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Educação

e Filosofia:
interdependências
viscerais

TEREZA CRISTINA CALOMENI


AFONSO HENRIQUE VIEIRA DA COSTA
MARTHA D'ÁNGELO
AFONSO HENRIQUE VIEIRA DA COSTA
CARLOS ROBERTO DE CARVALHO
ANGELA SANTI
ORGANIZAÇÃO

MAGDA MARIA VENTURA


1ª edição
SESES
rio de janeiro  2014
Comitê editorial externo  célia linhares e lilian maria ramos

Comitê editorial interno  lucia ferreira sasse e magda maria ventura

Organizador do livro  magda maria ventura

Autores dos originais  tereza cristina calomeni (capítulo 1), afonso henrique vieira da costa
(capítulo 2), martha d´ángelo (capítulo 3), afonso henrique vieira da costa e carlos roberto de
carvalho (capítulo 4), angela santi (capítulo 5)

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor fernandes bastos

Diagramação  victor maia

Supervisão de revisão  aderbal torres bezerra

Redação final e desenho didático  tainara oliveira da rocha

Revisão linguística  aderbal torres bezerra, verônica bareicha e daniela ferreira reis

Capa  thiago lopes amaral

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quais-
quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2014.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

E21 Educação e Filosofia: interdependências viscerais


Magda Maria Ventura [organizador].
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013.
128 p

isbn: 978-85-60923-16-8

1. Educação. 2. Filosofia. I. Título.

cdd 370.1

Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063
Sumário

Apresentação 7

1. Filosofia, Educação e cuidado de si 25

Introdução 10
Mudança de foco 11
Reflexão: Filosofia e Espiritualidade 15
Hermenêutica do sujeito e a Filosofia antiga 16
Atividade filosófica de Sócrates 21

2. Ao encontro da Filosofia e da Educação na Idade Média 33

Introdução 34
Duas questões essenciais 34
I.  Qual o significado da fé para o homem medieval? 35
II.  Em que medida é possível falar de uma Filosofia cristã? 36
Paganismo 37
Mas o que é Testamento? 37
A Filosofia pagã e o advento do cristianismo 38
A patrística 41
A escolástica 42
Onde a escolástica tem seu início? 42
Qual a ideia que aí nos é transmitida? 43
Ora, o que então começamos a ver aí? 44
A educação na Idade Média 45

3. Mitos, utopias e Iluminismo: contradições da modernidade 51

Introdução 52
Iluminismo e educação 58
Mito e razão na Dialética do Esclarecimento 64
Filmes relacionados ao tema abordado no texto 69

4. Um panorama da Filosofia Contemporânea 73

Introdução 74
Vanguardas europeias 75
O pensamento de Nietzsche 78
Linha do pensamento contemporâneo 79
O que é ser contemporâneo? 80
Ora, o que este texto de Kafka nos diz? 82
Reflexões de Adorno e Hannah Arendt 83
Mas, o que Adorno entende por barbárie? 84
Ora, o que essa passagem de texto de Adorno nos revela? 85
O que pensar de tal questão? 85
Conclusão 87

5. Filosofia da Educação como experiência estética 91

Introdução 92
Um pouco do percurso e da história da Estética 93
A estética em Kant 94
Estética, tempo, jogo e sensus comunnis 100
Estética e Educação para o século XXI 103
O processo de alfabetização, em Paulo Freire,
começava com a leitura da imagem, por quê? 105
Vik Muniz e as possibilidades de transformação da realidade pela arte 106
T. Makiguti e a Criação de Valores 108
Educar hoje 109
Conclusão 110
Apresentação NOTAS
1
   PRIGOGINE, I. O Fim das Certezas:
Eu vejo a vida melhor no futuro tempo, caos e as leis da natureza. 2. ed.
Eu vejo isso por cima de um muro São Paulo: Unesp, 2011.
De hipocrisia que insiste em nos rodear
Eu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda a satisfação
Que se tem direito, do firmamento ao chão...
- Lulu Santos, Tempos Modernos

Não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem
nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?
- Walter Benjamin

AUTOR
Célia Linhares
Mestre em Filosofia e Sociologia da Educação pela Michigan State University - USA.
Doutora em Educação pela Universidade Nacional de Buenos Aires. Livre Docente
em Filosofia da Educação pela Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutorado em
Educação na Universidade Complutense de Madrid e pela Universidade de Londres.
Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense. Professora do Mestrado e
Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense. Professora Visitante
Nacional CAPES, atuando no IM, no PPGEDUC, Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro.

Lilian Ramos
Pedagoga e Mestre em Educação pela UFPR, Doutora em Educação pela UNICAMP.

As epígrafes dessa apresentação podem ser lidas, enfatizando suas


diferenças e antagonismos, em relação às concepções de tempo que ex-
pressam. Deste modo nos provocam, interpelando como o tempo vem
se constituindo e se reconstituindo em cada época, em cada sociedade
à medida que o entendemos, o idealizamos e o modelamos com ações
sempre inseparáveis de sonhos e interesses.

ATENÇÃO
Aceitando esse desafio, começaríamos por perguntar se nossa convivência permite
perspectivá-lo com tantas melhorias no futuro, tornando a vida “repleta de toda a
satisfação”. Poderíamos também auscultar os tempos vividos para, acolhendo a se-
gunda citação, sondar a pluralidade de vozes que percorrem nossas experiências e
indagar se os acontecimentos que, de alguma maneira, compartilhamos, se esgotam
nos momentos em que o vivemos. Em outras palavras: nunca estamos isolados so-

7
NOTAS cialmente. Isso significa que, se não podemos reter o tempo, é possível e desejável,
para um viver mais dialógico com o que nos constitui historicamente, que escutemos
2
Esta última afirmativa foi gravada em as ressonâncias de outras vozes que continuam vivas, pedindo para potencializar as
uma parede, quando o notável físico Iva- ações que empreendemos.
nenko, também russo, convidou Prigogi-
ne a escrever uma frase, destinada a re- Não seria surpreendente se você perguntasse por que queremos, na
gistros ilustres. Ele atendeu afirmando: apresentação desse livro, estranhar um tempo que está entranhado em
“O tempo precede a existência.” nós, para liberá-lo desse lugar invisível e inaudível, que dificulta nossa
crítica e criação, nos permitindo pensá-lo como uma teia viva e dinâmi-
ca, inseparável da vida e, dela constituinte.
Não podemos escamotear que somos, como afirma PRIGOGINE
(2011) , feitos de tempo e, neste sentido, filhos do tempo. Nesta direção,
podemos concordar ainda com esse Prêmio Nobel de Química, consa-
grado pela relevância de seus estudos de Termodinâmica do Desequilí-
brio, especialmente a teoria das estruturas dissipativas do universo, que
o “tempo precede a existência”.2
Não é sem razão que, desde que fomos convidadas a organizar este
livro, entendemos que escolher autores e pedir-lhes que, dentro do que
sugerimos, escolhessem os objetivos de seu melhor interesse, priorizan-
do o trabalho dos professores em formação a quem este livro se destina,
significa uma implicação orgânica com o tempo, expressando concep-
ções que dele elaboramos e endossamos em nossa ação organizadora.
Vale então perguntar: selecionar e expor temas e capítulos, tentando
ressaltar diferentes épocas e suas questões, não supõe uma forma de
conceber, praticar e ser tempo?
Pensando assim, investigamos, na nossa realidade, alguns modos
de ver, entender, submeter-se e tentar fazer-se com o tempo, redimen-
sionando-o socialmente, recriando-o existencialmente. Tal qual um
pintor que nunca começa sua criação com a tela vazia ou à semelhança
de um escritor, que independente de usar instrumentos diversos, como
os eletrônicos de última geração, escreve sempre, nos pergaminhos da
história, buscamos reconhecer como o tempo vem sendo tratado, pré-
conceituado, conceituado, reconceituado, transformando-se e transfor-
mando-nos, permanentemente.

Logo, ressoa em nós a tensão urbana, traduzida em canção por Paulinho


da Viola, em Sinal Fechado (PAULINHO DA VIOLA. Um rio que passou em
minha vida. Rio de Janeiro: Odeon, p1970. 1 disco sonoro.). “... eu vou indo
correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?”

8
Essa metáfora poética, tão presente na contemporaneidade, pode nos instigar à pesqui-
sa e à criação de outras formas de tempo e, com elas, de ser com o tempo. Então, não preci-
samos estacionar no tempo como uma sequência linear, mercadológica, fragmentada em
escalas cronológicas e mecânicas, embora não haja dúvidas de que vivemos em um tempo
acelerado e voraz, que nos condiciona a nos tornarmos semelhantes a um relógio.

Somos tempo-máquina, mas não somente. Im-


porta atentar para como vem sendo produzido
historicamente o tempo de que somos feitos,
cujo ritmo se altera, “empoderado” por tecnolo-
gias, conduzido por um capitalismo que se expõe
como um vencedor invicto, globalizando-se eco-
nomicamente em correspondência com uma
cultura que reduz a vida a um jogo do mercado,
com o qual aprendemos a agir automaticamente
e a relevar suas demandas, emudecendo e recu-
sando outros desejos e projetos, desqualificados
como estorvos para uma carreira brilhante ou
para o êxito na vida.

Para tanto, esse sistema, que se expande globalmente, aproveita condições que lhe são
favoráveis, tais como a submersão das economias socialistas, a velocidade da adesão ao con-
forto material e imaterial, com algumas possibilidades de segurança física e as adesões ao
pensamento único. Não podemos minimizar o quanto esse sistema que individualiza, massi-
ficando, tem frestas e rachaduras por onde penetram movimentos multitudinais que o acos-
sam e exibem sua exaustão, suas avenidas e becos em que as saídas parecem travadas.

ATENÇÃO
Aqui, não vamos discorrer sobre as problemáticas fatais dessas forças que sobrevivem e se impõem sem
maiores probabilidades de ser prontamente substituídas, embora a permanência delas já seja uma adver-
tência, cada vez mais iniludível, cada vez mais concreta e trágica do processo de destruição em curso, com
que vem sendo aniquilado o planeta e a todos nós, os viventes.
Mesmo assim, não se pode desconhecer o fluxo de um tempo que, em si, inclui múltiplas dimen-
sões, combinatórias de relações, sempre a produzir outras configurações sociais, impregnadas de surpre-
sas e intensidades que rompem com o previsível. São todas essas forças incógnitas e misteriosas que nos
fazem indagar: podemos conjecturar que a complexidade da vida, da humanidade, seja capaz de inventar
rupturas revolucionárias, reinscrevendo-se e reinscrevendo-nos em outro rumo civilizatório.

Bem sabemos que, se a indústria não deixa escapar o tempo, dele fazendo um instru-
mento do progresso, da segurança e do conforto sem limites, identificando-os como prê-
mios que correspondem às conquistas individuais, há também em nós, e cada vez mais
exacerbados no mundo contemporâneo, não só uma descrença nessas promessas de final

9
CURIOSIDADE de leilão, mas também um sentimento de temor diante do que está por
vir. No entanto, essas visões de tempo, de um tempo que corre para um
Inglórias futuro de luz, de felicidade e progresso e de outro que despeja advertên-
Lembramos de João Bosco e seu poe- cias e profecias de eminentes catástrofes, cujo terror de amostragem vi-
ma cantado, O mestre-sala dos mares, mos testemunhando a cada dia, não se excluem e até, ao se polarizarem,
em que homenageia João Cândido, que se reforçam reciprocamente.
liderou a Revolta da Chibata, da qual Basta atentar para a maneira como essa corrida progressista retoma
destacamos os versos que se seguem: e valida percepções dominantes, em épocas e em confrontos, que se ad-
“Glória a todas as lutas inglórias / que mite terem passado, confirmando lugares, poderes, saberes e valores
através da nossa história / não esque- dos que venceram. Embora prometendo maravilhas, ao mesmo tempo,
cemos jamais / Salve o navegante ne- procura sufocar, não só as lutas tidas como inglórias, que animam os
gro / que tem por monumento as pe- movimentos atuais, mas a coragem de experimentar-nos, individual e
dras pisadas do cais.” JOÃO BOSCO. coletivamente, semeando o medo por prever o retorno de embates, con-
Caça à raposa. São Paulo: RCA Victor, flitos e guerras, com desordens e terrores e, especialmente, possibilida-
p1975. 1 disco sonoro. des de derrota que uma reedição daqueles choques que demonstraram
a potência e que voltam a anunciar os indícios de insurgência de outras
forças sociais.
Desta maneira, os medos são usados para nos fazer renunciar à in-
venção de outros caminhos, reforçando reproduções de práticas, como
uma forma de avivar paisagens sociais homogêneas e estagnadas, onde
se alojam violências de diferentes ordens, produzidas por um tempo
que, para perdurar, ameaça vivos e mortos.
Mas, se é, de certo modo, fácil perceber como esse pavor vem sendo
construído e alimentado pela previsão, ampla e sincronicamente agen-
ciada pelos que dirigem os instrumentos de coerção e coesão social, fa-
zendo-nos temer o preço das mudanças, não é tão simples assim rela-
cionar essas manobras estratégicas com uma concepção do tempo, tão
naturalizada, como uma sequência rígida de etapas isoladas e sobrepos-
tas, à semelhança de pacotes que se convencionou chamar de passado,
presente e futuro.

É essa naturalização do tempo que nos faz aceitá-lo, sem discussões,


como encadeamentos cronologicamente engessados, reprodutivos, rígidos
e mortos, como algo não só externo às nossas vidas, mas ainda, como uma
realidade, invisível e intocável que deve ter seus padrões de comportamen-
tos mantidos para assegurar a “paz” e evitar calamidades. Nessa direção,
ao evitar uma concepção de tempo como um fluxo, acolhendo convivências
entre o que já aconteceu e o que está por vir, os controles temporais são
mobilizados para tentar travar o que vem vindo, apoderando-se tanto das he-
ranças materiais e imateriais do que foi produzido, quanto das perspectivas
em elaboração, alimentando um fatalismo que procura engessar a história,
com a prevalência da reprodução.

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O cenário inverso, com processos de gestão democrática do tempo, como os propostos por
sindicatos de trabalhadores, mas de forma específica pelos movimentos feministas, por
exemplo, poderia ampliar nossas possibilidades de compreensão e ação que afetam o tem-
po, dificultando essa terrível escravidão a um tempo cronológico, mecânico, automatizado,
mercadológico, que vem sufocando as intensidades existenciais, políticas, buscando libe-
rar o tempo de tantas fatias continuístas, para concebê-lo como um fluxo em que o que é
tido como tendo passado se faz presença e potência, relampejando possibilidades em de-
vir. Nesta perspectiva, outras são as concepções de aprendizagens, de educação e do pro-
cesso civilizador.

Leminski não exagera quando traz, de formas múltiplas, os


relógios em sua poesia, ressaltando conhecer aquele que
já havia matado tantos...

Sabemos, muito bem, por nossa própria experiência, o que tem significado essa con-
temporaneidade em que ufanismos e derrotismos, ao se alternarem, encobrem as interde-
pendências de um tempo histórico de que todos somos feitos, propagandeando atalhos de
sucesso em que o pensar, como caminho de reinventar-se e à própria vida, fica substituído
por conjuntos de reações que não nos permitem perceber nem a imprevisibilidade que im-
pregna nossa existência, tampouco a responsabilidade que a vida exige de nós.
Não podemos perder de vista que os processos sociais não ocorrem linearmente. Pelo
contrário, eles mantêm inter-relações com a dinâmica da sociedade e, até mesmo, com
aqueles movimentos que parecem radicalmente opostos e antagônicos.

EXEMPLO
Podemos lembrar que o aumento da produção de alimentos convive com o crescimento e com a diversifi-
cação da fome. Por sua vez, a cada década deste último século, registra-se uma superação do volume de
alimentos e conhecimentos produzidos nas décadas anteriores, o que não corresponde nem a uma dimi-
nuição da fome no mundo, nem a uma democratização dos conhecimentos e saberes, como instrumentos
norteadores das condutas humanas e políticas.

Se nos aproximamos mais do campo educacional, facilmente constatamos que as oportu-


nidades escolares crescem, mas estão longe de refletir uma capacitação para lerem o mundo
e a si mesmos daqueles que as usufruem, frequentando escolas, compartilhando os desafios
de se recriarem e de construir um tempo mais paritário, inclusivo, plural e amoroso. Além
disto, se é mais fácil entrar e permanecer no sistema escolar por mais tempo, isso não nos
imuniza contra brutais condições de insegurança social que invadem a escola e que, com
as contribuições de uma desigualdade crônica, alimentam diferentes ordens de violência,
como as que realizam, de forma cruenta, a morte nas cidades e nas estradas brasileiras.

11
As inter-relações entre diferentes setores são de tal ordem vivas que uma mestiçagem entre guer-
ra e paz, entre o instituinte e o instituído cobram de nós atitudes de pensar como ação, exercitando
nossa capacidade de discernimento e avaliação. Avaliação esta que não pode prescindir de uma
autonomia que nos recrie, recriando, junto conosco, a própria vida.
Por tudo isso, nossas escolhas éticas não podem ser asseguradas sem uma formação de nossa ca-
pacidade perceptiva e de julgamento, em conjunção com uma atualização dos nossos conhecimentos.

EXEMPLO
Basta pensar que se formos chamados a um plebiscito para decidirmos se uma usina nuclear deve
ser conservada, ampliada ou fechada, faz-se necessário conhecer a natureza das tecnologias ali
aplicadas, os cuidados que elas exigem, as implicações dos procedimentos adotados para o fun-
cionamento e a expansão da democracia.

Mas tudo isso não é suficiente.

É preciso cuidar das consequências de tecnologias que exigem segredos pelos riscos que
implicam para a sociedade onde está instalada e para a própria humanidade. A formação
humana, que sustenta escolhas éticas, não pode, sobretudo contemporaneamente, pres-
cindir dos processos de escolarização expansivos, exigindo procedimentos de formação,
em que a Filosofia se entrelace com a ética e a estética, com a perspicácia para auscultar
percepções coletivas e individuais, sem desconhecer os agenciamentos e as subjetivações
que se alavancam em bases cientificistas a que estamos expostos.
É de tudo isso e de muito mais que se nutrem as discussões exigidas nos cursos de for-
mação dos professores para que esses profissionais possam encarar tantos desafios con-
temporâneos, inexistentes em outras épocas. Afinal de contas, a Filosofia, as ciências, as
tecnologias, as artes contemporâneas e a própria sociedade humana, com suas lutas por
diferentes formas de produzir, distribuir e educar atingem níveis de conflitos, difusos e
explícitos, nunca antes imaginados pelas gerações que nos precederam. Mas nem por isso
as antigas gerações deixaram de nos legar instrumentos que nos permitem analisá-los e
enfrentá-los.

E este é nosso maior desafio.

Como registrar, em um livro, essa longa trajetória da humanidade que mobiliza o pensa-
mento humano e que foi constituindo esses entrelaces em que confluem Educação e Filo-
sofia? Em outras palavras, que cartografias dessa viagem tão longa e cheia de esperanças,
mas também tão atravessada por medos e inseguranças, que marcam a educação e o pen-
samento humano, podem ser traçadas? Como já afirmamos, este foi o repto que nos dispu-
semos a enfrentar quando aceitamos organizar este volume.
O primeiro norte que nos impulsionou foi o de não nos limitarmos à exposição linear
dos principais pensadores e de suas brilhantes ideias ao longo do tempo, pois bem sabe-

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mos que a História, embora esquematizada em períodos e datas para fins didáticos, não
interessa simplesmente pela ocorrência de acontecimentos isolados e, muito menos, pela
sua coerência linear.

Como Nietzsche, Benjamin, Foucault e outros filósofos, não endossamos a concepção de uma
história como um continuum, acreditando que ela pode também se fazer por rupturas e saltos, em
um fluxo, sempre em devir, como nos ensinam Bergson e Deleuze, entre outros. Estamos conven-
cidas de que, não importa quão remoto tenham sido os tempos e as circunstâncias em que foram
elaborados, em suas gêneses, os pensamentos que chegam a nós e nos animam nessa busca para
decifrar os enigmas-mundos, os enigmas-educação, tentando expandir os horizontes para que
caibamos todas e todos e inteiros, com nossos sonhos éticos, nessa vida de tantas tribulações em
que procuramos também encontrar esperanças. Não podemos esquecer que algumas ideias que
julgamos ultracontemporâneas e inéditas procedem de épocas que não passam e de circunstân-
cias muito diversas das nossas.

Por isso mesmo, a velha história da educação helênica, que tinha uma condução poéti-
ca, convive com diferentes períodos históricos, chegando viva até a educação contemporâ-
nea, não importa se às margens, pois as margens são saltitantes. Infelizmente, temos que
afirmar também que a Inquisição e as ideias que a alimentaram não passaram e estão vivas
na sociedade e na escola. Importa ressaltar que o fluxo da História e da Filosofia que bus-
camos inscrever e narrar, neste livro, procura evitar a fragmentação dessa mesma História.
Finalmente, interessam-nos, sobretudo, os percursos das ideias que vão sendo produzidas
no seio de uma sociedade e que se expandem por contágios e ajuizamentos das ações e nas
ações com os percalços enfrentados pelos pensadores (notáveis e anônimos), que vão se
disseminando, difusa ou explicitamente, em nossa maneira de ver e atuar no mundo.

ATENÇÃO
Essas foram nossas perspectivas iniciais, com as quais fomos convidando os autores participantes desta
obra, solicitando a cada um que realizasse um pequeno relato dessa perigosa aventura de pensar o impen-
sável nos diferentes momentos da História da humanidade. O resultado dessa aventura é agora apresen-
tado a você, leitor, para que, não só compartilhe deste renovado empenho de pensar a vida e a educação,
mas leve para sua sala de aula esses instrumentos de pensar e veleje com seus colegas e estudantes,
pensando, como um processo sensível e apaixonado com que marcamos o mundo e nos ampliamos com
ele. Amorosa e valentemente.

Nosso convencimento é de que para estudar Filosofia da Educação não podemos nos omi-
tir de um diálogo permanente com a cultura, que vai configurando incessantemente as so-
ciedades, com suas instituições sociais, entre elas, as escolares. É nessa dinâmica que vamos
acolhendo e elaborando conflitos de modo a permitir a insurgência de movimentos instituin-
tes que borbulham em todo o tecido social. Aqui, sobretudo, nos interessam os que vitalizam
os discursos pedagógicos por mobilizarem embates na democracia contemporânea.

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Preparamos um ementário, como um oferecimento plural de possibilidades, para que cada autor
e autora convidados pudessem elaborar seus percursos e roteiros para pensar as relações entre
Filosofia e Educação, desde o mundo helênico-romano até os desafios e perspectivas que vão se
abrindo no mundo contemporâneo, incorporando os dilemas da Idade Média, do Renascimento, do
Iluminismo e da Modernidade. Ao incluir, nesta apresentação, este instrumento para escolhas pos-
síveis, contávamos com uma multiplicidade de conjunções a serem feitas por cada um dos autores
segundo sua própria valorização temática do tema para o qual havia sido convidado a trabalhar.

COMENTÁRIO
Além de tudo isso, uma concepção viva do tempo já palpitava no ementário. Mas estamos conven-
cidas que as potencializações deste instrumento só se fazem legíveis quando acrescentamos os
nomes dos nossos convidados. Esses professores, em boa parte, já são seus conhecidos, através
de suas contribuições ao empenho de pensar tão imprescindível nesses momentos que atravessa-
mos; contribuições para pensar, como ação, a Filosofia e a Educação.

Finalmente, é um espaço de júbilo inscrever o nome dessas e desses pensadores que,


com formação doutoral em diferentes instituições de alto nível e atuando em universidades
reconhecidas pela sua forma de pesquisar, ensinar e aprender com a sociedade brasileira,
compartilharam conosco da oportunidade de escrever esta coletânea, intensificando seus
afetos e cuidados por saberem ser ela destinada aos estudantes de licenciatura da Estácio.
Depois destes comentários, é hora de apresentarmos o ementário, cuja circulação
precedeu a escrita dos capítulos que constituem essa coletânea.

I. Capítulo
1. O mundo helênico e suas formas de pensar e educar: rupturas e convivências com a Filosofia.
2. Poética, mito, política e sofística e as insurgências do pensamento conceitual: ressonâncias na
escola contemporânea.
3. Figuras emblemáticas a serem lembradas e inseridas, se for o caso, nas narrativas constitutivas
do capítulo. Heráclito, Empédocles, Epicuro, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles.

AUTOR
Dra. Tereza Cristina Calomeni
Mestre em Educação - UFF
Mestre em Filosofia - PUC-RJ
Doutora em Filosofia - PUC-RJ
Professora de Filosofia da UFF

14
II. Capítulo
1. Cultura e Filosofia medieval e suas margens: a Patrística, a Escolástica e a Filosofia islâmica.
2. Os trovadores, as escolas monásticas e as gêneses universitárias.
3. Figuras emblemáticas a serem lembradas e inseridas, se for o caso, nas narrativas constitutivas
do capítulo: Agostinho e Tomás de Aquino, Averróis e Avicena , Giordano Bruno e Abelardo.

AUTOR
Dr. Afonso Henrique Vieira da Costa
Mestre em Filosofia - UFRJ
Doutor em Filosofia - UFRJ
Professor de Filosofia da Educação da UFRRJ

III. Capítulo
1. Percursos, saltos e curvas do Renascimento ao Iluminismo. A modernidade e a educação, a
ciência, a arte, a tecnologia e a política.
2. O Estado e a escola e a universidade.
3. Figuras emblemáticas a serem lembradas e inseridas, se for o caso, nas narrativas constitutivas
do capítulo. Spinoza, Comênio, Nietzsche, Rousseau, Marx, Freud, Benjamin.

AUTOR
Dra. Martha D’Ángelo
Mestre em Educação - UFF
Mestre em Filosofia - PUC-RJ
Professora de Filosofia da Educação da UFF

IV. Capítulo
1. Os desafios da contemporaneidade e as urgências da educação. Expansão e ameaças da de-
mocracia e da escola.
2. Epistemologia, linguagens e conhecimentos educacionais. Tempo e espaço na contemporanei-
dade e as escolas sem muros.
3. Figuras emblemáticas a serem lembradas e inseridas, se for o caso, nas narrativas constitutivas
do capítulo. Giorgio Agamben, Deleuze e Gatarri, Federick Jameson.

15
AUTOR
Dr. Affonso Henrique Vieira da Costa
Mestre em Filosofia pela UFRJ
Doutor em Filosofia pela UFRJ
Professor de Filosofia da Educação da UFRRJ

Dr. Carlos Roberto de Carvalho


Mestre em Educação pela UERJ
Doutorado em Educação pela UFF
Professor de Didática da UFRRJ

V. Capítulo
1. A contemporaneidade da educação brasileira. Violência das desigualdades e ações de enfrenta-
mento. Estética e ética na existência, na política e nas instituições educacionais brasileiras.
2. Processos de aprender e ensinar a pensar. Autonomia e capacidade de recriar-se e ao mundo.
3. Figuras emblemáticas a serem lembradas e inseridas, se forem o caso, nas narrativas constituti-
vas do capítulo: Paulo Freire, Jacques Ranciére, Michel Foucault, Wolgang Welsch.

AUTOR
Dra. Angela Santi
Mestre em Filosofia na UFRJ
Doutorado em Filosofia na PUC-Rio
Professora de Filosofia da Educação na UFRJ

Como você pode avaliar, nosso objetivo era trazer vivas, tanto a Filosofia como a Educa-
ção, rompendo com a concepção de tempo linear, mecânico e fatiado por períodos, para
ressaltá-lo como um fluxo sempre em devir, que se renova incessantemente sem deixar que
os acontecimentos se percam ou se cristalizem. Um tempo vivo e em movimento.

Nossas expectativas foram mais do que atendidas, pois cada autor, cada autora nos surpreendeu
com suas elaborações em exercícios do pensar, que nos convidaram a palmilhar diferentes cami-
nhos, provocando em nós sonhos e projetos de outras formas de aprendizagens e ensinagens.

