionado a aspetos
externos e visíveis do sujeito.
Não existem relações impessoais, uma vez que o vínculo de
dois se estabelece sempre em função de outros vínculos condicio

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

nados historicamente no sujeito e que, acumulados nele, cons


tituem o que denominamos o inconsciente. O inconsciente21,
portanto, é constituído, segundo a perspectiva de Pichon-Rivière
(1986), por uma série de pautas de conduta acumuladas em re
lações com vínculos e papéis que o sujeito desempenha frente a
determinados sujeitos. Para esse autor, pode-se levar em conta a
ação do meio sobre o indivíduo, bem como a ação do indivíduo
sobre o meio, e isto em uma contínua espiral dialética.
Assim sendo, podemos dizer que uma pessoa reage de um
modo particular frente a um acontecimento na medida em que
esse objeto tem um significado particular para ela. Esse signifi
cado está relacionado com a história particular do sujeito. Não
obstante, poderíamos falar do processo de adoção de outra ma
neira. Nesse contexto, é imprescindível considerar tanto o desejo
particular do adotado como do adotante, a partir de um estudo
prévio dos motivos e condições que incitaram a concretização do
ato em si, levando em consideração a representação particular
e individual de cada pretendente, e por fim entender como a
história pessoal de cada um pode interferir na apreensão e com
preensão do filho adotivo.
Em se tratando de adoção é imprescindível considerar que
as histórias pessoais das crianças e adolescentes adotáveis são sin
gulares, na medida em que são únicas e cheias de significados
expressivos. No caso das crianças e adolescentes, são carregadas
por vivências dolorosas pelo abandono vivido da família de ori
gem, que precisam ser desveladas com cuidado, no convívio di
ário com essa nova família adotiva, por isso a importância em
considerar a gama de relações internas e externas que a criança
traz consigo nesse novo processo de pertencimento. Não passar
por esse processo significa pôr em risco a transposição do vínculo
da família de origem para a família adotiva.
21. Não é propósito desse estudo discutir o conceito de inconsciente, visto que
esta é uma questão extremamente complexa, que poderá ser abordada em outros
trabalhos de ordem psicanalítica.

44
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Dessa forma, compreender a criança que se encontra no pro


cesso de adoção como um todo, interagir com seus processos in
ternos, é de suma importância, visto que a mesma traz consigo
uma história de vida anterior quando é inserida em uma nova
rede de relacionamentos, independentemente da idade em que
seja incluída em uma nova família. Para Winnicott (1999, p. 162):

Até mesmo a raiva pode indicar que há esperança e que,


no momento, a criança é uma unidade, capaz de sentir o
confronto entre o que é concebido e o que realmente é en
contrado no que chamamos de realidade compartilhada.

Partindo dessa concepção e nos reportando à citação de Lispec


tor (1984) “a vida me fez de vez em quando pertencer, como se fos
se para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então
eu soube: pertencer é viver” entendemos que a história de vida, no
caso da criança adotiva, pode atuar como mediadora no que se refe
re à sua sensação de pertencimento e à formação de sua identidade
psicossocial. Corroborando esse raciocínio, Vicente (2000, p. 47
59) considera que toda criança, ao nascer, está inserida em deter
minado território social e geográfico. Este território revela o lugar
ao qual esta criança pertence e à qual comunidade está vinculada,
principalmente vinculada a uma paternidade/maternidade. Desse
forma, podemos dizer que toda criança nasce em uma comunidade
e que esta também definirá sua identidade.
Nesse sentido, pode-se entender que cultura e família inte
ragem reciprocamente. De acordo com Vicente (2000), a histó
ria de vida da criança tem início dentro da história da família,
de sua comunidade e de sua nação. Assim, a criança que viveu
em acolhimento institucional e foi, portanto, afastada da con
vivência familiar e comunitária sofreu uma ruptura no processo
de construção de sua história de vida, e também uma ruptura
nos vínculos afetivos, pois foi afastada de suas raízes culturais e
afetivas. Ao ser adotada, a criança traz lacunas no que se refere

45
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

às suas raízes e precisará de um tempo para se reorganizar e as


similar os novos modelos culturais que lhe serão apresentados
na família que a adotou. Nesta perspectiva compreende-se que
toda relação de vinculação surge da convivência e do respeito, e
não só da herança genética. Entende-se que para a criança ado
tiva a narrativa de sua história de vida atua como um elemento
importante de mediação. Para aquelas que foram afastadas da
convivência familiar, esta narrativa pode amenizar a sobreposição
do coletivo ao individual, durante o período de institucionaliza
ção. E pode, também, facilitar a transição da saída da instituição
para a reintegração no contexto familiar e comunitário. Considerar
todos os vínculos instituídos durante sua infância e adolescência,
sejam eles familiares ou institucionais, é uma tentativa de resgatar
a história individual da criança, processo esse que tende a facilitar
a construção dessa nova filiação em adoção. Para isso entendemos
que para toda boa vinculação, seja ela adotiva ou biológica, é neces
sária a introdução da criança em uma história familiar, da qual ela
necessariamente precisa sentir-se como parte integrante. Todavia,
anteriormente a essa relação de pais e filhos, é imprescindível que os
pais avaliem as expectativas que estão depositando sobre os filhos,
pois estes apresentam naturalmente limitações, sejam elas históricas
ou no seu desenvolvimento etário. Os filhos não devem ser perce
bidos como objeto adquirido para tamponar uma falta, mas como
outro ser do qual advirão gratificações e frustrações. Não cabe nesse
estudo esgotar a discussão do conceito de vínculo. Sua complexida
de requer um estudo mais aprofundado do que o que foi proposto
aqui, nossa tentativa foi buscar evidenciá-lo pela interpretação dos
fragmentos dos discursos dos sujeitos entrevistados.
Assim, nosso objetivo foi compreender o processo de vincu
lação adotiva dentro da dinâmica familiar, com destaque para
os indicadores que contribuíram para a construção do vínculo
de pertencimento entre pais e respectivos filhos adotados e in
dicadores que foram desfavoráveis a esse encontro filial. Nesse
sentido, para a viabilização de uma resposta concreta, buscamos

46
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

através da análise dos discursos e da interpretação de desenhos,


identificar elementos que contribuíram para a construção da
vinculação adotiva.
Durante esse percurso observamos que o abandono e as pri
vações sofridas por essas crianças se expressaram pelo sofrimento
corporal e psíquico. Estes sinais puderam ser observados a partir
do contato que tivemos com os adotados através de seus olhares
assustados, uma fala não dita e mesmo no choro contido. Com
vistas a dar prosseguimento à proposta deste trabalho, trataremos
a seguir dos caminhos percorridos que nos levaram ao acesso aos
sujeitos entrevistados e à efetivação da relação entre a teoria pro
posta e a análise dos discursos.

47
Capítulo 3
O fenômeno da adoção em
um contínuo desvelar-se
1. Análises dos fragmentos dos discursos:
a adoção a partir das falas das famílias e da
expressividade das crianças adotivas
Este capítulo apresenta a análise de fragmentos dos discur
sos obtidos pelas entrevistas com quatro famílias que passaram
pelo processo de adoção, bem como a análise dos desenhos dos
seus respectivos filhos adotados. O objetivo foi compreender os
indicadores positivos e negativos que possibilitaram a vinculação
adotiva a partir da teoria apresentada nos capítulos anteriores.
Para melhor visualização dos quatro casos estudados, segue
Tabela 1.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

50
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

2. Família [1][D] Joana e Isabel


[...] E ela é uma menina inteligentíssima, inteligen
tíssima, mas ela tinha tanta vontade de me fazer so
frer, que era uma coisa impressionante [...]. [F1][D]
(Joana, 2010)

[...] eu não gosto de falar de minha mãe, quando eu


fazia alguma coisa errada ela me colocava pra ficar
escrevendo a mesma frase, muitas vezes [...], meu
irmão não é o problema, o problema é minha mãe
[...]. [F1][D](Isabel, 2010)

Este fragmento refere-se à adoção legal de Isabel22 por Joana,


em 2005, com duração processual de dez meses, sendo a devolu
ção da criança proferida no início de 2010. Ressalta-se que antes
da concretização dessa adoção Isabel morou com outras três famí
lias, as quais não foi possível localizar. Essas mesmas três famílias
após meses de convivência devolveram Isabel a sua mãe biológica.
Vale ressaltar que nenhuma das três detinha guarda ou tutela da
criança. Por esse motivo, será analisada nesse fragmento apenas a
devolução referente ao processo legal entre Joana e Isabel.
Salienta-se que, essa adoção teve caráter intuitus personae. Urge
mencionar que na época que foi efetivada a adoção, ainda não era
pré-requisito a participação dos pretendentes em programas de
preparação, todavia, esta exigência está prevista na Lei 12.010/09.
Joana, 29 anos, solteira, à época da entrevista morava com
sua mãe e seu filho biológico de 1 ano e 3 meses. Isabel, filha de
migrantes que vieram do Belém do Pará para Brasília na expecta
tiva de uma vida melhor. É a segunda filha de um grupo de dois
irmãos, uma menina e um menino.
Foram realizados dois contatos telefônicos e uma visita à residên
cia de Joana, que se mostrou solícita para ser voluntária na pesquisa:

22. Todos os nomes utilizados nos quatro fragmentos foram substituídos por
pseudônimos, visando preservar o anonimato das famílias entrevistas.

51
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

[...] eu me interessei em responder a entrevista porque, na


época que a gente está adotando, a gente não vê nada sobre
alguma pesquisa relacionada à adoção, depois eu procurei
no Google, agora, e vi algumas coisas, mas seria muito im
portante ter mais, por isso eu resolvi colaborar, porque ado
ção todo dia está tendo mais uma. E o que eu percebi é que
meu caso não é isolado, não é isolado [...].

Em nenhum momento, ela manifestou constrangimento ou


relutância em expressar o que aconteceu durante o processo.
Quanto à entrevista com Isabel, “filha” de Joana, salienta-se
que nos dois primeiros contatos pessoais, realizados no Serviço
de Acolhimento, a criança se mostrou arredia e não autorizou a
gravação. Em alguns momentos, dispersou-se com os movimen
tos externos ao ambiente reservado para coleta dos dados. Já na
terceira visita a criança estava mais à vontade, mostrou-se con
centrada nas perguntas e verbalizou de forma clara sobre a con
vivência que teve com a família adotiva. Consideram-se comuns
e frequentes todas essas reações, uma vez que não houve tempo
hábil para que Isabel pudesse desenvolver confiança suficiente e
se sentir confortável com a pesquisadora. Todavia, é importante
observar que todas essas variáveis puderam ser contornadas com
o emprego do recurso da expressividade, pelo qual a criança de
monstrou vivências significativas, instrumento que será descrito
mais adiante. Contudo, antes disso, falar-se-á sobre os motivos
que levaram Joana a adotar Isabel.
Quando adotou Isabel, Joana era solteira, não tinha filho bio
lógico, era recém-formada, estava desempregada e morava com a
sua mãe biológica. Nesse período já apadrinhava Isabel, antes do
seu nascimento, devido à carência financeira e estrutural da família:

[...]. Ela sempre foi minha afilhada, eu a conhecia antes dela


nascer, a busquei no hospital. Como a história da família
dela era muito complicada, eram pessoas muito carentes,
sempre a ajudei a distância [...].

52
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Joana relatou que Isabel foi “dada” a uma família aos três me
ses, passando por outros três lares diferentes, até completar seis
anos de idade, mencionou que isso se deveu ao “difícil compor
tamento apresentado pela criança”, assim, dizia a entrevistada:
“[...] como ela era uma criança muito difícil, as pessoas sempre a
devolviam [...]”. Depois da última devolução, Joana decidiu-se
pela adoção de Isabel. Essa conduta nos sugeriu uma atitude da
mãe altruísta e amedrontada no que tange à culpabilização defe
rida pela mãe biológica de Isabel.

[...] Quando ela voltou pra casa da mãe, esta me pediu para
que eu ficasse com ela, eu não queria, mas a situação da
família era muito complicada, difícil [...], a mãe ficou me
questionando, eu fiquei com medo de me sentir responsabi
lizada se acontecesse alguma coisa com ela e acabei pegando
a Isabel, exigi que fosse adoção legal.

Para Joana, o fato de a família ser “muito carente” e “complica


da” representava uma ameaça a Isabel que necessitava de sua “aju
da”. Joana menciona que se sentiu obrigada a assumir a criança
por conhecer a família e saber da sua situação de desestruturação.
Ressalta-se que pensar os conflitos familiares tendo como
causa a ausência financeira não é uma ideia que perpassou só
a visão de Joana, mas também permeia o imaginário coletivo.
Entende-se que a pobreza material também pode gerar conflitos
e até desestruturar as famílias, todavia, não é esse o único motivo
que as desorganiza. A ausência de políticas públicas para aten
dimento das demandas específicas dessas famílias nas áreas de
saúde, educação e assistência social contribui para o desencadea
mento de tantos outros problemas estruturais.
Essa moral social comove e impulsiona muitas famílias a
buscarem na adoção uma forma de ajudar o próximo, princi
palmente quando se trata de crianças “abandonadas” pelas fa
mílias e pelo Estado. O mito do amor materno impede essas
famílias de examinarem com objetividade e clareza uma rea

53
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

lidade social crônica, carente de uma ação pontual do Estado


para atendimento dessas demandas.
Contribui com esse pensamento a tese de mestrado de Ghi
rardi (2008), quando propõe que esse tipo de ajuda assume um
caráter altruísta, o que gera nessas pessoas certa obrigação de sal
var o próximo do seu destino injusto.
O intuito de “ajudar” as crianças amolda-se à origem delas,
vistas ambas como desvalidas. O motivo alegado é baseado em
seus sentimentos “altruístas”, que a impulsionam a “fazer o bem”.
O sentimento de altruísmo é sustentado pela fantasia onipotente
de poder salvar crianças de um destino marcado por uma origem
degradada23 (Ghirard, 2008, p. 47)
Em uma das falas de Isabel esta aborda sua origem como
uma lembrança dolorida, sua fala foi carregada de melancolia e
tristeza. Ela não soube precisar a idade dos irmãos e mencionou,
durante a conversa, que não se lembrava da fisionomia deles.

[...] meu pai estuprou minha irmã, ele bebia muito, ele está fora
gido da polícia. Minha mãe tentou dar minha irmã para outra
mulher, e para outra, mas as pessoas não quiseram. Minha mãe
nunca tentou dar meu irmão pra ninguém. Não sei se eles es
tão com alguém hoje. Não sei quantos anos eles têm.[...].

Isabel retratou com sua fala uma família violenta, a qual Joa
na nomeou como “complicada”. Todavia, em ambas as falas per
cebemos a urgência de uma intervenção que deveria ter sido via
bilizada na época em que a criança ainda se encontrava morando
com a família biológica, porém em nenhum momento Joana
menciona ter acionado o Conselho Tutelar ou qualquer outro
órgão de garantia dos direitos da criança. O caminho encontrado
para solucionar o sofrimento de Isabel foi sua retirada da família
biológica, a partir de sua adoção.

23. Grifos de Ghirard (2008), que refere-se a Eva Giberti (1992b), a qual utiliza-o
frequentemente para referir-se à origem da criança vista pelos pais adotivos como
“desqualificada”, desvalorizada.

54
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Por outro lado, em outro momento da entrevista, Joana se re


portou a essa mesma família como agressora, mas possível de ser
acessada e assumir novamente as responsabilidades com Isabel, a
qualquer momento.

[...] Porque é o seguinte, o pai dela é drogado mesmo. Rou


ba, é alcoólatra, é tudo mais alguma coisa. A mãe dela deci
diu dar os filhos todos pra ficar com essa bênção maravilho
sa de homem. E deu as crianças e fugiu daqui porque estava
sendo procurado pela polícia. A última vez que os vi foi o
dia que assinamos o papel no juiz. E olha que ela tem meu
telefone, tem meu endereço [...].

Esse discurso remeteu-nos a hipótese de que Joana, mesmo


considerando a família “complicada”, “violenta” e “usuária de
drogas”, também levantou a possibilidade de que esta pudesse
assumir novamente as responsabilidades de pais, o que por um
lado a aliviaria do peso da devolução.
As características negativas do pai biológico de Isabel não fo
ram negadas na fala da mãe adotiva. Isso nos pareceu uma visível
comparação entre a criança e seu genitor. Joana retratou o com
portamento que Isabel assumiu em sua convivência como uma
herança impregnada pela sua origem.
Para ela, a mentira, os roubos e as ameaças são uma “herança
de família” de Isabel, e foram os motivos da devolução.

[...] Ela sempre me roubou, roubava aqui em casa e vendia


na escola [...] e esses objetos que ela rouba – joias –, e não
consegue vender, ela diz que eu bato nela e ela está cansada
desse martírio. [...] Ela começou ameaçar de se machucar
e falar, agora eu quero ver quem vai duvidar, que você me
machuca, então essas coisas começaram a piorar [...] então
ela ameaçou de matar o irmão, disse que a melhor maneira
de matar alguém é com veneno, porque não saía nem san
gue [...] quando ela falou isso eu me arrepiei por inteiro, eu
voltei pra casa paralisada. E falei, meu Deus, agora eu tenho

55
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

que fazer alguma coisa, eu vou de novo à Vara de Infância.


[...] E eu fui assim, muito certa do que eu precisava lá [...] e
aí sugeri que eles abrigassem Isabel.

Por outro lado, observamos a partir da fala da mãe algumas


tentativas de aproximação com a filha, antes da concretização da
devolução. No entanto, o estabelecimento do vínculo de filiação
pareceu não ter se concretizado. Ela mostrou a dificuldade que
tem de reconhecer Isabel como parte integrante de sua família:

[...] E eu falava, Isabel, todo dia é dia de mudar, você tem


chance de mudar, mas mudar não é fácil, mudar é difícil, é
uma luta contra a gente mesmo, mas você pode mudar, mas
se você quiser minha ajuda eu te ajudo, eu só não posso fazer
por você. [...] Muitas vezes eu tentava, chamava-a para minha
cama, pra gente conversar, mas ela nunca se aproximou[...].

Mais uma vez, Ghirardi (2008) traz uma importante contri


buição com seu trabalho, ao falar do respeito, da importância e
da dificuldade que os pais adotivos têm de assimilar a origem da
criança à sua nova realidade vivida com a família adotiva. E ainda
nos sinaliza uma luz para entendermos tanto a criança como a
família que passou pelo processo de filiação:

A experiência psíquica dos pais adotivos porta um impor


tante paradoxo relacionado aos modos como assimilam a
questão das origens da criança: necessária de ser reconhe
cida, porque faz parte da história da criança e, ao mesmo
tempo, um obstáculo a ser ultrapassado e simbolizado. Para
que ocorra o reconhecimento da criança como alteridade
inserida no âmbito do que é familiar, talvez tenhamos que
pensar que, em certa medida, é necessário também poder
“esquecer”. (Ghirard, 2008, p. 49)

Há indícios no discurso de Joana da convicção de que a fi


liação de origem não pode ser substituída pela filiação adotiva,

56
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

sem que haja algum tipo de prejuízo ou desqualificação. E ela


demonstrou que, por mais que faça pela criança, não conseguirá
dela o mesmo afeto que acredita que ela teria pela mãe biológica.
A relação afetiva entre Joana e Isabel nos pareceu não ter sido
consolidada. De um lado, a mãe relatou que a criança não de
senvolveu vínculos nem se adaptou durante esses cinco anos de
convivência, esse discurso perpassa a idealização de uma criança
imaginada e não real:

[...] ela nunca se adaptou, eu sempre pensei que era uma


fase, que as coisas iam melhorar, que ela ia se engajar, só que
ela nunca criou vínculo nenhum com a gente. Ela não gosta
de abraço, ela não gosta de beijo, ela não gosta de nada, ela
não quer estar perto de ninguém [...].

Por outro lado, em momento diferente da entrevista da mãe, Isabel


argumentou que Joana era muito rígida com ela “[...] eu não gosto de
falar de minha mãe. Quando eu fazia alguma coisa de errado, ela me co
locava para escrevendo várias vezes que eu estava errada [...]”. Contudo,
a criança representou essa mãe como figura importante nos desenhos.
Em outro momento, quando foi solicitado a Isabel desenhar
um momento importante e a(s) pessoa(s) que gostaria que esti
vesse presente, ela representou pessoas de sua convivência com a
mãe adotiva, e ainda verbalizou que “gostaria de estar presente
com eles e viajar com eles”. Entretanto, ainda que desejasse estar
perto dessa família adotiva, a criança pareceu não ter desenvolvi
do um vínculo forte com a mesma.