Se muitos de nós estamos convencidos da urgência de fabricar mudanças e produzir


saídas para essa situação, em que a própria vida vai se tornando inviável, bem sabemos das
dificuldades em instituir outros caminhos, outros ritmos, outros sonhos, outras lingua-

16
gens, outras formas de convivência. O ímpeto de mudar pode até, como NOTAS
a História nos mostra, retomar autoritarismos, onipotências, excluindo di-
4
álogos e subtraindo-nos as perspectivas de outros horizontes de liberdade,  FOUCAULT, M. A hermenêutica
de criação que impregna as experiências instituintes da História. do sujeito. São Paulo: Martins Fontes,
Como vemos, a questão não é simples. Como e onde encontrar so- 2004, p. 6.
nhos, em latência, que possam espelhar as grandes questões de cada
época, potencializando a formação humana como um processo perma-
nente de liberdade e criação existencial, ética, estética, cognitiva e po-
lítica? Como superar as rotineiras estratégias educacionais e escolares
que se reduzem à transmissão de conhecimentos utilitários feitos para
“garantir” o sucesso individual e a confirmação da lógica do mercado?

RESUMO
I.
O Capítulo I nos faz iniciar essa nossa viagem, retomando questões que pulsam e nos
estremecem quando nos voltamos à complexidade da formação humana, com suas
exigências educacionais, vale dizer, éticas, estéticas, políticas, cognitivas, que nos de-
safiam a inventar outro rumo para essa civilização que já se mostra extenuada e con-
sumida pela sua busca de acumulação de dinheiro, de poder e de prazer, sem medida.
Nesse capítulo, Filosofia, educação e cuidado de si, Tereza Cristina Calo-
meni, como uma filósofa que não renuncia à poética, toma as travessias do pensa-
mento de Michel Foucault para, com ele, revisitar as efervescências que emergiam
na Grécia Clássica, recuando até Delfos e seu oráculo para encontrar ali o preceito
“conhece-te a ti mesmo” que, longe de ter uma envergadura moral, funciona como
uma recomendação com vistas à organização dos consulentes e suas consultas.
Por isto, Foucault considera que essa sinalização délfica se apresenta ali como um
“imperativo geral de prudência”4. Foi Sócrates que o elaborou filosoficamente, conju-
gando-o com o cuidado de si, sem o qual se torna mutilado, disforme e monstruoso.
Ainda importa ressaltar que essa conjunção entre cuidado de si e conhe-
cimento de si não pode prescindir de uma vida pautada por relações de interdepen-
dência com valores que a norteiam e que não se distanciam da política, do governo
dos outros, dos rumos da cidade. É valioso acompanhar Calomeni em todo esse
capítulo para entender como “Sócrates faz do diálogo o método filosófico por exce-
lência. Interessado na procura do conhecimento verdadeiro — não como forma de
erudição, mas como instrumento indispensável à vida prática, individual e coletiva”.
Assim, o cuidado de si e o conhecimento de si se validam e se afirmam como urgen-
tes e necessários, partindo das dificuldades e deficiências da educação, constatadas
em recorrentes acontecimentos históricos, teoricamente analisados por Sócrates e
mobilizados com as análises de Foucault.
Prosseguindo, em um tipo de enlace de intensificação crescente, Calomeni
nos aproxima dessas interdependências viscerais que tensionam a Filosofia e a Edu-
cação quando mostra a reciprocidade com que uma alimenta a outra.

17
NOTAS
O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e
5
Ibid., p. 73-74. que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar
6
GASSET, José Ortega y. Em torno a do cuidado que o discípulo tem de si próprio.5 Pelo amor desinteressado ao
Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 119. discípulo, o mestre passa a ser o “princípio” e o “modelo” para que o educan-
do cuide de si.

Apoiada nos últimos escritos de Foucault, tratando da autoconstituição do


sujeito ético, a partir de uma releitura das contribuições dos filósofos da Antiguidade
Clássica, Calomeni potencializa nosso pensar, como ação que é, no enfrentamento
das graves questões atuais. Pois, ao discorrer sobre o governo e a biopolítica, o
“governo dos outros” e o “governo de si”, esse filósofo, que se apropria e reinventa a
inquietude socrática, expõe duas concepções antagônicas acerca da Filosofia e do
sujeito. Ao cuidado de si corresponde a vertente filosófica pela qual seria possível
ao sujeito o acesso à verdade a partir de técnicas, exercícios e práticas. Acha-se
alinhada à Filosofia antiga, especialmente ao período helenístico grego e romano.
Ao conhecimento de si corresponde a que exalta a representação e reco-
nhece, na estrutura subjetiva, a condição do conhecimento por parte do sujeito. As
duas vertentes, por sua vez, conduzem a diferentes concepções sobre a Educação,
cada uma, por seu turno, provocando pensadores a elaborar diferentes propostas
pedagógicas nelas amparadas.

II.
O Capítulo II, Ao encontro da Filosofia e da Educação na Idade Média, para o qual
havíamos proposto um descortinar filosófico do vasto e complexo período medieval,
atravessado por diferentes ordens de opacidade e emudecimentos, Affonso Henri-
que da Costa destaca suas principais correntes de pensamento, a patrística e a es-
colástica, sublinhando que ambas partem de um único problema central — a relação
entre a fé e a razão. Ou melhor, a supremacia da fé religiosa sobre a razão, a abertura
total do ser para o divino, em oposição à herança grega pagã da crença inabalável
na razão humana para explicar a realidade. Essa dominância da fé sobre a razão, a
crença em Deus, que sobrepujava a realidade vital, humana, social, política, histórica,
não pode ser lida como um bloco homogêneo e acimentado.
A fragilização da Antiguidade Clássica foi avançando com a quebra de
todo o andaime de instituições e crenças que até então garantiam a expansão gre-
co-romana. A ação humana e o próprio mundo pareciam não ser mais confiáveis.
Sobreveio então um desamparo coletivo, alimentando um tipo de desespero geral
que, como ressalta o autor, não era um sentimento particular, mas uma forma de
vida — a vida cristã —, pois assinala “o reconhecimento da nulidade do homem e
da natureza”.6 Esse reconhecimento, que começou a se manifestar antes mesmo
do aparecimento do cristianismo, fez com que muitas pessoas se isolassem, se
afastassem umas das outras, do mundo propriamente dito.
Mas a fé, que fazia toda a vida transpirar a criação divina, não foi capaz
de emudecer a razão. A Idade Média vai sendo construída com embates, conflitos,

18
lutas difusas e manifestas que continuam mostrando a vitalidade com que a racionalidade que sustentou
a Filosofia na Grécia foi cedendo, mas também se impondo. Por isto, Affonso da Costa salienta o quanto é
difícil determinar quem absorveu quem, ou seja, em que medida o cristianismo se apropriou do pensamento
grego e quanto essa racionalidade, ao ser apropriada, também se assenhoreava de lógicas e formas, de-
mandando mais e mais.
Enquanto o capítulo se desenrola, acompanhando as peripécias do pensamento filosófico que,
historicamente, escapa das continuidades, das homogeneizações e das estagnações, vai abrindo veredas
para compartilharmos das diferentes produções de um pensar que mergulha nas vicissitudes do tempo
para fundir e refundir conceitos.
Então, ficam abertas as possibilidades de, ao encontrar com Agostinho, reencontrar-nos com
Foucault e voltarmos a lembrar os extravios a que essa civilização tem relegado o cuidado de si, e como
esse descrédito tem nos despotencializado para arriscar-nos em práticas de criação que reciprocamente
nos reinventem e ao mundo. As tragédias que atravessam essa nossa contemporaneidade já não confi-
guraram um over point, apontado por cientistas, filósofos e artistas, urgindo para que construamos outros
rumos civilizatórios com suas interfaces de recriação de cada um de nós.
Esse capítulo também nos provocou a pensar como a discussão que estremece o lugar técnico
e reprodutor da escola por mobilizar a atenção da sociedade e, principalmente, dos profissionais da escola
para a complexidade da formação humana, existencial e política, tem sido soterrada e, assim sendo, conti-
nuem vigorando práticas utilitárias, funcionais, programáticas e conteudistas.
Como acolher e intensificar esse cuidado de si, que se conjugando com um tipo de conheci-
mento que nasce do experimentar a si e a vida, tão presente na fundação da Filosofia com Sócrates, mas
recorrente, também, na Idade Média, tecida com fios de uma fé amorosa, principalmente expressa por
Agostinho? Por que, tal qual um rio no deserto, essa busca de um cuidado de si conjugada a um conheci-
mento de si, embora tenha sido marginalizada, reedita-se e retorna, cobrando que pensemos na Educação,
responsabilizando-nos pela nossa vida que se configura socialmente e que recusa um tipo de rendição
que o lugar de consumidor e tarefeiro implicam? O que significa aprender, ensinar quando o objetivo da
aprendizagem desperdiça as experiências que vão nos constituindo?
Ainda neste capítulo, somos convidados a pensar a universidade, ao tocá-la em sua gênese e ao
constatá-la como um nascedouro institucional reservado à nobreza, ao lado da vida religiosa e da cavalaria.
Aos servos, bastaria o trabalho na terra e aos vilões, as corporações de ofício, de caráter laico e técnico. As
crianças eram tratadas com severidade, como adultos em miniatura, e educadas conforme seu posiciona-
mento em uma sociedade estamental.

III.
O Capítulo III, Mitos, utopias e Iluminismo: contradições da modernidade, elaborado por Martha D´Ânge-
lo, reafirma esse tipo de pergaminho que é a História, com múltiplas inscrições que nunca desaparecem
totalmente, fazendo com que as mais recentes toquem e convivam com aquelas outras que podem parecer
adormecidas pelos ritmos dos tempos e, de diferentes maneiras, são vitalizadas, com rasuras, confirmações
e reedições. Apesar da genialidade de tantos filósofos que captam, pesquisam, articulam e combinam pen-
samentos e conceitos para se aproximar da realidade, a Filosofia se escreve na sociedade, participando
deste tear imprevisível com que a História vem sendo configurada e reconfigurada, permanentemente.
Contudo, é interessante prestar atenção nos acontecimentos como a descoberta do Novo Mun-
do, e em tantos outros eventos e invenções que foram promovendo uma expansão e uma circulação de
ideias, que acenderam pensamentos, imaginações. Sonhos, utopias e projetos que se debatiam com uma

19
racionalidade que se instrumentalizava com lógicas de dominação, ciosa de suas prerrogativas e engenhos
que lhe permitiam difundir e socializar promessas, abrindo perspectivas, mobilizando multidões e mudando
o panorama social e político. Não podemos minimizar o impacto das viagens, os relatos dos viajantes que
transportavam sementes de sonhos de um lugar para outro e, deste modo, liberavam possibilidades ima-
ginativas, fecundando obras híbridas em que os mitos se mesclavam com perspectivas e demonstrações
comprovadas cientificamente.
Esse é um tempo em que a ciência moderna começava a ser fundada por novos e ousados
pensadores que assumiam grandes riscos pessoais, expondo suas ideias inovadoras. As utopias associa-
ram-se a ideias revolucionárias no século XVIII, originando vertentes e modelando outras práticas, como a
própria forma de pensar e fazer a ciência política moderna.
Também nos interessa sobremaneira ressaltar que, nessa época de tão onipotentes projetos
sociais, Comenius, ao lançar sua Didática Magna, no século XVII, propõe uma gama de ideias acerca da
organização de uma escola única para ambos os sexos, para ricos e pobres, com a proposição de um cur-
rículo ancorado na ideia de cultura como aperfeiçoamento da natureza. Como um tipo de avant premier ao
Capítulo III, vamos transcrevendo um dos parágrafos com que D´Ângelo nos apresenta algumas centelhas,
com que Comenius conceitualiza sua proposta educativa:

Comenius acreditava que a educabilidade é inerente a todas as pessoas e que o processo de


humanização se realiza pela educação, daí a necessidade da universalidade da escolarização.
Enfatizando esse princípio (...), Comenius invoca Platão citando o seguinte trecho das Leis: “O
homem é um animal bastante manso e divino se amansado por uma verdadeira disciplina; se não
receber disciplina alguma ou se receber uma disciplina falsa, será o mais feroz dos animais que
a terra pode produzir”.

Outros extraordinários filósofos e pensadores, como Rousseau, ao imaginar o seu Emílio, propôs
uma inversão na ordem da Educação, defendendo que os interesses da criança deveriam prevalecer sobre
os dos adultos, perspectivando a construção de um “homem novo” para uma sociedade baseada em um
“novo contrato social”. No Iluminismo, destacam-se ainda as ideias de Kant sobre a Pedagogia, baseadas
no esclarecimento, na emancipação e na formação do sujeito moral. A ideia de uma educação universal,
laica e gratuita ganha força na obra de Condorcet e na Revolução Francesa, contagiando pensadores
em várias partes do mundo ocidental. Por trás dessas obras, surgem com força os ideais de igualdade e
racionalidade humana, de laicização da sociedade e da educação, que predominaram no período e ainda
ressoam em outras versões mais tecnológicas da contemporaneidade.
O ensino de Filosofia da Educação tem sido engessado por práticas de uma tradição conserva-
dora que o apresentam, sobretudo, como uma herança morta e rígida, revestido por clichês que convivem
com citações famosas de alguns dos famosos pensadores e filósofos daquelas épocas. São frases de
efeito que, não obstante a distância no tempo e no espaço em que foram pronunciadas, funcionam como
um culto a uma novidade atraente e preciosa, em um exercício de pressão para ser apreciada, consumida
e guardada, pois como uma peça tão antiga e valiosa, pode comprovar a erudição de quem a cita.
Durante muito tempo, o que se sobrepunha nas aulas de Filosofia da Educação eram ensinos en-
velhecidos que acabavam envolvendo-as, a Filosofia e a Educação, em um cheiro de mofo. As experiências
do pensar eram tornadas opacas, emudecidas e, pior, cobertas por um desinteresse, um isolamento do seu

20
tempo e um distanciamento do contemporâneo, com desconexões dos impasses e de- NOTAS
safios de nossas vidas, que acabavam por exilar a Filosofia. O prejuízo era e, como isso
7
ainda acontece, enorme, pois para apreender Filosofia, mas também para adentrar os  NIETZSCHE, Friedrich. A vontade
diferentes campos de conhecimento, principalmente aqueles de caráter social, político, de poder. Rio de Janeiro: Contraponto,
cultural, humano, enfim histórico, não podemos prescindir desse fluxo incessante em 2008, p. 23.
que vivemos. Afinal, como bem afirmou Hegel, ninguém escapa a seu tempo.
Por tudo isso, uma das travas mais interpeladas pelos pensadores tem
sido: por que o ensino da Filosofia para quando se aproxima da contemporaneidade?
Na contramão dessas tendências, procuramos organizar um livro que, ao entrelaçar
Filosofia e Educação, mergulhasse nos devires que impregnam o nosso tempo. Além
desse tom, que nos induz a compartilhar de um fluxo filosófico e histórico, que se
entranha em todos os capítulos, dedicamos um espaço capitular duplo para tratar da
contemponeidade.
Bem sabemos que não esgotamos os temas e muito menos as problemá-
ticas que provocam nosso pensar quando discutimos essas longas, mas também tão
próximas travessias, muitas vezes tomadas como fugazes diante da aceleração do
tempo. Lembramos que nosso maior desejo é acordar o pensamento para que ele se
exercite em sua movimentação alimentadora e alimentada pela criação incessante.

IV.
Voltamos agora à parte final do livro. No Capítulo IV, Um panorama da Filosofia
contemporânea, os professores Carlos Roberto de Carvalho e Affonso Henrique da
Costa abraçam o desafio de cartografar os movimentos da Filosofia contemporânea.
Sabemos da multiplicidade de tendências que a percorrem, que vão des-
de a polarização entre diversidade e processos homogeneizadores até a busca de
liberdade e criação exercida em condições vertiginosas dadas o turbilhão de alta
complexidade com que se reveste a realidade e a concentração de dispositivos que
ameaçam a democracia. Tudo isso atravessado pelos debates sobre o niilismo, a
banalização do mal e a dominação do mal.
Mas o que justificaria essa ênfase nos enunciados de catástrofes? Por que
esse temor expansivo do que está por vir? Vale a pena ler parte do parágrafo inicial
com que Carvalho e da Costa abrem o capítulo, citando Nietzsche.

Friedrich Nietzsche, em uma de suas anotações esparsas, feitas possivel-


mente para um livro que nunca foi escrito, disse: “O que conto é a história
dos dois próximos séculos. Descrevo o que vem, o que não pode mais vir de
outro modo: o advento do niilismo”.7 (...) Deste panorama, que caracteriza
a contemporaneidade, participamos todos nós. O que Nietzsche fez, foi,
na verdade, permitir-se ver, com uma luz toda própria e uma lupa posta em
certa medida, o real em seus mais íntimos desdobramentos entreabrindo-se
e revelando o seu processo de niilização.

Se nos impactamos com a ausência de atitude sensivelmente humana, em recorren-

21
tes momentos de nosso cotidiano, cada vez mais confirmamos que, do berço à sepultura, a lógica que mais
se expande é a da contabilidade que rege os mercados.
Porém, o espanto, o sentimento de solidão, de desamparo, sem muitos espaços de comparti-
lhamento explícito agrava-se diante de uma realidade cada vez mais incógnita e mais complexa, cada vez
emudecida e exigente de conhecimentos como cálculo e estratégia para sobreviver e vencer os obstácu-
los, cada vez mais hostil, desvalorizando a vida e desprezando os viventes, desapropriando os humanos dos
instrumentos para viver com autonomia e saqueando insaciavelmente a vida.
Sabemos que, em nossa contemporaneidade, acumularam-se muitas perdas, ressentimentos e
se sofisticaram instrumentos que, embora estejam sendo utilizados majoritariamente para dominar, podem
também contribuir para mudanças libertadoras. Portanto, é sempre um exercício fundamental pesquisar as
frestas e os germes de movimentos de resistências criadoras, pois eles, sem maiores garantias, dependen-
do de sua penetração e contágio social, podem potencializar ampliações e aberturas de outros horizontes.
Partindo dessa ideia do niilismo ou do esvaziamento de todos os valores supremos que carac-
teriza a época, os autores trabalham algumas das importantes contribuições de pensadores como Marx,
Heidegger, Freud, Benjamin, Husserl e Kafka e vão descortinando e discutindo algumas das relações
estudadas por correntes contemporâneas de pensamento, como a Hermenêutica, a Fenomenologia, a
Teoria Crítica, a Filosofia da Linguagem. Também não deixaram escapar os movimentos inovadores, como
o Modernismo, o Cubismo, o Dadaísmo, a antiarte, o Movimento Modernista, que vêm oxigenando as artes.
Este capítulo ainda nos faz pensar, com intensidade, a Educação, com Theodor Adorno e Hannah
Arendt. Com Adorno, nos faz pensar na violência da barbárie e na importância da Educação para enfren-
tá-la, nos ajudando a ultrapassar a menoridade. Com Arendt, nos faz encarar o cenário contemporâneo,
destituído de autoridade. Mas, embora reconhecendo que a luz do passado já não ilumina o futuro como
em outras épocas, este não desaparece por completo. Como propõe Agamben, ser contemporâneo é estar
e não estar em sua época, é ser capaz de deslocar-se.

V.
Sem esquecer essa longa e complexa conjunção entre tempos vitais e ações humanas, sociais, políticas
e culturais com que a história vem se configurando, no Capítulo V, Filosofia da Educação como experi-
ência estética, Ângela Santi trabalha a Educação como um processo premente que, nos limites de tantas
submissões, desencontros e reduções, volta-se para recuperar as contribuições da experiência estética.
A autora retoma a Estética que, em seu caminho de desqualificação no campo da Filosofia, foi referida às
sensações, sentimentos, sensibilidade, tomados como menores e depreciáveis, mormente se confrontados
com a magnificência da racionalidade científica e escolar.
Por outro lado, atenta para o desprestígio e a perda de espaços da escola, cujos objetivos têm se
limitado aos de ensino-aprendizagem, em versões utilitárias e de alta precariedade. Em geral, ainda hoje,
as escolas entendem que sua tarefa está ligada ao cumprimento dos programas e à transmissão de conte-
údos, quando o importante é redescobrir o sentido do educar atualmente, em um mundo onde jovens têm,
como sua primeira escola, a televisão, a internet, os jogos e as redes sociais. Qual o sentido de educarmos
nos dias atuais?
Busca, então, na arte, contribuições para pensar a educação do século XXI. Apoia-se na obra de
Kant, para quem a experiência estética precede e funda todas as outras, pois nela o homem exercita uma
libertação dos sentidos e usos pré-definidos, abrindo caminho para outras configurações.

22
Por tudo isso, a arte oferece uma condição privilegiada para educar, para aprender, como uma experiência
plural e singular. Através dela, torna-se possível perceber “aquilo que a cada dia é diferente”, estimulando o
surgimento e a criação de outras possibilidades, a quebra do rotineiro, dos paradigmas, dos padrões, enfim,
a desconstrução de pré-conceitos, mobilizando o pensar para a elaboração de conceitos.
A autora vai nos permitindo reafirmar o quanto a Educação e, no caso particular das instituições
escolares, a escola precisa romper com tantas grades e muralhas para abrir-se a outros panoramas de
ação movidos por uma ética e uma estética que se vinculam à cognição, à política e à vida.
Diante de um esgotamento de velhos modelos da escola, é tempo de atentar para as urgências
de uma Educação que se empenha por diferir, acolhendo e inventando outras práticas de pensar, de orga-
nizar, de aprender e ensinar.
Finalmente, Santi, procurando ilustrar, de forma concreta, sua proposta, apresenta uma “conste-
lação de autores” que funde, com diferentes pesos, Educação e arte: Paulo Freire, Vik Muniz e Makiguti.
Essas ilustrações podem ser entendidas como um convite para ver o extraordinário da vida e das possi-
bilidades de criação educacional nos seus múltiplos caminhos, tornando mais capazes de viver e pensar
de forma sensível, investindo com todas as nossas capacidades para entendermos, contribuindo para a
grandeza da vida e nela investirmos com respeito e autonomia.
Diante de todo este percurso de pensamentos que marcaram esta coletânea, acompanhando mo-
vimentos em que Educação e Filosofia organicamente se confluem em um empenho de pensar o mundo, a
civilização e os sistemas que os organizam, com seus problemas, suas falhas, suas possibilidades de superação,
ressaltamos alguns caminhos que nos dão pistas da crescente complexidade com que se faz a História, desta-
cando indícios de processos criadores, em meio aos graves desafios de que, historicamente, somos cercados.
Por essas razões, esta Apresentação não tem uma conclusão definitiva, pois ela quer ser um pro-
jeto de abertura e diálogo permanente para todos que a lerem. Para isso, agradece a essa potência coletiva
que atravessa os tempos que é o pensar como um movimento coletivo e criador, sempre encarando medos
e penalizações.

Neste ano de 2014, quando se decorrem 50 anos do golpe militar no Brasil, homenageamos
aqueles que lutaram pela liberdade em nosso país, muitos deles com o custo da própria vida. No
momento presente, agradecemos também a todos que conosco sonharam com esse livro, como
um instrumento intenso de Filosofia e Educação e a todos com que nos semeamos para produzi-lo,
bem como àqueles que alimentaram nossa esperança que se renova com um tipo de formação de
professores, articulada à dinâmica da vida, em que o pensamento, como ação que é seja sempre a
grande bússola formadora, que não abandone o conhecimento de si, em estreita conjunção com o
cuidado de si, em uma travessia política, experimentando a própria vida e a nós mesmos, de forma
ética e estética.

23
1
Filosofia,
Educação e
cuidado de si

tereza cristina b. calomeni


1 CURIOSIDADE
Filosofia, Educação e cuidado
de si
Introdução
Filósofos antigos
O retorno ao passado é estratégia bem “(...) a tarefa da Filosofia como uma análise crítica do nosso mundo tornou-se
afinada ao conceito de Filosofia como algo cada vez mais importante. Talvez o mais evidente de todos os problemas
experimento: tomar distância do pre- filosóficos seja o problema do tempo presente e do que somos neste exato
sente para melhor avaliar o habitual, o momento.” (Michel Foucault)
familiar, o supostamente evidente ou
natural.
“É Filosofia o deslocamento e a transformação dos parâmetros de pensa-
Durante algum tempo, o inusitado re- mento, a modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se faz para
torno aos antigos provoca certo estra- pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente do
nhamento à comunidade acadêmica, que se é.” (Michel Foucault)
habituada não só às investigações
acerca dos processos de formação dos
saberes — especialmente os saberes AUTOR
sobre o homem — e sobre a imponde-
rável relação entre saber e poder, mas
também às duras críticas das principais
categorias filosófico-metafísicas.

Em 1982, Michel Foucault (1926-1984), um dos mais instigantes, polêmicos e pro-


vocativos filósofos do século XX, ministra um curso no Collège de France, intitulado
Hermenêutica do sujeito. Professor do Collège desde 1970-1971, não é a primeira
vez — nem será a única ou a última — que o filósofo lança seu olhar, sensível e
perspicaz, aos chamados filósofos antigos. Ao contrário; de 1981 até o fim de sua
vida intelectual, Foucault remonta à cultura antiga — grega e romana — para refletir,
por um viés muito pessoal e particular, sobre questões filosóficas, éticas e políticas
de sua atualidade.

10 • capítulo 1
Mudança de foco NOTAS
1
FOUCAULT, Michel. Histoire de la fo-
Não bastasse a alteração do recorte histórico sempre presente às análises lie à l’Âge Classique. Paris: Gallimard,
arqueológicas (1961-1970) e genealógicas (1971-1978) — século XVI 1972. Tradução: História da loucura na
(Renascimento), séculos XVII e XVIII (Idade Clássica) e século XIX (Moder- Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,
nidade) —, uma surpreendente mudança temática é registrada quando vêm 1978.
a público, em 1984, os dois últimos volumes de História da sexualidade, O
2
uso dos prazeres e O cuidado de si. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir.
Paris: Gallimard, 1975. Tradução: Vigiar
e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.

Aos olhos dos surpreendidos lei-


tores e comentadores, Foucault pa-
recia ter abandonado os resultados a
que chegara nas pesquisas anteriores
para, estranhamente, abrir espaço ao
que havia severamente recusado ao
longo de sua trajetória filosófica, ini-
ciada em 1961, com a publicação de
História da loucura1 (imagem): o su-
jeito. Mais do que isto, parecia ter se
transferido, subitamente, do âmbito
da política para a esfera da ética.
Após 1984, não foram raras as es-
peculações e as acusações de que Fou-
cault estaria considerando a possibili-
dade de uma ontologia do sujeito depois de ter afirmado, em Vigiar e Punir
(1975)2 , que o sujeito é fabricado pelas relações de poder. As dúvidas mais
radicais e as objeções mais contundentes só puderam ser esclarecidas com
a publicação dos cursos da década de 1980.

capítulo 1 • 11
Apesar da amplitude e da singularidade das modificações empreendidas entre o final da década
de 1970 e o início dos anos 1980, não se pode falar de abandono ou de recusa ao trabalho ante-
rior, mas de mais uma inflexão bastante significativa.

IDEIA
Por outro lado, se não há repúdio ou negação, também não se pode acolher as ideias de continui-
dade e linearidade, nem desprezar ou minimizar os efeitos do redimensionamento citado.

Se ele não rejeita as investigações arqueológicas e, sobretudo, as genealógicas, e não invalida


a afirmação anterior (de que relações de poder são constitutivas do sujeito ou da subjetividade
moderna), se não se despede do que havia dito sobre vigilância e adestramento e se não se desfaz
das conclusões acerca do controle do indivíduo (pelos micropoderes disciplinares infinitesimais
e da normalização da vida pela biopolítica), no limiar da década de 1980, Foucault se concentra
no exame da autoconstituição do sujeito através de práticas de si, desviando sua atenção para a
cultura antiga — Grécia clássica (século IV a. C.), período helenístico-romano (séculos I e II d. C.) e
primeiros séculos cristãos (IV e V d. C.).

COMENTÁRIO
A cultura antiga lhe parece, nesse momento, o solo mais fértil à pesquisa de formas de subjetivação dife-
rentes daquelas entrevistas nas obras da fase genealógica. É a indagação mais geral sobre a formação
do sujeito antigo, o horizonte em que se configuram os trabalhos da década de 1980 — tanto dos cursos,
artigos, conferências quanto dos dois últimos volumes de História da sexualidade —, interessados na ela-
boração de uma história das relações entre sujeito e verdade.

Nesse ponto, ao menos três observações são necessárias:


•  A despeito de se reconhecerem as razões do estranhamento e das objeções, o sujeito
de que trata Foucault nos ditos e escritos da década de 1980 não se identifica com o sujeito
cognoscente. Não é o sujeito da tradição moderna filosófico-metafísica — o sujeito carte-
siano ou kantiano —o que arrebata o último Foucault, mas o sujeito ético, aquele que, por
determinadas relações consigo, se elabora a si mesmo;
•  A ética não é, para Foucault, um conjunto de códigos de conduta diante dos quais os
indivíduos agem ou atuam dessa ou daquela maneira, mas uma série de práticas que cada
um estabelece consigo para estilizar a própria existência e exercitar a liberdade;
•  Não se pode falar de transferência da política para a ética como se, em trabalhos ante-
riores, a preocupação ética estivesse absolutamente ausente.

12 • capítulo 1
REFLEXÃO CONCEITO
De todo modo, cabe perguntar por que e como Foucault procede a esta inflexão tão Sujeito cognoscente
significativa quanto surpreendente: Representativo, unidade originária do
•  O que o motiva a alterar seu habitual recorte histórico-temporal e a se voltar para conhecimento e/ou identidade estabe-
os gregos e romanos? lecida a priori, um sujeito dotado de uma
•  O que se passa na segunda metade da década de 1970, mais precisamente a par- estrutura tal, capaz de assegurar a pos-
tir de 1976, ano de publicação do primeiro volume de História da sexualidade: A von- sibilidade do conhecimento.
tade de saber, a ponto de levar Foucault a uma espécie de torção de seu itinerário?

A revisitação dos antigos não deixa de ser um trabalho de História. CURIOSIDADE


Entretanto, não é como um historiador tradicional — ou comentador ou
exegeta — que Foucault se comporta. Certamente não recorre aos antigos Genealogista
para exibir a seus ouvintes e leitores um panorama das filosofias antigas. “Genealogia significa que encaminho a
análise a partir de uma questão atual” 4.
COMENTÁRIO
Para um genealogista, também não se trata de remontar a um tempo longínquo
como a procurar pela verdade objetiva dos fatos pretéritos ou pela genuína identida- NOTAS
de de uma cultura antiga que, idealizada, serviria de modelo para cópia ou imitação
4
pela contemporaneidade. FOUCAULT, Michel. O cuidado com a
Um filósofo como ele, avesso às ideias de verdade absoluta e de verdade verdade (Le souci de la vérité): In: Ditos
como descoberta, herdeiro da crítica de Nietzsche (1844-1900) à tradição filosófi- e escritos. vol. V. 2. ed., Rio de Janeiro:
co-metafísica, não cederia, sob nenhuma hipótese, à concepção de verdade como Forense Universitária, 2006, p. 247.
captura da essência ou do sentido das coisas.
A volta aos antigos é tributária da convicção de que o passado pode con-
tribuir para a construção e a compreensão do presente, mas também não se explica
como busca de solução para as questões atuais. Ela faz parte de uma problematiza-
ção ético-política do presente.

Se Filosofia é movimento do pensamento e se sua tarefa mais peculiar


é a crítica da cultura — favorecida pelo espanto e por uma espécie de des-
conforto frente ao seu tempo —, o recuo a lugares de diferentes experiên-
cias pode auxiliar o trabalho de questionamento e de desprendimento do
que vemos, do que pensamos, do que somos e do que pensamos que so-
mos, concorrendo para desestabilizar a suposta estabilidade do presente.

ATENÇÃO
Tal como em Nietzsche, cabe à Filosofia não só o ofício do diagnóstico do presente,
mas também uma intransferível intervenção: no presente, mas contra o presente,
contra a corrente das opiniões corriqueiras e banais, o filósofo deve se declarar em
favor de um tempo vindouro.

capítulo 1 • 13
CURIOSIDADE
As razões das modificações podem ser encontradas nos oito anos que se-
Governo dos outros param o primeiro volume de História da sexualidade dos dois últimos, O uso
No ano seguinte, 1983, Foucault ofe- dos prazeres e O cuidado de si. Se, de 1976 a 1984, Foucault não publica
rece o curso Le gouvernement de soi nenhum livro, sua atividade intelectual — cursos, artigos, palestras, entrevis-
et des autres (O governo de e o gover- tas, conferências — é extremamente vasta, rica e vigorosa e é nela que se
no dos outros). FOUCAULT, Michel. Le vislumbram a dinâmica e a maturação da mudança.
gouvernement de soi et des autres. Pa-
ris: Seuil/Gallimard, 2008. Tradução: O A inflexão dos anos 1980 não é brusca e repentina, mas vai amadurecendo,
governo de si e dos outros. São Paulo: ao sabor das pesquisas, até desembocar na radicalidade do desafio final:
Martins Fontes, 2010.
•  O que é nossa atualidade?
•  Quem somos nós no nosso tempo presente?
NOTAS •  Que outras experiências são possíveis em nosso momento atual?
5
FOUCAULT, Michel. Sécurité, terri-
toire, population. Paris: Seuil/Galli- Não é possível, nos limites deste texto, expor, exaustiva e detalhada-
mard, 2004. Tradução: Segurança, mente, os passos trilhados por Foucault nesses oito anos — os desvios,
território, população. São Paulo: os atalhos —, mas pode-se, ao menos, indicar a hipótese de que a noção
Martins Fontes, 2008. de governo é a mais fundamental para a consecução da reviravolta dos
anos 1980.
6
FOUCAULT, Michel. Naissance de Em 1976, Foucault já havia operado um redimensionamento em rela-
la biopolitique. Paris: Seuil/Galli- ção às análises anteriores e, com ele, apontara para a necessidade de pen-
mard, 2004. Tradução: Nascimento sar a biopolítica, uma ampliação das análises sobre o poder disciplinar.
da biopolítica. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
ATENÇÃO
No entanto, é o redimensionamento situado nos cursos de 1978 e 1979, Seguran-
ça, território, população5, e Nascimento da biopolítica6, o mais decisivo. Nos dois
cursos, Foucault passa a avaliar o poder exercido sobre o indivíduo e, ainda mais,
sobre a população a partir da noção de governo.
Desde então, é o tema do governo o pressuposto de que partem suas pes-
quisas. O exame das artes de governar ou do governo dos outros encaminha Fou-
cault para o exame do governo de si para o qual é essencial à contraposição entre
cuidado de si e conhecimento de si, ambos decorrentes do que Foucault denomina,
em A hermenêutica do sujeito, “paradoxos do platonismo”.

O curso de 1982 é fundamental para a realização dessa trajetória do sujeito


como fabricação dos mecanismos e das relações de poder ao sujeito ético,
autoconstituinte; nele, o início da investigação do cuidado de si, noção que,
ao lado de outra, estética da existência, orienta os últimos textos e cursos
de Foucault.

14 • capítulo 1
As duas dão a Foucault a oportunidade de expandir o que já havia dito, na fase genealógica,
sobre a relação, irreversível, entre poder e resistência. Da mesma forma, se nas investigações
genealógicas dissera que o poder, tal como o concebe, só se exerce sobre indivíduos livres, na
fase comumente chamada de ética, a reflexão sobre a liberdade também se amplia.

ATENÇÃO
Para o nosso objetivo, é importante registrar que, em 1982, o recurso aos antigos nos concede uma inte-
ressante chave de leitura da Filosofia.

Irremediavelmente marcado por seu próprio modo de filosofar, Foucault não nos ofe-
rece um relato, evolutivo e progressivo, da investigação filosófica construída ao longo do
tempo; um compêndio ou um comentário, mas uma espécie de perspectiva, de olhar pers-
pectivo para a História da Filosofia.

A visita aos antigos acaba por nos propor uma espécie de redefinição da História da Filosofia.
O ponto de partida do curso, a contraposição entre cuidado de si e conhecimento de si, é a fun-
damentação da distinção, sugerida por Foucault, entre duas concepções de filosofia e de sujeito,
contraposição essencial ao que se pretende aqui sugerir.

ATENÇÃO

Ao cuidado de si corresponde à vertente filosófica para a qual o sujeito tem acesso à verdade a
partir de técnicas, exercícios e práticas que implicam sua própria modificação; ao conhecimento
de si, a linha filosófica que exalta a representação e reconhece na estrutura subjetiva a condição
do conhecimento.

No primeiro alinhamento, pode-se pensar na Filosofia antiga; o que Foucault, no curso, nomeia
espiritualidade, especialmente a do período helenístico, grego e romano, e no sujeito antigo que se
autoconstitui; no segundo, encontram-se a Filosofia moderna e o sujeito cognoscente.

Reflexão: Filosofia e Espiritualidade


Mais relevante aos nossos propósitos, a leitura do curso nos permite interrogar sobre a re-
lação entre Filosofia e Educação, sobre o ensino da Filosofia e, sobretudo, sobre o papel da
educação na configuração dos sujeitos ou da subjetividade.

capítulo 1 • 15
REFLEXÃO
Refletir sobre a Filosofia como espiritualidade e o sujeito ético antigo autoconstituinte, seguindo o caminho
traçado e percorrido por um filósofo contemporâneo, é, então, uma forma de problematizar e indagar nosso
modo de ser, nossa concepção de Filosofia, nosso entendimento da tarefa da educação:
•  Filosofia como algo que pode favorecer transformações substantivas no indivíduo e na sociedade ou
Filosofia como lugar de respostas definitivas e acabadas?
•  Educar para a erudição ou para a formação e a cultura de si?
•  Privilegiar a adesão e a adequação a modelos a nós sugeridos, ou impostos, ou, tentar, contínua e permanen-
temente, a promoção da liberdade e a consolidação da autonomia?

O curso de 1982 abriga uma nítida peculiaridade: nas doze aulas, sempre divididas em dois tem-
pos, bem próximo a seu modo de entender a Filosofia como problematização, ensaio7, exercício de
si, como diagnóstico e crítica do presente e não como procura de verdades absolutas ou eternas,
Foucault, como em um experimento ou em um laboratório, expõe muito mais o movimento da pes-
quisa do que propriamente as conclusões de um trabalho finalizado, muito mais os riscos de suas
inquietações e hipóteses do que a certeza e a segurança de resultados finais.

Hermenêutica do sujeito e a Filosofia antiga


A obra A Hermenêutica do sujeito pode ser reconhecida como uma história do Cuidado de
si e dos momentos em que a noção se apresenta, claramente, na Filosofia antiga: o pen-
samento socrático-platônico, momento de surgimento da noção como noção filosófica; a
cultura helenística grega e romana dos séculos I e II d. C., idade de ouro do cuidado de si;
os séculos IV e V d. C., momento da transição para o ascetismo cristão.

COMENTÁRIO
Ao longo do curso, Foucault não se dedica com o mesmo vigor aos três momentos apontados: depois de
trazer à cena algumas evidências de que o cuidado de si e o conhece-te a ti mesmo se inserem na Filo-
sofia com Sócrates (469-70/399 a. C.) e Platão (427/347 a..C.), dirige-se, mais atento, a uma parte do
período helenístico greco-romano, ressaltando o epicurismo, em especial, o estoicismo. Não são raras as
passagens em que Foucault dá voz a Epicuro, Epitecto, Sêneca, Marco Aurélio, Musonius Rufus, Filodemo,
Fílon de Alexandria, Plutarco.

16 • capítulo 1
CURIOSIDADE NOTAS
Na primeira aula 8 
O curso Subjectivité et vérité (Subjeti-
No início da primeira hora da primeira aula, Foucault se refere ao objeto do curso oferecido vidade e verdade) ainda é inédito.
8 9 
no ano anterior, Subjetividade e verdade , curso em que revelara alguns dos resultados FOUCAULT, Michel. Hermenêutica
de sua pesquisa sobre o “regime de comportamentos e prazeres sexuais na Antiguidade do sujeito. São Paulo: Martins Fontes,
nos dois primeiros séculos da era cristã”9, resultados que, mais tarde, em 1984, aparecem, 2004, p. 4.
10 
em versão definitiva, no terceiro volume de História da sexualidade, precisamente no Id.
11 
Capítulo II, A cultura de si. Em 1981, a fim de pensar a moral sexual europeia moderna, Id.

havia apresentado uma reflexão histórica sobre o tema das relações entre subjetividade
e verdade através do exame do “regime dos aphrodisia”10. A referência ao curso passa-
do se justifica como uma espécie de introdução ao novo curso e ao recorte escolhido:
naquele momento, sua intenção é discutir, de forma mais geral, “o problema ‘sujeito e
verdade’.”11Em outras palavras, o tema do novo curso permanece a relação entre sujeito
e verdade; Foucault confirma a abordagem histórica, mas altera a perspectiva: trata-se
agora de investigar algo mais amplo, as práticas de si, como processo de autoconstituição
do sujeito (necessário observar que, apesar do uso do termo, Foucault reconhece que, na
Antiguidade, não há sujeito, tal como na Filosofia Moderna).

AUTOR
Sócrates

Sócrates foi um filósofo grego, mentor de Platão, pensador


da filosofia ocidental. Figura enigmática, legou seu nome a
conceitos como ironia socrática e método socrático.

Platão
Platão foi um filósofo e matemático grego, fundador da
Academia de Atenas (primeira instituição de ensino
superior ocidental). Contribuiu para a filosofia natural e
filosofia ocidental. Foi mentor de Aristóteles.

Na Filosofia helenística e romana, nem o privilégio do conhecimento de si, presen-


te, de certa forma, como tendência, em Platão, nem a convergência do cuidado e
do conhecimento de si à renúncia de si do cristianismo; ao contrário, a prevalência
do ocupar-se consigo como fim em si mesmo. Entre uma ponta e outra, o período
magno do cuidado de si. Na primeira aula, de 6 de Janeiro, alude ainda ao “momento
cartesiano” como aquele em que se consumam a desvalorização do cuidado de si e
a revalorização, a requalificação do conhecimento de si.

capítulo 1 • 17
CURIOSIDADE Como apresentação e explicação do que será debatido no curso, mas in-
clusive como provocação ou problematização, Foucault se interroga so-
Conhece-te a ti mesmo bre a escolha do cuidado de si — epiméleia heautoû para os gregos e cura
Inscrito no templo de Delfos, o co- sui para os latinos — como ponto de partida para a reflexão histórico-ge-
nhece-te a ti mesmo não se reveste, nealógica sobre a relação entre sujeito e verdade, se, indiscutivelmente,
no início, de uma dimensão filosófica a história da Filosofia não lhe concede senão uma atenção secundária,
nem se configura como preceito moral, uma posição marginal, registrando como fundamental a famosa noção
propriamente. Aludindo às conclusões conhece-te a ti mesmo. Basta o recurso à história da Filosofia para que se
de Roscher13 , Foucault admite a in- verifique que a importância atribuída ao conhecimento de si obscurece o
terpretação de que o preceito délfico, valor, tão evidente na Antiguidade, do cuidado de si.
assim como outros tantos, expressa
uma recomendação para o ritual das
consultas a serem feitas aos deuses “É um tanto paradoxal e sofisticado escolher esta noção, pois todos sabe-
no templo: os consulentes não deve- mos, todos dizemos, todos repetimos, e desde muito tempo, que a ques-
riam inquirir demais nem prometer o tão do sujeito (...) foi originariamente colocada em uma fórmula totalmente
que, doravante, não poderiam cumprir; diferente e em um preceito totalmente outro: a famosa prescrição délfica
como preparo às consultas, precisa- do gnôthi seautón (‘conhece-te a ti mesmo’). Assim, enquanto tudo nos
riam examinar a necessidade e a uti- indica que na história da Filosofia — mais amplamente ainda, na história do
lidade de suas próprias interrogações. pensamento ocidental — o gnôthi seautón é, sem dúvida, a fórmula fun-
Acolhendo também a interpretação de dadora da questão das relações entre sujeito e verdade, por que escolher
14
Defradas , Foucault reconhece que, esta noção aparentemente um tanto marginal, que certamente percorre o
assim como outros preceitos, o conhe- pensamento grego, mas à qual parece não ter sido atribuído qualquer status
ce-te a ti mesmo pode ser considerado particular, a de cuidado de si mesmo, de epiméleia heautoû?”12
ainda como um “imperativo geral de
prudência.”15 Para ele, todavia, qual-
quer que seja a interpretação, o fato é Incorporação do preceito délfico
que o conhece-te a ti mesmo — assim A pergunta de Foucault sobre sua própria escolha tem um objetivo bem
como o cuidado de si — é inserido na determinado: evidenciar as razões do retraimento e do apagamento do
Filosofia com Sócrates, como demons- brilho do cuidado de si para, enfim, questionar as formas modernas de
tram os escritos de Platão e Xenofonte subjetivação:
(430-355 a. C.).

“(...) por que, a despeito de tudo, a noção de epiméleia heautoû (cuidado de


NOTAS si) foi desconsiderada no modo como o pensamento, a Filosofia ocidental,
12 
FOUCAULT, op. cit., p. 5. refez sua própria história? O que ocorreu para que se tenha privilegiado
13
  W. R. Roscher.Weiteres über die Be- tão fortemente, para que se tenha dado tanto valor e tanta intensidade
deutung dês E [ggua] zu Delphi und die ao ‘conhece-te a ti mesmo’ e se tenha deixado de lado, na penumbra ao
übrigen grammata Delphika, Philologus, menos, esta noção de cuidado de si que, de fato, historicamente, quando
60, 1901. averiguamos os documentos e os textos, parece ter antes enquadrado o
14
  J. Defradas. Les thèmes de la pro- princípio do ‘conhece-te a ti mesmo’ e constituído o suporte de todo um
pagande delphique. Paris: Klincksieck, conjunto que é, afinal de contas, extremamente rico e denso de noções,
1954. Cap. III: La sagesse delphique. práticas, maneiras de ser, formas de existência etc.? Por que este privilégio
15
  FOUCAULT, M. op. cit., p. 6. para nós, do gnôthi seautón às expensas do cuidado de si?”16

18 • capítulo 1
No momento de incorporação do preceito délfico ao âmbito da Filoso- NOTAS
fia, dois aspectos são postos à luz:
16
Ibid., p. 15-16.
17
Ibid., p. 11-12.
O CONHECIMENTO DE SI É UMA 18 
Ibid., p. 11.
CUIDADO DE SI E CONHECIMENTO DAS FORMAS DO OCUPAR-SE
DE SI NÃO SE DESVINCULAM. CONSIGO MESMO E, PORTANTO,
A ELE SE SUBORDINA.

Para Foucault, nem só em Sócrates e Platão o cuidado de si abrange o co-


nhecimento de si. No momento helenísitico grego e romano, sofre diversas
modificações, mas permanece como fundamento do conhecimento de si: “a
epiméleia heatoû (cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou
de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica
ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana.” 17

A análise da inclusão do cuidado de si e do conhece-te a ti mesmo no


terreno filosófico é favorecida por uma cuidadosa leitura de dois diálo-
gos platônicos: Apologia de Sócrates e Alcibíades.
Na primeira hora da primeira aula, Foucault se refere ao diálogo
Apologia de Sócrates, também estudado em outros cursos da década de
1980, como a um bom instrumento de avaliação do cuidado de si e tam-
bém de sua relação com o conhece-te a ti mesmo, mas é Alcibíades — re-
tomado na segunda hora, mas lembrado ao longo de todo o curso — que
recebe maior atenção de Foucault: nele, pode-se encontrar a primeira
formulação teórica do cuidado e, com isto, elementos mais claros para a
compreensão da relação entre Filosofia e Educação na antiguidade.

CURIOSIDADE
Apologia de Sócrates
Apologia, como se sabe, é um diálogo escrito pelo jovem Platão que descreve a defesa,
o julgamento e a condenação de Sócrates pela democracia ateniense. Nele, Platão
faz de seu mestre a personificação do preceito, ou conceito, cuidado de si. Ao longo
do texto, o próprio Sócrates se apresenta aos juízes como o mestre do cuidado de si,
aquele que tem como tarefa estimular os outros à ocupação com eles mesmos. Ten-
do recebido dos deuses uma missão, Sócrates, acusado de corromper a juventude e
desrespeitar os deuses da cidade, é quem interpela os cidadãos, advertindo-os de que
não devem se ocupar com riquezas, glórias, honras, mas com suas virtudes e sua alma.
“Sócrates é o homem do cuidado de si e assim permanecerá”18, diz Foucault.

capítulo 1 • 19
NOTAS Três passagens, bastante significativas, são destacadas:
1.  Com a primeira, Foucault relembra que Sócrates, orgulhoso de
19
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São sua vida e, em especial, do cumprimento da tarefa a ele confiada pelos
Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 21. Os Pen- deuses, não tem a menor vergonha da vida que leva e, tampouco, do
sadores (Platão, Xenofonte, Aristófanes). fato de ser condenado, aos setenta anos de idade, exatamente por causa
20
Ibid., p. 22. dela. “‘Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obe-
21 
Ibid., p. 27. decerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo,
jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensi-
namentos’ (...).”19
2.  Na segunda, aponta para a opinião socrática de que, morrendo,
quem perde algo essencial é a cidade e não ele próprio. “Ficais certos
de uma coisa: se me condenardes por ser eu como digo, causareis a vós
próprios maior dano que a mim.”20
3.  Na terceira, traz à cena algumas considerações sobre a pena a Só-
crates destinada.

“(...), o homem propõe a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de
propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que
sentença corporal ou pecuniária mereço eu que entendi de não levar uma
vida quieta? Eu, que, negligenciando o de que cuida toda gente — riquezas,
negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas
que ocorrem na política (...)? Eu, que me entreguei à procura de cada um
de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos
benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu
que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos
interesses do povo do que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos
demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim?” 21

Para Foucault, é importante ressaltar:

•  Ao estimular os outros a se ocuparem consigo próprios, Sócrates cumpre


uma ordem divina, uma tarefa, um ofício a ele determinado pelos deuses.
•  Ao se ocupar com os outros, de certa forma, Sócrates não se ocupa de si
e não se importa com algumas atividades que lhe poderiam ser proveitosas,
como carreira política, fortuna etc., para assumir o lugar de mestre.
•  Ao instigar os outros ao cuidado de si, Sócrates assume a função de des-
pertar os outros de uma espécie de sono: “O cuidado de si é uma espécie
de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua
existência, e constitui um princípio de permanente inquietude no curso da
existência.” Sócrates é o tavão, o inseto que, ao picar o homem, nele provoca
agitação inevitável.

20 • capítulo 1
Atividade filosófica de Sócrates CURIOSIDADE
Ora, toda a atividade filosófica de Sócrates (desde a consulta ao oráculo História da Filosofia grega
de Delfos até o julgamento) se justifica desta forma: A história da Filosofia costuma dividir
Crente na existência da verdade e certo de que os homens não sabem a Filosofia grega em três momentos:
o que pensam saber, convida-os a examinarem suas opiniões na tenta- pré-socrático, socrático e helenista.
tiva de ajudá-los na travessia em direção à conquista do conhecimento Como se pode verificar, Sócrates é to-
verdadeiro. Mais afeito à investigação do que é diretamente relacionado mado como marco divisor. No entanto,
ao humano do que àquilo que diz respeito à physis — não por acaso, a a expressão pré-socrático não se refere
Filosofia socrática é tomada como marco divisório na história da Filo- apenas a filósofos cronologicamente
sofia grega —, mais atraído pela reflexão sobre os valores indispensá- anteriores. Alguns dos chamados pré-
veis às escolhas pessoais, à boa conduta e ao governo da cidade do que à socráticos são contemporâneos de Só-
pesquisa da physis e do cosmo, como os pré-socráticos, Sócrates faz do crates. O uso da expressão se justifica
diálogo o método filosófico por excelência. muito mais em função de uma mudança
Interessado na procura do conhecimento verdadeiro — não como temática.
forma de erudição, mas como instrumento indispensável à vida prática,
individual e coletiva —, em todos os diálogos que mantém com os mais
variados tipos de interlocutor, sem oferecer respostas prontas, estimula CONCEITO
a reflexão, provoca a inquietação, conduz o outro ao reconhecimento da
fragilidade de suas opiniões primeiras. Sofistas
Embora o século XIX tenha reavaliado a importância dos sofistas, Professores viajantes, andarilhos, que
não é gratuita a crítica de Sócrates e de Platão à atividade sofística. En- ensinavam, sobretudo, retórica e oratória
quanto a Filosofia socrático-platônica postula o caráter absoluto da ver- àqueles que, pela palavra e pela força da
dade e dos valores, os sofistas asseguram sua dimensão relativa ao ho- argumentação, deveriam participar da
mem, ao grupo, ao tempo, ao lugar; em uma palavra, à História. vida pública, da democracia então exer-
cida em Assembleias, e, quem sabe, do
Se na primeira hora da primeira aula Foucault se vale da Apologia de Só- governo da cidade.
crates, no entanto, é o outro diálogo, Alcibíades, o mais fundamental à per-
cepção de que o cuidado de si é “o solo, o fundamento a partir do qual se
justifica o imperativo do ‘conhece-te a ti mesmo’.”23 O texto platônico, como NOTAS
diz o próprio Foucault, é a grande referência do curso de 1982.
24
Contudo, é o Alcibíades que mais o ajuda a pensar a relação entre Filosofia e Ibid., p. 58.
25
cuidado de si e, por esta via, aludir àquela distinção, acima observada, entre Ibid., p. 41-42.
26
dois modos de conceber a atividade filosófica. Embora chame atenção para a Ibid., p. 84.
22
anterioridade da regra do cuidado de si — própria inclusive da Grécia arcaica FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 11.
23
—, o Alcibíades é, para ele, “a primeira teoria e, pode-se mesmo dizer, [entre]   FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 11.
todos os textos de Platão, a única teoria global do cuidado de si. Pode ser con-
24
siderada como a primeira grande emergência teórica da epiméleia heautoû.”
A Apologia é um texto francamente conhecido e exaltado, mas não ocorre
o mesmo com Alcibíades. Por que, então, escolhê-lo e nomeá-lo como refe-
rência ou como um marco fundamental para pensar a Filosofia antiga, se o
diálogo já foi acusado até de inautêntico? Foucault nos responde: além de
corresponder, dentre todos os diálogos platônicos, à “primeira grande teoria
do cuidado de si”25— uma “teoria completa”26—e facilitar a compreensão da

capítulo 1 • 21
NOTAS
Filosofia platônica, o Alcibíades abre espaço para o entendimento do que
27
Id. será, depois de Platão, a grande cultura de si na época helenística e romana,
28 Ibid., p, 45. a idade de ouro do cuidado de si.
29
Id. Alcibíades é, para Foucault, “uma espécie de introdução”27 ao que quer dis-
cutir em 1982 e, inclusive, à provocação que quer fazer a seu tempo sobre
a produção da subjetividade. Para nós, importa ressaltar que o Alcibíades
expressa, mais claramente, a relação entre Filosofia e Educação e entre Fi-
losofia, Ética e Política, uma vez que o que ali é dito vincula-se à insuficiência
da educação ateniense para o exercício da política e à necessidade de ocu-
par-se consigo para o bom governo da cidade.

RESUMO
A história do diálogo é a seguinte: Alcibíades (450-404 a. C.), de uma geração
anterior à de Platão, é um jovem de origem aristocrática, belo, rico e bem relacio-
nado que, tendo perdido os pais, é educado por Péricles. Inspirado e orientado
pelo deus, Sócrates resolve abordar Alcibíades, pela primeira vez, ao tomar co-
nhecimento de que o rapaz pretende conquistar mais do que já possui: o governo
da cidade. Em sua abordagem, Sócrates diz a Alcibíades que, antes de ter em
suas mãos o governo dos outros, é necessário saber se está preparado para um
enfrentamento de “duas espécies de rivais”28: rivais internos, da própria Atenas,
já que, possivelmente, não é o único a almejar o governo, e rivais de fora, externos,
inimigos da cidade, os espartanos e os persas.
Provocativo, Sócrates indaga: "é mais rico do que os persas? É mais educado do
que os espartanos e os persas?" Esparta é, em sua forma de educar, uma “refe-
rência de qualidade”29; educa para boas maneiras, grandeza da alma, coragem,
resistência, para a prática de exercícios, para a conquista de vitórias e honras.

O príncipe persa, por sua vez, é educado por quatro professores: de sabe-
doria (sophía), de justiça (dikaionsýne), de temperança (sophrosýne) e de
coragem (andreía)30. E Alcibíades? Educado por Péricles, ou antes, por um
velho escravo — Zóprio da Trácia —, a educação de Alcibíades — a educação
ateniense — em nada pode ser comparada à dos espartanos e à dos persas.

A primeira advertência não tarda:

Alcibíades quer assumir o governo dos outros, mas não possui a mes-
ma riqueza nem a mesma educação de seus adversários.