57
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Tal hipótese pode ser levantada pela ausência de cores, a falta


de chão nos pés de toda a família, suspensa no ar. A presença de
alguns membros com sorriso (tio e avó), enquanto o irmão e a
mãe quase não sorriem. Os braços do tio e irmão estão para cima,
enquanto os da avó quase não aparecem, assim como os braços
da mãe que apresentam uma desproporção significativa.
Em outro momento, durante a entrevista com sua mãe ado
tiva, ao reportarmo-nos aos contatos que Isabel mantinha com
sua família materna, esta verbalizou que a mesma família nunca
aceitou a ideia da adoção. Reafirma várias vezes que Isabel nunca
foi aceita como parte integrante do grupo familiar e tenta justi
ficar que isso não lhe importava, pois a decisão foi sua ao adotar
Isabel e não da sua família:

[...] a minha família nunca aceitou Isabel. Não queriam que


eu adotasse então eles nunca a aceitaram. E a gente quando
adota, é a gente que adota, não é a família, ela não tem
nada a ver com isso [...] não consideravam ela da família
como a gente, assim, quando davam um presente, davam
uns R$10,00, não ia ser uma coisa que dariam para os so
brinhos [...] foi uma decisão minha, eu posso decidir para
minha vida, mas eu não posso impor para ninguém [...] ela
não tem vínculo nenhum com a minha mãe [...].

Percebemos nessa fala que o vínculo da aceitação nunca exis


tiu por parte da família extensa, portanto Isabel não conseguiu
desenvolver com essa família extensa o vínculo externo.
Em contrapartida, Isabel, no desenho anterior, incluiu essa
família como significativa no seu processo de pertencimento.
Todavia, por ter vivido o sentimento de não pertença na famí
lia adotiva, reforçou a identificação com as características nega
tivas do pai biológico. Se sua identidade não era reconhecida e
valorizada no contexto da família adotiva, de modo genuíno e
amoroso, ela provavelmente tenha buscado na figura do pai o
sentimento de pertença, mesmo que para isso fosse necessária sua

58
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

identificação com seus comportamentos marginais. Além disso,


o roubo pode ter sido uma forma compensatória de lidar com
a falta de afeto e sentimento de pertença que sentiu nesse novo
contexto familiar, embora o desejasse muito.
Em consonância com essa hipótese temos o pensamento de
Schettini (2009), quando propõe que a criança que é também
adotada pela família extensa se desenvolve melhor, emocional
mente, sem trazer para sua vida diária motivos insignificantes
que podem gerar grandes conflitos, pois “ela preenche adequada
mente as lacunas deixadas pela mudança da sua parentalidade”
(Schettini, 2009, p. 49).
Nesse processo de construção do vínculo, estabelecer os limi
tes na rotina diária pareceu ser um desafio que Joana não conse
guiu transpor com Isabel, talvez porque a afetividade entre mãe
e filha não tenha se concretizado em sua inteireza. Quando a
criança se deparou com uma figura de autoridade, ela se recusou
a aderir às novas regras de convivência.

[...] ela sempre teve muito problema com figura de auto


ridade, ela nunca aceitou eu falar nada, ela sempre pagou
o preço que fosse para fazer o que ela queria, desde muito
pequena [...] sempre cuidei dela, sempre trazia pra casa, le
vava pro médico, para o shopping, antes eu era a dindinha,
levava para o park shopping eu era a engraçada. Eu não
precisava mandar fazer a tarefa de casa, não precisava man
dar tomar banho, ela chegou a passar um mês sem lavar a
cabeça dentro dessa casa, pra você ver o tamanho da pirraça
da menina, e se você fala, finge que não é com ela.

Entendemos aqui que nem a criança, nem a mãe estavam pre


paradas para iniciar a convivência familiar. A mãe por não ter cla
reza da sua motivação para a adoção e a filha por não ter elaborado
o luto dos abandonos sofridos nos outros acolhimentos familiares.
Talvez por isso tenha sido tão difícil para Joana ocupar a po
sição de autoridade. Era desconfortante porque lhe demandava

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

mais tempo e lhe exigia uma maior aproximação emocional com


Isabel, o contrário do que o apadrinhamento lhe exigiu:

[...] me falaram que ela tinha dificuldade com figura de au


toridade, que eu tinha escolhido ser a figura de autoridade
dela e que eu tinha que fazer ela obedecer [...] e uma vez a
psicóloga falou isso pra mim, Joana, o ódio da Isabel não é
de você, e sim a posição que você ocupa na vida dela. Podia
ser eu, podia ser outra pessoa não é específico, foi o que a
psicóloga dela me disse, e aí fiquei pensando. Mas eu sei que
de mim ela não gosta [...].

Para Minuchin (1982), o processo de socialização é ineren


temente conflitante, principalmente na fase da adolescência. À
medida que a criança cresce, ela exige maior comprometimento
emocional dos pais. Para esse autor os pais não podem proteger e
guiar sem, ao mesmo tempo, controlar e reprimir. E os filhos não
podem crescer e se tornarem individualizados sem rejeitar e atacar.
Na relação entre Joana e Isabel identificamos a falta de uma
acomodação mútua, entre ambas. A adaptação à filha exigiu da
mãe maior flexibilidade nas regras e uma maior disposição em
dar credibilidade e autonomia à criança. Para Minuchin (1982, p.
68) “(...) se não há mudança familiar, aparecerá uma configuração
disfuncional, que será repetida cada vez que ocorre um conflito”.
Outro fator estressante que prejudicou a aceitação de Isabel
na família foi a pouca importância dada a sua singularidade histó
rica referente aos abandonos sofridos anteriormente. Essa hipóte
se pode ser reforçada a partir de uma leitura de uma fala da mãe:

[...] ela nunca sofreu espancamento, ela nunca foi estupra


da, ela nunca teve nada. O que ela teve pode ser as rejeições
das famílias e da mãe, eu sei que dói, mas eu não acho que
seja só isso que move Isabel, eu não acho que só isso faz ela
sentir raiva de mim [...].

60
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Por outro lado, Isabel expressou pelo desenho seu desejo de


estar com a família adotiva, e o sonho de viajar com a mãe. Este
projeto foi idealizado junto à mãe adotiva e interrompido com
o nascimento do irmão, mas para Isabel ele ainda estava vivo,
suscetível de ser realizado, mesmo morando no serviço de acolhi
mento, longe de sua mãe adotiva.

O nascimento do filho foi visto por Joana como um intensi


ficador do conflito entre ela e Isabel, talvez porque a vinculação
de filiação ainda não estivesse consolidada em sua inteireza. “[...]
Com o nascimento do irmão a coisa piorou muito porque ela é
extremamente agressiva [...]”. A angústia da obrigação da ado
ção, da impotência, da falta de diálogo entre mãe e filha e do
apoio da família extensa motivaram a devolução de Isabel, o que
para a mãe surgiu como uma possibilidade que interrompia seu
sofrimento. “[...] Só eu sei o que eu vivo, eu vivo em um inferno
há cinco anos, um inferno literalmente. O pior lugar da minha
vida era essa casa. A minha vida estava uma zona. [...]”.
Entregar a filha na VIJ-DF foi o caminho que Joana encon
trou para aliviar sua angústia. “[...] Então eu não tinha como
trabalhar, eu não tinha como fazer nada, a minha vida estava
atada, porque eu não tinha como sair de casa, eu tinha que ficar
plantada o dia inteiro dentro de casa [...]”.
A mãe sugeriu que a culpa do fracasso da adoção foi da filha.
“[...] E ela é uma menina inteligentíssima, inteligentíssima, mas

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

ela tinha tanta vontade de me fazer sofrer, que era uma coisa im
pressionante [...] alguma coisa ela tem [...]”.
Em outro momento diferente da entrevista com a mãe, so
licitamos a Isabel que fizesse o desenho do que desejava para o
seu futuro. Ela expressou verbalmente e depois pelo desenho, seu
desejo de cuidar de crianças espertas.

Mais uma vez observamos que Isabel não coloriu os dese


nhos, a menina representada por ela, não tem o braço esquerdo.
Apesar de as pessoas estarem próximas, o desenho não propôs um
elo entre os membros, sugerindo-nos refletir sobre a dificuldade
do vínculo. E, por fim, observamos que ela não colocou chão
sob os pés. Para Hammer (1991), os sujeitos cujos desenhos são
colocados na parte de baixo da página parecem estar mais firme
mente enraizados, apesar de ocasionalmente deprimidos e com
atitudes de derrota.

Quanto mais abaixo o ponto médio do desenho estiver em


relação ao ponto médio da página, maior a probabilidade de
que o sujeito se sinta inseguro e inadequado e que este sen
timento esteja produzindo uma depressão no humor, mas
também que o sujeito esteja ligado à realidade ou orientado
para o concreto. (Hammer, 1991, p. 51)

62
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Ao mesmo tempo em que seu desenho representou o desejo


de cuidar de crianças, parece-nos que inconscientemente trouxe
à tona seu desejo de ser cuidada. Talvez a criança quisesse lembrar
aqui da mãe adotiva. Na figura, ela não representou um cuidador
homem, apenas a figura feminina. Outro detalhe interessante é
que Isabel desenhou um menino e uma menina, aqui talvez qui
sesse trazer a presença do irmão adotivo, que permaneceu com
a mãe, e a vontade que ainda mantinha de ser cuidada pela mãe
adotiva junto a esse irmão.
Não podíamos deixar de nos reportar ao primeiro desenho so
licitado à criança, no qual se pediu à Isabel que representasse sua
imagem e ela desenhou uma menina no centro da folha. Percebemos
aqui braços rígidos, um dos pés sobre o chão, o outro no ar, talvez
retratando a insegurança quanto ao seu futuro. Todavia, é o único
desenho que coloriu, e que a criança representada parece estar feliz.
No entanto, o que nos interessou foi a cor utilizada pela crian
ça no desenho. Observamos que Isabel coloriu de rosa o coração,
essa cor pode representar o afeto e, ao mesmo tempo, ferida e dor.
Ela expressou, pela grafia, várias ramificações saindo do coração,
isso também nos sugeriu o sentimento de ressentimento.

Ao contrário do que observamos nas falas de Joana, Isabel


demonstrou pela expressividade dos seus desenhos dispor de afe
tividade, que pelas cores utilizadas e a localização dos pontos nos

63
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

possibilita hipotetizar que a criança ainda está buscando seguran


ça na relação filial com toda a família, o sentimento de sofrimento
aparece no detalhe da cor do coração. Além disso, o desenho dá
indício de que a criança está olhando para o futuro, ainda tem um
coração com vontade de se enraizar e um sol que sugere confiança
na vida. A criança do desenho está sorrindo e olhando para frente,
o que nos sugere hipotetizar que tem perspectivas boas de futuro,
mesmo que tenha presente em sua vida uma história de dor.
Antecipar o fracasso, nesse processo de adoção, seria inco
erente, pois seria culpabilizar exclusivamente mãe e filha, pela
devolução. Para Schettini (2009, p. 40) “quando o outro se diz
impotente ele também está dizendo que é impotente para mos
trar o que pode e ninguém vê”. Tanto a mãe pareceu buscar um
caminho – “[...] O que eu busco agora que ela está no abrigo é
primeiro tratamento, pra eu saber o que ela tem [...] tudo é mui
to lento, tudo muito difícil [...]” – quanto a filha, quando nos
indicou com seus desenhos um pedido de ajuda.
Isso nos fez refletir sobre a necessidade de direcionar algumas
ações à criança, como: acolhimento de sua dor, de suas incer
tezas quanto ao futuro, acolhimento de suas repetidas histórias
de devolução. Talvez essa devolução possa ser um desafio e uma
proposta à ressignificação tanto da mãe quanto da filha, uma
proposta a um novo nascimento, onde Joana possa encontrar um
espaço no serviço de acolhimento ou em uma terapia com a filha,
para refletir sobre os indicadores que levaram à devolução.

3. Família [2][D]Janete e Cláudia


[...] você quer vir? Quer ter uma mãe? Quer ter uma
casa? Quer comida? Quer ir trabalhar? Quer vir es
tudar? Então eu posso oferecer isso pra ela, ela não
pode me oferecer nada, ela é uma pobre coitada [...]
F[2][D]. (Janete, 2010)

64
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

[...] O que eu queria é que tudo na minha vida pudes


se dar certo, eu pudesse ainda ter essa família, essa fa
mília que me adotou. O que sonho pro meu futuro é
ter minha casa, meu carro, meu marido, meus filhos,
penso fazer uma faculdade, me formar. É o que eu
sempre quis e ainda quero. [...] mas coisa da vida as
sim sabe me impediram de que eu pudesse fazer isso,
quando eu brigava com ela eu não estudava, fiquei al
guns anos, sem estudar [...]. F[2][D] (Cláudia, 2010)

A análise destes fragmentos expressivos no discurso refere-se à


devolução de Cláudia, ocorrida no início de 2010, cuja guarda pro
visória data de 1993. Ressaltamos que durante esse período o pro
cesso de adoção não foi concluído. Nessa família foram identificadas
três outras devoluções, que não serão analisadas aqui, por não terem
sido impetradas na Vara da Infância. Essas devoluções dizem res
peito a dois filhos adotivos de Janete, um de 21 e outro de 22 anos,
os quais se encontram morando em um abrigo para deficientes. O
terceiro, com 17 anos, também reside em Brasília, porém em outro
local, e suas despesas são, ainda hoje, custeadas pela mãe adotiva.
Janete, mãe adotiva, tem 71 anos, é separada há 15 anos, é
mãe biológica de dois filhos do sexo masculino, hoje com 40 e
42 anos respectivamente, e mãe adotiva legalmente de 17 outras
crianças. À época da entrevista, residiam em sua companhia dois
de seus filhos adotivos de 17 anos, sendo um deles irmão bioló
gico de Claudia. Os outros dois moravam em um Abrigo para
pessoas com necessidades especiais em Brasília, outro filho de 17
anos, morava em residência custeada por Janete, e os outros onze
constituíram famílias independentes.
Cláudia, com 18 anos, é a mais velha de seis irmãos biológi
cos, sendo duas irmãs, de 14 e 3 anos e três irmãos de 8, 13 e 17
anos, sendo que o último mora com Janete. À época da entrevista
a adolescente residia com os pais biológicos e trabalhava como
atendente em uma rede de fast food.
Janete foi contatada duas vezes ao telefone para agendamen
to de entrevista. Para a realização da pesquisa, visitamos em sua

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

residência. Nessa, ela mostrou-se bastante solícita ao nos receber,


respondeu com presteza a todas as questões referentes à adoção.
Em outro momento foram realizados contatos telefônicos
com Cláudia e agendamento para entrevista em seu local de tra
balho. No início esta se mostrou inibida, mas à medida que con
versávamos interagiu de modo mais espontâneo, todavia preferiu
não desenhar. Cabe salientar que se optou por nomear os discur
sos como fragmentos por tratar-se da análise de alguns trechos das
entrevistas e não do todo. Como foi opção da adolescente não de
senhar, a obtenção de informações foi guiada pelas perguntas que
estavam no instrumental dos desenhos, as quais foram adaptadas,
conforme a necessidade de obtenção de informação.
A adoção de Cláudia pareceu ser amparada por um desejo
altruísta da mãe adotiva, não singular, misturado a outras 17
adoções feitas por ela:

[...] as coisas eram mais fáceis. Minhas amigas faziam as


fichas e aí pegávamos pra adotar. Na época tinha muitos
bebês no antigo eu acho que consegui umas 50 crianças
para minhas amigas adotarem, fazíamos primeiro colocação
familiar e depois pedíamos adoção [...].

Em dezembro de 1993, Janete mencionou ter acolhido para


passar o natal em sua companhia seis crianças, incluindo Cláudia
e seu irmão, hoje com 17 anos, o qual ainda mora com a mãe ado
tiva. “[...] Então, nesse dia eu tirei seis pra passar o natal comigo.
Era muito conhecida, tinha recebido vários títulos, foi fácil pra
mim. E aí peguei os seis e não devolvi mais [...]”. Em vários mo
mentos da conversa Janete pareceu expressar um sentimento de
salvar o “outro” da “condenação” ao abandono, permeado talvez
pelo desejo inconsciente de superação dos seus limites e, talvez,
por reação a um abandono afetivo sofrido por seus pais, mas não
foi nossa intenção nesse livro trabalhar esses desejos inconscientes.
Dividir as atenções era complicado, as idades eram próximas
e Janete admitiu sua limitação entre ter que dividir-se entre seu
trabalho e o tempo de estar com os filhos.

66
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

[...] eu vou ser bem sincera, eu pegava mais no colo o irmão


dela e o outro pequeno, porque eles tinham um mês e meio
e o outro de dois meses de vida. Eu que ensinei a andar,
falar. [...] Eu trabalhava o dia inteiro e tinha quatro empre
gadas [...] fui mulher de ganhar muito dinheiro, criei vinte
filhos sozinha [...].

Janete afirma que todos os filhos adotivos foram criados


igualmente
[...] Andava bonitinha, sempre estudou em escolas boas,
Kombi buscava e trazia [...] então eles sempre tiveram do
bom e do melhor, ela foi criada como normalmente todos
eles. Eu acho que com muito amor, muito carinho, não fiz
muito a vontade dela [...].

No entanto, em outro momento durante a entrevista com Cláu


dia esta verbalizou que havia distinção quanto a sua vivência com a
mãe adotiva “[...] as coisas que acontecia dentro da casa de errado,
ela já ficava nervosa, já brigava comigo, eu não aceitava [...]”.
Evidenciamos nesse discurso o conceito da filha idealizada,
o qual aprofundaremos com mais clareza na zona de sentido do
Capítulo 5:

[...] eu quero que ela venha, quero enfeitar, pintar o cabelo


dela, comprar jóias, comprar sapato, comprar roupas, e ela
não quer nada disso, um dia vem, dorme comigo na minha
cama, no outro dia quando vou procurar, desculpa eu falar
(Janete chora), mas a filha da puta, sumiu e se eu falar qual
quer coisa [...].

Janete vê na filha uma profunda ingratidão:

[...] Aí eles me chamaram e eu falei que bati nela mesmo, por


que ela tinha me mordido, tem a marca até hoje aqui no meu
braço. Aí eu pensei, estou muito velha pra apanhar de filhos.

Nesses quinze anos de convivência, Janete não efetivou o


processo de adoção de Cláudia, mencionou ter como docu

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

mento legal a guarda definitiva, juridicamente denominada


como guarda provisória:

[...] Não tinha registrado os dois, nem Cláudia nem seu


irmão, porque o pai me extorquia muito dinheiro [...] foi
me sugerido pelo juizado que eu não fizesse a adoção plena,
até que eles crescessem e manifestassem se queriam ficar co
migo, mas eu já tinha pedido a guarda definitiva.

Essa situação de indefinição no processo legal de Cláudia


pode ter sido o fator que desencadeou sentimentos de inseguran
ça na adolescente. Percebemos na fala de Cláudia que sua inse
gurança motivou sua rebeldia: “[...] quando eu brigava com ela
eu não estudava, fiquei alguns anos, sem estudar [...]”. Porém,
esse sentimento parece não ter anulado seus planos futuros. “[...]
O tempo que eu estava com ela, sempre na minha cabeça ficava
esses pensamentos, terminar meus estudos, fazer uma faculdade.”
Por um lado, a mãe adotiva pareceu não dar importância à
efetivação do processo legal, o qual se estendeu durante toda a con
vivência com a filha adotiva. O conflito e a insegurança do vínculo
nessa convivência se expressa na agressão física da mãe adotiva para
com a filha. Por outro lado, a adolescente demonstrou ter dificul
dade em verbalizar seu sofrimento quanto a sua insegurança na fa
mília adotiva. A forma encontrada para representar suas incertezas
foi através da rebeldia que se intensificou na adolescência.
Os conflitos entre mãe e filha tiveram mais peso na adoles
cência de Cláudia, mas Janete argumenta que o que realmente
incitou a devolução de Janete foi o uso de drogas:

[...] quando eu sei que usou droga eu fico doida, aí eu pego


um cabo de vassouras, aí eu bato, eu bato mesmo [...] quem
usa drogas é muito difícil, ela usa crack, e a gente que nunca
teve isso na vida da gente, não entende [...].