Surge, aqui, a primeira referência de Platão ao preceito conhece-te a ti


mesmo, mas, segundo Foucault, ainda de uma forma fraca, como um “con-

22 • capítulo 1
selho de prudência”31. Diante de possíveis rivais, Alcibíades deve olhar para NOTAS
si para constatar sua inferioridade, que mais se define por não ter sequer
31
uma tékhne — um saber — como forma de compensação do que lhe falta. Ibid., p. 46.

ATENÇÃO
A demonstração da carência da tékhne se dá por meio de uma série de indagações;
procedimento comum a Sócrates, presente em grande parte dos diálogos platônicos
da primeira fase, denominados diálogos socráticos ou aporéticos.

Como de hábito, Sócrates procura a resposta à pergunta “o que é?”:


— Críton, o que é o dever? Eutífron, o que é a piedade? Laques, o que é a
coragem? Lísis, o que é a amizade?

•  No Alcibíades, o que é cuidar de si, mas também o que é governar bem?


•  Como se pode reconhecer um bom governo?
A resposta de Alcibíades induz o mestre a mais indagações. Tendo dito que
o bom governo se comprova pela concórdia entre os cidadãos, Sócrates
provoca, mais uma vez: o que é a concórdia? Alcibíades não sabe. Envergo-
nhado, admite sua ignorância e, mais importante, a ignorância de sua própria
ignorância — a ignorância de si —, mas Sócrates tenta tranquilizá-lo: ainda
há tempo de ocupar-se consigo.

COMENTÁRIO
Observe-se que Sócrates não diz que há tempo para aprender a governar,
como se espera da leitura do diálogo, mas tempo para cuidar de si, para
tomar-se nas mãos, para ter tempo para si, para olhar-se para si mesmo.
Diante da ignorância e da ignorância de si, necessário ocupar-se consigo
para conhecer-se a si mesmo e, assim, bem governar a cidade.

•  Foucault ressalta uma diferença entre este diálogo e a Apologia:


Enquanto em sua defesa Sócrates afirma que, durante toda a vida,
indaga velhos e jovens, no Alcibíades, Sócrates acalma Alcibíades ao lhe
dizer que, na idade em que está, ainda há tempo.

ATENÇÃO
Em Apologia, nas palavras de Sócrates, há indícios de que o ocupar-se consigo é
tarefa para toda a existência, em Alcibíades a recomendação é que desde jovem se
aprenda a cuidar de si. De todo modo, no momento socrático-platônico, o cuidado
de si é uma atividade indispensável à formação do jovem. Esta diferença pressentida
por Foucault é bem emblemática para a distinção entre o momento socrático-platô-

capítulo 1 • 23
NOTAS nico e o momento da Filosofia helenística, quando para os epicuristas e estoicos, o
cuidado de si, de fato, propõe-se como obrigação para toda a vida.
32
Ibid., p. 48.
Fica claro que, no diálogo, o cuidado de si aparece vinculado ao po-
der, à questão política porque condição de exercício do governo dos ou-
tros: só é possível bem governar se o aspirante ao governo se ocupa se si.
Por outro lado, a necessidade de cuidar de si é, neste caso, associada ao
reconhecimento de uma insuficiência da educação.

Ao admitir que Alcibíades não fora bem educado por Péricles, ou melhor,
pelo escravo a quem foi entregue, Sócrates; ou Platão; põe em cena uma
crítica à educação ateniense, crítica acentuada pela crítica aos sofistas, res-
ponsáveis, na opinião de Platão, pelo declínio dos valores e pela ruptura do
vínculo moral, para ele indispensável, entre linguagem — palavra — e verda-
de. No diálogo, o cuidado de si “inscreve-se (...) não somente no interior do
projeto político, como no interior do déficit pedagógico”32; no diálogo, o cui-
dado de si eclode de uma urgência. Alcibíades ignora o que significa aquilo
de que quer se apoderar.
O que é bem governar? O que é um bom governo?
Aos olhos de Sócrates, para tornar-se governante, é preciso saber o que
é governar e o que é governar bem. O que significa ocupar-se da cidade?
Não basta o desejo de governar os outros, não basta a posse de fortuna
ou do status aristocrático. Reunidos, cuidado de si e conhecimento de si
vinculam-se à questão ético-político-pedagógica.

Tais observações conduzem às questões fundamentais a que Foucault


quer se referir:

•  O que é o eu, objeto do cuidado de si? O que é este si mesmo? (autò tò


auto), o que é o eu, ou, como diz a Filosofia moderna, o sujeito?
•  O que é, afinal, ocupar-se de si?
•  Como o cuidar de si pode promover a arte do bom governo? Em outros
termos: o que é o eu com que se tem de ter cuidado para se poder cuidar
dos outros? O que significa, propriamente, cuidar de si? Em que e por que o
cuidar de si é imprescindível ao cuidar dos outros?

Para responder à pergunta sobre o si mesmo, sobre o eu, Foucault alu-


de a duas passagens em que o preceito délfico aparece no texto platônico.
•  A primeira, já mencionada acima, é o momento em que Sócrates suge-
re, sutilmente, que Alcibíades olhe para si, para suas capacidades e aptidões;
•  A segunda, bem mais forte do que a primeira, é um expediente me-
todológico: o que é o tu da expressão ocupar-te contigo próprio? O tu é, ao
mesmo tempo, sujeito e objeto. És tu que te ocupas e é de ti que tu te ocu-
pas. Ou, dito de outro modo, o que é o se, a forma reflexiva, do ocupar-se

24 • capítulo 1
consigo mesmo? Em Sócrates, em Platão, este si mesmo; ou o eu; é a alma. NOTAS
Foucault chega a admitir que o Alcibíades, neste ponto, poderia ser visto
33
como o procedimento inverso — o mesmo, mas invertido — do que se si- Ibid., p. 70.
34
tua em A república, diálogo que, em princípio, se interroga sobre a justiça. Ibid., p. 71.
35
Poder-se-ia pensar em uma inversão da analogia posta em A repúbli- HS, p. 69.
36
ca, entre a justiça da alma e a justiça da cidade, mas, diz ele, não é o Ibid., p. 69.
37
que ocorre. A alma de que fala Platão no Alcibíades é bem diferente da Ibid., p. 71.
38
concepção que aparece no Fédon — alma como prisão do corpo —, no Ibid., p. 69-70.
39
Fedro — alma como mistura —, em A república — alma como estrutura Ibid., p. 71.
40
hierárquica. No Alcibíades, a alma é “o sujeito da ação”33, a “alma-sujei- Id.
41
to” e não a “alma-substância”34. Id.
42
Id.
43
Id.
44
No texto, o expediente de Platão é “fazer aparecer o sujeito na sua irredu- Ibid., p. 73-74.
tibilidade”35, distinto “de todos os instrumentos, utensílios, meios técnicos 45
Ibid., p. 85.
36
que ele pode pôr em ação” , um tanto “transcendente” “em relação ao que
o rodeia, aos objetos de que dispõe, também aos outros com os quais se
relaciona”37: “o sujeito de todas [as] ações corporais, instrumentais, e da
linguagem é a alma: alma enquanto se serve da linguagem, dos instrumen-
tos e do corpo.”38 Concepção importante mais tarde, para os estoicos, por
exemplo. Em Epitecto, “ocupar-se consigo mesmo será ocupar-se consigo
enquanto se é ‘sujeito de’, em certas situações (...) sujeito também da rela-
ção consigo.”39 “A alma como sujeito e de modo algum como substância, é
nisto que desemboca, a meu ver, a pergunta: ‘o que é si mesmo, que sentido
se deve dar a si mesmo quando se diz que é preciso ocupar-se consigo.’”40
Interessante é que ocupar-se consigo “tem sempre necessidade de passar
pela relação com o outro que é o mestre.”41

“Não se pode cuidar de si sem passar pelo mestre, não há cuidado de si


sem a presença de um mestre. Porém, o que define a posição do mestre
é que ele cuida do cuidado que aquele que guia pode ter de si mesmo.”42

Nem médico, que cuida do corpo; nem pai de família, que cuida dos bens;
o mestre não é, propriamente, um professor que “ensina aptidões e capaci-
dades a quem ele guia”.43 “O mestre é aquele que cuida do cuidado que o
sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra
a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio.”44
Pelo amor desinteressado ao discípulo, o mestre passa a ser o princípio e o
modelo para que o educando cuide de si.
Se o eu de que se deve cuidar é a alma, o que é, propriamente, cuidar? “Pois
bem, muito simplesmente, conhecer-se a si mesmo.”45 Cuidar de si é, neste
momento, conhecer-se.

•  Terceira alusão, no texto de Platão, ao conhece-te a ti mesmo, no entan-


to, com um valor diferente das duas anteriores: agora, o cuidado de si

capítulo 1 • 25
NOTAS consiste no conhecimento de si46. No Alcibíades, localiza-se a sobreposi-
ção entre cuidado de si e conhecimento de si, um apelo recíproco:
46
Id.
47
Ibid., p. 87.
48
Ibid.,p. 88. “Há uma sobreposição dinâmica, um apelo recíproco entre o gnôthi seautón
49
Ibid., p. 89. e a epiméleia heautoû (conhecimento de si e cuidado de si). Esta sobre-
posição, este apelo recíproco é, creio, característico de Platão. Será reen-
contrado em toda a história do pensamento grego, helenístico e romano,
evidentemente com equilíbrios diferentes, diferentes relações, tônicas dife-
rentemente atribuídas a um ou a outro (...).”47

•  Mas, como é possível o conhecer-se?


Seguindo o texto platônico, Foucault faz alusão à metáfora do olho:
como em um espelho, no olho do outro, posso ver a mim mesmo porque
há uma “identidade de natureza”48 -- só me vejo no olho do outro porque
o outro é o olho que me olha; assim, também a alma só pode se conhecer
dirigindo-se para algo de natureza semelhante. A alma só pode ver e se
conhecer a si mesma caso dirija seu olhar para uma coisa de igual natu-
reza, isto é, para aquilo que constitui sua própria natureza: pensamento
e saber. Que elemento é de mesma natureza da alma? Bem, de acordo
com uma Filosofia que afirma a existência do mundo supratemporal,
superior ao mundo sensível, é o elemento divino, o elemento mais lumi-
noso e mais puro do que qualquer alma semelhante.

ATENÇÃO
Passagem possivelmente incluída no diálogo pela tradição, o que vale é que, no
texto platônico, “o conhecimento do divino é condição do conhecimento de si”49 e de
conquista da sabedoria (sophrosýne). De posse da sabedoria, o indivíduo sabe como
agir e pode governar os outros, pode governar a cidade. No final do texto, Alcibíades
faz uma promessa a Sócrates: promete ocupar-se com a justiça (dikaiosýne), o que,
para Foucault, é o mesmo que se ocupar consigo.

A essa altura pode-se ver a relação entre ética, política e educação ex-
pressa no diálogo. Alcibíades deve ocupar-se consigo (ética) para bem
governar a pólis (política). Essa
Algumas das questões relação, entretanto, é poste-
postas no Alcibíades rior à outra que a fundamenta
mantêm-se na Filosofia e alicerça: a relação amorosa,
pedagógica, entre mestre e dis-
helenística e romana,
cípulo. A política exige a ética
mas com alterações e, ambas, a pedagogia.
significativas. Sintomas de “uma longa
evolução, já perceptível no in-

26 • capítulo 1
terior da obra de Platão”50, tais alterações não são repentinas. Mais do NOTAS
que isto, são tributárias das profundas transformações sociais e políticas,
50
como, por exemplo, o declínio da cidade e da democracia. As filosofias Ibid., p. 102.
51
helenísticas, gregas e romanas; epicurismo, estoicismo e ceticismo, por Ibid., p. 103.
52
exemplo; desenvolvem-se em um cenário radicalmente diferente daquele Ibid., p. 94.
53 
que viu nascer a Filosofia socrático-platônica. Não mais a democracia e as Ibid., p. 108.
54
discussões públicas em Assembleias, mas o domínio político da Grécia, Ibid., p. 109.
55
primeiro por Felipe e Alexandre, da Macedônia, depois por Roma. Ibid., p. 103.
56 
•  A primeira modificação indicada por Foucault é que o imperativo Ibid., p. 104.
do cuidado de si, embora não seja regra de uma “ética universal”, torna-
se “princípio geral e incondicional”51, importante a todos durante toda
a vida. Todos “entre aspas”52, porque próprio de uma elite, de pessoas CURIOSIDADE
que têm condições culturais, econômicas e sociais.
Práticas de si
No texto, Foucault reconhece que as
Se no Alcibíades, Sócrates dá a entender que o cuidado de si é indispen- práticas de si não são inauguradas no
sável à formação do jovem, sobretudo para aquele jovem aristocrata que período helenístico, isto é, que já existem
quer se ocupar da política, nos ditos dos epicuristas, estoicos e também dos na Grécia Arcaica e na Grécia Clássica.
cínicos, o cuidado de si deve ser obrigação de todos e de toda a vida, em
especial da idade madura, inclusive, como preparação para a velhice.
Durante toda a vida, deve-se cuidar de si: na juventude, para “armar-se, equi-
par-se para a existência” (paraskheué); na velhice, para “rejuvenescer” pela
“rememoração”54. A Carta a Meneceu, de Epicuro (341-270 a. C.), é um
bom exemplo de que cuidar de si e filosofar se equivalem:

“Quando se é jovem, não se deve hesitar em filosofar e, quando se é velho,


não se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado cedo nem demasiado
tarde para ter cuidados com a própria alma. Quem disser que não é ainda ou
não é mais tempo de filosofar assemelha-se a quem diz que não é ainda ou
não é mais tempo de alcançar a felicidade.”

•  Segunda modificação: o princípio permanece o fundamento da


atividade filosófica, mas não é mais estreitamente vinculado a uma fi-
nalidade exterior, como a educação ou a política, o governo dos outros.
Na idade de ouro, o cuidado de si é, ele próprio, a meta inapelável. Não se
trata mais de cuidar de si para preencher uma lacuna deixada por uma
educação insatisfatória, insuficiente e inapta ou para se tornar um bom
governante, mas para se preparar, qualquer que seja a situação. O eu de
que se deve cuidar é a finalidade última do imperativo. “Por que se cuida
de si? Não pela cidade. Por si mesmo.”55
•  Terceira, o cuidado de si não se exprime, unicamente, pelo conheci-
mento de si. O conhecimento de si não desaparece, mas se atenua e, mais
relevante, se inscreve num “conjunto bem mais vasto”56: as práticas de si.
O cuidado de si, inscrito no âmbito mais alargado das práticas de si, não

capítulo 1 • 27
CURIOSIDADE mais se dirige, principalmente, para o conhecimento nem o “elemento
divino” é agora invocado.
Mestre e discípulo
A figura do mestre é fundamental para
que o discípulo deixe o estado de “es- O cuidado de si converge para a arte de viver (tékhne toû bíou), para a
tultícia”, de servidão, mas seu papel consideração da vida como obra de arte. Desta forma, não mais se situa,
estende-se a amigos e parentes e se exclusivamente, na relação amorosa e pedagógica entre mestre e discípulo,
expressa por cartas e conselhos ou relação antes responsável pela passagem da ignorância ao saber.
em escolas institucionalizadas. Como
exemplo, pode-se lembrar do Jardim
de Epicuro ou das inúmeras Cartas de Para Foucault, essa ampliação provoca três consequências:
Sêneca. São práticas de si: ritos de puri- •  A primeira é a acentuação da dimensão crítica do cuidado de si.
ficação, técnicas de concentração ou de Além do elemento formador presente ao princípio, cresce sua função
recolhimento, técnica do retiro, prática crítica: crítica de si, dos outros, da cultura. As práticas de si mantêm o
da resistência. papel formador, embora não mais destinado à conquista de um saber
ou a assunção de um cargo público.
Agora, cabe formar o indivíduo para suportar as adversidades, os in-
CURIOSIDADE fortúnios, os acidentes da vida, de dotá-lo de uma “armadura protetora”,
paraskheué, para os gregos, instructio, para Sêneca.57 Tal caráter forma-
Velhice tivo agora não se desvincula de um aspecto corretivo: trata-se, também,
A velhice, vista como “sabedoria, mas de corrigir “erros, (...) maus hábitos, (...) deformação e dependência es-
também fraqueza”59, passa a ser “o coro- tabelecidas e incrustadas”.58 Ainda que sejamos rígidos ou duros, pode-
amento, a mais alta forma do cuidado de mos mudar para sermos o que nunca fomos: “Tornamo-nos o que nun-
si, o momento de sua recompensa”60: “o ca fomos; este é, penso eu, um dos mais fundamentais elementos ou
idoso será soberano de si mesmo e pode temas desta prática de si.”
satisfazer-se inteiramente consigo.”62 A Trata-se, pois, de desaprender, noção importante nos estoicos, mas
velhice é a “meta positiva da existência”62, também nos cínicos, noção que, até certo ponto, também expressa uma
o “abrigo seguro”63 contra os “contratem- certa crítica à educação recebida na primeira infância, ao meio familiar,
pos da vida”64. Para tanto, deve ser por aos hábitos e valores.
nós fabricada.65 •  A segunda consequência é a ligação entre prática de si e medicina,
que desemboca, nos estoicos e epicuristas, na aparição do corpo tam-
bém como objeto do cuidado. Não por acaso, no período helenístico
NOTAS romano, a Filosofia assume uma função terapêutica: Filosofia como me-
dicina da alma.
57
FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 115. •  A terceira, a importância e o valor agora atribuídos à velhice.
58
Ibid., p. 116.
59
Ibid., p. 134.
60
Id. “Devemos, por assim dizer, e nisto consiste o ponto central desta nova ética
61
Ibid., p. 135. da velhice, nos colocar em relação à vida, em um estado tal que a vivamos
62
Id. como se já a tivéssemos consumado. No fundo, é preciso que, a cada mo-
63
Ibid., p. 136. mento, mesmo sendo jovens, mesmo na idade adulta, mesmo se estivermos
64
Id. ainda em plena atividade, tenhamos, para com tudo o que fazemos e somos,
65
Ibid., p. 137. a atitude, o comportamento, o desapego e a completude de alguém que já
66
Id. tivesse chegado à velhice e completado sua vida.”

28 • capítulo 1
No período helenístico romano, o cuidado de si implica a modifica- NOTAS
ção de nossa relação com o tempo. Não por acaso, associa-se à valoriza-
70
ção do ócio e à relativização das atribuições comuns do dia a dia. A vida, Ibid., p. 17-18.
71
objeto de artesanato, de tessitura, de construção, não pode ser trabalho Id.
ou ocupação contínua, diz Sêneca.

ATENÇÃO
O homem deve ter tempo disponível para dobrar-se sobre si mesmo, para retirar-se
em si mesmo.

Assim, elabora-se permanentemente, o que significa que a tarefa de


construção de si nunca é completa. Conhecimentos verdadeiramente
úteis são aqueles que promovem a transformação daquele que conhece,
isto é, auxiliam a elaboração e a transformação e, por isto, provocam um
ethos, uma conduta ética.

COMENTÁRIO
Ora, se o princípio do cuidado de si é tão importante à cultura antiga, por que, na
história da Filosofia, permanece marginal, à sombra do conhece-te a ti mesmo? Por
que se atribui privilégio ao conhecimento de si e se deixa na penumbra o imperativo
do cuidado?
Para abordar a questão — que, afinal, é a que mais interessa —, Foucault formula
“hipóteses, com muitos pontos de interrogação e reticências”67 e elenca uma série
de razões possíveis, abrigadas em dois âmbitos: moral e epistemológico.

É provável que o imperativo do cuidado de si possua algo de pertur-


bador. Ocupar-se consigo soa “mal aos ouvidos”, como se fosse uma
exaltação de si mesmo, um “culto a si mesmo”, uma “espécie de desafio
e de bravata, uma vontade de ruptura ética” e, por isto, não merecesse
valor positivo ou o qualificativo de preceito moral.
Ou, mais ainda, como se fosse sintoma de melancolia ou tristeza, úni-
ca saída para quem se sente incapaz de participar de uma moral coletiva
e tenha, assim, que se recolher a si — refúgio, lugar de fuga — como alter-
nativa de vida, afirmando-se em uma ética individualista. Ainda mais, o
imperativo parece um sinal inequívoco de um egoísmo inaceitável.

Por isto, inserido “num tempo de exaltação do não egoísmo”70, o cuidado


de si é profundamente alterado, tanto “pela moral cristã quanto pela moral
moderna não-cristã” , “seja sob a forma cristã de uma obrigação de renunciar
a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação com os outros; quer o
outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria etc.”71 Confundindo-se

capítulo 1 • 29
NOTAS
cuidado de si com egoísmo, fomos, ao longo do tempo, desencorajados a
72
Ibid., p. 19. admitir a positividade; e a preciosidade; do ocupar-se consigo.

Seja como fortaleza para refúgio, seja como isolamento, todas as expres-
sões do cuidado de si foram modificadas e entendidas como negativas. Tais
modificações foram fomentadas por certa interpretação do período hele-
nístico, interpretação contestada somente no século XX: na ausência de
condições políticas de exercício da palavra, da liberdade, da cidadania; resta
ao filósofo exercer sua liberdade isolada e individualmente, no máximo ao
lado de amigos. A contestação recente indica que, a despeito das profundas
modificações sociopolíticas, a atividade filosófica é bastante intensa. Afina-
do à nova interpretação, diz Foucault: a cultura de si não é individualismo, na
acepção negativa e nefasta da expressão.

De acordo com Foucault, no entanto, a razão fundamental para o


desprestígio do cuidado de si está no que proclama como momento car-
tesiano, momento em que, na história da Filosofia, ocorrem, ao mesmo
tempo, a desqualificação do cuidado de si e a valorização extrema; ou a
requalificação; do conhece-te a ti mesmo. Foucault não atribui exclusi-
vamente a Descartes a responsabilidade de apagar o brilho do cuidado
de si. Ao dizer momento cartesiano, toma Descartes como emblema de
uma concepção de conhecimento, de verdade e de sujeito, a concepção
moderna, bem diferente da que se desenha na Antiguidade. De todo
modo, na Filosofia moderna, o conhece-te a ti mesmo, colocado, a partir
do século XVII, no princípio do procedimento filosófico, é o grande veí-
culo de acesso à verdade. Consequentemente, o cuidado de si se despe-
de do pensamento filosófico moderno.
É neste ponto que Foucault registra a distinção entre espiritualidade
e Filosofia:

“Chamemos ‘Filosofia’ a forma de pensamento que se interroga sobre o que


permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta de-
terminar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade. Pois bem,
se a isto chamarmos ‘Filosofia’, creio que poderíamos chamar de ‘espiritua-
lidade’ o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purifica-
ções, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de
existência etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito,
para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade.” 72

Na espiritualidade, na Filosofia antiga, a verdade não é dada ao sujei-


to; o sujeito, tal como é, não tem o direito à verdade nem capacidade de
acessá-la; não é o simples ato de conhecimento ou a estrutura subjetiva
que garante o alcance da verdade.

30 • capítulo 1
Ao contrário, importa a modificação do sujeito. Este tem de pagar CURIOSIDADE
um preço, tem de se modificar, tem de ser outro para ter direito à verda-
de. A espiritualidade impõe a necessidade de uma conversão, pelo amor Amor (eros)
(eros) e pelo “trabalho de si para consigo”73, pela elaboração de si mes- O amor e a ascese abrem caminho em
mo, pela ascese (áskesis). direção à verdade, o que, segundo Fou-
Enquanto na Antiguidade, para os pitagóricos, Sócrates e Platão, cault, provoca um determinado efeito: o
estoicos, cínicos, epicuristas, as duas questões, “como ter acesso à ver- “‘retorno’ da verdade sobre o sujeito”.74
dade?” e “quais são as transformações no ser mesmo do sujeito neces- Para a espiritualidade, a verdade ilumina
sárias para ter acesso à verdade?”76, estão ligadas de modo estreito, o o sujeito; a verdade garante a tranqui-
pensamento moderno as distingue e separa. O momento cartesiano é o lidade, a ausência de perturbação da
signo do momento do rompimento desse vínculo: alma, a ataraxia75, imprescindível à feli-
cidade verdadeira, a eudaimonía.

“(...) podemos dizer que entramos na idade moderna (quero dizer, a história
da verdade entrou em seu período moderno) no dia em que admitimos que o NOTAS
que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter
73
acesso à verdade, é o conhecimento e tão-somente o conhecimento. (...) Isto Ibid., p. 20.
74
é, no momento em que o filósofo (...), sem que nada mais lhe seja solicitado, Id.
75
sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em Ibid., p. 21-22.
76
si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a Ibid., p. 22.
77 77
verdade e a ela ter acesso.” Ibid., p. 36.
78
Ibid., p. 23.
Mas Foucault adverte: o vínculo não foi rompido “por um golpe de
espada”.78 Antes de Descartes, o rompimento já vinha sendo lentamen-
te gestado: o marco do início desse processo está na teologia. Por outro
lado, na modernidade, julga Foucault, há traços característicos da es-
piritualidade — ao menos de modo implícito — e, portanto, do cuida-
do de si. Pode-se pensar em Spinoza, Hegel, Schelling, Schopenhauer,
Nietzsche, Husserl, Heidegger ou mesmo no marxismo e na psicanálise.
O problema é que tais características são escondidas ou mascaradas no
campo das investigações sociais.
De qualquer forma, na modernidade inaugura-se outra história da
relação entre sujeito e verdade.

“A partir deste momento (...), desde que, em função da necessidade de ter


acesso à verdade, o ser do sujeito não esteja posto em questão, creio que en-
tramos numa outra era da história das relações entre subjetividade e verdade.”

REFLEXÃO
Ora, que contribuição podem nos dar as ponderações de Foucault?
Na volta aos antigos, Foucault reencontra uma forma de Filosofia ou de filosofar, até
certo ponto, estranha ao nosso tempo. No reencontro de Foucault, talvez encontre-
mos uma sugestão, bastante pertinente e oportuna a um tempo como o nosso que,

capítulo 1 • 31
além de inventar artimanhas para conformar e capturar nossa subjetividade, nos afasta de uma tarefa tão
fundamental quanto intransferível: a construção, permanente e contínua, de nós próprios. Talvez encontre-
mos, ainda, a valiosa provocação de que à Filosofia ou ao ensino de Filosofia ou à própria educação deve-
se reservar a tarefa de estimular a busca do saber, mas também e, sobretudo, o compromisso de convidar,
aluno e professor, a um retorno a si mesmos apto ao exercício da liberdade de estilizar a própria existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História
da violência nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1977.
FOUCAULT, Michel. O cuidado com a verdade (Le souci de la vérité): In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escri-
tos. vol. V. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Paris: Seuil/Gallimard, 2004. FOUCAULT, Michel. Tra-
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FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil/Gallimard, 2004. FOUCAULT, Michel. Nasci-
mento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984. FOUCAULT, Michel. O uso dos prazeres.
História da Sexualidade, 2. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque Rio de Janeiro: Graal, 1984.
DEFRADAS, J. Les thèmes de la propagande delphique. Paris: Klincksieck, 1954. Cap. III: La sagesse
delphique.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Os Pensadores (Platão, Xenofonte, Aristófanes). São Paulo: Abril Cultural,
1972, p. 21.

IMAGENS DO CAPÍTULO
As imagens deste capítulo estão em Domínio Público e/ou foram ilustradas por Victor Maia.

32 • capítulo 1
Ao encontro da

2 Filosofia e da
Educação na
Idade Média

affonso henrique
vieira da costa
2 Introdução
Ao encontro da Filosofia e da
Educação na Idade Média

Quando falamos em Filosofia cristã, temos em mente um vasto período da História, com-
preendido entre os séculos I e XIV. Porém, no desenrolar dessa trajetória, vários desdobra-
mentos se sucederam com a ocorrência também de maneiras diversas de pensamentos e
suas respectivas correntes e pensadores.

ATENÇÃO
De maneira geral, poderíamos dizer que o século I é aquele dos Padres Apostólicos, que o século II é
aquele dos Padres Apologistas, que o período que vai do século III ao século V é chamado de patrística e
o período que vai do século X ao século XIV é chamado de escolástica.
As discussões prementes, que orientam esses períodos, e que se fazem presentes em pensadores como
Santo Agostinho, Santo Anselmo, Pedro Abelardo, Santo Tomás de Aquino, John Duns Scoto, Guilherme
de Ockhan, entre outros, são forjadas a partir do problema que se mostra na relação entre a fé e a razão,
entre a revelação divina e as exigências da razão humana. Poderíamos dizer, inclusive, que a Filosofia cristã
propriamente dita se desenrola em virtude do modo como essa relação, a cada vez, é apropriada ao longo
dos séculos, conformando as alterações no pensamento até o surgimento do Renascimento e, consequen-
temente, da Modernidade.

Duas questões essenciais


Ao iniciarmos o nosso estudo, deparamo-nos com dois problemas fundamentais, a saber:

I.  “Qual o significado da fé para o homem medieval?” e;


II.  “Em que medida é possível falar de uma Filosofia cristã?”.

COMENTÁRIO
Estas são questões de difíceis abordagens. Entretanto, faz-se necessário que não nos furtemos a
elas e que, mesmo sabedores de suas dificuldades, possamos, ao menos, encaminhá-las.

34 • capítulo 2
I.  Qual o significado da fé para o homem medieval? NOTAS
1
Esta pergunta é feita partindo-se de uma preconcepção toda própria que  NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência.
corresponde à nossa época histórica, qual seja, de que a fé é meramente Lisboa: Guimarães Editores, 1985. p. 125.
2 
uma simples crença em Deus. Tal posição, no entanto, relaciona-se ao BOEHNER, Philotheus; GILSON,
fato de que nós não nos encontramos mais em uma situação a partir da Etienne. História da Filosofia cristã. RJ,
qual, isto que é Deus nos seja revelado. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 464.

Nietzsche, pensador radical da última metade do século XIX, que meditou em tor-
no do chamado niilismo, afirmou, na voz de um tresloucado, em A gaia ciência, que
“Deus está morto”. Mais ainda: diz que “nós o matamos”1 . Não entraremos aqui
em mais detalhes sobre esta passagem, mas ela irá se opor de maneira contun-
dente a esta outra de Santo Tomás de Aquino e que nos interessa sobremaneira:

“Deus não causa apenas a forma das criaturas, mas todo o seu ser, e
de modo tal que, se Deus se retraísse delas por um só instante, todas
elas recairiam necessariamente no nada”2.

Podemos dizer que é de uma determinada experiência da fé que os dois


textos partem:
•  O de Nietzsche evoca a sua ausência, enquanto o de Santo Tomás a
sua suprema presença;
•  No de Nietzsche, Deus mesmo se retraiu, morreu. No de Santo Tomás,
Deus é onipresente, é mundo se fazendo mundo a todo instante;
•  No de Nietzsche, da ausência de Deus sobrevém o nada, o nihil do
niilismo, a desvalorização de todos os valores supremos. No de Santo
Tomás, o simples pressentimento da ausência de fé já bastaria para que o
crente antevisse a perda de mundo e a queda no nada da existência.

ATENÇÃO
Daí se dizer, inclusive, que o maior medo do homem medieval não seria a
morte, mas a perda do sentido da fé, pois esta, por sua vez, implicaria, con-
forme nos indica o texto de Santo Tomás, uma desestruturação total, o sen-
timento vertiginoso do abismo do próprio ser.

Com isso, temos que a fé não é uma simples crença, um mero acre-
ditar, mas, ao contrário, uma entrega a Deus. A fé, em nossos dias, de
acordo com o que ela se apresentou na Idade Média, seria uma loucura.

REFLEXÃO
Como pensar na ação de um Abraão hoje? Ele, que é considerado o pai da fé? Como
imaginar que um pai pudesse conduzir o seu próprio filho em holocausto ao Senhor?
Que ele mesmo sacasse contra o seu filho um punhal?

capítulo 2 • 35
IMAGEM Isso talvez fosse de uma solidão tremenda, inimaginável para nós, "filhos do carbono e do
amoníaco", como diria o poeta Augusto dos Anjos. Mas justamente é Abraão, pai de Isa-
Platão e Aristóteles ac, que é considerado o pai da fé. Quem, senão ele, poderia suportar tamanha solidão?

COMENTÁRIO
É para dentro desta, inclusive, pressentindo o seu hálito,
que o pensador dinamarquês Kierkegaard, em seu livro
Temor e tremor3, procura nos enviar quando descreve de
múltiplas maneiras o caminho de Abraão em direção ao sa-
crifício de Isaac.

Portanto, o que é difícil de entender é que a fé é uma abertura para


o divino, para Deus. É um deixar-se ser tomado pelo que se abre como o
sentido da realidade. Ela não é uma mera crença, mas uma experiência
com o real, com a sua totalidade. É ela que sustenta tudo o que há, e é a
CONCEITO existência como um todo.

Ente II.  Em que medida é possível falar de uma Filosofia cristã?


A palavra ente, do mesmo modo que a
palavra sendo, é o particípio presente
do verbo ser. É um conceito filosófico Platão e Aristóteles apresentaram o princípio do filosofar como sendo a ad-
importante que indica o fato de ser de miração, o espanto. A Filosofia, portanto, se dava quando do espanto com o
todas as coisas. Tudo o que é, é um fato de que todas as coisas, o próprio mundo, existiam. Sempre foi, para o
ente. A cadeira é um ente, o homem é pensamento grego, impressionante o fato de que tudo estivesse aí, sendo e
um ente, o lápis é um ente, o pensa- acontecendo, em meio a toda possibilidade de não ser. A pergunta socrática
mento, enquanto é, é um ente. É muito ti tó on, “Que é o ente?”, “Que é o real?”, não é uma pergunta qualquer sobre
comum ouvirmos a expressão "os entes qualquer coisa, mas a pergunta decisiva que pretende compreender o que
queridos". Ao conjunto de todos os en- faz com que todas as coisas, em seu conjunto, sejam. Ela pergunta pelo
tes – de tudo aquilo que é – designa- fundamento da própria realidade.
mos como o ente em sua totalidade, o Entretanto, no pensamento nascente, entre o século I e o século II, isso que
próprio real, a realidade. A ciência, por dá sentido ao real — Deus — não é alcançado pela razão, pelo lógos, ao
sua vez, transforma os entes em obje- menos no modo como ele era apropriado pelos gregos, mas pela experiência
to de investigação científica, de modo a da fé. É a fé, como abertura para o divino, que propicia a revelação de Deus.
descobrir (retirar deles) a sua verdade.

Essa estranha mudança, que ocorreria com a chegada do pensamen-


NOTAS to nascente, fez com que se acreditasse que justamente pelo fato de, no
cristianismo, o fundamento já estivesse dado como revelação, não hou-
3 
KIERKEGAARD, Sören. Temor e tre- vesse mais um papel para a Filosofia, compreendida como a ciência que
mor. Lisboa: Guimarães Editores, 1985. busca ir ao encontro do fundamento da realidade. Essa busca pelo fun-
do, pela raiz do real, implica uma liberdade que liberta o pensamento

36 • capítulo 2
para questionar o real em sua inteireza. No entanto, como haveria de CURIOSIDADE
ser livre o pensamento que se impossibilitasse de colocar em xeque a
própria existência de Deus? Como se desvencilhar de Deus e deixar-se Pensamento cristão
ser acossado pelo nada do não ser? Estaria essa experiência presente no Todo cristão que lê a Bíblia é sabedor
pensamento cristão? do quanto Jó sofreu. Mas nesse seu
sofrimento, Jó não estava sozinho, pois
Paganismo ainda tinha Deus. Era impensável para
um cristão imaginar-se sem Deus. A re-
O paganismo tornou-se, para muitos, um conceito oposto ao cristianis- lação mesma com o nada não cabia ao
mo. Enquanto no primeiro temos a presença do politeísmo, no segundo crente, mas somente ao Senhor. Trata-
temos o monoteísmo. se da doutrina bíblica do criacionismo,
segundo a qual Deus cria o mundo a
partir do nada.
Porém, a diferença maior encontra-se no fato de que, enquanto o paganis-
mo crê que os deuses estão submetidos às forças da natureza – à phýsis, NOTAS
compreendida como o que brota de si, como um processo de florescimento,
4
de nascividade, um eterno parturir, que posteriormente foi traduzido para as   REALE, Giovanni; ANTIRESI, Dario. His-
línguas latinas por nascere, natura e, a partir daí, natureza –, o Deus cristão tória da Filosofia – Patrística e escolás-
mostra-se estando acima dela e dos homens. tica. vol. 2, São Paulo: Paulus, 2003. p. 6.
5
  Ibidem, p. 6.
Somente mais tarde, com o desenvolvimento das ciências, a nature-
za deixa de se revelar como o todo do real, o seu ser em estado constante
de aparecimento, de surgimento e de brotação, passando a ser objetiva-
da pela ciência física, que a toma apenas como um setor da realidade, de
maneira a investigar o movimento dos corpos em seu interior.

COMENTÁRIO
Estranha essa diferença entre a experiência filosófica dita pagã e a experiência cris-
tã. Sabemos que os primeiros livros que manifestam essa experiência cristã estão na
Bíblia. A Bíblia é composta pelo chamado Antigo e pelo Novo Testamento.

Mas o que é Testamento?

“Esse termo traduz o grego diathéke, indicando o ‘pacto’ ou ‘aliança’ que


Deus ofereceu a Israel.”4 Esse pacto “é unilateral, ou seja, inteiramente
dependente de Deus, que o ofereceu. E Deus o ofereceu por mera bene-
volência, vale dizer, como dom gratuito.”5 Diante disso, do pacto oferecido,
observamos que na Bíblia encontramos a palavra de Deus, a sua mensagem
que conduz o crente na direção do que aí se abre como o que precisa ser
feito, realizado, seguido.

capítulo 2 • 37
NOTAS Essa experiência, que traz consigo o pressuposto da fé, é o que vai ins-
taurar o mundo cristão. Essa instauração não é qualquer coisa e não se
6
 REALE, Giovanni; ANTIRESI, Dario. faz de qualquer jeito. Ela necessita de toda uma ambiência e de todo um
História da Filosofia – Patrística e esco- debate que se apresentará com e contra a chamada Filosofia pagã. Está
lástica. v. 2, São Paulo: Paulus, 2003. p. 9. em jogo um novo ordenamento do mundo que já se institui.
7
  Ibidem, p. 9. Como podemos ver, é diante da Filosofia pagã, com ela e contra ela,
8 
GILSON, Etienne. A Filosofia na Ida- aproveitando-se dela, que emergirá a Filosofia cristã. Entretanto, a Filo-
de Média. São Paulo: Martins Fontes, sofia emergente aparecerá submetida à experiência da fé. A tentativa de
1995. p. XVIII. explicitação do que aparece a partir da experiência da fé é que vai fomen-
tar o desenvolvimento da Filosofia cristã.

ATENÇÃO
Os limites mesmos do pensamento racional, filosófico, serão dados pela fé. Nesse
momento é impensável uma determinação da fé pela razão. É aquela que submete
esta. A razão só é liberada quando o que se abre pela fé se expõe. A razão jamais
pode, neste momento, sobrepor-se à fé. Isso seria visto como um crime (como uma
heresia), um pecado contra o Senhor, justamente por ser uma tentativa de apreendê
-lo racionalmente e mostrar, com isso, uma superioridade com relação a Ele.
Por causa disso, “não será mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar
como se a mensagem bíblica nunca tivesse feito seu ingresso na história.”6 Portanto,
só será possível: “Filosofar na fé, ou seja, crendo; filosofar procurando distinguir os
âmbitos da ‘razão’ e da ‘fé’, embora crendo; filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja,
não crendo”.7

A Filosofia pagã e o advento do cristianismo


O entrelaçamento entre fé e Filosofia (ou pensamento racional oriundo
da Filosofia pagã) já se mostrara no início do IV Evangelho de João, no
qual observamos a presença do eco grego, quando nele é dito que “no
princípio era o Verbo”. A palavra que é traduzida por Verbo é Lógos.

Essa palavra contém uma série de significados, que se alteram de acordo


com o contexto em que está implicada. Alguns desses significados são: lin-
guagem, palavra, verbo, sentido, razão, relação, proporção, entre outros. O
fato de ela ser utilizada no IV Evangelho nos revela que “uma noção filosófica
grega vem tomar o lugar, aqui, do Deus cristão, impondo, assim, ao curso
do pensamento cristão, um desvio primitivo que ele nunca mais será capaz
de corrigir. O momento é decisivo, pois; helenismo e cristianismo acham-se,
desde então, em contato. Quem absorveu quem?”8

38 • capítulo 2
NOTAS
Nesse “Quem absorveu quem?” já é possível antever que:
9
•  A Filosofia, necessariamente, surpreende-se com o advento de uma religião  REALE, Giovanni; ANTIRESI, Dario.
cristã e de suas posições tão diferentes daquelas ligadas ao paganismo; História da Filosofia – Patrística e es-
•  O cristianismo precisava enfrentar toda a tradição filosófica grega, de ma- colástica. v. 2, São Paulo: Paulus, 2003.
neira a incorporá-la nele. É nesse entremeio, então, que surge a figura de Pau- p. 17-18.
10
lo. Ouçamos o que ele nos diz em sua primeira carta aos Coríntios (18 a 20):  GASSET, José Ortega y. Em torno a
Galileu. RJ, Petrópolis: Vozes, 1989. p. 119.
“A linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aque-
les que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito: ‘Destruirei a
sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes’. Onde está
o sábio? Onde está o homem culto? Onde está o argumentador deste sécu-
lo? Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que
o mundo, por meio da sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria de
Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem.”9

CURIOSIDADE
Deus
A palavra de Deus é utilizada aqui por Paulo graças ao fato de ele pressentir a impor-
tância de destruir a sabedoria dos sábios e a inteligência dos inteligentes. Note-se
que destruir aqui precisa ser lido com o sentido de transformar, transmutar, tendo
em vista os desdobramentos da doutrina cristã e sua necessidade de abarcar toda a
tradição pagã em seu seio, de tal maneira a fazer uma conversão (metanoia) dessa
mesma tradição. Justamente por isso, por ver que o mundo em que se desenvolveu
a sabedoria pagã não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, fez-se necessária
à conversão através da loucura da pregação, de maneira a salvar aqueles que creem.
É exatamente o que faz Paulo. É essa uma de suas principais tarefas.

•  Qual é a situação em que se encontrava Paulo, de modo que fizesse


com que ele pensasse em tal destruição, ou melhor, em uma conversão
de todo o passado grego?
•  Segundo o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em seu belíssi-
mo livro de nome Em torno a Galileu, a situação do homem do século I é
de desespero. O que ele quer dizer com isso?

COMENTÁRIO
É importante que, em um primeiro momento, não tomemos o desespero apenas
como um estado psicológico, mas sim como uma forma de vida — a vida cristã —,
pois assinala “o reconhecimento da nulidade do homem e da natureza”10. Este reco-

capítulo 2 • 39
CURIOSIDADE nhecimento, que começou a se manifestar antes mesmo do aparecimento do cris-
tianismo, fez com que muitas pessoas se isolassem, se afastassem umas das outras,
Enojava do mundo propriamente dito. É na falta de respostas aos problemas colocados na
Este enojar traduz um sentimento de relação entre o homem e a natureza e entre o homem e o mundo, que o cristianis-
negação com relação ao todo da exis- mo se impôs como alternativa ao desespero humano em se ver nulo, esvaziado de
tência mundana, como se o homem sen- sentido. É o que nos diz mais uma vez José Ortega y Gasset: “... porque os homens
tisse por esta uma determinada alergia, se retiravam do mundo, foi encontrada a solução cristã; porque o natural enojava, se
pois de todos os saberes, de todos os buscou o sobrenatural”.11
apetites, de todos os prazeres possíveis
e de todos os afazeres, não há nenhum É justamente nessa situação que sobrevém o desespero pelo fato de
com sentido absoluto, satisfatório.12 o homem não encontrar um só lugar onde firmar o pé, não se encontran-
do, pois, consigo mesmo.

NOTAS Paulo se situa exatamente nesse ponto: diante daqueles que sonham com
um passado que não se encontra mais entre eles e diante daqueles que
11
GASSET, José Ortega y. Em torno a Ga- buscam um lugar em que possam fincar os seus pés, de maneira a assegu-
lileu. RJ, Petrópolis: Vozes, 1989. p. 119. rar-lhes a vida. O cristianismo surge, então, como a salvação. Não é à toa, por
12
Ibidem, p. 120. exemplo, que o filósofo italiano Enrico Berti, no Prólogo do seu livro No prin-
13
BERTI, Enrico. No princípio era a ma- cípio era a maravilha, vai dizer com precisão que “a religião nasce do desejo
ravilha. São Paulo: Loyola, 2010. p. 11. de se salvar da morte, ao passo que a Filosofia nasce do desejo de saber”13
14
GASSET, José Ortega y. Em torno a Ga-
lileu. RJ, Petrópolis: Vozes, 1989. p. 128. Quando o pensamento filosófico entra em crise no século I e não
15
GASSET, José Ortega y. Em torno a mais consegue dar respostas aos problemas de sua própria época his-
Galileu. RJ, Petrópolis: Vozes, 1989. p. tórica, é aberto um fosso no interior do qual emergirá o cristianismo
120. com uma força impressionante e de tal monta, que se apropriará, mais
16 
BOEHNER, Philotheus; GILSON, adiante, da própria Filosofia com o intuito de poder refletir em torno
Etienne. História da Filosofia cristã. Pe- dos caminhos abertos pela fé. Leiamos novamente José Ortega Y Gasset:
trópolis: Vozes, 1995. p. 153.
Por isso, a palavra de João Batista, de Jesus, de São Paulo é: metanoiete —
convertei-vos, arrependei-vos, isto é, negai tudo o que éreis até este momen-
to e afirmai vossa verdade: reconhecei que estais perdidos. Dessa negação
sai o homem novo que se tem de construir. São Paulo usa uma que outra
vez este termo: construção, edificação — oikodomé. Do homem em ruínas e
tornado puro escombro tem-se de refazer um novo edifício.14

COMENTÁRIO
É esse edifício que começa a ser construído com o advento do cristianismo, quan-
do este prega a conversão (a metanoia) a partir das ruínas do mundo da Filosofia
greco-romana. Negar tudo o quanto até então foi, é, sobretudo, afirmar o que virá, a
saber, a própria salvação a partir da experiência da fé. Aí, como mais uma vez nos diz
Ortega, “o homem perdido de si mesmo encontra-se de pronto com que se achou,
com que coincide consigo e está por completo em sua verdade.”15

40 • capítulo 2
A patrística
Enquanto o século I é o dos Padres Apostólicos, Clemente Romano, Inácio de Antióquia,
Policarpo de Esmirna, Pápias de Hierápolis, Barnabé e Hermes, que escreveram semelhan-
temente às epístolas do Novo Testamento e procuraram em tudo mostrar, a partir da espe-
rança do retorno de Jesus Cristo, a importância da salvação, o século II nos traz a presença
dos Padres Apologistas, daqueles que se esforçaram por divulgar a fé em Cristo entre os
romanos e, mais precisamente, entre os mais cultos.

COMENTÁRIO
É bom que ressaltemos que nessa época muitos cristãos eram assassinados e, por causa disso, os chama-
dos apologistas atuavam junto aos mais letrados com o objetivo não só de convertê-los, mas, sobretudo,
de conseguir uma maior tolerância religiosa. Estes padres são considerados os primeiros filósofos cristãos
por estabelecerem contatos importantes com os letrados que, nesse momento, recebiam uma educação
baseada na Filosofia antiga grega e romana.

A Filosofia, portanto, fora utilizada por eles para que melhor explicassem o cristianismo
e aquilo que lhes era revelado pela fé. Entre os apologistas, aquele que é reconhecidamente
o maior de todos é São Justino.
Já entre os séculos IV e V viveu Santo Agostinho. Ele, que foi considerado o Mestre do
Ocidente e conduziu a patrística ao seu auge, nasceu em 354 e morreu em 430.

O que mais nos impressiona, ao iniciarmos um


estudo acerca da obra de Santo Agostinho, é o
fato de esta estar profundamente ligada à sua
vida. Os passos que Agostinho dá em direção ao
conhecimento de si e à sua própria conversão
não são fáceis. São caminhos cheios de obstá-
culos que ele necessariamente vai construindo e
realizando em seu interior, de maneira a transfor-
mar o seu próprio modo de ser. As questões que

Retrato Santo Agostinho para ele são abertas possuem uma sinceridade
de tal ordem que nos levam a crer que a Filosofia
não pode ser apenas algo para curiosos e para aqueles que querem acumular conhecimentos,
sendo assim chamados de eruditos.
Há, segundo Agostinho, uma articulação necessária entre a busca de sentido, a revelação propria-
mente dita, e o conhecimento e os seus desdobramentos a partir do que é revelado. Essa atitude
tem sua proveniência na fé. É como ele mesmo diz: “Se não crerdes, não compreendereis”16.
Daí decorre uma dupla exigência:
•  1º, que é nosso dever aspirar à inteligência daquilo que cremos, dado que o fim último do ho-
mem não é crer em Deus, e sim conhecê-lo;

capítulo 2 • 41
NOTAS
•  2º, que é preciso partir da fé para chegar ao conhecimento de Deus.17
17
Ibidem, p. 153.
18
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Pe- A tensão entre fé e razão aí se faz presente, porém de um modo que nos
trópolis: Vozes. 1997. mostra um determinado equilíbrio, pois, de um lado, se a fé é absolutamen-
te necessária, justamente por abrir o caminho para o encontro com Deus,
por outro lado é nosso dever aspirar à inteligência divina fazendo uso do
conhecimento, da razão, posto que o fim último do homem não é crer em
Deus, e sim conhecê-lo. É, pois, da experiência da fé, dessa abertura que
produz a conversão (metanoia), que o homem se encontra na necessidade
de conhecimento. Daí podermos pensar que se tal necessidade não tivesse
sua proveniência na experiência da fé, esse equilíbrio mesmo se romperia.
A vida de Santo Agostinho, o seu transcurso, é o caminho em direção à con-
versão (metanoia) e à busca de conhecimento. Não é por acaso que escreve
as suas Confissões18 e as articula com as transformações que conduziram
o nosso pensador a assumir o modo de ser cristão, renunciando ao raciona-
lismo, ao materialismo e ao ceticismo. Nessa sua emancipação espiritual, é
bom que se destaque a presença da Filosofia de Platão, do neoplatonismo e
da figura marcante de Santo Ambrósio.

A escolástica
Onde a escolástica tem seu início?

A tal pergunta respondemos que é com os desdobramentos que se ope-


ram a partir do ápice da patrística.
Enquanto o homem, desde o início do cristianismo, submete a
sua razão, o seu intelecto e toda a possibilidade de conhecimento à fé,
tudo isso a partir do sentimento de desespero que jogou tanto o pró-
prio homem como a natureza para um segundo plano, agora começa
a haver uma espécie de inversão do quadro com a necessidade de in-
corporação da razão humana na fé. Enquanto anteriormente, tomado
pelo desespero, o homem abdica da razão em nome da fé, agora a fé
precisa da razão para iluminar-se.

É como nos diz José Ortega y Gasset:


“Se por um lado (o homem) necessita da iluminação sobrenatural da fé, por
outro se dá que esta necessita por sua vez da iluminação por parte do ho-
mem. Dentro da fé começa a incorporar-se a razão humana. A revelação, a
palavra de Deus necessita integrar-se com uma ciência humana da palavra
divina. Essa ciência é a teologia escolástica.”19

42 • capítulo 2
Qual a ideia que aí nos é transmitida? NOTAS
20
Não seria justamente aquela que nos antecipa um aumento gradativo do Ibidem, p. 140.
21
papel da razão na sua relação com a fé? Não estaria aí a origem daquilo Muitas das obras de Aristóteles foram
que vai, mais tarde, trazer à luz o pensamento moderno? Deixemos ape- conservadas e traduzidas por filósofos
nas que essas perguntas fiquem aí mesmo ecoando em nossos ouvidos árabes como Averróis, Avicena e Al-Fa-
e à espera de uma meditação mais apropriada. Por ora basta-nos ouvir rabi, que exerceram grande influência na
novamente o filósofo espanhol: “Geração após geração — desde Santo formação da escolástica medieval.
22
Anselmo — irá crescendo dentro da fé o papel da razão. O extremismo GASSET, José Ortega y. Em torno a
cristão começa a pactuar com o homem e a natureza que começou por Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 141.
excluir”.20

É nesse cenário que surge Santo Tomás


de Aquino. Nele se vê a presença contun-
dente dos gregos, mais precisamente de
Aristóteles21 . Com essa influência, Santo
Tomás limita, como uma fronteira, o espa-
ço entre a razão e a fé.

Santo Tomás de Aquino

Enquanto, por um lado, há a fé compreendida como abertura para


o divino, por outro o papel da razão no desenvolvimento da teologia é
ampliado de tal maneira que aparece como um campo de investigação
independente da fé. “A um cristão dos primeiros séculos, esse equilí-
brio, esse reconhecimento da razão humana como poder livre lhe hou-
vera parecido um horror e lhe haveria cheirado a nefando paganismo”.

ATENÇÃO
É bom que chamemos atenção aqui para o fato de esse equilíbrio comentado acima
querer dizer que a razão começa a tomar uma força própria, independentemente e ao
lado da fé. A necessidade crescente, presente em Santo Tomás, de “orientar-se pela
razão” é que faz com que ele possa ser chamado de “um tremendo humanista”. 22

Há, por assim dizer, uma coincidência entre a razão humana (finita)
e a razão divina (infinita), e de tal maneira que o homem pode, a par-
tir de seus dons naturais, entrar em uma relação com Deus. Isso se dá
de modo tão impressionante que nos permite pensar que “Deus não se
haverá apequenado, mas é indubitável que o homem engrossou, que já

capítulo 2 • 43
NOTAS não é um puro desesperado de si, que confia em sua natureza enquanto
estatuto limitado frente a Deus”.24
24
Ibidem, p. 142.
25
Ibidem, p. 143. Ora, o que então começamos a ver aí?
26
GASSET, José Ortega y. Em torno a Ga-
lileu. RJ, Petrópolis: Vozes, 1989. p. 143. Um ressurgimento do poder da razão frente à fé, o que faz com que os cris-
tãos voltem o seu olhar novamente para os pensadores gregos. Essa ati-
tude também promoverá o desenvolvimento das Faculdades de Filosofia.

COMENTÁRIO
O homem que até então, desde o início do cristianismo, havia se diminuído diante da
fé e da entrega ao divino, por encontrar-se desesperado, passa, a partir de agora, a
acreditar cada vez mais em si mesmo por causa do redescobrimento da importância
de sua racionalidade, não nos esquecendo, é claro, que aí ele ainda se vê como de-
pendente do criador, de Deus.

Enquanto Santo Tomás viveu a plenitude do século XIII, pois nasceu


entre 1224 e 1225 e morreu em 1274, Duns Scoto nasceu entre 1265 e 1266
e veio a falecer em 1308. Portanto, é com ele que é aberto o século XIV.

Duns Scoto, então, abre o século voltan-


do-se contra Santo Tomás de Aquino. As
suas críticas são feitas tomando a filoso-
fia de Tomás como enfronhada em um
exacerbado paganismo. Contrariamente a
essa posição, Duns Scoto procura se en-
caminhar novamente para uma “pura ins-
piração cristã”.25 Esse movimento de re-
tomada dessa inspiração se opõe
radicalmente à crescente racionalização
operada anteriormente por compreender
que, nesse processo, Deus mesmo é reduzido, apequenado e, em certo sen-
tido, incompreendido enquanto princípio de tudo o que é, pois:

“Deus é vontade, pura vontade — prévia a tudo, inclusive à razão. Deus


pôde não comportar-se racionalmente; pôde, inclusive, não ser. Se preferiu
criar a razão e até submeter-se a ela, é simplesmente porque quis, e, por-
tanto, a existência da racionalidade é um fato, mas não um princípio. Em seu
autêntico ser, Deus é irracional e ininteligível.” 26

44 • capítulo 2
ATENÇÃO NOTAS
27
Com essa posição, Duns Scoto toma a teologia não como uma ciência que GASSET, José Ortega y. Em torno a
descobre as verdades de Deus, mas que apenas procura esclarecer os dog- Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 144.
mas da fé. Ele estabelece, com isso, uma fissura intransponível entre a fé e
a razão, entre as coisas divinas e as coisas mundanas.

O homem vive, segundo Ortega, uma espécie de vida dupla: enquanto, por
um lado, encontra-se diante da irracionalidade da experiência com o divi-
no, por outro, sente-se não mais como um desesperado, como no início
do cristianismo, mas com uma confiança na sua própria razão, mesmo
que esta, de acordo com Duns Scoto, não consiga ir ao encontro do divino.