Ao mesmo tempo contradiz seu argumento ao revelar que


seus dois filhos biológicos são usuários de drogas:

68
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

[...] meus dois filhos biológicos usaram muita droga, por


que eu dei de tudo, dei carrão, vivia na sociedade com filho
de ministro, fazendo pega por ali no aeroporto [...], Meus
dois verdadeiros24 de vez em quando ainda fumam, um tem
40 anos o outro 42.

Ao perguntarmos a Cláudia sobre o uso de drogas durante


a convivência com a mãe adotiva ela nega e ainda afirma ter se
envolvido com drogas após ter sido encaminhada para o serviço
de acolhimento, onde se sentiu ameaçada e desprotegida.

[...] Desde o primeiro dia que fui encaminhada para o Abri


go, foi ruim, fiquei meio constrangida com tudo o que esta
va acontecendo, fiquei assustada no dia que cheguei lá [...]
eu fui pra o abrigo eu fiquei revoltada da vida, fiquei tão
revoltada que mexi com umas coisas, drogas, que foi difícil
eu ter saído, foi muito difícil [...].

Tais falas sugeriram a nós a hipótese de que a droga foi um


dos motivos que culminaram na devolução, todavia a falta de
vinculação também.
A fala anterior da mãe: “meus dois verdadeiros”, levou-nos
a refletir sobre a distinção que fazia entre os filhos biológicos
e filhos adotivos, e como isso influenciava na convivência com
Cláudia. Schettini (2009) nos aponta que enquanto ocorrer a
separação entre os filhos biológicos e os filhos adotivos sempre
haverá problemas na efetivação da filiação:

Se persistir em nossa consciência, ou mesmo reprimido no


inconsciente o sentimento de que o filho adotado é “como
se fosse filho”, ainda estaremos longe da verdadeira filiação.
Não existe a condição de mais ou menos filho. A filiação só
existe na sua inteireza. (Schettini, 2009, 28)

24. Grifos nossos.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Corroborando essa ideia, Hamad (2010, p. 60) sugere-nos


que “enquanto os pais afirmarem que “é porque é uma criança
adotiva”, a adoção permanece problemática”.
Para Cláudia, a convivência com Janete sempre foi permeada
pelo “fantasma” da sua aceitação, cercada de histórias pessoais
mal resolvidas da mãe:

[...] ela sempre foi uma boa pessoa, uma boa mãe, mas era
muito difícil dela me compreender e eu compreender ela.
Era difícil porque ela tinha o jeito dela [...] o que ela passou,
não sei se foi o que ela passou com os pais dela, pra ela ser
daquele jeito que ela sempre foi [...].

Essa hipótese indicava a influência que a história pessoal de


Janete, permeada pelo “abandono afetivo” de seus pais biológi
cos, tinha na convivência com a filha.
Tal hipótese é reafirmada pela teoria de Levinzon (2004,
p.48), quando argumenta que:

[...] o desejo e a necessidade de acolher um “órfão” neces


sitado é a forma particular que algumas pessoas encontram
em reescrever sua história pessoal de muita carência e senti
mento de abandono.

Corrobora essa hipótese a fala de Janete no que tange a rigi


dez projetada na criação dos seus filhos:

[...] na minha época eu tinha que tirar 100 em todas as ma


térias, senão o pai pegava uma cinta e me enchia de porrada,
e nunca fiquei reprovada, sempre fui a primeira aluna, eu e
todos os meus irmãos, e a gente era muito pobre, puxava
água de poço, cozinhava em fogão de lenha, eu tinha que
passar o terno branco do meu pai, e era de linho, tinha que
engomar, eu bordava divinamente bem, eu costurava e es
tudava, a gente não respondia pó meu pai, era sempre “sim
Senhor, sim Senhora”, mãe, dá licença. Nunca abri uma ga

70
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

veta de mãe, e eu tinha psicose que se tivesse um pingo de


água na pia da cozinha, enquanto eu não me enxugava não
ia dormir, e tudo tinha que ter cheirinho [...].

A rigidez apareceu na fala de Cláudia como ameaça a uma


convivência saudável:

[...] quando a gente vai entrando em uma fase é mais compli


cado, porque ela tem a cabeça dela, os pensamentos dela e eu
tenho os meus e ficava difícil compreender ela, de tudo que
ela falava, de tudo que ela fazia, do jeito que ela era rígida [...].

Tal hipótese nos leva para a reflexão sobre o conceito de famí


lias rígidas discutido na teoria sistêmica, em que cada indivíduo
é visto como um subsistema. A tendência dessas famílias rígidas
é compartilhar muito pouco e, portanto, ter pouco em comum,
ter um exagerado sentimento de independência, uma ausência de
sentimentos de lealdade e de pertença, não procurar ajuda quan
do necessário, salientar que o que afeta um membro não está
registrado por outros e ter baixo nível de ajuda e apoio mútuo.
São famílias que são difíceis de alterar, em qualquer momento, e
de ter uma clareza de papéis, havendo também uma má comuni
cação. Essas características podem ser observadas na convivência
que Cláudia descreve com Janete.
Cláudia mencionou em sua fala se sentir como “bode
expiatório”25, responsabilizada por todos os problemas que acon
teciam na casa. A falta de confiança na adolescente também era
um indicativo de um não pertencimento àquela família, pois per
tencimento envolve aceitação. Ela tem clareza de que voltar a
morar com Janete não é a solução para resolver os problemas:

[...] Ela complicava muito as coisas. Ela sempre botava coisa


além do que acontecia, ela botava na cabeça que era daquele

25. Grifos nossos.

71
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

jeito, dizia: Porque você fez isso, porque você fez aquilo,
sendo que eu não tinha feito. Aí ela ficava na cabeça dela
que eu tinha feito, que tinha sido eu, a culpada sempre era
eu. [...] se eu tivesse que mudar alguma coisa, voltar atrás
seria difícil, porque meus pensamentos já são outros, os dela
também, e as coisas mudam, muitas vezes ela já pediu pra
mim voltar, pra ficar com ela que ela ia tentar me compre
ender, mas nunca deu certo [...].

Durante a entrevista, na maior parte do tempo, Cláudia se


mostrou decidida em não retornar à convivência com a mãe:

[...] aí eu tomei uma decisão que também não ia mais morar


com ela. Todas as vezes ela ia lá me visitar, e me chamava pra
passar os finais de semana, etipo eu ficava naquela de não ir mes
mo, porque eu sabia como ia sermeu relacionamento com ela na
casa, e ela ia começar com as criticações dela, e não ia dar certo.

Em outros momentos, demonstrou ambivalência em sua de


cisão, o que para nós refletiu um desejo em resgatar essa família,
para uma nova vivência:

[...] o que eu queria é que tudo na minha vida pudesse dar cer
to, eu pudesse ainda ter essa família, essa família que me ado
tou [...] às vezes bate aquela saudade (chora), mas a saudade é
por conta da convivência que vivi com ela e com meus irmãos.

Ao perguntarmos sobre quem seriam as pessoas mais importan


tes que gostaria que estivessem presentes nas suas conquistas pes
soais, Cláudia reportou-se aos seus irmãos biológicos como sendo
pessoas significativas em sua vida: “[...] só meu irmão e meus outros
cinco irmãos que moram com meu pai, que eu amo muito [...]”.
Reforçou a importância dada ao vínculo desenvolvido com o irmão
biológico que continua morando com Janete: “[...] ele é meu irmão
de sangue. Não posso perder meu vínculo com ele [...]”. Fica expli
cito em sua fala que o que lhe impedia em continuar os contatos

72
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

com esse irmão era a elaboração da dor da rejeição que ainda estava
muito presente: “[...] esse trabalho meu complicou tudo pra ir lá,
mas ele não me impede não, é questão de tempo pra mim, eu estava
dando um tempo, mas eu vou tentar ir lá, eu vou lá visitar eles.”
Entretanto, quando se viu longe dessa família, Cláudia pro
pôs uma mudança real e significativa em sua vida: “[...] O que
sonho pro meu futuro é ter minha casa, meu carro, meu marido,
meus filhos, penso fazer uma faculdade, me formar. É o que eu
sempre quis e ainda quero.” Seu desejo pareceu somar-se à neces
sidade de mostrar que era capaz de superar as dificuldades que
passou: “[...] vou seguindo minha vida [...] mas a gente tem que
está aí, firme e forte, agradecendo a Deus.”
Em outro momento, durante a entrevista com a mãe, esta
se mostrou comovida quando mencionou a vontade de acolher
novamente a filha. A mãe falou muito do perdão, remetendo-nos
à hipótese de que este ato assumiria o poder de subverter o outro,
qual seja, a devolução:

[...] eu estou disposta, porque eu sou muito católica, eu


sou muito de pedir perdão, Deus fala mais alto, todo dia
na hora que eu estou louvando a Deus (Janete chora), aí
Deus diz perdoa [...].

O sentimento de perdão traduzia seu desejo de ser reconhe


cida como uma pessoa que foi importante para “salvar” Cláudia
do abandono e da rejeição sofrida anteriormente, todavia longe
da efetivação de uma vinculação de pertencimento:

[...] você quer vir? Quer ter uma mãe? Quer ter uma casa?
Quer comida? Quer ir trabalhar? Quer vir estudar? Então eu
posso oferecer isso pra ela, ela não pode me oferecer nada,
ela é uma pobre coitada [...] eu não preciso dela pra nada.

Esse distanciamento que Janete trouxe com sua afirmação de


ter tudo e não precisar da filha para nada evidencia um sentimen

73
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

to de dor manifestado pela distância afetiva durante e após a con


vivência com Cláudia. A falta de vinculação e afeto nessa relação
foi expressa em alguns momentos pela agressão física e verbal da
mãe adotiva para com a filha. Para Schettini (2009, p. 95) essa
dor “é acolhimento que, muitas vezes, se transforma em recolhi
mento, quando não, em algo mais angustiante: encolhimento”.
Veremos na análise dos dois fragmentos a seguir um novo
direcionamento da vinculação afetiva entre os pais e seus respec
tivos filhos adotivos, em que as famílias conseguiram superar os
desafios e emblemas que o contexto lhes impôs.

4. Família [3][AP] Débora, Vilmar e Guilherme


[...] vínculo não se cria no momento que acolhemos,
esse momento é o início, até porque entendo que esse
momento tem que ter, porque as pessoas têm que
ter responsabilidades pra assumir uma criança, mas
o vínculo é uma coisa que se cria ao longo da vida,
ao longo dos anos. (...) É igual quando você casa, são
duas pessoas diferentes que vivem na mesma casa, que
por mais que namorem por muito tempo, quando ca
sam e vivem no mesmo lugar, vão ver as manias do
outro, tem que se adaptar. F[3][AP] (Débora, 2010)

Este fragmento refere-se à adoção legal de Guilherme pelo


casal Débora e Vilmar, ocorrida no início de 2005, com duração
processual de um ano.
Débora e Vilmar são casados há mais de 20 anos, são pais bio
lógicos de Leila de 16 anos, Gabriel que é falecido, e pais adotivos
de Guilherme. Este tem 10 anos, foi adotado com 5 anos. É filho
biológico de pais separados, irmão biológico de Júlia, onze anos,
também adotada por outra família, que será analisada no próximo
fragmento. Salientamos que não foi possível obter informações
complementares sobre os pais biológicos de Guilherme.

74
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Foram realizados dois contatos telefônicos para entrevista e


uma visita à residência. Durante todos os contatos o casal mos
trou-se receptivo e acessível para falar sobre a adoção. A conversa
com Guilherme aconteceu em sua residência em momento dife
rente que a dos pais, porém no mesmo dia. Guilherme brincou e
foi muito espontâneo, não se mostrou inibido em gravar a con
versa. Sua irmã não foi entrevistada, devido ao enfoque dado ao
objeto de estudo. Há de se considerar que o material colhido foi
suficiente para a análise prevista, qual seja, o processo de vincula
ção da criança com seus pais adotivos.
A adoção surgiu de um desejo materno e paterno que foi
pensado e discutido entre o casal antes do acolhimento da crian
ça. De acordo com Vilmar, pai adotivo:

[...] desde o começo compartilhávamos essa vontade [...]


nossa ideia sempre foi ter três filhos, dois biológicos e um
adotivo [...] como papai do céu não quis providenciar outro
neném biológico, partimos pra adoção.

Observamos também que este desejo foi motivado pelo sen


timento de altruísmo, principalmente do pai, que morou em
uma instituição de acolhimento por doze anos: “[...] eu sempre
tive essa ideia desde pequeno, porque eu vivi a realidade do Gui
lherme, nosso filho, fui morar com minha mãe a partir dos doze
anos, sempre morei em orfanato”.
Débora e Vilmar cultivaram a ideia de ter dois filhos biológi
cos e um adotivo, durante os anos de convivência conjugal. Seu
primeiro filho tinha necessidades especiais, faleceu com 13 anos,
no sexto mês em que Guilherme já se encontrava nessa família.
O desejo inicial do casal era pela adoção de um bebê, explicam
que a mudança do perfil foi impulsionada pela demora na fila de
espera na Vara: “[...] a gente começou o perfil de um bebezinho,
depois fomos subindo a faixa etária pra cinco anos, por conta da
demora”. O casal demonstrou sentimentos de ansiedade quanto

75
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

à espera pelo filho: “[...]foram nove meses de espera, uma ges


tação [...]”, mas em nenhum momento reportaram isso como
prejudicial na vinculação com Guilherme.
Durante a entrevista os pais manifestaram muita tristeza
de não terem conhecido Guilherme quando bebê, na busca de
poupá-lo de vivências inadequadas. Percebemos aqui um desejo
imenso da família em reverter à situação que a criança vivenciou
na Instituição. Essa fantasia é vivenciada por muitos casais e pes
soas que passam pelo processo de adoção. Para Vilmar: “[...] a
única coisa de errado é ele não ter nascido da barriga, e não ter
cuidado dele desde neném, é como se tivéssemos abandonado e
tivéssemos ido buscar depois”. A mãe argumentou que ter conhe
cido Guilherme antes o teria poupado de sofrimento:

[...] é uma culpa que não existe, mas eu penso porque tudo
não poderia ter sido diferente. Eu queria tanto ter conheci
do ele menor, ter poupado ele de sofrimento ruim que ele
deve ter sofrido.

Durante os seis primeiros meses, Débora e Vilmar relataram


que a adaptação foi tranquila. Para eles as dificuldades começa
ram com o falecimento do filho mais velho. A mãe argumentou
que foi muita mudança para pouco tempo de assimilação “[...]
na época que tivemos a crise foi seis meses depois que Guilherme
estava aqui. De pensar em devolver mesmo, de chegar ao ponto
de ir à Vara da Infância e pedir a devolução dele”. Para ela a maior
dificuldade foi perder o filho e adaptar-se se ao estranho, “[...]
seis meses a gente ainda estava na adaptação, estávamos apren
dendo ainda [...]. Então teve isso, além de ter que me adaptar
com o Guilherme, tive que me adaptar com a falta de Gabriel”.
Percebemos na fala da mãe uma fantasia e medo de se apegar a
Guilherme com receio de trair o primeiro filho que faleceu.
Dois momentos difíceis: a chegada do “estranho” e a perda
de um filho muito querido:

76
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

[...] eu já tinha um histórico de depressão, com a morte dele


eu fiquei mais deprimida, muito, só queria dormir, não que
ria levantar, fiquei muito ruim mesmo [...] Guilherme não
dava espaço, ele queria atenção a qualquer custo, ele não me
deixava sossegada, não me deixava dormir [...] o Guilherme
me tirou muito esse meu momento, na época eu pensava isso.

Para o pai essa transição foi muito difícil também:

[...] o que aconteceu é que foi uma coincidência muito infe


liz, ocorreu tudo muito próximo, porque seis meses parece
muita coisa, mas não é, pra quem viveu cinco anos em um
abrigo, pra gente que nunca vivenciou isso, seis meses a gen
te ainda estava na adaptação, estávamos aprendendo ainda.

Na época o casal procurou o setor de adoção na Vara da In


fância no intuito de devolver Guilherme, receberam uma orien
tação para esperarem por um tempo até que a dor da perda se
dissipasse. Foram então encaminhados para atendimento no
Programa do Compp (Centro de Orientação Médico Psicope
dagógico), filiado ao Órgão da Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal, que presta atendimento multi e interdisciplinar
em Saúde Mental às crianças e adolescentes do DF e entorno.
A família mencionou ter participado de três atendimentos, ar
gumentaram que o programa não correspondia às suas expectativas.
Participaram também de algumas reuniões do Projeto Aconchego,
porém não deram continuidade, disseram que o espaço para terapia
era interessante, todavia argumentaram que o tempo da escuta era
insuficiente. Durante esse período de luto a família buscou ajuda
na Igreja e na família extensa, reorganizou-se e gradativamente Gui
lherme foi conquistando seu espaço no núcleo familiar.
Mesmo assim, observamos que a elaboração do luto pelo filho
falecido ainda está sendo processada por toda a família. Os dese
nhos que Guilherme representou trouxeram uma constante presen
ça do irmão. Isso nos indicou a importância que Gabriel teve para

77
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Guilherme, tanto que quando perguntamos a ele o que desejava


para o seu presente ele desenhou seu irmão na figura de um anjo.

Hipotetizamos, a partir dessa representação, a busca de um


protetor na figura do irmão. Talvez, para Guilherme, o irmão re
presentasse uma proteção. Mas de que ou ou de quem Guilherme
queria ser protegido? Trabalhamos essa questão na terceira figura.
Observamos também a desproporção do tamanho da cabeça em
relação ao corpo e nos perguntamos o que essa desproporção sig
nificaria? Talvez o vazio do contato que não poderia mais ter com
esse irmão. Porém, na maioria dos desenhos Guilherme construiu
a figura humana desproporcional ao corpo, isso nos indicou que
não é só a falta do irmão que foi representada pelo vazio, existiram
outros indicadores que trabalharemos mais adiante.
Por outro lado, a centralidade do desenho e o colorido nos
chamaram a atenção, remetendo-nos às proposições de Van Kol
ch (1984 apud Souza, 2007, p. 75), o qual tece a teoria de que
o desenho bem centralizado também confirma o ajustamento ao
ambiente, aceitando e submetendo-se a ele.
Essa proposição teórica pode ser confirmada pela fala do pai,
quando diz que:

[...] a adaptação foi muito por ele, essa perda nossa foi uma
perda irreparável, você pode brigar com o Guilherme, danar
com ele, que daqui a dois segundos ele já está com uma carinha

78
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

boa, abraçando e beijando. Ele é muito alegre, ele encheu a


casa, se fosse diferente não seríamos a família que somos hoje.

Guilherme pareceu estar bem integrado à família adotiva,


mas demonstrou pelo desenho a necessidade da busca pela sua
origem, que será tratada mais adiante.
A família adotiva é retratada por Guilherme como sendo muito
importante. Essa afirmação pode ser confirmada no desenho abaixo.
Solicitamos à criança que representasse onde mora e que incluísse
as pessoas de que gosta. Então ele representou sua família adotiva.

Observamos que a casa representada tem chão, mas a família


encontra-se suspensa no ar. Guilherme nomeou todos os mem
bros, o terceiro componente familiar ele diz ser um amiguinho
da escola, mas observamos que as características representadas
são de uma criança com traços de morte.
Talvez inconscientemente Guilherme ilustre com o desenho
a sua ligação com o irmão falecido, expressando o seu desejo
de que ele estivesse ainda presente nessa família. Nesse desenho,
Guilherme fez a seguinte pergunta: “Como se escreve mãe? Eu
nunca consegui escrever a palavra mãe”. Durante a entrevista
com os pais, Débora mencionou que o filho tem perguntado
timidamente sobre sua genitora:

[...] Esses dias fui falar da mãe dele, porque hoje é que ele
está tocando nesses assuntos, e ele disse, “mas a minha mãe

79
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

me abandonou, não me amou”, mas primeiro ele conversou


com o pai e depois comigo que a mãe tinha abandonado ele.

Observamos, a partir da leitura sobre o tema, Schettini (2009)


e Levinzon (2004), que essa pergunta é comum aos filhos adoti
vos, sendo que a forma e o tempo em que ela será feita dependerão
de como o vínculo com a família adotiva está sendo processado.
Para Hamad (2010, p. 51-52), a figura da mãe é muito mais
marcante para a criança do que a figura do pai, para ele “só a mãe
genitora abandona”. E ainda acrescenta que:

a “mãe da realidade” é a única mãe, à medida que ela desti


tui a “mãe todo poderosa” da primeira infância. A mãe da
realidade só é mãe pelo próprio fato de sua inscrição naqui
lo que impõe limites.

Observamos que quando a mãe verbalizou para o filho que


“[...] amar também é abrir mão [...]” ela trouxe à tona, involun
tariamente, o sentimento de rejeição e abandono. Para Levinzon
(2004, p. 71) “a história contada pelos pais adotivos e suas referên
cias aos pais biológicos contribuem para a formação da auto-esti
ma da criança e para o sentimento de ter sido ou não desejada”.
Assim, quando Débora enfatizou para o filho que a mãe bio
lógica de Guilherme preferiu deixá-lo no abrigo a continuar com
ele, ela instaurou para a criança o movimento amor versus rejeição:

[...] sua mãe te amou tanto que te deixou lá, porque se você
tivesse com ela hoje com a situação de vida que ela tinha,
você estaria até no crime, usando drogas, como a gente vê
esses meninos de rua por aí, não é porque eles querem essa
vida pra eles, é porque eles não tem uma estrutura de famí
lia. Então ela percebeu que não ia dá conta de você e preferiu
te deixar lá, do que você depois se envolver no mundo do
crime. Então amar também é isso, acho que você não pode
ter raiva da sua mãe por isso [...] é o que eu falo pra ele, é de
hoje em diante, daqui pra frente, não tem como voltar atrás.

80
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Todavia, para a criança esse argumento pareceu ter incitado


ambiguidade em sua compreensão sobre o que significa o amor
e o abandono da genitora. Quando a mãe diz: “amar também
é isso”. Esse “isso” pode ser entendido como “amar também é
‘rejeitar, abandonar’”.
Débora pareceu querer poupar o filho sobre sua verdade,
entretanto essa ação pareceu limitar os sentimentos da criança
quanto aos seus acessos de raiva, medo e dúvida em relação à
sua genitora. Quando Guilherme diz “[...] minha mãe morreu,
minha mãe é você”. Talvez esteja querendo perguntar: o que é
amor? Quem é minha mãe? A quem devo lealdade? Para Levinzon
(2004, p. 72) pais ambivalentes “estimulam vivências de abando
no e rejeição que somam à vivência original com a mãe biológica”.
Por outro lado, se nos reportarmos ao desenho anterior, vere
mos que Guilherme não retratou a morte como responsável pela
quebra de um vínculo, pelo contrário, ele trouxe com a represen
tação do irmão falecido a presença da manutenção desse vínculo.
Quando falou “minha mãe morreu” talvez seja a maneira que te
nha encontrado de trazê-la para o seu presente. Hipoteticamente
entendemos que, para Guilherme, ainda é muito confuso enten
der os motivos do abandono sofrido pela sua genitora. Conhecer
sua história pregressa talvez seja imprescindível para ultrapassar
sua dificuldade de escrita, conforme veremos em sua expressão
gráfica e verbal, mais adiante, e talvez vislumbrar novos horizon
tes com essa nova família que está construindo.
Levinzon (2004) trata o assunto como sendo inerente à cons
trução da identidade do filho adotivo. Para ela, o aspecto de fato
preocupante no adotivo é a impossibilidade de se questionar
quanto a seu lugar no mundo, e de considerar as particularidades
de sua história. A negação de si mesmo não permite o estabeleci
mento de um sentimento de identidade consistente. O adotado,
assim como qualquer outra pessoa, quando fecha os olhos para
suas principais angústias e dúvidas não tem a possibilidade de
desenvolver um sentido pessoal de “existência”.

81
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Contribui com esse pensamento a teoria de Neuburger (1999),


quando nos incitou a pensar sobre a importância que essa memó
ria familiar tem para o desenvolvimento psíquico de Guilherme.

(...) a memória familiar é, pois, aquilo que permite a trans


missão do mito familiar, seja aquilo que há de mais “íntimo”,
ou melhor, aquilo que cria o íntimo de uma família, que asse
gura uma identidade familiar, do “igual”, que permite a uma
pessoa se ajustar em sua própria identidade, seja identifican
do-se seja opondo-se. (Neuburguer, 1999, p. 46-47)

Para ele, as famílias que apagaram seus aspectos considera


dos anormais ou suas particularidades produzem uma patologia
da transmissão que dificulta a construção de uma família para a
geração seguinte.
Schettini (2009) reforça essa ideia quando menciona que:

A dor da inconsistência do passado familiar poderá se re


fletir em tristeza pela mutilação de parte da sua “biografia
genética”, como poderá ser um estímulo para fortalecer as
ligações com os que lhe sucedem, formando a linhagem co
nhecida. (Schettini, 2009, p. 98)

Ainda de acordo com essas teorias, podemos contemplar no


desenho seguinte a insegurança da criança quanto à busca por
essa origem. Solicitamos a Guilherme que desenhasse o que de
sejava para o seu futuro.

82
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

A criança então representou um castelo e verbalizou que desejava


morarem“um castelo com uma ponte que vai até a rua, até uma cida
de, e depois vai à lua. Na lua tem alienígenas. Esse castelo é só meu”.
Então nos perguntamos, durante a interpretação, quem se
riam os alienígenas? Claro que devemos pensar nisso como algo
fantasioso, porém com uma mensagem nas entrelinhas. Os alie
nígenas seriam a família biológica com quem Guilherme não
tem contato e que gostaria de ter? Por isso um castelo que tenha
um caminho definido “que leve a rua, uma cidade e a lua”. Só
na lua ele poderia obter esse contato com essa família? Talvez por
isso apenas Guilherme possa fazer contato com os alienígenas.

Talvez a desproporção da cabeça em relação ao corpo, refe


rente ao desenho acima, também represente esse vazio, o vazio do
contato, da falta de informação sobre os irmãos, e do pouco con
tato que estabeleceu com sua irmã biológica. A fantasia do caste
lo talvez seja o caminho encontrado para representar sua necessi
dade pela busca de sua origem, ou ainda um lugar que representa
uma fortaleza e lhe transmita proteção. Todavia, pareceu-nos que
Guilherme ainda não se vê apto nessa família adotiva para desen
volver esse diálogo com seus pais. O anjo que Guilherme trouxe
no primeiro desenho, poderia representar seu protetor, e talvez
hipoteticamente represente aquele que Guilherme necessite que
o guie no caminho de suas incertezas.

83
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Para a mãe adotiva o filho conseguiu elaborar sua história:


“[...] substituiu bem a figura da irmã biológica, hoje quase não
fala mais nela. O vínculo com a irmã aqui em casa é muito maior.”
Para Débora o filho desconhece o movimento que os pais fizeram
para sua devolução, e as dúvidas que tiveram após o falecimento
de Gabriel: “[...] Deus é tal bom que não fez ele perceber as coi
sas dessa forma, ele não sabe de tudo isso que passamos”.
A família guarda segredos. Primeiro o segredo de não infor
mar à criança sobre sua origem, talvez por receio, por falta de
informações e até por falta de orientação profissional de como ele
reagiria diante dessas verdades:

[...] eu me senti insegura, por exemplo, em relação à irmã


que ele tem, de estreitar algum laço, e de o juiz achar me
lhor ele ficar com a mãe da menina. [...] Ele tem mais dois
irmãos, ainda não falamos deles pra ele, porque não sei se
é o momento de dizer, ainda não disse nada, porque o so
frimento vai ser triplicado, também não temos o endereço
deles, não sabemos onde localizá-los.

Depois, o segredo da depressão que a mãe desenvolveu com a


morte do filho biológico, a qual levou os pais a buscarem na de
volução de Guilherme o espaço e o tempo para vivenciarem o luto
pela perda do filho Gabriel. Entendemos que todos esses fatos
são muito significativos, criam um campo desconhecido para a
criança e um campo da informação factual, mas do ponto de vista
dos afetos que circularam é algo que não foi nomeado. Guilherme
ainda não consegue escrever o nome mãe, não consegue nomear
essa mãe a que teve acesso pelo biológico, porque a mãe adotiva
não permite, e também não teve acesso à mãe adotiva quando o
irmão morreu, momento que mais precisou para sua adaptação.
Todo esse silêncio está explícito nos desenhos da criança e pode
representar uma das possibilidades dessa hipotetização.
Levinzon (2004) coaduna com nossa hipótese a partir de
sua teoria de que os pais que trazem sentimentos de culpa ou

84
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

de medo adicionam às crianças uma carga maior de rejeição e


abandono, influindo diretamente em temores de insegurança e
efetivação do amor parental, “nestes casos, é como remexer com
um instrumento afiado em uma velha ferida, mal cicatrizada”
(Levinzon, 2004, p. 73). Isso pode ser observado no segundo
desenho, em que Guilherme representou a família suspensa no
ar. Para Hammer (1991, p. 51) “adultos que são representados na
parte superior frequentemente são aqueles que se sentem insegu
ros em relação a si mesmos (‘flutuando no ar’)”26.
No entanto, vemos a família como integrada no propósito da
construção dos laços afetivos. A criança também dá indícios de estar
vinculando bem a essa nova família. Para o pai, Guilherme: “[...]
é um filho, integrado na família, até as brigas com a irmã é de um
menino de 10 anos, as brigas são de irmãos mesmo”. E para Débora:

[...] Ele é meu filho, com tudo que um filho tem de bom e
de ruim. Quando falo de filho eu penso sendo um pedaço
de mim. E ele nasceu do meu coração [...] e faço por ele
tudo o que a gente faz por um filho, de dar a vida, de morrer
de dar um braço, uma perna, ele é amado, amado, eu vejo
ele como um presente de Deus.

A família demonstrou ter claro que a construção do vínculo


não está totalmente estabelecida, ele ainda está se construindo. Po
demos ver isso na fala de Débora quando diz que: “[...] o vínculo
é uma coisa que se cria ao longo da vida, ao longo dos anos [...]”.
Vislumbramos, com isso, que esta família também está aberta a
novas orientações para superação de seus desafios: “[...] acho que
há falta de preparo pra gente lidar com algumas situações”.
Este é, portanto, um dos resultados importantes deste trabalho,
mostrar que mesmo aquelas famílias que se encontram com seus
processos legais concluídos necessitam de apoio profissional para li
darem com algumas questões que surgem com a convivência diária.

26. Grifos do autor

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

5. Família [4][AP] Lilian, Mônica e Júlia


Vínculo pra mim se constrói, não é um processo que
você nasceu com ele. É um ser humano, é alguém
desconhecido que está entrando em sua vida, por
mais que você deseje, e desejo a gente sabe que uma
hora pode estar aqui e outra hora ali. O exercício do
cuidado é que vai fazer a diferença de alguém querer
ou não querer a adoção. F[4][AP] (Lilian, 2010)

Este fragmento de discurso refere-se à adoção legal de Júlia,


deferida a Lilian, ocorrida no final de 2005, com duração proces
sual de quatro anos.
Lilian vive sob o regime de concubinato27 com Mônica, que
tem uma filha biológica de 15 anos chamada Juliana. Júlia é filha
biológica de pais separados. Foi assistida pelo serviço de acolhi
mento por cinco anos, é irmã biológica de Guilherme, cuja nar
rativa foi analisada anteriormente e também irmã biológica de
dois meninos, cujas idades e paradeiro não foi possível acessar.
Foram realizados dois contatos telefônicos com Lilian antes da
entrevista, a qual se mostrou receptiva para responder as questões
referentes à adoção. Para efetivação da pesquisa foram realizadas
duas visitas à residência da família. No primeiro momento conver
samos com Lilian e Mônica, que responderam com muita presteza a
todas as questões solicitadas e retornamos em outro momento para
conversarmos com Júlia e Juliana, sua irmã. Ambas não mostra
ram relutância em responder a nenhuma pergunta e estavam bem
desinibidas para fazerem os desenhos solicitados. Foram utilizados
nesses fragmentos apenas os desenhos de Júlia, foco deste estudo.
27. Concubinato: modernamente, é um termo jurídico que especifica uma união
não formalizada pelo casamento civil. No dia 05/05/2011, o Supremo Tribunal
Federal (STF) julgou a favor da união estável entre casais homossexuais. A decisão
foi unânime. Os ministros e ministras da corte fundamentaram seus discursos nos
preceitos fundamentais da Constituição, principalmente igualdade, dignidade da
pessoa humana e proteção à segurança jurídica.

86
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Legalmente, a adoção envolveu Lilian e Júlia:

[...] foi um processo que na minha gestação era meu, ela


me apoiou, mas era o meu processo [...] foi o meu mo
vimento de adoção, não foi nosso, enquanto casal, nem
mesmo de documento, senti sempre o apoio dela, mas era
a minha maternidade.

A adoção de Júlia surgiu de um desejo de maternidade aceito


pela companheira:

[...] às vezes, quando eu imaginava ser mãe, eu imaginava


ser mãe de uma criança adotada. Mesmo antes quando eu
tinha uma relação heterossexual, eu imaginava ser mãe de
uma criança adotada e sempre imaginava ser mãe de uma
criança maior. A adoção tardia era meu desejo materno. [...]
Eu cheguei em casa participei a Mônica desse meu projeto
e ela me apoiou [...]. Foi meu projeto de maternagem, e eu
senti isso como tendo o apoio dela.

Durante a entrevista, Mônica verbalizou que também idea


lizava adotar uma criança, esse desejo sempre foi compartilhado
com sua filha. O que confirma a hipótese acima, de que quanto
mais trabalhadas e compartilhadas as motivações pela adoção,
mais aumentam as chances de sua aceitação:

[...] mesmo quando a Juliana era pequena, conversava com


ela que íamos adotar uma criança, mas eu tinha muito claro
na minha cabeça que pra acolher outra criança eu tinha que
ter estrutura para isso, até porque cuidar de uma criança na
condição de estar só era muito difícil [...] Quando a Lilian
manifestou esse desejo, óbvio, justamente por já guardar
isso em mim não vi nenhum problema, e Juliana muito
menos, ela já era alimentada desse desejo.

Para Lilian a adaptação com Júlia foi fácil, seu desejo de desen
volver a maternagem já vinha sendo elaborado antes da chegada

87
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

da filha: “[...] não senti dificuldade de adaptar, não tive adapta


ção, não rolou estágio de convivência, aproximação, eu já amava
a Júlia como minha filha, eu nunca deixo de falar”.
Até os 3 anos de idade, Júlia esteve sob os cuidados do pai e da
tia paterna, introjetar a figura de mãe “cuidadora” foi a maior difi
culdade enfrentada no início da convivência com Lilian “[...] foi di
fícil pra ela lidar com a mãe cuidadora, e cuidar significa orientar”.
A cumplicidade com a irmã adotiva ajudou na adaptação à família:

[...] hoje vejo que tem o tempo certo pra começar a orientar
e ela compartilhou muito isso com a irmã, de que estava
muito angustiada, e que foi muita novidade pra ela, muita
coisa nova ao mesmo tempo, era muita coisa pra ela lidar.
Esse processo de treinamento, do novo dentro de uma casa.

Tal adaptação se deu muito em função da vinculação que as


irmãs desenvolveram desde o início da convivência. Percebemos
isso quando Mônica mencionou esse vínculo como saudável:

[...] a junção dessas duas é uma coisa fantástica, porque elas


se tratam muito como irmãs, elas têm um carinho muito
grande entre elas, elas brigam pra caramba, mas nada de
agressão física. [...] Então uma pra outra são pessoas sagra
das, individualmente elas têm uma cumplicidade e ao mes
mo tempo estão se dedurando, são muito irmãs.

A figura da “mãe cuidadora” amedrontava e gerava a fantasia


de devolução em Júlia:

[...] acho que por conta de tudo que ela já viveu enquanto
estava no Abrigo, e ver situações de crianças sendo devolvidas,
processos não concretizados, esperanças frustradas, eu acho
que ela veio com essas preocupações, mas eu não me dava
conta que ela vinha com essas preocupações. [...] ninguém
vive cinco ou seis anos dentro de um Abrigo impunemente. E
ela viveu uma realidade muito dolorosa dentro desse Abrigo.

88
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Esse relato nos impulsiona a pensar que, mesmo quando


uma relação parece saudável, é necessário refletir sobre a com
plexidade de um fenômeno que não se esgota, mas que sempre
se apresenta como um contínuo desvelar-se. Para Júlia o medo
da rejeição a paralisava, levava-a a aceitar o que não gostava. Isso
fazia com que a criança se anulasse:

[...] eu lembro que eu só me dei conta foi quase um ano


depois, que eu observei que ela não gostava de algumas ver
duras, mas eu disse: Júlia você sempre comia. E ela dizia:
mas eu tinha medo que você me devolvesse. E ela dizia que
comia tudo, era o discurso dela, “eu adoro verduras” [...]
hoje em dia eu já vejo ela negando tudo, mas quando ela
verbalizou isso é que eu me dei conta desses possíveis fantas
mas que poderiam estar na cabecinha dela, eu não percebia
que ela tinha esses medos, porque sempre fomos muito vin
culadas, ela sempre me chamou de mãe, desde a primeira
visita que eu fiz no Abrigo.

Esses medos são explicados por Schettini (2009) como um


sofrimento vivido tanto pelos pais como pelos filhos adotivos, as
possibilidades de transpor essa dor estão ligadas à capacidade que
os pais devem desenvolver durante a convivência diária, a partir
da apreensão do filho em sua inteireza e sua singularidade.
Nesse percurso de definir os papéis de cada membro da família,
Lilian e Mônica se separaram por algum tempo, mas retomaram a
convivência depois. Não explicitaremos aqui os motivos da sepa
ração, por entendermos que esses motivos não estavam intrinseca
mente ligados à adaptação de Júlia. Essa separação provavelmente
reportou lembranças dolorosas de perdas anteriores à Júlia, mas
também trouxe uma aproximação entre mãe e filha. Durante a en
trevista com as irmãs não levantamos a separação como questão, elas
também não mencionaram o período de rompimento das mães.
Para Lilian nem a adaptação inicial, nem a separação entre
ela e sua companheira ameaçaram a vinculação com Júlia, o que

89
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

ameaçou essa vinculação materna foi a má condução do processo


legal de adoção:

[...] eu já tinha ideia das possíveis dificuldades da Júlia em


relação a esse processo inicial e na minha cabeça eu tinha
condições de dar conta disso [...]. Eu me senti muito estru
turada pra ser mãe da Júlia [...] tive um suporte psicoterá
pico anterior que me ajudou muito a dar conta dos meus
limites [...] eu não dei conta disso, desse contexto todo, não
foi em relação a Júlia e não foi por conta desse processo
todo que gerou nossa separação foi por conta da justiça que
realmente me bloqueou, isso realmente me desestabilizou.

Lilian se emocionou em muitos momentos da entrevista,


principalmente quando relatou sua indignação quanto ao anda
mento do processo:

[...] Era a justiça querendo tirar minha filha, eu não sei ex


plicar isso, é uma situação de abandono, vazio muito grande
[...] Eu falo que eu não tive um processo de adoção, eu tive
que fazer um processo de defesa do direito da minha filha ao
convívio familiar que ela queria, que ela já tinha condições
de escolher. E foi isso, foram 4 anos de defesa desse processo,
foi muito difícil. Encerrou o ano passado (2009).

Não trabalharemos aqui essa narrativa, essa dificuldade com


a justiça será trabalhada no capítulo seguinte, por se tratar de um
ponto comum aos outros três fragmentos anteriores.
Júlia adaptou-se bem à nova concepção de família. Quando
solicitamos a ela que desenhasse o lugar onde morava e as pesso
as de que gostava, ela nomeou voluntariamente essas pessoas como
“minha família”. Em alguns momentos da entrevista com a mãe,
esta verbalizou que Júlia considera muito importante o fato de ser
lembrada: “[...] o fato de ser lembrado pra ela é muito importante”.
Talvez a forma que tenha encontrado para ser reconhecida enquanto
membro integrante da família adotiva tenha sido reconhecer todos

90
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

como integrantes. No entanto, há de se observar que Júlia não traz


nesse desenho a figura do irmão Guilherme, adotado pela F[3][AP],
portanto, já internalizado como integrante de outro sistema familiar.

A criança inclui pessoas que moram e não moram na residência.