Este é o contexto em que surge Guilherme de Ockhan com a sua demons-


tração de que os universais não existem. Isso vale dizer que as ideias (os
conceitos) de homem, de árvore, de edifício, por exemplo, não existem e que
todos estão mergulhados nas coisas singulares, como os homens, as árvo-
res, os edifícios, juntamente com tudo ao redor, e que “a razão conceitual não
vale para conhecer as realidades”.27
Tal posição coloca os homens, que se encontram sozinhos, diante apenas
de seus sentidos e na possibilidade de desenvolvimento das ciências ex-
perimentais. Encontram-se abertos, então, os caminhos para o advento do
homem moderno.

CURIOSIDADE
Universais
A famosa questão dos Universais divide os filósofos em realistas e nominalistas.
Os realistas acreditam na existência dos universais, isto é, no fato de que as coi-
sas participam das ideias e que essas não são apenas palavras, mas antes existem
objetivamente, tal como as ideias em Platão. Já os nominalistas não creem na sua
existência. Segundo essa distinção, Guilherme de Ockhan se opôs a Santo Tomás
por acreditar que as nossas mentes não são informadas por universais, mas sim por
uma apreensão individual.

A educação na Idade Média


A Europa, na época da patrística, conforme estamos vendo, é um mundo
em franca transformação. Esta, por sua vez, já é observada em inúmeras
regiões que pouco a pouco vão modificando o panorama econômico, so-
cial e político instituído pelo feudalismo.

capítulo 2 • 45
CURIOSIDADE Diferentemente da vida encerrada na aldeia e no entorno dos castelos,
de onde os homens praticamente não saíam, surgem agora regiões em
Antiga ordem hierárquica que o artesanato e o comércio começam a se desenvolver e a subverter
Essa antiga ordem hierárquica, aqui a antiga ordem hierárquica, de maneira a propiciar alterações na es-
mencionada, remete à estrutura social trutura social que se mantinha até então em uma determinada rigidez,
piramidal existente no feudalismo, em praticamente inalterada.
cuja base estão os servos, no centro e Todas essas mudanças vão aos poucos propiciando o desenvolvimen-
mais acima os nobres e, no alto, o clero. A to e o crescimento das cidades, fazendo também aparecer novas modali-
esta estrutura chamamos de estamentá- dades de trabalhos ao lado de novas demandas por uma educação mais
ria, pois está dividida em estamentos, isto especializada que atendesse às exigências dessa época histórica.
é, em compartimentos cuja mobilidade
social e extremamente difícil. COMENTÁRIO
NOTAS É quando também nascem as chamadas corporações, associações profissionais em
que eram reunidos todos aqueles que se dedicavam a um ofício, valorizando, com
28
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. isso, não somente as profissões como também as chamadas oficinas artesanais.
São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 175. Elas regulamentavam e controlavam o processo produtivo artesanal, além de se
pautarem por uma hierarquia entre mestres, oficiais e aprendizes. Somente sendo
membro de uma corporação é que se podia trabalhar e, mesmo assim, no âmbito de
um determinado ofício. Havia nas cidades, portanto, várias corporações, como as de
carpinteiros, tecelões, ourives, entalhadores etc.

O papel dessas corporações não se restringiu apenas à formação de


profissionais, mas se estendeu à situação decisiva que foi a emancipa-
ção dos trabalhadores “de uma ética apenas religiosa e eclesiástica e
marcando a sua mentalidade em sentido laico, técnico e racionalista”.28

É nesse contexto, conforme estamos observando, no qual já se manifes-


ta um comportamento laico em oposição a uma mentalidade religiosa, que
surgem também as universidades como lugar privilegiado para um debate
intelectual que vai emergindo a partir das reflexões aí elaboradas.

As primeiras universidades surgiram entre os séculos XI e XII e eram


controladas pela Igreja Católica. Seus principais cursos ministrados
eram os de Teologia, Direito e Medicina. Destes cursos participavam
apenas aqueles que possuíssem uma boa condição econômica, de ma-
neira que o ingresso neles era bastante difícil. Além disso, as universida-
des não gozavam de tanta autonomia, pois sua produção intelectual era
fiscalizada pelo clero. Somente no Renascimento, cerca de três séculos
depois, é que o processo de autonomia universitária começará a entrar
em curso de uma forma mais evidente.

46 • capítulo 2
COMENTÁRIO NOTAS
29
Algumas universidades se destacaram nessa época, como, por exemplo, as de Bolo- CAMBI, Franco. História da Pedago-
nha, de Paris, de Oxford, Cambridge, Salermo, Salamanca, Roma, Nápoles e Coimbra. gia. São Paulo: Unesp, 1999. p. 185.
30
Bolonha tornou-se um centro de estudos de Direito, enquanto em Paris a faculdade Ibidem, p. 185.
mais importante era a de Teologia, “onde ensinaram os grandes mestres da Filosofia
escolástica, a qual, na esteira de Abelardo, renovou o estudo da teologia, abrindo-a
aos processos racionalistas do aristotelismo”.29

Os estudos universitários se organizavam segundo o modelo da lec-


tio escolástica, em que o mestre encaminha a leitura, tendo domínio da
palavra, e na disputatio, quando ocorrem debates entre o professor e os
discípulos. Entre a lectio e a disputatio tínhamos a fixação do significado
gramatical (littera), depois a explicação lógica (sensus), a exegese ou a
interpretação (sententia) e a discussão que faz emergir a quaestio, o pro-
blema. Todo esse caminho se dirigia, sob a orientação do mestre, à dis-
putatio30, ao debate propriamente dito.

É bom que façamos um parêntese e ressaltemos agora que todas as impli-


cações anteriormente expostas acerca da relação entre a fé e a razão, que
partiram do século I, atravessando a patrística e chegando à escolástica, não é
apenas fruto da cabeça dos filósofos, mas, antes, elas se ligam concretamente
à realidade, àquilo que os pensadores presenciaram em seu tempo. É o que,
mais uma vez, observamos na tensão exposta acima entre o comportamento
laico em oposição a uma mentalidade religiosa. O pensamento, nesse sentido,
não é uma mera abstração, pois parte da realidade que, aos poucos, sem que
percebamos, vai se alterando e ganhando novos contornos. A grandeza de um
pensador, como é o caso de um Santo Agostinho ou de um Santo Tomás de
Aquino, está em poder captar o sentido dessas alterações, pensar nos desdo-
bramentos da história e até mesmo antecipar o que ainda está por vir.

No entanto, retomando o que inicialmente foi encaminhado,


quando falamos de renascimento comercial e urbano, surgimento
das corporações de ofício e das universidades, precisa ficar claro o
fato de que, a partir do século XI, estamos nos despedindo gradativa-
mente de uma estrutura feudal, no interior da qual as regiões sobre-
viviam com bases na atividade agrícola e praticamente não se relacio-
navam entre si. Se antes viviam em um mundo fechado, praticamente
invariável, agora, com o início desse processo, tudo se torna cada vez
mais complexo, pois as portas encontram-se abertas para uma deter-
minada pluralidade antes insuspeitada.

capítulo 2 • 47
NOTAS Começam a aparecer cada vez mais comerciantes e empreendedores,
gérmens de uma futura burguesia, que transitam pelas mais diferentes
31
CAMBI, Franco. História da Pedago- regiões, levando e trazendo novos valores pautados em um sentimento
gia. São Paulo: Unesp, 1999. p. 177. de liberdade crescente que se estenderá e eclodirá com toda potência
quando do advento da modernidade.
Entretanto, no seio dessas transformações, uma falta de estrutura na
educação ainda é observada no tratamento que é dado às crianças. Estas
não são abraçadas pelas famílias, não estão no seu centro e são criadas
de modo autoritário e sem a perspectiva que encontraremos, por exem-
plo, nas famílias burguesas na época moderna. Sua educação, de uma
maneira geral, é destinada às oficinas, onde aprenderiam um ofício, ou
à Igreja, onde se encaminhariam para a vida religiosa.

CURIOSIDADE
Crianças
Somente para acrescentarmos, as crianças são vistas ainda como adultas em mi-
niatura. Uma constatação se dá quando investigamos sobre as suas vestimentas e
descobrimos que são iguais as de seus pais, porém menores.

Já as mulheres se mostram como subservientes aos homens e encon-


tram-se fora do processo educacional. Porém, se antes elas eram toma-
das como santas ou até mesmo marginalizadas, indo de um extremo ao
outro, agora “a Idade Média retoma sob dois aspectos uma valorização
da mulher: com as santas, de um lado; com o ‘amor cortês’, de outro”31.

CURIOSIDADE
De um extremo ao outro
Havia, segundo Franco Cambi, uma tensão entre a mulher tomada como Eva – que
representava a figura do pecado original –, e Maria, a mãe de Jesus.

O amor cortês nós o encontramos também nas chamadas cantigas


medievais.

EXEMPLO
Em Portugal, as cantigas de amor aparecem no final do século XII, dada a influência
das chamadas cantigas provençais, oriundas do sul da França. No caso português,
as cantigas líricas são divididas em cantigas de amigo e cantigas de amor. Nestas
últimas, o eu lírico canta o sofrimento amoroso — a coita — por causa da impossibi-
lidade de realização amorosa, pois a mulher normalmente é casada com um senhor
de posses, domínios, daí ela ser chamada de domina, dona. Essas cantigas, diferen-
temente das cantigas de amigo32, que se passam no campo e têm sua origem na

48 • capítulo 2
península ibérica, ocorrem na corte, onde a figura da mulher é exaltada, idealizada, NOTAS
como figura inatingível.
32
Nas cantigas de amigo, o eu lírico é
feminino, embora seja escrita por um
homem. O que aparece aí é o sentimen-
to feminino, o seu sofrimento com a par-
tida do amado, que foi para a guerra ou
para uma caçada e ainda não voltou. É
uma cantiga que se passa na zona rural
e a mulher é sempre uma camponesa.

Tais cantigas se difundiram durante muito tempo e podem ser vistas como uma mani-
festação cultural legítima de uma sociedade em constantes mudanças. O seu caráter,
inclusive, não é religioso, mas, se queremos sublinhar, é mundano. Não está em ques-
tão o amor por Deus, mas uma disposição amorosa à mulher idealizada. O eu lírico,
então, submete-se à mulher amada, aparece como o seu vassalo e a trata sempre
como Senhora, pois ela possui senhorios. Além dessas cantigas, temos ainda as canti-
gas satíricas, que podem ser de escárnio e de maldizer. Elas se dirigem aos costumes,
mais precisamente aos do clero e aos dos camponeses livres. Cantam a decadência
da nobreza e o adultério feminino.
Essas cantigas são ainda cantadas em galego-português — dialeto que predo-
minou entre o século XII e o século XIV — e marcarão todo o desenvolvimento
posterior da literatura portuguesa. Elas também são produzidas com a presen-
ça de um instrumento musical, a lira, que dá um maior sentido e musicalidade
ao conjunto da obra. Quando, mais tarde, temos o surgimento do Humanismo,
período entre os séculos XV e XVI, com a presença marcante do teatro de Gil
Vicente, as cantigas dão origem a uma poesia que, além de ser escrita em língua
portuguesa, já não faz mais uso de instrumento musical, o que provoca a criação
de um ritmo e de uma musicalidade no interior da própria constituição do poema,
o que determinou o aparecimento das chamadas redondilhas.

De acordo com tudo o que foi exposto acima, e que envolveu a consti-
tuição da Filosofia na Idade Média, podemos concluir que o pensamen-
to e a educação não somente foram resultados dos desdobramentos,
que ao longo dos séculos se deram com as alterações na relação entre
a fé e a razão, como também tenderam, a partir destas mesmas altera-
ções, a transformarem-se de tal maneira que evidentemente se torna-
ram elementos destacados, fundamentais, no processo que é desenca-
deado com o surgimento da patrística e que foi ao encontro, mesmo que
gradativamente, do chamado Renascimento, dando origem a um novo
tipo de homem que emergiu de todo esse processo: o homem moderno.

capítulo 2 • 49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1997.
BERTI, Enrico. No princípio era a maravilha. São Paulo: Loyola, 2010.
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia cristã. Petrópolis: Vozes. 1995.
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Unesp. 1999.
GASSET, José Ortega y. Em torno a Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1985.
LIBERA, Alain De. A Filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Lisboa: Guimarães Editores, 1985.
REALE, Giovanni; ANTIRESI, Dario. História da Filosofia: patrística e escolástica. v. 2. São Paulo: Paulus, 2003.

50 • capítulo 2
Mitos, utopias

3 e Iluminismo:
contradições da
modernidade

Martha D'Angelo
3 Mitos, utopias e Iluminismo:
contradições da modernidade

CURIOSIDADE Introdução
Antigos mitos
Antigas fantasias míticas sobreviveram
à época moderna, como, por exemplo, a “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia
crença no Paraíso Terrestre, ou Jardim não merece sequer uma passada de olhos,
do Éden, e o mito da Terra da Coca- pois deixa de fora um país onde a humanidade
nha. Essas fantasias têm em comum o está sempre desembarcando.”
sonho de uma sociedade onde as pes- Oscar Wilde
soas vivem em perfeita comunhão entre
si e com a natureza. As rememorações O racionalismo e a revolução científica moderna introduziram um
e retomadas desses mitos no decorrer novo paradigma cultural através de um processo de secularização, ini-
da história, ao se transformarem em ciado no Renascimento, que enfraqueceu progressivamente a força e o
utopias, colocam em xeque as ideias e poder das Igrejas.
valores de uma determinada época.

As transformações sociais, econômicas e políticas iniciadas no final da
Idade Média nas principais cidades europeias redefiniram a relação ho-
mem/natureza, mudaram o conceito de tempo e propiciaram a afirmação
de um novo espírito científico. Mas as ideias de progresso e esclareci-
mento surgidas neste novo caldo de cultura, na verdade, não rompem
completamente com antigos mitos. Aproximações entre mito, utopia e
razão darão sustentação a esta tese.

Mesmo quando parece um delírio, as utopias sempre contêm


uma crítica social, como observou Oswald de Andrade, “No fundo
de cada Utopia não há somente um sonho, há também um protesto”
(ANDRADE, 2011, p. 284).

EXEMPLO
Existe, por exemplo, uma crítica social e um desejo de transformação da vida na
versão do mito bíblico da criação do mundo do tríptico do pintor Hieronymus Bosch
(1450-1516) conhecido como Paraíso Terrestre.
No século XVI, o pintor flamengo Pieter Brueghel (1520/30-1569) também imagi-
nou a Terra de Cocanha em uma pintura de fantasia exuberante. A conexão entre o
visual e o literário, marcante em toda a produção de Brueghel, faz jus, neste caso, à
expressão usada pelo poeta Charles Baudelaire — graça satânica — para se referir
à força expressiva do universo bruegheliano. Firmada na sabedoria rural-popular,
essa Terra da Cocanha constitui um precioso registro da mentalidade de uma época.

52 • capítulo 3
A Cocanha

O próprio Baudelaire, no poema em prosa O Convite à Viagem, também retoma o mito


da Terra de Cocanha, fazendo uma crítica à modernidade europeia do século XIX. Um dos
temas centrais de sua obra, a aversão à aceleração e mercantilização do tempo que começa
a se impor, aparece neste poema:

“Há um país soberbo, um país de Cocanha, dizem, que eu sonho visitar em companhia de uma velha
amiga. País singular, mergulhado nas brumas do nosso Norte, e a que poderíamos chamar o Orien-
te do Ocidente, a China da Europa, de tal maneira nele se espraiou a ardente e caprichosa fantasia,
de tal maneira ela o ilustrou, paciente e obstinada, com suas sábias e delicadas vegetações.
Verdadeiro país de Cocanha, onde tudo é belo, rico, tranquilo, harmonioso; onde o luxo se compraz
em mirar-se na ordem; onde a vida é fácil e doce de respirar; onde não se conhece a desordem, a
turbulência e o imprevisto; onde a felicidade se casa ao silêncio; onde até a cozinha é poética, farta
e excitante ao mesmo tempo. (...)
Sim, nessa atmosfera é que seria bom viver — além, onde as horas, mais vagarosas, contêm mais
pensamentos, onde os relógios fazem soar a ventura com mais funda e mais significativa solenida-
de.” (BAUDELAIRE,1995, p.296)

Os relatos de viagens, verdadeiras e imaginárias, tornaram-se um gênero literário muito


apreciado a partir dos grandes descobrimentos ocorridos com as navegações marítimas
dos séculos XV e XVI. Utopias libertárias foram produzidas nessa época em toda a Europa.

capítulo 3 • 53
AUTOR COMENTÁRIO
Oswald de Andrade Oswald de Andrade chega a admitir que as Utopias modernas são uma consequ-
ência da descoberta do Novo Mundo “e sobretudo da descoberta do novo homem
encontrado nas terras da América”(2011, p. 224).

Pode-se imaginar o impacto causado na Europa por alguns relatos de viajan-


tes pela calorosa aceitação do livro de Jean de Léry (1534-1611) no sé-
culo XVI, no qual ele narra sua viagem ao Brasil, em 1556, para participar da
construção da colônia francesa fundada por Villegaignon no Rio de Janeiro.
Lery descreve, nesta obra, o modo de vida dos índios, animais, plantas e
outras coisas singulares observadas na natureza. Publicado em 1578, o livro
teve um enorme sucesso de público, o que resultou em seguidas edições e
traduções para o holandês, o alemão e o latim. A hipótese de Oswald parece
justificada no trecho extraído de Viagem à terra do Brasil na qual o autor se
Oswald foi escritor, novelista e ensaísta refere à generosidade dos índios:
brasileiro. Foi considerado o elemento “Como exemplo disso falarei daquela vez (...) em que dois franceses e eu,
inovador da Semana de Arte Moderna. perdidos na mata, achamos que seríamos devorados por um lagarto feio
e assustador, havendo mais de dois dias e uma noite que andávamos sem
Jean de Léry rumo e passando muita fome, até que fomos finalmente dar numa aldeia
Nascido na França, foi pastor, missioná- chamada Panô, onde estivéramos outras vezes. Não poderíamos ter sido
rio e escritor. Foi, também, membro da mais bem recebidos do que fomos por aqueles selvagens. Pois estes, de-
igreja reformada de Genebra no início pois de nos ouvirem contar os males por que passáramos e os perigos a
da Reforma Calvinista. que nos expuséramos, como o de sermos não só devorados por animais
ferozes mas também pelos maracajás, inimigos nossos e deles, de cujas
terras, sem sabermos, nos havíamos aproximado muito, e depois de saberem
que havíamos passado por desertos onde fomos muito arranhados por es-
pinhos, vendo-nos naquele estado, tomaram-se de tão grande piedade que
as recepções hipócritas daqueles que por aqui consolam os aflitos dizendo
coisas da boca para fora nada são diante da humanidade daquela gente, que
apesar disso chamamos de bárbaros.
Então, pondo-se em ação, com água muito limpa, buscada expressamente
para aquilo, começaram a lavar-nos pés e pernas (de uma maneira que
me fez lembrar os antigos) enquanto permanecíamos sentados, cada um
numa rede. Os velhos, assim que chegáramos, haviam ordenado que nos
trouxessem comida, instando as mulheres a que fizessem depressa farinha
macia, que (como eu disse alhures) desejava tanto comer quanto se fosse
miolo quente de pão branco. Vendo-nos mais refeitos, mandaram inconti-
nenti servir à sua moda, ótimas carnes, como veação, aves, peixes e frutos
deliciosos, que nunca lhes faltam.
Além disso, chegada a noite, para que descansássemos melhor, nosso an-
fitrião mandou tirar todas as crianças de perto de nós, e pela manhã,

54 • capítulo 3
AUTOR
quando acordamos nos disse: “E então, atanô-açá (quer dizer perfeitos alia-
dos), dormiram bem esta noite? “ E como respondêssemos que sim, mui- Thomas More
tíssimo bem, ele disse: “Durmam mais um pouco, meus filhos, pois ontem à
noite vi muito bem que vocês estavam cansados demais.” Em suma, é difícil
descrever a lauta refeição que nos foi oferecida então por aqueles selva-
gens, que numa palavra, fizeram conosco o que em Atos dos Apóstolos, São
Lucas diz que os bárbaros da ilha de Malta fizeram a São Paulo e aos que
o acompanhavam, depois que escaparam do naufrágio de que ali se fala.”
(LERY, 1999, p. 78)

Na Alemanha do século XVI, o teólogo Tomas Münzer (1490-1525)


retoma as raízes do cristianismo para fundamentar sua proposta de Re-
forma religiosa e projetos de transformação política e social.
Na Inglaterra, Thomas More (1478-1535) imagina uma sociedade
com total liberdade de pensamento e sem desigualdades sociais em sua
Utopia. Foi a partir do contato, em viagem à Antuérpia, com um nave- Foi advogado, escritor e diplomata, ocu-
gante português, um dos 24 homens deixados na Feitoria de Cabo Frio pou o cargo de Chanceler do Reino de
por Américo Vespúcio, que ele teve inspiração para essa obra. Henrique VIII. Era considerado um huma-
Nessa época, o rei da Inglaterra, Henrique VIII, a quem More ser- nista na época do Renascimento e cano-
viu como chanceler antes de ser decapitado por ele, mandou enforcar nizado como santo da Igreja Católica.
72.000 pessoas, consideradas uma ameaça à ordem social por não te-
rem uma ocupação definida e ficarem perambulando pelas cidades
(MARX, s.d., p.68).

CURIOSIDADE
Utopia

Utopia Cidade do Sol

capítulo 3 • 55
AUTOR Na Utopia de More, assim como na Cidade do Sol, de Tomaso Campanella (1568-
1639), não há lugar para autoritarismo, propriedade privada, acumulação de riquezas
Kant e escravidão. O interesse político e a crítica social das duas obras diferem dos ob-
jetivos pretendidos por Francis Bacon (1561-
1626) em Nova Atlântida. Essa obra foi pen-
sada em oposição à Atlântida de Platão, assim
como o Novum Organum foi elaborado como
alternativa ao Organum de Aristóteles.
É a partir do diálogo com a tradição filosófica que
Bacon pensa uma sociedade ideal. Distinguindo-
se das utopias usuais, Bacon imagina, na Nova
Atlântida, um Estado cujo núcleo de poder não
se encontra na ordem econômica e jurídica, mas
em uma comunidade de cientistas.
Desdobrando literalmente a sua máxima "Saber
é poder", Bacon considera que o conhecimento
dos mecanismos e das regras de dominação da natureza deve orientar os centros
Immanuel Kant (1724 – 1804) foi um de poder. As questões essenciais da sociedade seriam decididas por um coletivo de
filósofo prussiano, elaborou o o idealis- cientistas pesquisadores. Essa instituição científica estaria diretamente conectada
mo transcendental e contribuiu para o às demais instituições, como a indústria, a escola etc.
movimento iluminista.
Enquanto Francis Bacon se contrapõe à tradição filosófica e cien-
Newton tífica dos antigos, a obra científica considerada modelar por Kant; a
física de Isaac Newton; é exemplar como tentativa de recuperação de
algumas tradições.

A crítica de Newton à teoria cartesiana da matéria, a todos os materialistas


e aos panteístas, mostra que não há na modernidade um progresso linear e
contínuo da razão visando a afirmação do projeto Iluminista. Obscuras forças
místicas sustentam a ideia de gravitação universal. Além de admitir o poder
absoluto de Deus, Newton se dedicou ao estudo da Alquimia a ponto de
inserir em sua obra muitas referências a textos de alquimistas. Seu interesse
não se limitava ao conhecimento de detalhes técnicos desta prática, visan-
do também alcançar sua significação na Mitologia pagã. Longe de ser uma
idiossincrasia, o interesse profundo e duradouro de Newton pela Alquimia
mostra uma ligação subterrânea entre mito e razão e ciência.
Isaac Newton (1642 –1727) foi um
cientista inglês que contribuiu em diver- COMENTÁRIO
sas áreas: Física, Matemática, Alquimia,
Filosofia e Teologia. De acordo com as indicações de Japiassu (1985, p.167), esse interesse foi
minuciosamente analisado por historiadores contemporâneos, que encon-
traram nos acervos do cientista uma grande quantidade de estudos sobre
escritos herméticos, de figuras míticas, como Hermes Trimegisto e Michel

56 • capítulo 3
Maier, por exemplo, realizados durante aproximadamente 30 anos. Esses trabalhos foram ignora-
dos pelos biográfos de Newton durante muito tempo por não serem considerados relevantes para
a ciência e para a sua obra científica. David Brewster achava escandaloso o fato de Newton ter-se
rebaixado a ponto de se ocupar de especulações produzidas por insensatos. Lord Keynes, que teve
um papel fundamental na organização desse material de aproximadamente 650.000 palavras, se
referiu a Newton como o último dos mágicos.

Quando os europeus chegaram ao Taiti, no século XVIII, o naturalista da expedição,


Commerson, chamou o local de Utopia; em uma referência à sociedade ideal imaginada
por Thomas More no século XVI.

COMENTÁRIO
Em suas observações sobre os habitantes do lugar, encontramos um registro onde se revela o impacto
nele causado por este mundo paradisíaco: “Nascidos sob o mais belo céu, nutridos dos frutos de uma terra
fecunda sem cultura, regidos por pais de família e não por reis, o único deus que conhecem é o amor.”
(Commerson apud KURY, 2001, p.107).

Até o século XVIII as utopias eram
vistas como dilentantismo filosófico
A utopia é a verdade de
ou como gênero literário. A partir da amanhã, dizia Victor Hugo,
Revolução Francesa as palavras utopia expressando um pensamento
e revolução começam a ficar cada vez próprio ao século XIX.
mais associadas.

Robert Owen (1771-1858) foi um dos primeiros socialistas da Inglaterra a tentar colocar em
prática uma utopia.

COMENTÁRIO
Através de um sistema cooperativo e de autogestão da produção, Owen imaginou que seria possível aca-
bar com o trabalho assalariado. Em 1824 foi para os Estados Unidos, onde fundou uma comunidade cha-
mada New Harmony, para testar suas ideias. Pouco tempo depois, em 1829, o projeto se mostrou inviável
e Owen voltou para a Inglaterra. Manteve-se, a partir de então, no movimento cooperativista e sindical. Suas
iniciativas deixaram uma marca profunda no sindicalismo britânico e no movimento cartista. Fiel à tradição
romântica, o artista e poeta William Morris (1834-1896) imagina no romance News from nowhere (1890)
uma Inglaterra (no ano 2102) onde todas as necessidades básicas da sobrevivência estariam resolvidas e
algumas tradições, hábitos de convivência, moradia e até vestuário, preservadas.

capítulo 3 • 57
Na França, Charles Fourier (1772-1837) imaginou, em sua Theorie des quatre mouvements e des
destinées genérales (1808), uma sociedade na qual tudo estaria submetido às paixões naturais
do homem.

COMENTÁRIO
A humanização do trabalho aconteceria com o agrupamento da sociedade em falanstérios, nos quais seria
possível resolver os problemas relacionados à produção e ao consumo. Essa utopia social, apresentada em
Le nouveau monde industriel et sociétaire (1829), abriu uma polêmica com os saint-simonianos. A con-
cepção de falanstério se orientou reforçando a supressão de todo trabalho assalariado e não cooperativo.
Próximo da arquitetura das passagens parisienses, Fourier imaginou uma cidade feita de galerias onde o
homem governaria a água, o ar, o calor e a luz. Reunidas nos apartamentos que integram o falanstério, as
famílias teriam um restaurante comunitário servindo refeições a preço de custo.
Enquanto máquina de morar, o edifício falansteriano representa o desejo de superação das carências ma-
teriais produzidas pela forma de organização do trabalho nas sociedades capitalistas.

Contemporâneo de Fourier, Etienne Cabet (1788-1856), um deputado considerado de extrema


-esquerda, em 1831, tentou, a partir de uma utopia baseada na centralização do poder do Estado,
organizar, tal como Owen, uma colônia nos Estados Unidos, primeiro no Texas e depois em Illinois.

COMENTÁRIO
Essa iniciativa também não foi bem-sucedida, e Cabet voltou para a França, onde foi condenado e obriga-
do a se exilar. Ao contrário das comunidades de Cabet, as comunidades propostas por Pierre Proudhon
(1809-1865) nunca saíram do papel, limitando-se a projeções para o futuro. Como se pode ver, a revo-
lução científica moderna e a revolução industrial não extinguiram completamente os mitos antigos nem
impediram a criação de outros novos, que vieram a inspirar várias utopias e projetos educacionais.