Para algumas delas, ela pede para escrever o nome atrás do desenho.
Observamos que a casa não tem chão e todas as pessoas estão espa
lhadas, parece-nos que as pessoas estão soltas. Com isso hipotetiza
mos a busca de internalização dessa nova concepção de família na
qual Júlia se inseriu e o desejo que tinha em dar consistência a ela.
A família extensa teve papel importante tanto no processo
inicial de adaptação como na vivência do dia a dia de Júlia, talvez
por isso ela tente trazer a presença de todos no lugar representado
como sua moradia:

[...] Não foi só comigo que ela teve uma família, ela teve
essa segurança com essa família aqui dessa casa, com a mi
nha família do Rio, que de cara recebeu ela como membro
da nossa família, pessoas como avó, com a família da Môni
ca que também a acolheu.

A expressão pelos desenhos retoma em Júlia sentimentos de


volta às origens. Durante a entrevista com a mãe, em momento
diferente, ela deu indicativos do respeito que tem quanto às von
tades manifestadas pela filha sobre sua família de origem:

91
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

[...] ela mencionou esses três irmãos e que tinha convivi


do durante muito tempo com o irmão Guilherme, e que
ela queria muito ter contato com esse irmão. Acho que era
direito dela, eu encarei isso como um direito [...] acho que
no dia em que eu recebi a guarda da Júlia eu já manifestei
na Vara da Infância meu desejo para que ela pudesse ter
contato com o irmão Guilherme.

A mãe mencionou também que Júlia mantém contatos es


porádicos com seu irmão, Guilherme, já em relação aos outros
dois disse ter buscado informações na VIJ, mas não ter localizado
o endereço. “[...] E ela sempre falando dos outros irmãos. E eu
sempre falando pra ela, vou tentar, vou tentar e tentei dos outros
irmãos também, mas nunca obtive respostas da Vara”.
Podemos observar que a busca por informações sobre a fa
mília biológica está latente na criança. Solicitamos a Júlia que
desenhasse o que desejava para o seu presente, ela representou
seu desejo de reencontrar a mãe e os irmãos biológicos.

Nos corações Júlia trouxe os dois irmãos, disse desconhecer


as fisionomias deles, ela disse ter poucas lembranças da infância
que passou com eles, pois quando foi para o serviço de acolhi
mento tinha 3 anos, porém lembrou com clareza dos nomes que,
inclusive, coloca nos corações. Observamos também que é o úni
co desenho que colore, utilizando-se da cor vermelha, que pode
traduzir afeto e amor.

92
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Júlia centralizou seu desenho na folha, o que para Hammer


(1991) quer dizer “segurança elevada”. Ao verbalizar à Lilian que
quer informações e insistir em manter contatos com o irmão
com quem conviveu, Júlia demonstrou ter segurança na relação
estabelecida com a mãe. No que se refere ainda à localização do
desenho na página, Hammer (1991, p. 51) aponta que:

[...] quanto mais acima o ponto médio do conceito dese


nhado estiver do ponto médio da página maior será a im
plicação de que o sujeito sinta que está se esforçando, de
que seu alvo é relativamente inatingível e que ele tenda a
manter-se distante e relativamente inacessível.

O acesso a informações sobre os outros irmãos é desejo mani


festo, porém ainda indisponível para Júlia, uma vez que sua mãe
adotiva não conseguiu localizar informações.
Há indicativos na relação afetiva entre mãe e filha, verbalizada
por Lilian e apresentada nos desenhos por Júlia, de que as várias
tentativas de resgatar a família biológica não anularam a seguran
ça que a criança desenvolveu com a família adotiva, a qual tem
construído uma relação de afeto. Isso é perceptível na fala da mãe:

[...] Ela tem qualidades que eu não tenho, ela tem defeitos
que eu não tenho. E nós somos diferentes mesmo, e eu te
nho que respeitar isso. Isso pra mim tem que ser um pro
cesso de muito respeito porque eu não adotei também uma
criança pequena, um processo que não seja só a vontade da
mãe que prevalece, até porque eu também tenho vontade.

Essa confiança entre mãe e filha caracteriza um vínculo forte


desenvolvido nessa relação afetiva, pautada no respeito, na acei
tação e no diálogo.
Observamos isso em outro momento quando solicitamos
que a criança desenhasse um momento especial e as pessoas que
estavam presentes nesse momento. Nesse desenho, Júlia trouxe a

93
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

figura da mãe adotiva como marcante, inclusive demonstrando


muita proximidade entre elas.

Para Schettini (2009), o retorno à família biológica é natural,


comum na fase de autoafirmação da adolescência. Para ele “[...]
a busca do encontro com sua história pregressa não representa
para eles o desejo de trocar de parentalidade. Trata-se de duas cir
cunstâncias típicas da adolescência” (Schettini, 2009, p. 44-45).
A primeira circunstância ele caracterizou como sendo a am
pliação das características intelectuais que cada indivíduo inter
naliza, as quais os levam a interessar-se pela pesquisa, pela busca
do novo ou do antigo que lhe é desconhecido. A segunda situ
ação que estimula o adolescente a mergulhar em sua biografia
são as transformações corporais rápidas e marcantes que ocorrem
nessa fase. Situações ao mesmo tempo prazerosas e angustiantes
porque, se corporalmente começa-se a se parecer mais com os
adultos, sob outro aspecto tem-se de enfrentar a perda da confi
guração do corpo de criança. Esse processo de mudança corporal
remete os adolescentes às suas origens, isto é: em que ele seria
fisicamente semelhante aos seus pais de origem?
O autor afirma ainda que, passado o auge desses conflitos,
certamente estará consolidada mais uma etapa (talvez a última)
da escolha bilateral. Quem foi escolhido agora se sentirá também
tendo escolhido.

94
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Coaduna com esse pensamento Lévy-Soussan (2010), quan


do nos leva a refletir sobre a importância que devemos dar à sin
gularidade de cada indivíduo, considerando-o em sua inteireza “a
verdade da filiação em um sujeito é singular”. Para ele a singulari
dade começa para algumas crianças por uma história de abando
no. E as crianças só nascem dos desejos que os adultos têm.
Tal teoria tece uma aproximação com a expressão do desenho
de Júlia, que ao ser solicitada a representar o que deseja no futuro
corrobora essa discussão.

Júlia verbalizou que o desenho representava “Júlia e todos


os seus filhos”. Querer cuidar de tantas crianças nos remeteu à
hipótese de que Júlia não quer repetir no futuro sua história de
abandono. Para Schettini (2009, p. 57) “o desejo baseia-se naqui
lo que nos falta”. É muito difícil, por mais que a criança tenha
desenvolvido o vínculo de pertencimento com a família adotiva,
entender as questões que levaram sua mãe “geradora” a abando
ná-la. Júlia sempre carregará consigo, através da marca que traz
em si, o umbigo, a presença da genitora. Compreender o lugar
que irá ocupar no mundo e elaborar sua história pregressa talvez
seja o mais difícil para ela, porque lhe requer a habilidade de lidar
com as dores mais íntimas da rejeição.
A hipótese que temos com a representação do desenho aci
ma é a de que talvez Júlia busque nessa sua idealização respon

95
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

der as questões sobre seu abandono, à medida que instaura no


outro o cuidado.
Contudo, faz-se necessário trabalhar essa questão com a ado
lescente para que a mesma não venha a repetir o que aconteceu
com Janete F[2][D], a qual adotou dezessete crianças. Talvez isso
hoje fosse quase impossível, pelo que trata a Lei 12.010/09, a
qual exclui a possibilidade da adoção intuitus personae. Ainda as
sim, entendemos ser necessária uma orientação profissional, para
que a criança possa elaborar melhor a questão do “abandono”.

96
Capítulo 4
Retomando as zonas de sentido
1. Indicadores favoráveis e indicadores
desfavoráveis no processo de adoção
Visando compreender o processo de vinculação adotiva dentro
da dinâmica familiar, identificamos alguns indicadores, que deno
minamos aqui como zonas de sentido, comuns aos participantes
desse estudo, que tiveram grande relevância no processo de adoção.
É imprescindível mencionar que, devido à complexidade e diversi
dade de cada caso estudado, fez-se necessário distribuir as zonas de
sentido por família pesquisada, o que possibilitou a identificação
das semelhanças e diferenças presentes nos discursos dos sujeitos.
Desse modo, analisamos os conteúdos das entrevistas confor
me conceitua González-Rey (2002), classificando-os em zonas de
sentido. Para o autor, o pesquisador progressivamente vai cons
truindo os elementos que considera relevantes. Ele ainda refere
-se às zonas de sentido como:

espaços de inteligibilidade que se produzem na pesquisa cien


tífica e não esgotam a questão que significam, senão que, pelo
contrário, abrem a possibilidade de seguir aprofundando um
campo de construção teórica. (González-Rey, 2002, p. 60)

Nesse sentido, identificamos os principais indicadores que


favoreceram o encontro filial: a compreensão das motivações
para adoção, ou seja, a relação entre as motivações dos adotantes,
o altruísmo e a realidade vivenciada no processo de adoção; a
desvelação da família de origem como condição do vínculo; a
criança imaginária e a criança real; a preparação da criança e do
requerente para adoção, a partir da viabilização institucional; o

97
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

vínculo familiar estendido e a devolução a partir da análise do


silêncio dos pais e do sofrimento dos filhos adotivos.
A seguir, tecemos algumas considerações referentes a essas zo
nas de sentido, consideradas imprescindíveis para o encontro filial.

2. O desejo e sua falta


Para a discussão dessa zona de sentido retomamos a pergunta que
perpassou o processo de identificação dos vínculos de filiação: o que
levou as famílias pesquisadas a adotarem uma criança? Esta questão
foi imprescindível e, apesar de não ter sido a pergunta central desse
estudo, guiou a resposta do objetivo desse trabalho, que era:

compreender o processo de vinculação adotiva dentro da


dinâmica familiar, no ensejo de destacar indicadores que
contribuíram para a construção do vínculo de filiação e in
dicadores que desfavoreceram essa construção.

Entende-se que sem o aprofundamento dessa reflexão os re


sultados dessa pesquisa ficariam comprometidos.
Alguns relatos sobre as motivações foram identificados como
mais comuns na fala das quatro famílias entrevistadas. Dentre
eles citam-se: a esterilidade de um ou ambos os pais; o desejo
de ter filhos quando já se passou da idade em que isto é possível
biologicamente; a ideia de que “há muitas crianças necessitadas,
e que se estará ajudando-as e fazendo um bem à sociedade”; o
contato com uma criança que desperta o desejo da maternida
de ou paternidade, o parentesco com os pais biológicos que não
possuem condições de cuidar da criança e mulheres que anseiam
em serem mães, mas não possuem um parceiro amoroso.
Vimos que nas F[1][D] e F[2][D] o projeto de adoção surgiu
do desejo de “ajuda ao próximo”, o que para nós apareceu como
forte indicativo para a devolução das crianças, porém não o úni
co. Veremos na análise de outras zonas de sentido que existiram

98
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

outros indicadores que também contribuíram para essas devolu


ções. Já na F[3][AP], além do desejo de “ajuda ao próximo”, o
“desejo de exercer a paternidade e a maternidade” também estava
presente na busca pelo filho adotivo. Encontramos na F[4][AP]
um desejo materno mais elaborado.
Todavia, a experiência e a literatura – Levinzon (2004), Ha
mad (2010) – têm mostrado que apenas o desejo de ajudar uma
criança não deve ser tomado como razão suficiente para a ado
ção. Para esses autores, o vínculo parental não pode ser estabele
cido em função de “desejos altruístas” ou no desejo de “salvação”
da criança. A realidade nos aponta que as experiências de adoções
que dão certo exigem dos requerentes uma noção mais clara so
bre o que desejam com esse filho, e a percepção dessas famílias
de que não estão apenas fazendo o bem, pois segundo Schettini
(2009) a filiação inclui vivências e emoções das mais diversas, por
longos períodos de tempo, às vezes pela vida inteira, e as famí
lias estão sempre diante de desafios e da busca de integração. De
acordo com essa ideia, Diniz (1993) nos aponta que:

[...] se os pais são vistos como “benfeitores” aos quais se deve


gratidão, o filho fica impedido de viver e exprimir a sua agres
sividade, rivalidade e competição. Pais excessivamente ideali
zados tornam demasiadamente culpabilizada a agressividade
do filho, com todos os efeitos nocivos que isso provocará no
seu psiquismo. (Diniz, 1993 apud Levinson, 2004, p. 18)

Foi pensando nesses indicadores presentes nos fragmentos


estudados que enviesaram o encontro ou promoveram o desen
contro com o filho adotivo que se construiu este capítulo. Assim,
apresenta-se a seguir a análise das demais zonas de sentido que se
destacaram nas entrevistas com as famílias.

99
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

3. A relação entre as motivações, o altruísmo e a


realidade vivenciada no processo de adoção.
Em todas as quatro famílias pesquisadas, tanto para os pais
como para os filhos adotados, encontramos ambiguidade no pro
cesso de filiação. É sabido que essa ambivalência nos sentimen
tos experimentados na relação afetiva, seja ela adotiva ou não, é
esperada. Todavia, observou-se que essa ambiguidade tornou-se
“problemática” quando sua forte intensidade passou a ser um
modo de funcionamento, o que gerou intensificação de conflitos
que comprometeram a qualidade do vínculo e trouxe maiores
dificuldades para a criança, principalmente ao se ver incluída no
imaginário parental como filha(o).
Essas ambiguidades apresentaram-se mais aguçadamente na
primeira fase de adaptação, que se refere aos dois primeiros anos de
convivência, exceto nas F[1][D] e F[2][D], em que se estenderam
durante toda a convivência familiar. Nestes dois casos ponderamos
que essas duas famílias não conseguiram transpor as dificuldades
de adaptação. Veremos mais adiante que além das ambiguidades
outros fatores influenciaram na devolução dessas duas crianças.
Vejamos como se apresentaram as ambiguidades nos proces
de
sos filiação e como isso influenciou a relação afetiva das quatro
famílias pesquisadas com seus respectivos filhos.
A F[1][D] apresentou ambiguidade pelo desejo de ajudar a
criança e imprimir nela a filiação parental. A adoção nasceu mui
to mais da vontade da ajuda, com o intuito de salvar a criança
de sua má sorte de conviver em uma família violenta, agressi
va e usuária de drogas, do que de uma necessidade ou desejo
materno. Essa adoção também foi incitada pela mãe biológica
como uma obrigação. Observou-se que a mãe adotiva deu pouca
importância à história de sofrimento da filha, considerou que as
perdas, as rejeições e os abandonos sofridos por esta não foram
motivos suficientes que justificassem seu desamor ou sua falta de

100
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

afeto. Essa vivência de sofrimento ganhou uma dimensão maior


à medida que a criança começou a apresentar situações de re
beldia a partir de atos ilícitos como roubos, mentiras e fugas. O
principal argumento apresentado pela mãe adotiva foi o de que a
filha nunca desenvolveu o vínculo com a família adotiva, o que é
contrariado pela expressão gráfica da criança, que em vários mo
mentos demonstrou ter afeto por essa família. Todavia, com um
vínculo que pareceu-nos não ter se concretizado em sua inteireza.
Não muito distante dessa realidade vimos que na F[2][D]
essa ambiguidade também esteve presente. A força motriz que
moveu Janete a adotar não só Cláudia, mas outras dezessete crian
ças perpassou o desejo da ajuda ao próximo. A mãe argumentou
que não efetivou o processo de adoção devido ao pai biológico de
Cláudia, que lhe extorquia muito dinheiro. Tal situação nunca foi
abordada junto à equipe técnica da VIJ. A requerente se contra
disse quando se decidiu pela devolução de apenas um dos filhos,
ficando com o outro, o qual é irmão de Cláudia. A devolução
inseriu-se no contexto de conflitos que repercutiram em agressões
físicas e verbais entre ambas. Outro argumento utilizado por Ja
nete para a devolução deveu-se à sua suspeita de que a filha fizesse
uso de drogas, o que é negado por Cláudia. Esta mencionou que
sua convivência com a mãe sempre foi conturbada, permeada de
suspeitas infundadas e acusações, inclusive verbalizou que foi con
siderada pela mãe como “bode expiatório”, responsável por tudo
de errado que acontecia na casa.
Uma possível hipótese que identificamos para justificar sua
“rebeldia”, além da transição da fase da infância para a adoles
cência, foi a insegurança que Cláudia desenvolveu com a demora
da finalização do processo de adoção. Outra hipótese seria a di
ficuldade de Janete lidar com a possibilidade de a filha fazer uso
de drogas. A mãe vivenciou essas dificuldades em sua história de
vida, com a dependência do pai biológico, com o ex-marido e
outros dois filhos biológicos que são ainda usuários de drogas. O
uso de drogas por parte da filha apresentou-se nesse estudo, pelo

101
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

que foi constatado na fala de Cláudia, como uma consequência e


não como uma causa do conflito.
Observamos também que o diálogo nessa relação familiar era
pouco presente, o que intensificou os conflitos entre mãe e filha,
principalmente na fase da adolescência.
Após ser entregue à VIJ, Cláudia rompeu o vínculo com essa
família adotiva. Durante a entrevista mencionou ter passado por
um doloroso processo de rejeição, em virtude da devolução e do
rompimento do convívio com o irmão. Há de se mencionar ainda
que tanto mãe quanto filha demonstraram muita ambiguidade so
bre as possibilidades de reaverem o vínculo. Por um lado, Cláudia
expressou saudades da família adotiva, no entanto também verba
lizou que não tem intenção de morar novamente com Janete. Por
outro lado, sua mãe adotiva falou do perdão e da vontade que ti
nha de reencontrar a filha e do desejo de continuar cuidando dela.
Essa necessidade de ambas buscarem o contato remeteu-nos à
reflexão sobre elementos de uma vinculação positiva, construída
durante os quinze anos de convivência, apesar do rompimento
que se deu pela devolução. A figura materna apresentou-se aqui
como necessária para a continuidade de construção de outros vín
culos futuros com outras pessoas. Pichon-Rivière (1986) descreve
esse processo como uma espiral em constante movimento, movi
do por fatores instintivos e motivações psicológicas que produzem
no indivíduo uma pauta de conduta, capaz de incluir o vínculo
interno e externo. Ou seja, Cláudia buscou a partir de sua rees
truturação social, no trabalho, nos estudos e na vinculação com
outras figuras de referência, com a psicóloga e a assistente social
do serviço de acolhimento, superar a rejeição da mãe adotiva.
Talvez esse tenha sido o caminho encontrado por Cláudia
para provar a Janete que apesar da devolução conseguiu apreen
der sentimentos positivos e superar, pelo menos em parte, sua
rejeição. Cláudia rompeu em parte o ciclo de dependência afeti
va, com essa mãe e rompeu totalmente o ciclo de dependência
econômica. Por outro lado, Janete pareceu ser impulsionada pela

102
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

necessidade de perdoar a filha, esse perdão advém de sua crença


religiosa, que é notória em sua fala, mas também do seu desejo
de ter a filha de volta em sua casa.
Na análise da F[3][AP], a adoção de Guilherme é incitada
pelo desejo materno e paterno de ter um filho. Dois motivos fo
ram identificados para essa adoção: um sendo a dificuldade de
engravidar da mãe, todavia não falaremos aqui de infertilidade,
uma vez que a família teve dois filhos biológicos, e outro moti
vo se deveu à necessidade da compensação da frustração do pai
adotivo por ter vivido sem sua mãe biológica, em um “orfanato”,
durante seus primeiros doze anos de vida.
Nesse caso, os pais se projetaram como responsáveis diretos
pela felicidade do filho adotado. No caso do pai, entendemos
como sendo uma forma encontrada para justificar sua supressão
de rejeição sofrida na infância, em virtude do seu abrigamento.
A ambiguidade entre “ajudar uma criança a ter uma vida digna”
e realizar o “sonho” de serem pais por adoção perpassou princi
palmente a primeira fase de adaptação com Guilherme. Essa fase
foi marcada pela perda de um dos filhos biológicos e a adaptação
com o novo integrante da família, o “estranho”.
Não indiferente a isso, Guilherme absorveu a angústia da
perda sofrida pelos pais e o desejo de inserir-se como parte inte
grante nessa família. Aqui, identificou-se a ambiguidade dos pais
entre o desejo de demonstrar afeto e a necessidade de vivenciar
o luto da perda do filho. A inscrição de Guilherme nessa família
deveu-se ao seu excesso de afeto voluntário direcionado aos pais,
a cumplicidade matrimonial entre os pais e ao apoio emocional
buscado por toda a família em uma crença religiosa.
Por último, não menos importante, observou-se que na F[4]
[AP] o desejo pela maternidade foi notório na fala da mãe. O
vínculo afetivo que perpassou essa relação filial foi considerado
forte, apesar de ainda encontrar-se em construção. Todavia, a
mãe, na busca de preencher o vazio deixado pela família de ori
gem da criança, buscou incessantemente alimentá-la com infor

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

mações referentes à sua origem. A filha, pela expressividade do


desenho, demonstrou angústia. A busca constante por responder
sempre à necessidade da filha pela busca de sua origem, sem pon
derar o que lhe era necessário pareceu angustiá-la.
Enquanto a expressividade dos desenhos possibilitou aferir
hipóteses sobre a inscrição dessas crianças em suas famílias adoti
vas, a fala das famílias viabilizou identificar os desafios inerentes
ao processo da construção da filiação. Veremos, a seguir, como
isso influenciou no processo de vinculação nos casos estudados.

4. A desvelação da família de origem como


condição do vínculo
Contar à criança sobre a adoção constitui-se um dos temas
mais sensíveis e perturbadores para muitos pais adotivos. Quan
do falar? O que falar? Até onde ir? São perguntas que angus
tiam muitos pais adotivos. A revelação sobre a família de origem
da criança implica ter contato com as próprias motivações para
a adoção e a incerteza do desconhecido, como a verdade sobre
a história da criança adotiva, a existência de pais biológicos de
quem eles descendem, a experiência de rejeição e abandono da
criança, além do temor de perder a criança ou dividir seu afeto
com a outra família. Tudo isso se entrelaça com a solidez com
que este vínculo está sendo construído.
Entretanto, quando os pais estão seguros quanto ao processo
de adoção, a origem da criança é encarada de forma natural, em
bora muitas vezes com muita tensão. O temor exacerbado pode
estar relacionado à projeção no filho de sua não aceitação incons
ciente da sua própria condição de pais adotivos (Hamad, 2010).
Alguns autores, como Levinzon (2004) e Schettini (2009),
ressaltam a importância do momento da revelação, que compa
ram a situações como um casamento ou um ritual de passagem,
e que podem servir para unir a família. Outros autores enfatizam

104
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

que é uma experiência que sempre deixa um “gosto amargo”, mas


que também é necessária (Hamad, 2010).
Hamad (2010) sugere que se prepare um álbum com fotogra
fias que representem uma espécie de pequena reportagem com os
pais adotivos: as fotos da maternidade ou do serviço de acolhimen
to, onde estava a criança e do encontro com os pais adotivos. Para
ele, a criança deve poder manipular esse álbum tatilmente, quase
como um brinquedo, que representa a materialização do que se
chamará: “nosso encontro contigo”. Todavia, o autor enfatiza que
o importante não é o que se utilizará para contar essa história, mas
o carinho e a ternura com que será contada. Deve ficar claro que
não é uma história na qual um herói realiza feitos incríveis, e nem
um mártir que sofre terríveis injustiças. É simplesmente a história
de pessoas que buscam umas às outras, procurando experienciar o
sentimento tão importante de estar inserido em uma família.
Nesse sentido há de se compreender, antes de tudo, a di
ferença entre “abandono e rejeição”, para aquelas crianças que
foram adotadas. Schettini (2009) tratou o tema abandono como
relacionado à privação de nutrientes que são indispensáveis à
vida dessas crianças. É importante ter claro que todo processo
de adoção baseia-se de alguma forma em uma experiência de
perda ou rejeição. Há uma ruptura na experiência biológica da
criança, que é inegável e que deixa marcas que influenciam sua
autoimagem e sua capacidade de se vincular a outrem. A perda é
acompanhada de um processo de luto relativo aos seus genitores,
que precisa ser elaborado antes de sua inserção em outra família.
Para Hamad (2010), esse processo de luto consiste:

[...] na descoberta de relance que não existe história boa ou


má, mas uma história singular. E toda história só é singular
à medida que se chega a torná-la suportável. Ela se mostra
suportável a partir do momento em que o equívoco, como
nos ditos espirituosos, vem desfazer o domínio dos signifi
cantes que se congelam em uma significação que nos causa

105
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

vergonha, como por exemplo: “eu sou uma criança adota


da”. (Hamad, 2010, p. 54)

Nesse contexto, há de se fazer um paralelo com as famílias


pesquisadas, as quais demonstraram dificuldades em lidar com
essas histórias das famílias de origem dos seus filhos adotivos.
Nas F[1][D] e F[2][D] as famílias biológicas foram caracterizadas
como “complicada” e “usurpadora”, respectivamente. Já na F[3]
[AP]percebeu-se a dificuldade dos pais adotivos em fornecerem
informações ao filho, mesmo considerando a família biológica do
filho sensata ao “abandonar e rejeitá-lo”. Percebemos que a F[4]
[AP], a todo momento, manteve a filha consciente sobre sua ori
gem. Veremos a seguir uma breve apreciação sobre cada família.
Para a F[1][D], a origem biológica de Isabel não é mantida
como segredo. Ao contrário, a criança demonstrou ter claros os
motivos que levaram à sua adoção, esta verbalizou sua dor em
relação à sua origem, falou sobre as características agressoras, vio
lentas e omissas da família biológica. Todavia, a falta de elabora
ção deste “abandono e rejeição” produziu em Isabel a dificuldade
de relacionamento e aceitação da figura de autoridade da mãe
adotiva, que transferiu para a filha adotiva algumas característi
cas apresentadas pelo genitor da criança, como furtos e violência
física. A adotante pareceu buscar nessa adoção prevenir a filha
adotiva de uma violência, assim não se sentiria cúmplice.
Ressalta-se aqui que Joana também passou por uma história
familiar dolorosa, com a separação dos seus pais e o falecimento
de um irmão. Outro ponto importante a mencionar é que essa
mãe adotiva dependia financeiramente dos pais biológicos. Isabel
apareceu em sua vida como uma “luz no fim do túnel”, que a
ajudaria a transpor essas barreiras afetivas. No entanto, suas difi
culdades “internas” de elaboração da carência afetiva parecem ter
influenciado diretamente nesse processo de vinculação com a filha.
Em contrapartida a criança demonstrou, a partir dos desenhos, ter
afeto por essa família adotiva, porém com vínculos fragilizados.

106
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Já no caso da F[2][D], a adolescente em momento algum


de sua entrevista menciona ter tido acesso anterior a sua família
biológica, apesar de a mãe adotiva ter mencionado que o pai bio
lógico de Cláudia a extorquia. O contato direto com essa famí
lia biológica aconteceu depois que a adolescente foi acolhida no
serviço de acolhimento. Após completar 18 anos, não tendo para
onde ir, a adolescente foi morar com os pais e os outros cinco
irmãos biológicos. Nesse caso, a família biológica apareceu como
última opção. Por quê? Talvez por falta de programas sociais que
atendam em especial a esse público adolescente, que após com
pletar 18 anos nos serviços de acolhimento não tem para onde ir.
Retornar à família de origem com a qual não mantinha contato
desde a infância significou, na fala da adolescente, uma “falta de
perspectiva”, “última opção”. Outro aspecto a se considerar foi a
quebra do vínculo que a adolescente sofreu com a separação do
irmão biológico que continuou morando com a mãe adotiva.
Esse vínculo parece ser o que ainda impulsiona Cláudia a buscar
uma aproximação com a família adotiva.
Por outro lado, na F[3][AP] a família biológica não é acessa
da, a não ser na figura da irmã que também foi adotada, com a
qual Guilherme mantém contatos esporádicos. Os pais adotivos
verbalizaram desconhecer o paradeiro dessa família, mas mencio
naram que não buscaram essas informações nos arquivos da VIJ.
Guilherme traz esse vazio na expressão dos seus desenhos, mesmo
se sentindo acolhido na família adotiva. A criança manifestou sua
angústia, ainda que de forma tímida, através do questionamento
aos pais adotivos sobre o abandono sofrido pela mãe biológica.
Schettini (2009) aponta que o desejo pela busca da origem do
filho adotivo deve ser respeitado, mesmo que seus responsáveis
não encontrem respostas para suas várias perguntas:

[...] há reivindicações que esbarram em impossibilidades de


natureza histórica como, por exemplo, a pesquisa de ele
mentos que revelem aspectos significativos de sua origem.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Pedagogicamente é fundamental assumirmos uma atitude


de disponibilidade na busca, independente da possibilidade
de qualquer sucesso. É importante entender a emergência
do desejo, mesmo que não enxerguemos os caminhos para
chegar até ele. (Schettini, 2009, p. 105)

Observou-se que, no caso de sua irmã, F[4][AP], esta foi


muito exposta às informações sobre a família biológica, tanto
que nos desenhos demonstrou ansiedade em ter contato com a
mãe e os outros dois irmãos biológicos. Percebeu-se pela fala da
mãe um movimento contínuo na busca de informações sobre o
paradeiro da família biológica e a origem da filha. No entanto,
Schettini (2009) nos alerta sobre o cuidado que deve ser dado
sobre a exposição demasiada da verdade ao filho adotivo. Para o
autor, a pedagogia da adoção nos indica que é necessário apre
sentar ao adotivo o que se considera indispensável, deve-se cuidar
para não impor o que ele ainda não deseja encontrar.
Observou-se também que essa mãe se envolveu mais que a F
[3] [AP] na tentativa de colocar os irmãos adotivos em contato,
houve um respeito à convivência de ambos. Ao contrário do que
aconteceu com a F[3][AP], que pareceu-nos não ter segurança
sobre essa aproximação entre os irmãos. Todavia, o principal mo
tivo levantado por essa família para não investir na convivência
dos irmãos foi a falta de orientação profissional para lidar com a
questão da homossexualidade da mãe adotiva de Júlia.
Esse paradoxo da filiação, entre saber a verdade e mantê-la
desconhecida, é inerente a qualquer filho adotivo. O filho adotivo
nunca deixará de buscar sua “verdade”, que para Lévy-Soussan
(2010) significa:

[...] a busca de um sujeito que não se situa num corpo,


nem numa verdade biológica, nem nos genes, e sim no seu
psiquismo, é uma constante. Ali são vividos estados de so
frimento, de dúvida, de questionamento para o sujeito que
se interroga sobre os vínculos que o unem a seus próprios

108
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

pais. A verdade da filiação em um sujeito é singular. Ela


se fala e se diz em relação à vivência daquele que se conta.
A filiação se constrói nessa auto-narração que busca ligar
o sujeito a sua família. (Lévy-Soussan, 2010, p. 88, apud
Trindade-Salavert, 2010)

Dentro desse contexto, observamos que nas F[1][D] e F[2]


[D] a falta de diálogo e de disposição afetiva dos adultos em se
aproximarem das crianças intensificaram os conflitos. Isso repre
sentou elementos significativos na transposição dos vínculos de
filiação. Por outro lado, na F[4][AP] o diálogo e o acolhimento
das dúvidas da criança proporcionaram uma maior vinculação
afetiva à família adotiva.

5. A criança imaginária e a criança real


Conforme indicado no início deste capítulo, as motivações
que levam à adoção são inúmeras. Todavia, o desejo de se ter um
filho só surge da criança imaginária criada pelos pais adotivos.
Para Levinzon (2004), esse desejo surge quando a criança imagi
nada está à frente da empreitada familiar.

[...] pode ser o órfão a ser procurado, porque a pessoa des


de pequena disse que iria “ajudar um órfão”, ou ainda a
menininha sonhada, com quem se poderá reviver e tentar
reconstruir detalhes de uma infância passada, ou então o
herdeiro, que prolongará o nome da família. Aos poucos,
essa criança que habita o imaginário dos pais passa a ter um
rosto, uma identidade. A criança imaginária não correspon
derá à criança real. (Levinzon, 2004, p. 43)

Para a autora, a evolução desse processo de adoção é acom


panhada por uma acomodação progressiva ao que a realidade
oferece, com suas perdas e ganhos em relação ao que havia sido
sonhado anteriormente. A chegada de um filho é carregada de

109
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

expectativas, principalmente nos primeiros dois anos de adapta


ção, conforme sustenta Schettini (2009), momento em que esses
pais mais investem emocional e fisicamente na concretização do
desejo pelo filho que, por sua vez, em alguns momentos da con
vivência pode não corresponder a essas expectativas. Vimos isso
muito presente na fala da F[4][AP], quando a filha se vê sem
espaço para verbalizar o que gosta de comer.
Muitas pessoas levam para casa uma criança exausta, assus
tada, desorientada e doente. Isso não combina com a pintura
perfeita que imaginaram. No entanto, pais adotivos podem apre
sentar uma dificuldade maior em expressar seus desapontamen
tos como: “eu gostaria que tivesse sido um menino” ou “eu estava
imaginando um bebê calmo” ou “eu não posso acreditar que a
cor de seu cabelo não é igual ao meu”. Eles podem sentir que só
lhes cabe a expressão da gratidão pelo que receberam e que os
sentimentos de frustração normais estragariam um cenário frágil
e vulnerável (Ghirard, 2008).
Levinzon (2004) defende que quanto mais os pais estiverem
conscientes de que podem haver diferenças na criança que es
peram, e que a adoção apresenta desafios que lhe são inerentes,
mais estarão preparados para superá-los. Defende ainda que os
sentimentos e expectativas dos pais têm influência determinante
na formação da personalidade dessas crianças.
A autora cita a ideia sobre a fantasia do roubo da criança
imaginada pelos seus pais adotivos, na qual eles sentem como se
tivessem “surrupiado” a criança e a qualquer momento pudesse
surgir alguém que reclamasse a posse dessa criança. Para ela essas
fantasias podem estar relacionadas a:

Conflitos edípicos não resolvidos, ligados aos desejos in


conscientes e infantis de “roubar os bebês da mamãe e do
papai”. A sensação de uma parentalidade “ilícita” nestes ca
sos permanece como um pano de fundo inconsciente que
influencia todas as relações familiares. Os pais podem ado

110
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

tar comportamentos extremamente cuidadosos e desafia


dos, ou desenvolver um medo extremo de perder a criança.
(Levinzon, 2004, p.46)

Ela também propõe pensarmos sobre a fantasia do “romance


familiar”, a qual ocorre tanto para os filhos biológicos como para
os filhos adotivos. Para as crianças que são criadas pelos seus pais
biológicos, essas fantasias podem ser consideradas uma brincadeira,
um jogo prazeroso de imaginação. Já para a criança adotiva o ro
mance familiar se entrelaça com uma realidade vivida. Nesse último
caso a criança, de fato, possui dois casais de pais, um biológico e
outro adotivo. Desenvolver este tipo de fantasia implica lidar com
o fato de ter tido pais que a geraram, mas que também a deixaram.
Os sentimentos de luto, rejeição, dor e incompreensão podem vir a
tona, assim como o medo de que os pais adotivos se ofendam de tal
maneira que os confrontem com um novo abandono.
Por outro lado, a criança adotiva também pode fantasiar que
ter continuado com seus pais a teria feito mais feliz. Para Le
vinzon (2004), esse tido de fantasia apresenta-se como dolorosa
aos pais adotivos, principalmente quando seus sentimentos de
vinculação parental e suas angústias com relação ao processo de
adoção não estão bem elaborados.

O grande desafio que se apresenta nestes casos é não con


fundir uma dimensão fantasiosa por parte da criança com
a realidade. Por isto, é importante que tenham uma boa
noção sobre o desenvolvimento infantil e do que é normal
mente esperado em uma criança. Em função dessas difi
culdades dos pais, o filho adotivo pode se ver privado da
possibilidade de construir e expressar fantasias defensivas
do tipo do “romance familiar”. Nesses casos, a relação com
a realidade torna a fantasia um elemento demasiadamente
agressivo e ameaçador. (Levinzon, 2004, p. 67)

Essa teoria coaduna com a fala das famílias pesquisadas, con


forme podemos visualizar a seguir.

111
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Na F[1][D] os conflitos apareceram nos primeiros anos de


convivência. No momento em que Joana saiu da figura de ma
drinha e inseriu-se na posição de mãe. A fantasia de que receberia
uma criança “boazinha” esteve presente na fala dessa mãe. Talvez
ela não tenha dado a real importância à história de sofrimento
vivida pela “filha” no que tange aos vários “abandonos” sofridos
por esta, na família biológica e, principalmente, talvez não te
nha havido amor suficiente nessa relação filial. Como dar limite
se não houve amor na construção do vínculo? Hipoteticamente
pode-se dizer que a não elaboração por parte da mãe da ma
ternidade com a filha foi um indicativo que contribuiu para o
desgaste na construção da relação filial. A forma encontrada pela
criança de manifestar suas angústias foi ameaçando seu irmão. O
ciúme que Isabel demonstrou ter com a chegada do irmão não
pareceu ter características patológicas, mas na verdade ser de or
dem natural, considerando a idade de transição entre a infância
e a adolescência vivida por Isabel e a fragilidade do vínculo de
filiação entre ela e sua mãe adotiva. Para Levinzon (2004):

[...] no contexto da adoção vivências dramáticas de privação,


sentimentos de abandono, falta de continência psíquica, re
jeição inconsciente dos pais adotivos, situações de separação
repetidas contribuem para o estabelecimento de um estado
interno de desvalia e desequilíbrio. (Levinzon, 2004, p. 100)

Não muito distante dessa realidade, observou-se que na F[2]


[D] a idealização de encontrar em Cláudia a filha desejada perpas
sou o imaginário de Janete não só nos primeiros anos de convivên
cia, mas durante todos os quinze anos em que estiveram juntas,
inclusive após a devolução. Os conflitos se intensificaram na ado
lescência da filha, momento em que esta refutou a rigidez imposta
pela mãe adotiva. Janete reproduziu com os filhos a rigidez rece
bida em sua criação. Nesse contexto familiar a negociação, princi
palmente na fase da adolescência de Cláudia, pareceu inexistente.

112
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Além dessa rigidez, outro fator que contribuiu para a intensifica


ção dos conflitos foi a falta de uma comunicação nítida entre mãe
e filha. A mãe, de forma mais acusativa, recriminou a filha por não
querer receber seu carinho e por não aceitar suas ordens, por outro
lado a filha dispensou críticas à mãe pela sua incompreensão, aspe
reza e agressões físicas ocorridas durante sua convivência.
Essa “disfunção” na F[2][D] pode ser explicada pela teoria
sistêmica como um momento que requer adaptação. Minuchin
(1982) considera que nessa fase a relação entre o filho e os pais é
perturbada, principalmente em se tratando da relação mãe-filha.
Segundo esse autor, a mãe pode resistir a qualquer mudança em
sua relação com o adolescente, inclusive pode atacar sua auto
nomia, a qual é intrínseca ao desenvolvimento. O autor coloca
ainda que, quando não há mudança na estrutura familiar, a ten
dência é surgirem configurações disfuncionais, que se repetirão a
cada vez que se apresentar um novo conflito.
Assim, a filha passou da expectativa idealizada para a “desadap
tada” e “desajustada”, o que levou à sua devolução. É importante
lembramos aqui que os dois filhos biológicos nessa família passa
ram também por essa fase de “desorganização”, inclusive fazendo
uso de drogas, no entanto, não foram “devolvidos” ou separados
da família. O que nos instiga a pensar que no caso da filha adotiva,
a construção do vínculo de filiação foi frágil desde o início.
Já na F[3][AP] o fator estressante para adaptação do novo
membro à família foi sua incessante solicitação de carinho e aten
ção, normal à fase de desenvolvimento infantil. Os pais idealiza
ram um filho que não requeresse muito sua atenção e seu afeto.
O anseio de contato com a família biológica também pareceu
algo que incomodou a família adotiva. A família também ver
balizou a idealização de um filho recém-nascido que pudesse ser
moldado a seus costumes, todavia a mudança de perfil surgiu
como um atrativo para agilizar o processo. Todas essas variáveis
suscitaram a reflexão sobre a necessidade de uma preparação ade
quada da família antes e durante o processo de adoção. Isso será
tratado no item seguinte.

113
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Na F[4][AP] observou-se que o desejo pela adoção da mãe


adotiva foi trabalhado antes e durante o processo de filiação e
compartilhado a todo o momento com a companheira e toda a
família extensa. As diferenças físicas e a idade da criança não se
constituíram em dificuldades encontradas no processo de filia
ção. Apesar de a criança não ter sido preparada no serviço de aco
lhimento para inclusão em uma família adotiva, ela encontrou
espaço nessa família para expressar seus anseios e medos, o que
contribuiu significativamente para sua vinculação afetiva.