Iluminismo e educação
Em todas as utopias desde a República de Platão, a educação tem uma
importância fundamental.
Em sintonia com as mudanças culturais e a Reforma Protestante,
Comenius (1592-1670) propõe o primeiro projeto moderno de educa-
ção com matizes utópicos. Sua ousada proposta de universalização da
educação escolar teve uma grande repercussão em toda a Europa.
O alcance dela ultrapassa o contexto de sua época, como observou
Narodowski (2004, p.16):

58 • capítulo 3
“A pedagogia comeniana implanta uma série de dispositivos discursivos sem os quais é pratica-
mente impossível compreender a maior parte das posições pedagógicas atuais.”

A exigência de universalidade da educação e a proposta ousada de uma escola única


para homens e mulheres, ricos e pobres, orientada por um novo currículo, faziam parte do
projeto pedagógico de Comenius.
Ao afirmar que a humanidade dos indivíduos é construída pela educação e que o homem
torna-se racional através do processo educativo, Comenius fortalece as bases do projeto
iluminista. Comenius acreditava que a educabilidade é inerente a todas as pessoas e que
o processo de humanização se realiza pela educação, daí a necessidade da universalidade
da escolarização. Enfatizando esse princípio no capítulo VI da Didática Magna, Comenius
invoca Platão citando o seguinte trecho das Leis: “O homem é um animal bastante manso
e divino se amansado por uma verdadeira disciplina; se não receber disciplina alguma ou
se receber uma disciplina falsa, será o mais feroz dos animais que a terra pode produzir.”
(PLATÃO apud COMENIUS, 2002, p. 75).

A salvação do homem, para Comenius, dependia de sua atividade espiritual e da educação es-
colar. Seu projeto pedagógico pressupõe um saber que envolve aspectos lógicos e teológicos,
pois Deus e o universo são indissociáveis. Ao penetrar nos mistérios da natureza, o homem se
aproxima de Deus. Por isso mesmo, o método de ensino deve acompanhar a evolução natural da
mente da criança, sem se preocupar em seguir programas disciplinares baseados em objetivos
que não levam em conta sua natureza. A possibilidade de ensinar tudo a todos estava assentada
no princípio da igualdade da capacidade intelectual de todos os homens. A noção de cultura como
aperfeiçoamento da natureza, central em Comenius, se mantém até a época de Kant, que destaca
a diferença essencial entre o reino da necessidade, próprio ao determinismo da natureza, e o reino
da liberdade, que pressupõe escolhas racionais.

Mas a ideia da riqueza e do progresso como inteiramente resultante do trabalho huma-


no não existia nessa época. De acordo com Kury (2001, p. 105):

“No século XVIII, o domínio da natureza aparece aos teóricos da Civilização como uma conse-
quência lógica do progresso da humanidade. A Agricultura é a atividade social que representa
de maneira mais clara a complementaridade entre Natureza e Civilização. É da terra que se
extraem todos os produtos necessários ao homem para sua sobrevivência e seu prazer. Com
efeito, a produção de riquezas não é concebida como uma atividade que resulte unicamente do
trabalho e dos conhecimentos trazidos pela sociedade. A natureza exerce uma função nesse
processo: ela contribui ativamente para a reprodução da vida humana. ‘Economistas’ fisiocratas
explicam teoricamente o papel produtivo da terra (Natureza), mas eles não são os únicos a
admitirem a existência de uma força geradora própria dos elementos naturais.”

capítulo 3 • 59
Apesar de manter uma visão do mundo distante do mecanicismo racionalista, e de não se
identificar com o desejo cartesiano de dominação da natureza através das ciências, Come-
nius concordava com as críticas de Descartes à educação escolar de sua época. Ambos consi-
deravam nefastas sua verborragia e falsa erudição, repudiavam as atitudes violentas dos pro-
fessores e a utilização de procedimentos que não estimulavam a vontade de aprender. Entre
Bacon, Descartes e Comenius há um ponto importante em comum: os três consideravam o
método a peça-chave para resolver as grandes questões do conhecimento e da Pedagogia.
A partir de uma crítica radical da cultura, a utopia rousseauniana imagina um novo
ordenamento social no Contrato Social em sintonia com uma nova teoria pedagógica. No
Emílio o objetivo que orienta a educação da criança é a preservação dos seus atributos na-
turais. É a partir do ponto de vista da criança e da tentativa de construção de um homem
novo que a educação e a sociedade devem se organizar. Tal perspectiva representa uma
revolução copernicana, não apenas na educação, mas também na cultura de uma maneira
geral. A concepção da criança como um adulto em miniatura, disseminada nas práticas pe-
dagógicas então vigentes, foi sendo desacreditada e foram surgindo novas maneiras de na-
turalização da cultura burguesa, embora Rousseau associe o Emílio à necessidade de uma
mudança estrutural na sociedade. A conservação da pureza do homem natural conduziria
à supressão ou pelo menos à diminuição da desigualdade social. O cuidado com a criança
e o reconhecimento das dificuldades para impedir sua corrupção se destaca no início do
Emílio no trecho a seguir:

“Procuram sempre o homem na criança, sem pensar o que ele é antes de ser homem. Eis o es-
tudo a que mais me apliquei, para que mesmo que meu método fosse quimérico e falso, sempre
se pudessem aproveitar minhas observações. Posso ter visto muito mal o que se deve fazer;
mas acredito ter visto bem o sujeito sobre o qual se deve agir. Começai pois, por melhor estudar
vossos alunos, pois com toda a certeza não os conheceis; ora, se lerdes este livro dentro desta
perspectiva, creio que ele não carecerá de utilidade para vós.” (ROUSSEAU, 1999, p. 4)

A articulação entre o Contrato Social e o Emílio se apresenta como uma alternativa para
a conciliação entre o macro e o micro, a sociedade e o indivíduo, o sentimento e a razão.
O viés romântico de Rousseau e a sua descrença no poder da razão para realizar sozinha o
ambicioso projeto iluminista de emancipação do homem estão profundamente gravados
nestas duas obras. No contexto do movimento de ideias que, na Alemanha, foi chamado de
Aufklärung, que se pode traduzir como Iluminismo, mas também como esclarecimento, o
pensamento de Kant tem um destaque especial. Entendendo sua época como a época da
crítica, à qual tudo e todos devem se submeter, Kant afirmava que o homem só deve aceitar
e respeitar o que a razão julga e aprova.

COMENTÁRIO
No texto Resposta à questão: Que é esclarecimento?, o filósofo afirma que é a saída do homem de sua meno-
ridade, é a sua emancipação e autonomia. Ela requer decisão e coragem de pensar e agir por si próprio, sem
ser tutelado. “Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso do seu entendimento, tal é o lema do Esclarecimento.”

60 • capítulo 3
O conceito de razão que lhe corresponde envolve o plano cognitivo e o plano moral, isto é,
o conhecer e o agir.

A crítica kantiana marcou profundamente a filosofia moderna.


Filósofos contemporâneos como Walter Benjamin e Adorno construíram algumas teses importan-
tes a partir de uma profunda interlocução com Kant. Refletindo sobre o futuro da Filosofia futura
em um texto de 1918, Benjamin destaca a importância de Kant, mas critica seu conceito de ex-
periência. Ele indica a necessidade de elaboração de um novo projeto para a Filosofia que tome
como referência o sistema kantiano.
O interesse de Kant em justificar a metafísica indicava, segundo Benjamin, um compromisso com
a verdade e um distanciamento crítico em relação à cultura iluminista de sua época. A proposta
formulada por Benjamin, neste texto de 1918, para a Filosofia do século XX tem como eixo central
o sistema kantiano. A partir dele deveriam ser construídos os fundamentos epistemológicos de um
conceito superior de experiência.

ATENÇÃO
A grandeza de Kant foi ter tentado — apesar de seu encantamento pela ciência — garantir novas
bases para o desenvolvimento da Metafísica, em uma época em que a Metafísica parecia comple-
tamente desnecessária e superada.

A crítica benjaminiana à cultura pedagógica do Iluminismo tem como foco principal seu
projeto de emancipação humana através de uma racionalidade modelada pela ciência.
No século XVIII, ganham espaço os debates sobre o papel da educação como centro irradiador
de transformações sociais visando esse fim e uma grande preocupação com novos métodos de
ensino e materiais educativos que possam melhorar o desenvolvimento das crianças e dos jovens.
Os projetos pedagógicos de Denis Diderot (1713-1784), Jean D’Alembert (1717-1783),
Etienne Bonnot de Condilac (1715-1780) e Rousseau (1712-1778) exercem grande in-
fluência em toda a Europa. Contagiados pela efervescência política e educacional francesa,
Johann Berhard Basedow (1723-1790) propõe mudanças no ensino técnico e profissional,
Gotthold Ephraim Lessing (1728-1781) escreve o ensaio Educação do gênero humano,
Johann Gottfried Herder (1744-1803) apresenta uma crítica radical da educação na Alema-
nha em Filosofia da História para a educação da humanidade, Friedrich Von Schiller (1759-
1805) escreve as cartas sobre A educação estética do homem, e Kant (1724-1804) redige as
notas Sobre a Pedagogia, que fundamentaram suas aulas nos semestres de inverno de 1776-7,
de verão de 1780 e de inverno de 1786-7 na Universidade.

capítulo 3 • 61
RESUMO
Nestas anotações, a formação do sujeito moral é considerada o cerne da revolução pedagógica
almejada pela Aufklärung. Em virtude dessa ênfase na moralidade, a questão disciplinar adquire
um caráter central na Pedagogia kantiana, como indica a afirmação:

“O elemento selvagem é a independência das leis. A disciplina submete o homem às leis da huma-
nidade e começa a fazer-lhe sentir a coação das leis. Isto tem, contudo, de acontecer cedo. Assim,
por exemplo, as crianças são enviadas à escola, de início, não com o propósito de aprenderem lá
alguma coisa, mas para que se consigam habituar a estar sentadas em silêncio e a observarem
pontualmente o que lhes é prescrito, para que no futuro não possam também por em prática, real
e imediatamente, tudo o que lhes passa pela cabeça.” (KANT, 2012, p.10)

Expressando de forma coerente os ideais iluministas de igualdade no projeto apresen-


tado à Assembleia Nacional Constituinte, em 1792, o marquês de Condorcet (1743-1794)
defende um sistema de ensino gratuito e universal para a França revolucionária, indepen-
dente do poder religioso e com autonomia em relação ao Estado.

ATENÇÃO
Para o iluminista, a ignorância e a desigualdade no acesso à educação são as principais fontes que permi-
tem o abuso de poder e a tirania. O acesso ao conhecimento é fundamental para a igualdade de direitos.
As suas Cinco memórias sobre a instrução pública se referem, cada uma, a temas específicos, como a
natureza e objeto da instrução pública, a instrução comum para as crianças, os homens e as mulheres, a
formação profissional e o ensino das ciências.
Nesta obra, Condorcet também propõe formas de organização da escola, discute questões relacionadas à
formação dos professores, à estruturação do currículo e aos direitos profissionais dos docentes.

AUTOR
Condorcet foi o mais radical defensor da igualdade de direitos entre os sexos. Sem a construção de um
sistema educacional único para homens e mulheres, a concretização dos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade estaria comprometida. Contra os preconceitos que sustentavam a incapacidade das mulheres
para o trabalho científico, Condorcet argumentava que elas não deveriam ser excluídas deste trabalho,
que poderiam se tornar úteis aos seus progressos, fazendo observações ou compondo livros elementares.

Condorcet (imagem) se refere a alguns antecedentes históricos


que confirmam a aptidão das mulheres para as ciências, como é o
caso das mulheres que ocuparam cátedras de ensino de ciências
em Universidades importantes da Itália, “cumprindo com glória
suas funções” (CONDORCET, 2008, p.61).

62 • capítulo 3
Além de desconstruir a naturalização da inferioridade intelectual da mulher com esses CURIOSIDADE
exemplos e com fundamentos teóricos, Condorcet reforça a exigência de igualdade
com base na tese de que a desigualdade de instrução entre o marido e a mulher é a Some thoughts concerning
principal causa da infelicidade conjugal e dos conflitos em família. Mas há também education
uma razão social e política para que seja garantido o mesmo ensino para os dois sexos:
“Seria perigoso conservar o espírito de desigualdade nas mulheres, porque isso impe-
diria de destruir esse espírito nos homens” (CONDORCET, 2008, p. 63).

Os mais importantes projetos pedagógicos da época moderna, de


Comenius a Condorcet, pretendiam, por diferentes caminhos, fortale-
cer os ideais de igualdade e a racionalidade humana. À medida que a so-
ciedade foi se laicizando, a educação tornou-se cada vez mais submetida
ao controle do Estado.

Nesse período inaugural da modernidade, dois pensadores defenderam


com veemência posições contrárias ao racionalismo que em alguma medi-
da repercutiram no campo da educação:

Nesta obra, a concepção empirista do


processo de construção do conhecimen-
to e as ideias políticas liberais dão sus-
tentação à severa crítica feita pelo autor
aos castigos corporais praticados por
professores nas escolas. Um dos pontos
mais problemáticos da proposta edu-
cacional de Locke é que ela se limita a
pensar a formação de uma elite dirigente
e não leva à educação do povo.

O empirista inglês John Locke (1632-1704) e o napolitano Giambattista


Vico (1668-1744) – representados respectivamente nos retratos.

O primeiro concentrou sua atenção nas operações psicológicas da men-


te para contestar o inatismo e o segundo inaugurou um historicismo ra-
dicalmente crítico ao modelo de razão e de ciência cartesiano. Após as
investigações epistemológicas do Ensaio sobre o entendimento humano
e a elaboração das teses políticas da Carta sobre a tolerância, Locke faz
uma breve incursão na Pedagogia com o ensaio Some thoughts concerning
education (Alguns pensamentos sobre educação).

capítulo 3 • 63
Mito e razão na Dialética do Esclarecimento
A tese da modernidade como retomada do mito em Walter
Benjamin (imagem) está relacionada a uma visão não linear
do curso da história. Seu movimento não é a marcha do ho-
mem em direção à liberdade e ao progresso. A história está
cheia de rupturas e de catástrofes.
Os trágicos acontecimentos das duas grandes guerras
mundiais na primeira metade do século XX mostram que a
história também pode ser retrocesso e barbárie. Na tese IX —
Sobre o conceito de história, Benjamin (apud LÖWY, 2005, p.
87) descreve a visão do anjo da história de maneira trágica:

“Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem
cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de
demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade
que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempes-
tade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de
escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos progresso é essa tempestade.”

ATENÇÃO
A visão da história como progresso faz parte do que Benjamin chama de mitologia da modernidade, que en-
cobre o caráter regressivo de nossa época. A destruição do ethos histórico na cultura moderna, com o trans-
formismo do histórico em natural, impediu a realização do projeto de emancipação iluminista e cegou a razão.

Quando estava exilado nos Estados Unidos, durante a Se-


gunda Guerra Mundial, Adorno produziu ensaios filosóficos
que se tornaram referência no século XX.
A Dialética do Esclarecimento, escrito em parceria com
Horkheimer, reúne alguns dos mais importantes. O princi-
pal objetivo deste escrito é responder porque o programa
do Esclarecimento, que buscava livrar os homens do medo
e emancipá-los, através da dissolução dos mitos, resultou na
barbárie de nossa época. Buscando a raiz do problema dessa
regressão, Adorno e Horkheimer retomam o conceito webe-
riano de desencantamento do mundo, destacando o seu du-
plo sentido. Positivamente, desencantar significa quebrar um
Theodor W. Adorno encanto, superar a ingenuidade em relação ao mundo,

64 • capítulo 3
promover a emancipação, como propunham no século XVIII os iluministas. Por outro lado, o desen-
cantamento também tem o sentido negativo de perda de encanto do mundo, que está associado a
uma ruptura muito profunda do homem com a natureza. Reunindo esses dois aspectos ao mesmo
tempo, a época moderna foi substituindo uma forma de dominação da natureza ligada à magia por
uma forma de dominação guiada pela ciência. O vínculo entre as mudanças na relação homem/
natureza e o processo de construção de uma Razão não isenta de barbárie se evidencia na Dialé-
tica do Esclarecimento no trecho a seguir:

“Um após o outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foram considerados como
eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles estava associada ao pavor de que o eu
revertesse à mera natureza, da qual havia se alienado com esforço indizível e que por isso mesmo
infundia nele indizível terror. (...) Os homens sempre tiveram que escolher entre submeter-se à na-
tureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte
sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a
sementeira da nova barbárie.” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 37)

A constituição do sujeito e da Razão na época moderna envolveu uma mudança radical


na relação homem/natureza.

RESUMO
Com o enfraquecimento da Mitologia e o desligamento do homem do mundo físico hostil e ameaçador,
emergiu uma racionalidade centrada nos princípios de autoconservação do sujeito e de sujeição de todas
as relações a relações de poder. Realizada no interior da cultura burguesa, a constituição do sujeito não
conduziu à superação do mito, mas ao entrelaçamento entre mito e razão. O preço pago pela transforma-
ção da natureza em objeto de exploração foi a redução do humano à condição de coisa. Nessas condições,
a vitória sobre a natureza resultou na correlação entre subjetivação e reificação.

No Excurso I da Dialética do Esclarecimento, na famosa interpretação sobre a passa-


gem das Sereias, do Canto XII da Odisseia de Homero, o Iluminismo é considerado parte
do esclarecimento, isto é, da evolução da racionalidade técnica e instrumental sementeira
da barbárie contemporânea.

Neste episódio, Ulisses, narrando suas aventuras ao rei Alcino, diz que, sabendo do risco existente
no encontro com as sereias, antes de se aproximar da região onde seria ouvido seu canto, pediu
para ser amarrado ao mastro do barco. Completando sua estratégia, para ouvir o canto das Sereias
sem sucumbir a ele, ordena que os remadores tapem os ouvidos com cera e conduzam o barco
com mais velocidade. Adorno e Horkheimer, interpretando esta alegoria, consideram Ulisses o
protótipo do burguês, pois é ele quem decide o destino do barco e as condições de trabalho dos
marinheiros que o conduzem. Por outro lado, ele também está preso; pode ouvir o canto das se-
reias, é verdade, mas o preço pago por este privilégio foi a autorrepressão e a regressão.

capítulo 3 • 65
A obsessão de Ulisses com a autoconservação leva-o a artimanhas contra o cíclope Polifemo,
que, por serem bem-sucedidas, fortalecem seu ego. A fuga de Ulisses e a derrota do gigante tor-
nam-se possíveis porque, ao ser indagado por ele sobre sua identidade, Ulisses responde: Udeis
(Ninguém). A resposta faz com que ele se salve porque o gigante, ao ser atacado, grita por socorro,
chamando seus companheiros, dizendo: Ninguém está me matando. A astúcia de Ulisses foi inter-
pretada por Adorno e Horkheimer da seguinte maneira:

“Quem, para se salvar, se denomina Ninguém e manipula os processos de assimilação ao estado


natural como um meio de dominar a natureza sucumbe à hybris. O astucioso Ulisses não pode
agir de outro modo: ao fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo gigante, não se con-
tenta em zombar dele, mas revela seu verdadeiro nome e sua origem, como se o mundo primitivo,
ao qual sempre acaba por escapar, ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se chamado
Ninguém, devesse temer voltar a ser Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade graças à
palavra mágica, que a identidade racional acabara de restituir. (...) A astúcia, que para o inteligente
consiste em assumir a aparência da estupidez, converte-se em estupidez tão pronto ele renuncie
a essa aparência.” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 63)

COMENTÁRIO
A dialética que observamos em Ulisses seria a da própria civilização, que leva o indivíduo à regres-
são ao fazê-lo afirmar um modelo de racionalidade e de ciência centrado na ideia de dominação. A
forma de dominação da natureza própria à cultura moderna, regida por uma ciência obcecada com
a autoconservação do sistema, excluiu a Arte e a Filosofia da esfera do conhecimento. O objetivo
da ciência é o mesmo da magia; esta pretendia alcançá-lo através da mímesis, enquanto a ciência,
reduzindo a razão a um uso instrumental, promoveu um afastamento cada vez maior do homem em
relação à natureza. Essa distância, que passou a ser vista como objetividade, serviu de paradigma
para outras ciências.

A dialética que perpassa a história da cultura pode ser resumida a duas teses comple-
mentares:
•  mito já é esclarecimento; e
•  esclarecimento acaba por reverter à Mitologia
(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15)
Acompanhando este processo, a história humana se mostra também atravessada por
outra contradição: a progressiva afirmação do homem como sujeito e, ao mesmo tempo,
sua transformação em objeto. Há uma afinidade entre a visão de Adorno sobre a cultura e a
civilização e a visão de Freud.

ATENÇÃO
Para o criador da Psicanálise, os esforços empreendidos na manutenção da nossa civilização vêm resultan-
do em um estado de coisas que o indivíduo é incapaz de tolerar sem se tornar profundamente neurótico.

66 • capítulo 3
A questão crucial se resume, neste caso, em saber até que ponto a espécie humana poderá manter sob
controle as perturbações causadas pela repressão aos instintos de agressão e autodestruição. A luta entre
Eros e Tanatos na época atual adquiriu contornos muito problemáticos. O homem adquiriu um poder sobre
a natureza que tem se tornado cada vez mais ameaçador para sua própria integridade.

A complexidade do pensamento de Adorno e Horkheimer e sua diferença em relação ao


de Freud se revela na maneira como estão articuladas em seus escritos a crítica da cultura, a
crítica do conhecimento e a crítica social. Essas críticas convergem na análise da indústria
cultural. O isolamento da arte e o crescimento desta indústria na sociedade burguesa não
teria sido possível sem o triunfo da razão instrumental.

O ensaio A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, escrito na primeira
metade da década de 1940 e publicado pela primeira vez em 1947, no livro Dialética do Esclareci-
mento, analisa os processos de racionalização, controle e mercantilização da cultura e o fenômeno
da padronização do consumo na sociedade capitalista.
A revolução científica, iniciada no século XVII, as revoluções burguesas e a revolução industrial,
são acontecimentos históricos que deram sustentação a esses processos. Com a transição do ca-
pitalismo de livre concorrência para o capitalismo de monopólio, no início do século XX, os meca-
nismos que regulam a vida cotidiana das pessoas tornaram-se cada vez mais complexos, mais di-
fíceis de serem compreendidos, e, por isso mesmo, favoráveis ao crescimento da indústria cultural.

A mercantilização da arte se manifesta de modo radical na indústria cultural, que atra-


vés da diversão cria formas de evasão da rotina do trabalho. Mas não se pode sair do proces-
so de mecanização do trabalho sem enfrentá-lo. Por isso mesmo a indústria cultural não
“cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prome-
ter” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 115).

COMENTÁRIO
Esta promessa de felicidade que nunca se cumpre se converte em compulsão de consumo, que cinde a
vida em duas esferas: a do trabalho, monótona e falsa, e a que se repete como ciclo infernal. Assim, a his-
tória se transforma em natureza, e a vida é submetida à regressão, com a recuperação da crença na força
mítica do destino. O processo de adaptação decorrente desta relação impede a realização do princípio que
define o esclarecimento, segundo Kant. A pseudo-individuação do consumidor se realiza sob a ameaça,
nem sempre muito velada, de isolamento. Integrado ao sistema pela indústria cultural, o indivíduo desfruta
a ilusão de pertencer a uma comunidade humana.
A crítica à razão iluminista na Dialética do Esclarecimento tem um alcance que ultrapassa o período da
Filosofia das Luzes, como demonstra a tese do vínculo entre mito e razão. Trata-se de uma análise que
investiga as raízes históricas do processo de dominação da natureza pelo homem e se projeta para além
do Iluminismo, alcançando todas as formas de positivismo que vieram a florescer nos séculos XIX e XX.

capítulo 3 • 67
Adorno e Benjamin reconheciam as limitações de Kant resultantes do seu profundo en-
volvimento com a cultura iluminista. Em nome do avanço da ciência foi preciso, segundo
Kant, que o sujeito não se dirigisse mais à natureza como um escolar se dirige ao mestre,
esperando suas lições.
A revolução copernicana de Kant rompe com a ideia de que o sujeito deve se adequar à
natureza para conhecê-la, pois não há uma ordem a descobrir na natureza, e sim a ordem
que o pensamento dá à natureza.

A partir dessas questões entende-se porque a retomada da questão do belo natural — através de
Kant — em Adorno, reabre a velha ferida da relação homem/natureza. Inserindo a noção do belo
natural na história, Adorno observa que, enquanto a natureza impôs seu poder e sua dominação
aos homens, não houve lugar para o belo natural.

Pretensamente a-histórico, o belo natural só emerge com um certo domínio da nature-


za; a submissão ao poder da natureza sempre suscitou no homem um sentimento de horror
(s.d., p. 81). A crescente dominação sobre a natureza, desencadeada desde os primórdios
da civilização e exacerbada com as revoluções científica e industrial, tornou impossível a
experiência estética relativa ao belo natural, pois esta experiência só pode existir com o
reconhecimento dos direitos da natureza. Acabou-se, segundo Adorno, o tempo em que a
grandeza abstrata da natureza, que Kant ainda admirava e comparava à lei moral, podia ser
experimentada. Nesta experiência a natureza era percebida “como algo, ao mesmo tempo
obrigatório e como incompreensível” ( s.d., p. 87). Este duplo caráter foi transferido para a
arte. Em função disto, a arte foi se distanciando da imitação da natureza e se aproximando
da imitação do belo natural em si.

ATENÇÃO
O reconhecimento da existência de um vínculo profundo entre a natureza e a arte leva Adorno a justificar
a necessidade de preservação da natureza enigmática da arte. Contrapondo-se totalmente, pela sua apa-
rência, ao não fabricado, isto é, à natureza, a obra de arte encarna a ideia de um mundo mediatizado pela
ação do homem. Esta ação, ao contrário do que Hegel pensava, não retira do mundo exterior sua esquiva
estranheza. Nesta medida, a própria existência da obra de arte reapresenta a questão da violência contra a
natureza. Enquanto antítese da natureza, a obra de arte salva sua imagem, pois a experiência adequada ao
belo natural, que desapareceu na sociedade contemporânea, ressurge nela. Em suas considerações sobre
a impossibilidade de apreensão do belo natural em nossa época, Adorno nos remete ao belo artístico, sem
o qual o conceito de belo natural torna-se vazio. Determinadas expressões tornaram-se absolutamente
inadequadas ao que restou de mais íntimo da experiência do homem com a natureza: A completude, a
textura e a consonância das obras de arte é a cópia do silêncio, unicamente a partir do qual fala a natureza
(ADORNO, s.d., p. 91).

68 • capítulo 3
Filmes relacionados ao tema abordado no texto

O homem que não vendeu sua alma (A man for all seasons,
1966, Inglaterra). Direção: Fred Zinnemann. Excelente re-
constituição histórica do estado absolutista inglês através da
narrativa dos conflitos de Thomas More com o rei Henrique
VIII. 120 minutos.

Giordano Bruno (Giordano Bruno, 1973, Itália). Direção: Giu-


liano Montaldo. Reconstituição da vida do filósofo, astrônomo
e Matemático Giordano Bruno, enfatizando seu confronto
com o Tribunal da Inquisição por causa da teoria da infinitude
do universo e de sua oposição à tradição geocêntrica defen-
dida pela Igreja Católica.

Caindo no ridículo (Ridicule, 1996, França). Direção: Patrice


Leconte. Sátira inteligente sobre os costumes da aristocracia
no período anterior à Revolução. As dificuldades de um jovem
que vai à corte em busca de solução para os problemas dos
camponeses de sua região. 102 minutos.

capítulo 3 • 69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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70 • capítulo 3
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SZMRECSÁNYI, Támaz. Esboços de História da Ciência e da Tecnologia. In: SOARES, Luiz Carlos (Org.).
Da Revolução Científica à Big (Business) Science. São Paulo: Hucitec; Niterói: EdUFF, 2001.
VENTURI, Franco. Utopia e riforma nell’Illuminismo. Turim: Einaudi, 1970.
WILLIAMS, R. Cultura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

IMAGENS DO CAPÍTULO
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capítulo 3 • 71
4
Um panorama
da Filosofia
Contemporânea

affonso henrique
vieira da costa
e
carlos roberto de
carvalho
4 AUTOR
Um panorama da Filosofia
Contemporânea
Introdução
Friedrich Nietzsche Friedrich Nietzsche, em uma de suas anotações esparsas, feitas possivel-
Nietzsche (1844-1900) foi um filóso- mente para um livro que nunca foi escrito, disse:
fo, filólogo, compositor e crítico ale-
mão atuante no século XIX, de estilo “O que conto é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que vem, o
aforismático. que não pode mais vir de outro modo: o advento do niilismo”1.