6. A preparação da(s) criança(s) e do(s)


requerente(s) para adoção, a partir da
viabilização institucional
No que consiste uma boa preparação para a criança que está ca
dastrada para adoção e para as pessoas que pretendem adotar? Essa
indagação perpassou todos os discursos das famílias entrevistadas
e a análise dos desenhos dos respectivos filhos adotados. De for
ma que exigiu-nos uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto.
Salienta-se que não foi nossa intenção chegar a uma receita básica
sobre como preparar crianças e pais para o verdadeiro encontro de
filiação. O objetivo maior desse estudo foi mostrar os indicadores
que viabilizaram o encontro filial, apresentados pelos próprios su
jeitos entrevistados, no que se refere à preparação para adoção.
Para isso, foi notório considerar que o sucesso da adoção
também esteve inscrito na efetiva elaboração do luto da criança
em relação à sua família biológica. Insistimos na tese de que uma
criança não pode ir para adoção sem antes saber o que está acon
tecendo com ela, sem antes ter claro que sua família de origem
não é mais sua família legal, mas que essa mesma família pode
permanecer dentro dela afetivamente.
Por outro lado, entendemos que a família também precisa com
preender um pouco mais sobre a criança, precisa saber um pouco

114
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

mais sobre a história de vida que ela traz, saber o que ela vai precisar
que tipo de acolhimento será necessário oferecer, quais são os desejos
e os sonhos dessa criança. É imprescindível que tanto a criança como
a família se conheçam minimamente antes do encontro concreto.
A Lei 12.010/09 trouxe um avanço em termos de reflexão sobre
adoção, pois passou a exigir que os candidatos a pais por adoção
passem pelo processo de preparação. Todavia, a lei coloca isso an
tes do estudo psicossocial. Isso ainda continua sendo um entrave,
pois o espaço de tempo entre esse preparo, o estudo e o acolhimen
to de uma criança na família adotiva é muito extenso, salvo raras
exceções. Isso continua interferindo no distanciamento do que é
trabalhado nos programas de preparação para adoção e no que a
família vive em seu encontro real com a criança adotada. Talvez um
acompanhamento mais sistematizado no estágio de convivência
possibilitasse a essas famílias lidar com seus anseios e medos quando
a criança imaginada se torna real. Entendemos aqui que o processo
ideal de adoção necessita de dois momentos, o que antecede o psi
cossocial, e o que antecede a ida da criança para essa família.
Esta questão é bastante complexa, coordenar as necessidades
dos pais e das crianças representa um constante desafio para os
profissionais que lidam com o tema, pois requer tanto do Judici
ário como do Executivo uma sensibilização sobre a causa. Além
disso, requer ações pontuais, como a contratação de mais profis
sionais preparados sobre o tema para efetivação dos programas
de adoção, assim como o aumento no quadro funcional do Ju
diciário para a realização dos estudos psicossociais; a contratação
de profissionais preparados nos serviços de acolhimento, visando
uma preparação da saída da criança, mais grupos terapêuticos
com espaços para discussões das demandas reais que a criança
apresenta após o acolhimento na família adotiva e, sobretudo,
ações processuais que ultrapassem os entraves burocráticos.
Sobre o último ponto indicado acima, Winnicott (1999)
afirma que a demora pode ser séria e destruir um bom trabalho,
de modo que quando os pais recebem a criança, muita coisa já

115
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

aconteceu na vida dela. A demora e os adiamentos, quando os


pais já estão prontos, podem fazer com que estes percam a dispo
sição especial no momento certo para os cuidados com a criança.
Lenvizon (2004) corrobora essa ideia quando afirma que:

[...] é comum os pais receberem um bebê que teve cuidados


inadequados antes de ser adotado, e como resultado pode-se
dizer que eles não apenas receberam um bebê, mas também
um “problema psicologicamente complexo”. O grau de per
turbação ambiental que a criança sofreu antes da adoção
influencia sobremaneira o seu desenvolvimento emocional
e possibilita uma estimativa quanto à futura necessidade de
um acompanhamento profissional. (Levinzon, 2004, p. 22)

A autora complementa que quando a criança passou por pri


vações ambientais importantes e sua história inicial não foi sufi
cientemente boa em relação à estabilidade ambiental é necessário
que os requerentes tenham clareza sobre a demanda afetiva que
essa criança colocará a eles. Nesse sentido, é imprescindível que
os pais sejam alertados, pois o cuidado com essa criança, a qual
exigirá deles mais do que um simples cuidado básico, a persistên
cia do afeto é que determinará a qualidade do vínculo de filiação.
A partir desse contexto, propomos uma reflexão sobre aquilo
que as famílias e respectivos filhos adotivos disseram sobre a pre
paração durante o processo de adoção.
Observou-se que todas as crianças participantes desse estudo
não foram preparadas para a adoção. Todavia, ressaltamos que a
criança da F[1][D] e a da F[4][AP] receberam atendimento te
rapêutico particular depois da efetivação do processo de adoção.
Todas as crianças, inclusive aquelas que se encontraram integra
das afetivamente à família adotiva, não conseguiram transpor o
vínculo da família biológica para a família adotiva em sua intei
reza. Para aquelas que continuaram com suas famílias adotivas,
vemos que essa transposição está se dando gradativamente no
ritmo pessoal de cada filho adotivo.

116
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Para Schettini (2009), a transposição do vínculo afetivo é a


tarefa mais delicada vivida pela criança, porque implica que ela
saiba com clareza sobre sua família biológica e os motivos que
levaram à sua adoção.

É preciso levar em conta o risco que a criança vive ao se per


ceber cada vez mais distante da sua origem (pais biológicos)
Tal situação poderá produzir o rompimento sem que ainda
o novo vínculo afetivo com a família substituta esteja con
solidado. O arrojo do trapezista que se lança para agarrar-se
às mãos do seu parceiro ilustra bem o sentimento de ameaça
contido na transposição afetiva que consiste no espaço, por
menor que seja, entre soltar-se do seu trapézio e sentir-se
seguro nas mãos do companheiro. (Schettini, 2009, p.58)

Nesse sentido é que se faz imprescindível a preparação da


criança e da família, pois ambas as partes se encontram envolvi
das emocionalmente em demasiado para ponderar sobre os desa
fios inerentes ao processo da filiação adotiva. A falta de preparo
pode se transformar em uma armadilha nos momentos de con
flito, desestabilizar o que já foi construído ao longo do convívio
familiar e levar ao fracasso da adoção.
As famílias entrevistadas foram claras ao verbalizarem sobre a
ausência da preparação em seus processos e as dificuldades ocor
ridas em função disso na convivência com o filho adotado. Vere
mos como se processaram essas dificuldades a seguir.
No que tange à F[1][D], esta se queixou de ter recebido
orientação ineficiente do conselho tutelar, escola, rede de saúde e
VIJ. A questão central é: que tipo de orientação essa mãe procu
rou nessas redes sociais? Ela procurava ajuda ou argumentos para
não ficar com a filha? Vimos a partir da fala da mãe adotiva que
no conselho tutelar, buscou registrar as desavenças com a filha,
em uma tentativa frustrada de repreendê-la por seus atos “inade
quados”. Na escola, procurou nos professores e colegas da filha
comprovar suas invenções fantasiosas e com isso buscava alia

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

dos que comprovassem que a filha não era “normal”. Na saúde


buscou-se acompanhamento psiquiátrico, uma vez que já tinha
internalizado que a criança apresentava algum transtorno men
tal. E no Judiciário buscou encaminhamentos para saúde, especi
ficamente tratamento psiquiátrico e psicoterápico. Argumentou
não ter encontrado nenhuma ajuda, e por isso a devolução.
Vimos que a F[1][D] teve dificuldade em expressar em todas
as instâncias em que procurou ajuda sua real necessidade de lidar
com a filha. Todos os encaminhamentos e orientações recebidos
soaram para a mãe como equivocados. Essa certeza que a mesma
traz para expressar a falta de apoio afirma nossa hipótese de que
essa vinculação entre mãe e filha foi construída em uma base frágil
e ausente de afeto, permeada pela falta de diálogo, principalmente.
Por outro lado, a F[2][D] disse ter recebido orientações do
Judiciário para devolver a filha devido aos “problemas” causados
por ela. Porém, disse ter buscado nessa devolução uma alterna
tiva para que a filha fosse encaminhada para uma clínica de de
sintoxicação. Todavia, a mãe não disse ter procurado ajuda na
saúde, antes da devolução. Outra contradição da fala dessa mãe
é que ela mantém financeiramente um filho adotivo dependente
químico fora de sua residência, que inclusive tem 17 anos. Por
que pedir o acolhimento institucional de um e do outro não? Ci
tamos mais uma vez a não concretização da filiação nessa família.
Em contrapartida, faltou a essa filha orientação sobre seus
direitos. Ela foi encaminhada para o serviço de acolhimento e
depois passou por uma clínica de desintoxicação. Após comple
tar 18 anos, foi encaminhada para o mercado de trabalho e não
recebeu nenhuma orientação da Justiça ou outro serviço de defe
sa da criança e do adolescente sobre seus direitos adquiridos após
conviver quinze anos com uma família adotiva. Entende-se que
mesmo que o processo legal não tenha sido concluído, a mesma
poderia ter recebido apoio financeiro da família adotiva, após a
devolução, já que o apoio afetivo não foi possível.
Já a F[3][AP] mencionou ter recebido uma orientação positi
va do Setor de Adoção da VIJ no momento em que os procurou

118
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

para devolver o filho. A família se mostrou muito agradecida pela


orientação, porém mencionou que deveria haver mais atendi
mentos para os pais, antes, durante e após o processo de adoção.
Mencionaram não saber lidar com a questão da homossexualida
de da família de Júlia, por exemplo.
Por fim, a F[4][AP] pareceu bastante estruturada para a ado
ção, devido ao vínculo externo desenvolvido em seu processo psi
coterápico. Disse não ter recebido orientação da VIJ, recriminou
a burocracia e a discriminação sofrida devido a sua opção sexual.
Outra característica importante fez referência à preparação
em relação à família extensa. Tanto na F[1][D] como na F[2]
[D] as famílias extensas não foram consultadas nem informadas
sobre o desejo da adoção. Enquanto que nas F[3][AP] e F[4][AP]
as famílias extensas deram suporte afetivo antes, durante e após o
encerramento do processo de adoção.
Importante ressaltar que as F[1][D] e F[2][D] não estavam
habilitadas na VIJ, tendo assim esta adoção caráter intuitus perso
nae, enquanto que as F[3][AP]e F[4][AP] passaram por todos os
trâmites legais da adoção.
Todas as adoções citadas acima aconteceram antes da apro
vação da Lei 12.010/09, o que viabilizou a adoção intuitus perso
nae nos dois primeiros casos. Os vínculos externos com a equipe
psicossocial da VIJ para as famílias F[1][D], F[2][D] e F[4][AP]
foram negativos e para a F[3][AP] transitou entre o positivo e
o negativo, uma vez que esses operadores do direito orientaram
sobre a permanência da criança com a família, durante a primeira
fase de adaptação, momento em que esta passou por uma perda
dolorosa e teve dificuldades com a chegada da criança, porém a
mesma VIJ não ensejou esforços suficientes na orientação a essa
família sobre a vinculação e manutenção do vínculo dos irmãos
adotados em separado, deixando a cargo das famílias F[3][AP] e
F[4][AP] decidirem sobre a manutenção desses contatos. Faltou
segurança à F[3][AP], a qual inclusive fantasiou a possibilidade
de perder afetivamente o filho para a F[4][AP], algo que merecia
atenção da equipe psicossocial da Justiça.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

As F[1][D] e F[2][D] buscaram no serviço de acolhimento


uma alternativa para se livrar do “problema” que as filhas causa
vam. Por outro lado, as F[3][AP] e F[4][AP] viram o serviço de
acolhimento incapaz de proporcionar afeto e sustentar cuidados
essenciais para o bom desenvolvimento dos filhos.

7. Vínculo familiar estendido


É notório salientar a importância que a família extensa tem
no processo de adaptação de um filho adotivo. A filiação adotiva
não se restringe aos pais, mas se estende aos avós, primos, tios e
amigos. Uma criança é adotada por duas famílias, às vezes até
mais, quando inclui os amigos. Os avós, tios, primos e amigos
da família adotante têm um papel fundamental no processo evo
lutivo de introjeção dos hábitos, costumes, tradições e na trans
posição dos vínculos de filiação da criança a sua nova família,
principalmente em se tratando de adoções tardias.
Schettini (2009) orienta-nos que quanto mais amplo for o
reconhecimento da interação da criança adotada na família, mais
segura ela se sentirá em face do sentimento de abandono que
traz dentro de si. Nesse sentido, entendemos que a não aceitação
da criança está relacionada a uma série de fatores, dentre eles
destacamos os que mais apareceram nas famílias pesquisadas: a
interrupção da linhagem, a história pregressa da criança como fa
tor determinante de seu caráter e por último, mas não menos im
portante, a ameaça do desconhecido e a aceitação das diferenças.
Outras pesquisas que já foram realizadas com pais adotivos
de várias partes do Brasil, como é o caso da de Ebrahin (1999
apud Schettini, 2006, p. 173), que entrevistou 81 pais adotivos e
a de Weber (2001 apud Schettini, 2006, p. 173) com 240 parti
cipantes, constataram que o apoio dos familiares e dos amigos foi
considerado um fator decisivo para o sucesso da adoção. Dessa
forma, reafirmamos que um dos fatores que favorece o sucesso
da adoção é o apoio recebido por sua rede social primária.

120
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Culturalmente, os “laços de sangue” têm um grande valor. O


desejo de se ver no outro, através da genética, pode estar relacionado
ao sentimento de permanecer vivo, mesmo após a morte. De certa
forma, o filho adotivo vem frustrar essa expectativa, embora poste
riormente, salvo raras exceções, descubra que as marcas genéticas
não se sobrepõem às afetivas. Todavia, enquanto permanecer esse
desconforto o filho adotivo não se sentirá incluído na nova família.
A experiência tem mostrado que a convivência com o filho
adotivo acaba por contagiar a família extensa, as próprias crian
ças se encarregam de minar a resistência a sua aceitação. Hamad
(2010) argumenta que quando isso não acontece é necessário
que os pais adotivos assumam a defesa do filho adotivo, limi
tando seu contato com a família extensa, no intuito de evitar
constrangimentos e discriminação.
Dentro desse contexto, observou-se que uma das dificuldades
encontradas pela mãe adotiva da F[1][D] foi a falta de clareza em
aceitar a importância da família extensa, principalmente a falta do
envolvimento da avó materna adotiva que residia na mesma casa.
Nesse caso, a família extensa também não foi informada previa
mente do desejo pela adoção, mesmo porque esse talvez não tenha
existido realmente. A recusa pela adoção persistiu durante os cin
co anos de convivência e a mãe adotiva nunca reagiu às discrimi
nações e preconceitos dispensados por essa família extensa à filha.
Uma hipótese identificada neste caso foi a fragilidade com
que foram construídos os vínculos de filiação nessa família. Ob
servou-se que a relação afetiva entre mãe e filha adotiva prati
camente não existiu. A avó materna adotiva, por sua vez, tinha
grande dificuldade em interagir de forma afetiva com sua filha e
a neta adotiva, devido à perda do filho biológico. O luto dessa
perda parece não ter sido elaborado por essa família. Nos dese
nhos que a criança fez, o afeto apareceu de forma fragmentada,
foi possível visualizar essa hipótese na observação das pessoas que
estavam distantes umas das outras, e sem partes do corpo como,
por exemplo, a ausência de braços nos desenhos.

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Não muito distante dessa realidade, observou-se que na F[2]


[D] a família extensa, incluindo os outros filhos adotivos, não
foram consultados sobre a adoção. Na fala da adolescente, essa
mesma família a aceitou. No entanto, devido à rigidez da mãe
adotiva, a família extensa não interferiu em sua devolução. Cor
robora essa hipótese a teoria de Minuchin (1982), quando o
autor defende que famílias muito rígidas buscam a todo preço
manter um status quo inatingível, pois vivem com muita difi
culdade os períodos que exigem mudança e maturação. Para ele:

[...] às famílias organizadas rigidamente muitas vezes se apre


sentam como não precisando ou não querendo qualquer
mudança na família. Os padrões transacionais preferidos são
mantidos inflexivelmente. (Minuchin, 1982, p. 219)

Essa dinâmica estava perceptível na fala da mãe adotiva de


F[2][D]. Por outro lado, observou-se que o vínculo interno e ex
terno desenvolvido pela adolescente com essa família foi um dos
fatores que a ajudaram a superar as dificuldades da devolução.
Já nas F[3][AP] e F[4][AP], identificamos um apoio positivo
das famílias extensas, principalmente no segundo caso, em que
a família da mãe adotiva e de sua companheira adotaram de for
ma plena a criança. Essa afirmação foi comprovada pelo segundo
desenho da criança, a qual representou graficamente toda a famí
lia, inclusive aqueles que não moravam em sua residência. Nesse
caso, a criança demonstrou estar integrada à nova concepção de
família homoafetiva. Nessas duas famílias havia diálogo entre os
requerentes e os membros internos e externos da família e eles
puderam participar ativamente do desejo pela adoção.

122
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

8. A devolução: o silêncio dos pais versus


o sofrimento dos filhos
Entendemos aqui como silêncio o mais íntimo e doloroso
dos sentimentos vivenciados pelas quatro famílias pesquisadas, e
tantas outras que vivenciam o desencontro no processo de ado
ção. Talvez a maior dor dessas famílias esteja no “fracasso” em
não conseguirem transpor as barreiras dos seus anseios pessoais.
Quando uma adoção não “dá certo” é necessário pensar nos
motivos que levaram essas famílias ou respectivos filhos a não
processarem o verdadeiro encontro. Poderemos então visualizar
não apenas uma resposta, mas várias. Em geral, a primeira coisa
que pensamos é quem foi o culpado da devolução e não quais os
motivos que suscitaram esse desencontro.
Na F[1][D] observamos que o silêncio da mãe se caracterizou
como alívio a partir da devolução da filha e das acusações à rede
de apoio, enquanto que para a criança esse silêncio caracterizou
-se como sofrimento, visto na expressividade dos seus desenhos.
Contudo, a criança demonstrou manter vivos alguns planos fei
tos com a mãe adotiva, o que representou uma possibilidade de
uma aproximação com essa.
No caso da F[2][D] observamos que a mãe, em uma tentati
va de justificar seu ato de devolução, culpa a filha pelo fracasso da
adoção. Na teoria do vínculo de Pichon-Rivière (1986) esse tipo
de vínculo é denominado como paranoico, o qual se caracteriza
por reclamações e desconfiança constante do outro. Entretanto, a
filha não se viu nem no papel de vítima, nem no papel de acusa
dora da mãe adotiva. Pelo contrário, sua narrativa caminhou para
a tese de que o encontro filial não foi possível porque ela tinha
um pensamento diferente do de sua mãe. No entanto, verbalizou
um profundo sofrimento por não mais conviver com seu irmão
biológico, que continuou morando com a mãe adotiva.
Nesse caso, observamos a partir da teoria do vínculo de
Pichon-Rivière (1986) que Cláudia encontrou suporte para su

123
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

perar a “rejeição” da mãe adotiva em dois tipos de vínculo: in


terno e externo, desenvolvidos durante sua convivência com a
família adotiva e após sua devolução ao serviço de acolhimento.
Para clarear essa afirmação, nos reportamos à teoria do vínculo
de Pichon-Rivière (1986), a qual trabalha o conceito de vínculo
interno como aquele que é condicionado pelos aspectos externos
e visíveis da conduta do sujeito. Para ele, o processo de aprendi
zagem da realidade externa é determinado pelos aspectos ou ca
racterísticas obtidas da aprendizagem prévia da realidade interna,
a qual se dá entre o sujeito e seus objetos internos. Hipotetiza
mos, então, que a vinculação afetiva com a mãe adotiva, com o
irmão biológico e com as pessoas de referência no serviço de aco
lhimento, mesmo imbuída de conflitos, foi fundamental para o
crescimento pessoal de Cláudia e o enfrentamento da devolução.
Buscamos novamente em Schettini (2009) uma forma de
entendermos a singularidade do processo de adoção. Para ele,
as armadilhas do amor estão no fato de querermos aprisionar as
pessoas: “[...] há quem aprisione o filho para forjá-lo segundo
seus desejos pessoais” (Schettini, 2009, p. 78). Todavia, observa
mos na F[3][AP] e na F[4][AP] que as crianças foram amadas,
independentemente das diferenças e dificuldades que apresenta
ram durante a convivência diária com a família adotiva.
Então, é possível considerar que nos dois casos, F[3][AP] e F[4]
[AP], um dos indicadores que evitou a devolução pode estar fun
damentado no olhar cuidadoso desenvolvido pelos pais em relação
aos medos que os filhos demonstraram na relação de filiação. O es
tabelecimento da relação afetiva e o apego seguro aos pais adotivos
tornaram-se um alento para o filho adotado, preenchendo assim
as lacunas deixadas pelas perdas do vínculo inicial de suas origens.
Vimos que algumas vezes as incertezas dos pais adotivos se
confundiram com as dos filhos. Algumas vezes essas dores atingi
ram mais a uns que a outros, principalmente pelo sentimento de
impotência presente também nas falas das F[3][AP] e F[4][AP].
Todavia, pelo afeto e diálogo foi possível superar esses desafios.

124
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

Assim, pensar o quanto as experiências humanas particula


res são cumulativas e enriquecem a convivência de uns com os
outros dá-nos a oportunidade de refletir sobre que o Pequeno
Príncipe nos ensinou: “só se vê bem com o coração, pois o es
sencial é inacessível aos olhos” (Sant-Exupèry, 2000, p. 30). Tal
pensamento é norteador em relação à importância que devemos
dar ao não dito pelas famílias adotivas e seus respectivos filhos.

125
Considerações finais
Encontros e desencontros nos
processos de adoção
A compreensão da vinculação afetiva na adoção teve como aporte
teórico a teoria familiar sistêmica e a teoria do vínculo de Pichon-Ri
vière (1986). Essas duas teorias viabilizaram entender o processo de
adoção pela análise dos vínculos internos e externos desenvolvidos
no processo de filiação. Além disso, as análises dos discursos e da ex
pressividade das crianças contaram com a leitura prévia de algumas
bibliografias que circunscrevem o tema da adoção.
A partir do entendimento teórico foi possível o aprofunda
mento das zonas de sentido comuns a todos os sujeitos entrevista
dos que se desenvolveram na seguinte ordem: o desejo e sua falta; a
relação entre as motivações, o altruísmo e a realidade vivenciadas no
processo de adoção; a desvelação da família de origem como condi
ção do vínculo; a criança imaginária e a criança real; a preparação da
criança e do requerente para adoção, a partir da viabilização institu
cional; o vínculo familiar estendido e por fim a devolução a partir
da análise do silêncio dos pais e do sofrimento dos filhos adotivos.
Nesse sentido, identificamos como indicadores favoráveis à
adoção: a elaboração das motivações dos requerentes, a partir do
apoio institucional contínuo e do apoio de toda a rede relacional
da família adotante. Concluímos que quanto mais claros esta
vam para os requerentes os desafios da adoção, mais elaborado e
aceito foi para eles trabalharem suas limitações. Todavia, identi
ficamos uma preparação mais elaborada apenas na F[4][AP], que
inclusive não partiu do acompanhamento do Judiciário, nem do
serviço de acolhimento e sim da contratação de serviços particu
lares por essa família adotante.
Há de se considerar que tanto pais quanto filhos adotivos
devam ter à sua disposição serviços públicos que disponham de

127
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

uma equipe preparada, capaz de auxiliá-los nas dificuldades en


contradas durante o encontro real com a criança, e não só durante
a tramitação legal do processo de adoção. Não descaracterizamos
aqui a importância dos grupos de apoio à adoção, pelo contrário,
são eles os responsáveis, na realidade do Distrito Federal, pelo
sucesso e concretização de muitas adoções.
Os resultados desse estudo nos mostraram que o vínculo de
filiação perpassou o vínculo que foi construído com a rede relacio
nal dos requerentes. Assim, o apoio familiar e dos amigos se tornou
fundamental para a superação dos conflitos de ordem emocional.
No entanto, vimos também que tal interação aconteceu gradativa
mente, à medida que esses membros processaram o encontro real
com a criança. Porém, para as famílias que “rejeitaram” a criança
adotiva observamos que não houve essa interação.
Se por um lado observamos que foi necessária uma boa ela
boração das motivações por parte dos pais adotivos e uma acei
tação por parte da família extensa, por outro identificamos que
a adoção se tornou um árduo caminho tanto para os requerentes
como para o filho adotado, quando este último não passou pela
elaboração do luto de sua família de origem.
A expressividade dos desenhos das crianças adotadas nesse es
tudo nos indicou que a transposição do vínculo de filiação estava
diretamente ligada à revelação sobre sua origem e à disponibilida
de afetiva da família adotante em acolher as dúvidas e incertezas
dessas crianças. Observamos que esse processo se tornou menos
doloroso quando os requerentes compreenderam suas limitações
e as singularidades da história de vida da criança.
Independentemente de as crianças terem ou não permaneci
do com suas famílias adotantes, em todos os casos estudados aqui
a transposição do vínculo de filiação não se deu em sua inteire
za, percebemos que esse processo ainda está sendo construído
na convivência dessas famílias. Essa questão é complexa e requer
um olhar mais atento dos profissionais que lidam com o tema de
adoção, pois há crianças que conseguem elaborar essa transposi

128
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

ção de forma tranquila, enquanto outras permanecem boa parte


de sua convivência, se não toda, tentando efetivar o verdadeiro
encontro com seus pais adotivos.
Observamos também que a necessidade de ajudar o próximo
foi um desejo manifestado pelas famílias F[1][D], F[2][D] e F3]
[AP], inclusive também visto nas crianças da F[1][D] e F[4][AP],
que se projetaram como futuras cuidadoras. Essa assertiva nos fez
refletir sobre como a presença de eventos especialmente proble
máticos no âmbito familiar, principalmente na infância, podem
interferir nas ações futuras dessas pessoas.
Para exemplificar essa hipótese nos reportamos aqui a outro
estudo que não faz referência específica à adoção, mas que aponta
para a assertiva de que algumas pessoas são influenciadas na vida
adulta pelas vivências que tiveram em sua infância. De acordo
com esse estudo (Miller, 1986 apud Magalhães, 2001) crianças
que foram usadas em sua infância para atender desejos narcísicos
de seus pais ou cuidadores aprenderam a ignorar na vida adulta
suas próprias necessidades e adquiriram uma responsabilidade
emocional intensa e uma percepção aguçada das necessidades
alheias, esse papel provavelmente foi assumido na infância destas
crianças como uma necessidade de manter a homeostase dessas
famílias. Embora isso não caracterize uma predestinação destas
crianças tornarem-se prisioneiras da infância que tiveram, exis
te nelas provavelmente uma predisposição para exercerem uma
função de cuidadoras.
Segundo Holland (1997 apud Magalhães, 2001, v. 21, p. 3),
“o indivíduo social, seleciona metas, interesses e tarefas nos quais
pode usar sua habilidade para treinar ou modificar o compor
tamento de outra pessoa”. Para o autor esses indivíduos estão
constantemente interessados no bem-estar de pessoas depen
dentes, pois é nessas atividades que o indivíduo é recompensado
recebendo amor, reconhecimento e status no âmbito pessoal e
profissional. O autor ainda nos indica que:

129
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

em relação aos antecedentes familiares dessas pessoas, os pais


parecem dar alto valor ao autocontrole e baixo valor à curiosi
dade. Suas necessidades de relacionamento cordiais são cons
cientes, mas suas necessidades de dependência, admiração,
poder e prestígio são geralmente inconscientes. (op. cit.)

Nesse sentido, os resultados do estudo sobre a “compreensão


do processo de vinculação adotiva dentro da dinâmica familiar”
nos apontam para a necessidade de um estudo detalhado sobre
a origem e as vivências familiares dos requerentes à adoção e,
ainda, nos indica como um estudo desse porte seria significativo
para o entendimento sobre as motivações que levaram essas famí
lias a buscarem na adoção uma realização pessoal. Reafirmamos
aqui que não existem motivações ruins, existem motivações que
precisam ser melhor trabalhadas durante o período de convivên
cia, pois o desvelar-se de um desejo se dá de forma gradual e
contínua, muitas vezes já na convivência com o outro.
Espera-se que, no âmbito do Judiciário, o estudo dos fenômenos
que levaram à “devolução” da criança adotiva auxilie psicólogos e
assistentes sociais a pensarem em estratégias anteriores à separação da
criança de sua família adotiva. No caso da devolução ser necessária,
exemplo das F[1][D] e F[2][D], é importante refletir sobre a real ne
cessidade de um apoio profissional especializado, após o encaminha
mento dessas crianças para o serviço de acolhimento, que amenize o
contato doloroso da repetição de suas histórias de abandono.
Por outro lado, no âmbito do serviço de acolhimento, espera-se
que os responsáveis técnicos pelas crianças estejam atentos aos
sentimentos e desejos que perpassam o imaginário delas, prepa
rando-as para uma nova vinculação adotiva.
Tanto no judiciário como no serviço de acolhimento enten
demos que os técnicos responsáveis pelo acompanhamento do
processo ocupam um lugar privilegiado para a discussão da temá
tica, sobretudo quando provocam os requerentes a uma reflexão
aprofundada sobre seu desejo de adotar, desmistificando assim os
preconceitos, mitos, laços de sangue, pois há de se primar para que

130
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

as famílias trabalham muito suas motivações para não transferirem


para seus futuros filhos ansiedades e frustrações pessoais. Entende
mos que não existem motivações erradas, toda motivação deve ser
refletida, mesmo motivações que não sejam relativamente corre
tas. Assim, a adoção assume a função de inserir tanto no adotado
como no adotante a marca do apego afetivo incondicional.
Em síntese, concluímos que a adoção pode oferecer às crian
ças um lar e uma família estável, e aos pais a oportunidade de
realizar o seu papel parental. No entanto, quando examinamos
o universo da adoção, não podemos deixar de considerar que ela
envolve dores e desafios, e que em sua origem comumente encon
tramos histórias de muito sofrimento, que podem ser mais bem
enfrentadas se tanto os requerentes quanto as crianças que estão
para adoção forem melhor preparados para essa empreitada.
E por último, talvez o mais importante a ser observado na
queles que participaram do processo de adoção, cada um à sua
medida, é a ressignificação pessoal que os sujeitos da pesquisa nos
apresentaram. De alguma forma essas famílias e seus respectivos
filhos se transformaram, alguns mais pela dor e outros pela ale
gria do verdadeiro encontro.
Observamos que na F[1][D] e na F[2][D] faltou viver o que
Lispector (1984) teceu em sua poesia: “Renda-se, como eu me ren
di. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se
preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
A tese que insiste em se confirmar é a de que nascemos indi
víduos e à medida que crescemos nos tornamos pessoas na convi
vência com outras pessoas. Assim, a forma e os caminhos que essas
pessoas escolheram para conviver umas com as outras é que de
terminou se a adoção possibilitou o verdadeiro encontro parental.
Talvez essa seja a grande descoberta que viabiliza o verdadeiro
encontro na adoção: fazer com que os envolvidos no processo
(famílias, crianças adotáveis e profissionais) reflitam continua
mente sobre os desafios inerentes ao processo de adoção e as pos
sibilidades em relação à transposição desses desafios, antes que o
conflito ganhe a dimensão da devolução.

131
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Como questão não menos importante, é preciso fazer uma


reflexão sobre as condições das crianças disponíveis para a ado
ção. Aquelas que estão em instituições de acolhimento têm, na
maioria, uma história vinculada à desigualdade social e à vio
lência, também presente no descaso das políticas públicas e da
sociedade. O encontro de uma família, biológica ou adotiva,
passa por trâmites burocráticos vinculados ao poder do aparato
judiciário, às difíceis condições em que os técnicos e profissionais
trabalham e a preconceitos e discriminações. O processo de ado
ção implica pois, em levar em conta as relações entre pessoas e
seus vínculos e as relações contextuais em que se intrincam e que
condicionam as pessoas.

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GLOSSÁRIO
Sistema de Garantia dos Direitos
É o conjunto de órgãos, entidades, autoridades, programas e
serviços de atendimento a crianças, adolescentes e suas respec
tivas famílias, que devem atuar de forma articulada e integrada
na busca de sua proteção integral, nos moldes do previsto pelo
ECA e pela Constituição Federal. Estes, por sua vez, ao enu
merar direitos, estabelecer princípios e diretrizes da política de
atendimento, definir competências e atribuições, instalaram um
sistema de “proteção geral de direitos” de crianças e adolescentes
cujo intuito é a efetiva implementação da Doutrina da Proteção
Integral. Esse sistema convencionou-se chamar de Sistema de
Garantia de Direitos. Nele incluem-se princípios e normas que
regem a política de atenção a crianças e adolescentes cujas ações
são promovidas pelo Poder Público (em suas esferas: União, esta
dos, Distrito Federal e municípios e Poderes Executivo, Legisla
tivo e Judiciário) e pela sociedade civil, sob três eixos: promoção,
defesa e controle social.

Proteção Social
Entende-se por proteção social as formas institucionalizadas que
as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de
seus membros. Tais sistemas decorrem da ocorrência de certas vi
cissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença,
o infortúnio, as privações. Neste conceito incluem-se também
tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens
materiais (como a comida e o dinheiro) quanto os bens culturais
(como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração,
sob várias formas, na vida social. Ainda, os princípios reguladores
e as normas que, com o intuito de proteção, fazem parte da vida
das coletividades (DiGiovani, citado em PNAS, 2004).

141
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

Tomando por base esse conceito, assume-se que a proteção


social se expressa a partir de um sistema de medidas pelas quais a
sociedade se organiza para que seus membros tenham apoio para
superar suas vicissitudes. Neste conceito incluem-se principal
mente aquelas medidas que são voltadas à superação de vulnera
bilidades sociais decorrentes de pobreza e de privação.
No que se refere à proteção social de crianças e de adolescen
tes, no Brasil, as medidas diretamente protetivas estão expressas
nos artigos 101 e 129 da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA). São também parte dessa proteção as de
terminações expressas pelo ECA sobre a preservação dos vínculos
familiares originais, recomendando evitar, sempre que possível
e no melhor interesse da criança, rupturas que possam compro
meter o seu desenvolvimento. O Plano Nacional de Assistência
Social – PNAS (2004, p. 19-20) elenca as seguintes garantias
como de responsabilidade expressa do Estado e da sociedade em
relação à proteção social:
- de sobrevivência, através de benefícios continuados que asse
gurem proteção básica às pessoas e famílias em situação de forte
fragilidade;
- de convívio, através de intervenções, cuidados e serviços que
restabeleçam vínculos pessoais, familiares e de vizinhança;
- de acolhida, expressa em ações e cuidados destinados à pro
teção dessas pessoas e famílias, restaurando sua autonomia, capa
cidade de convivência e de protagonismo.
O PNAS aponta, ainda, duas modalidades de proteção social:
1) A Proteção Social Básica, destinada à população que vive
em situação de vulnerabilidade social decorrente de pobreza e
de privação. Esta modalidade de proteção objetiva prevenir si
tuações de risco através do desenvolvimento de potencialidades
e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Ela é
operada a partir de serviços, programas e projetos locais de aco
lhimento, convivência e socialização de famílias e de indivíduos,
conforme a situação de vulnerabilidade apresentada. Os benefí
cios previstos dentro da Proteção Social Básica são:

142
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

a) Os Benefícios Eventuais: estão previstos no art. 22 da Lei nº


8.742, de 7 de dezembro de 1993, a Lei Orgânica de Assistência
Social (Loas). Juntamente com os serviços socioassistencias, eles
integram organicamente as garantias do Suas com fundamenta
ção nos princípios de cidadania e dos direitos sociais.
b) Os Benefícios de Prestação Continuada (BPC): configuram-se
como elementos potencializadores da proteção ofertada pelos servi
ços de natureza básica ou especial, contribuindo dessa forma com o
fortalecimento das potencialidade de indivíduos e familiares.
c) O Protocolo de Gestão Integrada de Serviços, Benefícios e
Transferências de Renda no âmbito do Suas: trata dessa articulação
entre a prestação dos Benefícios Eventuais e os serviços socioas
sistenciais. Compõem a Proteção Social Básica, dada a natureza
de sua realização.
A Proteção Social Básica atua por intermédio de diferentes
unidades. Dentre elas, destacam-se os Centros de Referência de
Assistência Social (Cras) que são uma unidade pública estatal des
centralizada da Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
O Cras atua como a principal porta de entrada do Sistema
Único de Assistência Social (Suas), dada sua capilaridade nos ter
ritórios e é responsável pela organização e oferta de serviços da
Proteção Social Básica nas áreas de vulnerabilidade e risco social
e a rede de serviços socioeducativos direcionados para grupos es
pecíficos, dentre eles os Centros de Convivência para crianças,
jovens e idosos. Dividem-se em três principais eixos de atuação:
o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif); os
Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, que são qua
tro, organizados por faixa etária (crianças, adolescentes, jovens
e idosos), e o Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para
Pessoas com Deficiência e Idosas;
2) A Proteção Social Especial é uma modalidade de aten
dimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se en
contram em situação de risco pessoal e social. As intervenções
nesta modalidade de proteção prevêem estratégias que visem à

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Patrícia Jakeliny F. S. Moraes | Vicente de Paula Faleiros

reestruturação do grupo familiar, à elaboração de novas referên


cias morais e afetivas, à auto-organização e à conquista da au
tonomia. O Centro de Referência Especializada em Assistência
Social (Creas) é a unidade pública estatal que oferta serviços da
proteção especial, especializados e continuados, gratuitamente a
famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direi
tos. Além da oferta de atenção especializada, o Creas tem o papel
de coordenar e fortalecer a articulação dos serviços com a rede de
assistência social e as demais políticas públicas. Prioriza a reestru
turação dos serviços de abrigamento e de novas modalidades de
atendimento para aqueles que não contam com a proteção e o
cuidado de suas famílias. A atenção à proteção social especial se
organiza a partir de níveis de complexidade:
- proteção social especial de média complexidade, que difere da
proteção básica por se tratar de um atendimento dirigido às situ
ações de violação de direitos. Essa proteção é destinada às famí
lias e indivíduos que, mesmo tendo tido seus direitos violados,
não tiveram seus vínculos familiar e comunitário rompidos. Há
cinco serviços de média complexidade, divididos por público,
sendo eles: atendimento a adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa, que visa desenvolver atividades que possibilitem
uma nova perspectiva de vida futura. Já no caso de indivíduos
que enfrentaram afastamento do convívio familiar devido à apli
cação de alguma medida judicial, é oferecido o Serviço de Prote
ção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi).
Pessoas com deficiência, idosas e suas famílias também encon
tram acompanhamento específico. Nessa situação, os indivíduos
são acompanhados para prevenir o preconceito e a exclusão. Para
pessoas em situação de rua, as atividades desenvolvem as relações
sociais para a construção de novos projetos de vida.
Os profissionais do Creas ainda trabalham com um quinto
e último serviço, o de abordagem social. Nesse caso, o objetivo é
fornecer amparo e acompanhamento assistencial a pessoas que
utilizam as ruas como forma de moradia e/ou sobrevivência ou

144
Adoção e Devolução: Resgatando Histórias

que são vítimas de exploração sexual ou trabalho infantil. En


quanto alguns serviços devem ser ofertados obrigatoriamente no
CREAS, outros podem ser apenas a ele referenciados.
- a proteção social especial de alta complexidade, destinada às
famílias e indivíduos que se encontrem sem referência e/ou em
situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo fa
miliar e/ou comunitário. De acordo com a Resolução nº 109, de
11 de novembro de 2009, que dispõe sobre a Tipificação Nacio
nal dos Serviços Socioassistenciais, quatro serviços compõem a
PSE de Alta Complexidade: Serviço de Acolhimento Institucional
(que poderá ser desenvolvido nas modalidades de abrigo institu
cional, casa-lar, casa de passagem ou residência inclusiva); Serviço
de Acolhimento em República; Serviço de Acolhimento em Família
Acolhedora; e Serviço de Proteção em situações de Calamidade Pú
blica e de Emergência.

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Título Adoção e Devolução: Resgatando Histórias
Autor Patrícia Jakeliny F. S. Moraes
Vicente de Paula Faleiros
Coordenação Editorial Kátia Ayache
Assistência Editorial Augusto Pacheco Romano
Capa e Projeto Gráfico Matheus de Alexandro
Assistência Gráfica Bruno Balota
Preparação e Revisão Melissa Lemos
Formato 14 x 21 cm
Número de Páginas 148
Tipografia Adobe Garamond Pro
Papel Alta Alvura Alcalino 75g/m2
Impressão Psi7
1ª Edição Dezembro de 2014
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