Trata-se, em linhas gerais, do esva-
AUTOR ziamento de todos os valores supremos,
da época histórica em que o mesmo fi-
Giorgio Agamben lósofo, em seu livro A gaia ciência, anun-
Agamben (1942) é um filósofo italiano, cia, na voz de um tresloucado, a morte
produz textos com a política e a estética de Deus2.
como temas centrais. Deste panorama, que caracteriza a
contemporaneidade, participamos to-
dos nós. O que Nietzsche fez, foi, na ver-
NOTA dade, permitir-se ver, com uma luz toda
própria e uma lupa posta em certa medi-
1
 NIETZSCHE, Friedrich. A vontade da, o real em seus mais íntimos desdo-
de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, bramentos entreabrindo-se e revelando
2008. p. 23. o seu processo de niilização. É nessa paisagem, sob o peso dessa deter-
2
 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciên- minação, que a contemporaneidade vai se forjar.
cia. São Paulo: Companhia de Bolso,
2012. p. 137-138. ATENÇÃO
3
  AGAMBEN, Giorgio. O que é o con- Nietzsche, assim como todo grande pensador, representa um marco, uma divisa que
temporâneo? e outros ensaios. Chape- abre uma nova época que impõe a todos aqueles sensíveis aos problemas nela ex-
có: Editora Argos, 2010. p. 57. postos a necessidade de compreensão desse processo de nadificação.

Em um pequeno ensaio, intitulado O que é o contemporâneo?, o
filósofo italiano Giorgio Agamben pergunta: “De quem e do que so-
mos contemporâneos?”3 A essa pergunta, no entanto, ele não pre-
tende exatamente dar uma resposta direta e objetiva. Antes, o que
ele visa é justamente a possibilidade de o pensador encontrar-se com
a sua própria época e, de tal maneira, que venha a estabelecer, as-
sim como Nietzsche, um prognóstico com relação a ela a partir de
seu desenrolar-se. Tal prognóstico, por exemplo, é o que também foi
acentuado por Walter Benjamin, em seu texto A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, quando, ao dialogar com o pensador
alemão Karl Marx acerca do desenvolvimento do modo de produção

74 • capítulo 4
a partir da relação dialética existente entre a infraestrutura econô- AUTOR
mica e a superestrutura jurídico-política e ideológica, revela todo o
alcance de seu pensamento em torno da história e de seu destino4 . E Martin Heidegger
qual o motivo que o levou a destacar essa atitude de Marx? O fato de Agamben (1889-1976) foi um filósofo
que também Benjamin, ao elaborar uma leitura própria a partir do alemão, pensador atuante no século
materialismo histórico e dialético de Karl Marx, buscou ele mesmo XX, contribuindo principalmente para o
estabelecer prognósticos a partir de uma análise dos desdobramen- existencialismo e desconstrucionismo.
tos do sentido da arte no interior de uma civilização técnica que se
descortinava de um modo frenético com o advento do século XX. NOTA
4
 BENJAMIN, Walter. A obra de arte
Assim como os três pensadores acima mencionados, o filósofo alemão na era de sua reprodutibilidade técnica.
Martin Heidegger também se dispôs na compreensão de nossa contem- Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 51.
5
poraneidade, trazendo consigo toda uma tradição de pensamento oriunda HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Pe-
dos primórdios da Filosofia na Grécia, de modo a meditar em torno do que trópolis: Vozes, 2006.
denominou de esquecimento de ser. Sua grande obra, Ser e tempo5 , pro- 6
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísi-
cura encaminhar-se para um novo encontro com o sentido de ser a partir de ca? In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do
um questionamento essencial acerca do que é o homem. Além dela, a sua caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.
aula inaugural na Universidade de Freiburg, intitulada Que é metafísica?6, 7
HURSSERL, Edmund. A crise das
causou escândalo justamente por colocar em evidência a crise das ciências ciências europeias e a fenomenologia
antes diagnosticada por seu mestre Edmund Husserl em seu famoso livro transcendental. Rio de Janeiro: Forense
7
A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental . Nesse Universitária, 2012.
texto de Heidegger vem à tona o problema antes expresso por Nietzsche,
no interior do qual o filósofo intenta uma abordagem acerca do nada, de
sua relação com o processo de desenvolvimento das ciências e de seu total
desenraizamento com o fundamento da própria realidade.
Caso queiramos juntar a esses pensadores Sigmund Freud, sua descober-
ta do inconsciente e a Psicanálise, teremos um caldo especial que azeitará
todo o transcurso de nossa época histórica. Aliás, é bom que se ressalte,
é justamente com Marx, Nietzsche e Freud — principalmente eles — que
os pensadores contemporâneos terão que, queiram ou não, se digladiar.

Vanguardas europeias
Já no início do século XX, com o advento das chamadas vanguardas eu-
ropeias, encontramos a determinação desses pensadores na realização
das chamadas obras de arte.

COMENTÁRIO
O que se põe aí, nesse momento, é uma incapacidade toda especial de seguir
os ditames da tradição. Os artistas não conseguem mais repeti-la. O sentido da
arte evaporou. O que fazer, então? Romper com a tradição, açoitá-la. O criador
não é um repetidor. Ele sente em si toda a impossibilidade de criar em cima de

capítulo 4 • 75
NOTA modelos já consolidados, previamente dados. A arte passada já não lhe diz mais
nada. É preciso, então, em um primeiro momento, rejeitá-la, isto é, abrir espaços
8
  TELES, Gilberto Mendonça. Vanguar- para o advento de uma nova arte.
da europeia & modernismo brasileiro. O quadro que aí é pintado tem em seu fundo alguns acontecimentos de suma impor-
Petrópolis: Vozes, 2012. p. 436. tância, como a chamada Segunda Revolução Industrial, o processo de Colonização; o
9
Ibidem, p. 476. Neocolonialismo; com a busca por áreas fornecedoras de matérias-primas e consu-
10 
NIETZSCHE, Friedrich. Do caminho midoras de produtos industrializados, a Revolução Russa, a Primeira Grande Guerra
do criador. In: NIETZSCHE, Friedrich. Mundial, o período Entre Guerras com a crise da Bolsa de Nova York e, mais adiante, a
Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Segunda Grande Guerra Mundial, a descoberta dos Campos de Concentração e todo
Civilização brasileira, 2006. p. 89. um abalo acerca do que esperar do destino dos homens e de nosso planeta.
11
 ANDRADE, Carlos Drummond de.
Alguma poesia. In: ANDRADE, Carlos Nesse mesmo contexto surgem estilos como o dadaísmo, de Triztan
Drummond de. Poesia completa. Rio de Tzara, o futurismo de Marinetti, o surrealismo, o impressionismo e o
Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 28. cubismo, para ficarmos apenas nesses. No Brasil, tais estilos, experi-
mentados por intelectuais como Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, por exemplo, vão fundar aquilo que o
próprio Mário de Andrade, no prefácio de seu livro Pauliceia desvairada
chamará de “desvairismo”8. Neste mesmo encalço, em seu manifesto
Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade afirma: “Nenhuma fórmula para a
contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.”9

Nessa atitude de libertação propugnada pelos artistas e tão bem expressa


na dupla Mário-Oswald, encontramos o cerne de nossa época, a saber, o
fato de que ser livre do passado, em uma postura talvez anárquica, ainda não
é; segundo o próprio Nietzsche nos mostra em seu Assim falou Zaratustra,
um ser livre para criar. Não quero saber, diz ele, de quê, mas sim para quê
você é livre.10 Neste sentido, o que percebemos é que o contemporâneo,
mesmo vivendo no interior de tantas e profundas transformações, não sabe
exatamente o que é o novo, isto é, perdeu-se do sentido da criação. As ma-
nifestações artísticas, nessa época em que as grandes cidades começam a
ser apinhadas de gente com o surgimento cada vez maior de fábricas, de es-
colas, de hospitais, de automóveis, onde a vida do campo cede lugar a outros
espaços recém-criados e que correspondem a essas mesmas mudanças,
revelam-nos essa angústia que é o ser atropelado pelo que emerge do fun-
do do desenvolvimento histórico sem se dar conta de seu fundamento. É o
que podemos experimentar de um poema de Carlos Drummond de Andrade,
presente em seu primeiro livro de poesias lançado em 1930:
“Cota Zero
Stop
A vida parou
ou foi o automóvel?”11

76 • capítulo 4
Em que pese aí, ainda, a forte influência modernista dos chamados poe- NOTA
mas relâmpagos ou dos poemas piadas, muito bem executados por Má-
12
rio de Andrade, há no poema um sentimento de angústia, de um vazio   TELES, Gilberto Mendonça. Vanguar-
existencial que atravessa os seus pequenos versos quando percebemos o da europeia & modernismo brasileiro. Pe-
eu-lírico perdido no meio da cidade, de sua confusão, praticamente sem trópolis: Vozes, 2012. p. 115.
13
rumo, sem destino.  Ibidem.
14 
Ibidem, p. 350.
ATENÇÃO
Embora tudo esteja se transformando rapidamente, a vida parece que estacou, per-
deu seu sentido. O mais estranho, no entanto, é que esse sem sentido, presente em
alguns poetas e pensadores desde o início do século XX, parece estar na contramão
do desenvolvimento técnico e científico e das esperanças, do otimismo que se es-
praia desde o centro do globo até a periferia.

Se, por um lado, no manifesto do futurismo — prenhe de ideias fas-


cistas e belicistas, escrito em 1909 —, Marinetti, tomado pelo desenvol-
vimento industrial e pela técnica, exalta “a velocidade, o salto mortal, a
bofetada e o soco”12, chegando a afirmar que “nenhuma obra que não
tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima”13 , por outro, tam-
bém do início do século, Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando
Pessoa, em sua Ode Triunfal, precisa sentir-se tomado por esse novo, o
que é uma maneira de tentar compreendê-lo em meio a toda estranheza
que ele causa com a sua presença:

“Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder, ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!”14

Encontramos também essas disposições de espírito em outros no-


mes de grande relevância nessa época, como é o caso do francês Marcel
Duchamp, que criou a chamada antiarte e instituiu o conceito de insta-
lação e de ready-made.

EXEMPLO
Ele retirou um urinol de um banheiro e o colocou exposto, de cabeça para baixo,
em um museu e o chamou de fonte. Aquele objeto, mudando de espaço, passou a
causar espanto e a não ser mais visto como o urinol que ele era. Novos significados
e novas leituras passaram a ser feitas a partir desta mudança de posição.

capítulo 4 • 77
CURIOSIDADE De um modo semelhante, principalmente no que diz respeito à necessi-
dade de participação do espectador, se dá com o cubismo.
Cubismo São múltiplas faces que exigem que o espectador possa reuni-las em
Pablo Picasso e Georges Braque pas- sua visão de conjunto, como é o caso também do chamado Poema de sete
saram a desconstruir a pintura, a criar faces, de nosso Carlos Drummond de Andrade.
novos ângulos de visão, anteriormente
insuspeitados, e os expuseram em suas ATENÇÃO
telas. Aliás, precisamos ressaltar que o poeta francês Apollinaire, ao procurar repensar
a poesia em uma época de profundas transformações como essa, coloca em
jogo a linguagem, isto é, toda possibilidade de poder dizer alguma coisa, rein-
NOTA ventando palavras e jogando com a liberdade criadora, promovendo uma ruptura
com a gramática e suas leis.
15 
TELES, Gilberto Mendonça. Van-
guarda europeia & modernismo brasilei-
ro. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 176-177.
O pensamento de Nietzsche
Mas o que acossa o sempre novo com um poder insuspeitado é o nada
exposto por Nietzsche e ainda impensado por nós.

Vejamos, por exemplo, esse fragmento de texto de Tristan Tzara: “Eu redijo
um manifesto e não quero nada, eu digo, portanto, certas coisas e sou por
princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios (...).
Dadá não significa nada”15.

REFLEXÃO
De onde provém esse nada? Toda a história da Filosofia tentou, até então,
determinar o princípio da realidade, seu fundamento. Chegamos a Hegel e
em sua síntese dialética de toda a história no Espírito Absoluto. Em Marx,
o que temos é toda a inversão desse processo, cuja determinação última é
material. Em Nietzsche, apesar de Vontade de Poder e Eterno Retorno se
caracterizar ainda no binômio de essência e existência, pensados a partir do
platonismo, há também uma abertura para uma virada em direção ao que se
chamou de Abgrund, isto é, o sem fundo. Estaria a contemporaneidade situ-
ada neste âmbito do sem fundamento? Em que medida o contemporâneo é
aquele desesperado que corre para tudo quanto é lado e não consegue se
sentir nunca em casa? Seria ele um apátrida? O processo hoje tão em voga
e denominado de globalização seria o estertor do apátrida por excelência?

78 • capítulo 4
Sabemos que, de acordo com Nietzsche, o Super-Homem, o Übermensch, AUTOR
seria aquele que iria reencontrar o sentido da Terra. Heidegger, inclusive,
com uma leitura toda própria, contestada por muitos, vê nesse Super-Ho- Hannah Arendt
mem a figura capaz de assumir o sentido da técnica, de conduzi-la ao seu Johanna Arendt (1906-1975) foi uma
extremo. Daí ele considerar Nietzsche o último grande metafísico. filósofa alemã, de origem judaica, in-
fluente no século XX. Foi também jor-
ATENÇÃO nalista, professora e escreveu sobre fi-
losofia política - defensora do pluralismo
Diante disso, os temas relacionados à ciência, à arte, à linguagem, à metafísica, ao político.
homem, à técnica, ao destino do homem e à Terra, todos comprometidos com o
sentido de ser, além dos debates éticos e políticos e das questões relacionadas à
educação, tanto aquelas ligadas à linha pragmática de um Dewey, como a necessi-
dade de uma nova interpretação. Igualmente ocorre em Adorno, ao querer repensá
-las após Auschwitz, e até mesmo em Hannah Arendt, que a elas destinou um texto
muitas vezes questionado de nome Crise na educação, todos se encontram diante
dessa multiplicidade de problemas pertinentes a nossa época histórica, atravessada
por crises jamais vistas em outros momentos. Isso tudo sem falarmos do desenvolvi-
mento atual da biotecnologia e das pesquisas com o genoma humano, que podem,
em um espaço curto de tempo, aumentar a expectativa de vida de toda a população,
gerando, inclusive, questões morais até então sequer imaginadas.

Linha do pensamento contemporâneo


Entretanto, no curso desses acontecimentos, linhas diferentes de
pensamentos foram se formando e conformando esse caldo que é o
contemporâneo.

Podemos, de um modo geral, traçar uma linha hermenêutica proveniente de


Schleiermacher, passando por Wilhelm Dilthey, chegando a Martin Heideg-
ger e que, por sua vez, com a contribuição de Bultmann, traz à tona Hans-
Georg Gadamer e Paul Ricoeur. Derrida, por sua vez, promove o que se
chamará, no âmbito do que compreende por hermenêutica e interpretação,
de desconstrução. Todo esse caminho chega até nós com o pragmatismo de
Rorty e o chamado niilismo hermenêutico de Vattimo.
Temos, paralelamente a essa linha e, de certa forma, envolvidos por ela, a
chamada fenomenologia com Franz Brentano, Edmund Husserl, o próprio
Heidegger, Max Scheler, Nicolai Hartmann, Paul Ricoeur, anteriormente ci-
tado, Maurice Merleau-Ponty, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre.

capítulo 4 • 79
COMENTÁRIO
Além destas, temos também a presença da chamada Escola de Frankfurt, que desenvolveu uma
Filosofia conhecida como Teoria Crítica, da qual fazem parte pensadores como Theodor Adorno,
Herbert Marcuse, Marx Horkheimer e Walter Benjamin. O filósofo alemão Jürgen Habermas tam-
bém fez parte desta linha, no entanto dela se distanciou tomando caminhos próprios. Desenvolveu,
por exemplo, a chamada teoria da ação comunicativa a partir de uma crítica ao fato de, segundo
ele, a razão ser tomada apenas de maneira monológica e não dialógica, isto é, no âmbito de uma
intersubjetividade constituída e determinada historicamente.

Sem que queiramos nos estender muito, é preciso ainda que se apresente a chamada
Filosofia da linguagem ou Filosofia analítica, que abarca uma série de correntes como a
lógica simbólica, o empirismo lógico, o estruturalismo linguístico e a semiótica. O filósofo
austríaco Ludwig Wittgenstein, privilegiando os estudos em torno da linguagem, participa,
por exemplo, da corrente ligada à lógica simbólica.

Outro filósofo, no entanto, ainda merece


destaque. É o caso de Michel Foucault. Nas-
cido em 1926 e morto em 1984, ele procu-
rou pensar em torno das relações entre sa-
ber e poder a partir de uma investigação,
desde a sua origem, da atividade psiquiátrica
e de suas instituições. Ele descobriu aí que o
exercício da psiquiatria não tinha como prin-
cípio decisivo a compreensão da loucura,
mas a dominação do louco a partir de sua
reclusão em manicômios. Esse passo determinava uma separação entre loucos e normais, saudá-
veis e patológicos etc., excluindo todos aqueles impossibilitados de trabalhar e criando, portanto,
os dispositivos disciplinares, que estendiam a sua dominação para o âmbito da escola, da família,
das instituições militares, oficinas etc., com o intuito de tornar os corpos dóceis e submissos e
conformar uma sociedade disciplinar a partir do que ele denominou de microfísica do poder. Isto,
de tal maneira, que correspondesse às novas necessidades de produção instauradas no cerne da
sociedade capitalista.

O que é ser contemporâneo?


Temos aí, portanto, um quadro, um panorama, que, como toda fotografia, possui um cen-
tro irradiador. Esse centro, conforme anteriormente expusemos, é o nada e o abismo do
sem fundo expostos pela boca de um tresloucado. Desde a determinação deste nada pre-
cisamos ouvir a pergunta de Agamben: O que é ser contemporâneo? Esta pergunta, apa-
rentemente inofensiva, nos lança para dentro de nossa época. Ela é a exigência de uma
correspondência com o que se desdobra na história.

80 • capítulo 4
CURIOSIDADE NOTA
16
No interior desta pergunta encontra-se também Hannah Arendt. Em seu prefácio ao  ARENDT, Hannah. Entre o passa-
livro Entre o passado e o futuro, a pensadora cita, nessa ordem, René Char, Tocque- do e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
ville e Kafka. 2011. p. 28.
17
 ARENDT, Hannah. Entre o passa-
do e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
O que Hannah Arendt tem em mente? 2011. p. 32.
18
Destacar uma fratura presente em todo confronto com a tradição, em   Ibidem, p. 34-35.
19
uma exigência de transformação, criação, elaboração de uma nova épo-   Ibidem, p. 33.
ca através do confronto entre as forças passadas, que propriamente não
passaram, e a forças futuras, que já se fazem presentes.

Segundo René Char, “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testa-
mento”16. Tocqueville, por sua vez, diz que “desde que o passado deixou de
lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas.”17 O
que fazer, segundo Hannah Arendt, quando, pensando com os existencia-
listas e sua Filosofia da ação — lembramos aqui de Sartre e da resistência
francesa criada a partir da invasão alemã na Segunda Guerra Mundial —, “a
situação tornou-se desesperadora” ao se mostrar “que as velhas ques-
tões metafísicas eram desprovidas de sentido”18?

Essa interrogação tem o poder de nos arrastar para a fratura anteriormente


apontada. É nela que nós, contemporâneos, nos encontramos. Reproduzi-
mos agora a passagem de Kafka apresentada pela pensadora no mesmo
texto, de modo que possamos melhor compreender a relação do contempo-
râneo com essa fratura no tempo:

“Ele tem dois adversários. O primeiro acossa-o por trás, da origem. O se-
gundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o
primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para fren-
te, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma
vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois
não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e que sabe
realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião,
num momento imprevisto — e isso exigiria uma noite mais escura do que
jamais o foi nenhuma noite —, saltar fora da linha de combate e ser alçado,
por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários
que lutam entre si.”19

capítulo 4 • 81
NOTA Ora, o que este texto de Kafka nos diz?

20 
Para título de ilustração, no mesmo Ele fala do homem enquanto um "ele" lançado entre as forças do passado,
texto Hannah Arendt, na página 37, que não passaram20, e que o jogam para frente, e as forças futuras, que já se
traz-nos mais uma belíssima passagem, fazem presentes e o empurram para trás.
agora de Faulkner, que diz o seguinte: “o Neste texto, dada a pressão das forças, ele, em uma noite escura, em
passado nunca está morto, ele nem mes- uma profunda solidão, transcenderia, saltaria para cima e para além do
mo é passado”. campo de luta, colocando-se como juiz sobre os adversários que lutam
21
 ARENDT, Hannah. Entre o passa- entre si. No entanto, Hannah Arendt fala que, para o contemporâneo,
do e o futuro. São Paulo: Perspectiva, muito mais do que saltar e ficar afastado, fora da situação, seria neces-
2011. p. 41. sário que ele correspondesse a uma dinâmica cujo resultado se revelaria
22
  BENJAMIN, Walter. Sobre o concei- como a resultante em diagonal dessas duas forças e que, permanecer aí,
to de história. In: Obras escolhidas. v.1. no seu âmbito, significa propriamente estar na esteira do pensamento.
São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 223.
23
 BENJAMIN, Walter. Experiência e
pobreza. In: Obras escolhidas. v.1. São O tempo, é claro, não se revela aqui como um contínuo de passado, presente e
Paulo: Brasiliense, 1996, p. 115. futuro. O presente é propriamente essa fratura que nós expusemos, uma quebra
entre o passado e o futuro, e que possibilita um ingresso na dinâmica do pensar.

Permanecer no seio dessa fratura, entre o passado e o futuro, é, se-


gundo Hannah Arendt, toda possibilidade “de adquirir experiência em
como pensar.”21  É o que ela intentará fazer com os oito textos inscritos
em seu Entre o passado e o futuro.
Diferentemente de Hannah Arendt, Walter Benjamin também refle-
te sobre a história. Embora determinado pelo materialismo histórico de
Marx, o pensador dele se apropria de maneira única para melhor pensar
a sua época. Em seu texto Sobre o conceito de história, meditando acerca
do passado, chega a se perguntar se “não existem, nas vozes que escuta-
mos, ecos de vozes que emudeceram” para, mais adiante, afirmar que
“se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações pre-
cedentes e a nossa.”22

•  Encontro de gerações
Sobre esse encontro de gerações e o modo como ele pode acontecer, ob-
servamos que uma de suas resultantes é o que ele chama de experiência da
pobreza. Não temos mais hoje o recurso de provérbios, de estórias contadas,
que passam de boca em boca, e servem para educar e formar os espíritos dos
mais jovens. O sintoma de tal emudecimento é constatado após o silêncio
dos soldados quando de seu retorno da guerra. Eles retornaram “mais pobres
de experiências comunicáveis, e não mais ricos”. Segundo Benjamin, “nunca
houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência es-
tratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a
experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes.”23

82 • capítulo 4
NOTA
Encontramo-nos, portanto, no nosso ponto de partida, a saber, no seio de
24
uma época de profundas agitações, em que seus acontecimentos tendem  Ibidem.
25
a afetar todo o globo, pois rapidamente se estendem do centro à periferia   Sobre isso, ver Sobre a historicidade
de uma maneira avassaladora e com uma velocidade impressionante. “Uma da presença e a história do mundo, pa-
geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se aban- rágrafo 75 de Ser e tempo.
donada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e
em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruido-
ras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.”24

A época da técnica, embora não tenha se iniciado nesse instante da


história, já vinha sendo preparada há bastante tempo. Ela é o que se dis-
põe ao homem exigindo dele, de maneira inadvertida, uma correspon-
dência de sentido. Se, por um lado, Walter Benjamin, afirma que “com
esse monstruoso desenvolvimento da técnica uma nova forma de misé-
ria surgiu, sobrepondo-se ao homem” , por outro, na esteira de Nietzs-
che, Heidegger procura pensá-la desde o seu sentido orientador que ele
chama de Gestell, armação, composição.

ATENÇÃO
O problema da essência da técnica é que ela torna cada vez mais difícil uma abertu-
ra para o mais originário. O mais originário é aqui o lugar que nos permite uma apro-
priação de seu sentido, uma tomada de decisão com relação ao próprio destino de
ser. O que se coloca em questão é, desde Ser e tempo, a possibilidade de ir ao en-
contro de nossa historicidade, isto é, na abertura doadora de possibilidades, espaço
em que a própria história se constitui. Heidegger a denomina de “historicidade pró-
pria da presença”, do Dasein, do modo de ser do homem tomado como ser-no-mun-
do, unidade anterior a qualquer divisão de sujeito e objeto, em que o homem já se
encontra lançado em um mundo no âmbito de ter que assumir o seu próprio ser.25

Mais uma vez, o que está em jogo é poder receber o que a tradição
nos lega como possibilidades, ou seja, aquilo que nos foi transmitido
como herança.

Reflexões de Adorno e Hannah Arendt


É procurando pensar naquilo que nos foi herdado, que Adorno e Han-
nah Arendt deslocam suas meditações em torno da Educação.

capítulo 4 • 83
NOTA
26
ADORNO, Theodor W. Educação Encontramos em um pequeno livro de nome
após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor Educação e emancipação uma série de textos e
W. Educação e emancipação. São Pau- entrevistas de Adorno que se movem em torno
lo: Paz e Terra, 2010. p. 119. do que é necessário à educação após a época
27
Ibidem, p. 121. de Auschwitz. Segundo ele, “ela foi a barbárie
28
ADORNO, Theodor W. A educação contra a qual se dirige toda a educação.”26
contra a barbárie. In: Educação e eman-
cipação. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
p. 155. ATENÇÃO
O que ele pretende é, influenciado principalmente pela Psicanálise de Freud,
ir ao encontro das condições que geraram tal regressão, de maneira a im-
pedir que Auschwitz se repita. Diante disso, “a educação tem sentido unica-
mente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica.”27

Mas, o que Adorno entende por barbárie?

“Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização
do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasa-
das de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização
— e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a
formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas tam-
bém por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio
primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui
para aumentar ainda mais o perigo que toda esta civilização venha a explo-
dir, aliás, uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente
impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por
esta prioridade”.28

84 • capítulo 4
Ora, o que essa passagem de texto de Adorno nos revela? NOTA
29
Que a necessidade de superar a barbárie é condição fundamental para  ADORNO, Theodor W. Educação e
a sobrevivência do homem. No entanto, para que isto se torne possível, emancipação. In: ADORNO, Theodor W.
segundo o filósofo, é decisivo que os homens saiam de seu estado de me- Educação e emancipação. São Paulo:
noridade. Influenciado por Kant, mais precisamente por seu ensaio Res- Paz e Terra, 2010. p. 169.
posta à pergunta: o que é esclarecimento?, Adorno procura meditar em tor-
no daquilo que Kant pensou em sua época e que nos transmitiu com as
seguintes palavras:

“Esclarecimento é a saída dos homens de sua autoincupável menoridade.”29

O que está em jogo aí é uma educação que vise a emancipação. Esta,


por sua vez, só é atingida quando do esclarecimento, isto é, quando os
homens puderem sair daquilo que Kant chama de menoridade. Trata-se
de todo um caminho que precisa ser percorrido de modo que os homens
possam entrar em um processo de formação, em direção ao que poderí-
amos chamar de transformação do espírito, aquilo que Platão certa vez
denominou de metanoia. Tal processo, segundo Adorno, precisaria ter
seu início já na primeira infância, no momento em que a criança está
em fase de constituição de seu caráter.

ATENÇÃO
É importante ainda que se ressalte que a pergunta de Kant sobre se “vivemos atu-
almente em uma época esclarecida” e por ele mesmo respondida com um sonoro
“não”, “mas certamente em uma época de esclarecimento”, Adorno a interpreta não
como algo estático, mas dinâmico, como um processo e, talvez de uma maneira um
tanto quanto negativa quando ela é transposta para a nossa época organizada por
um controle planificado pela indústria cultural, tornando esse mesmo processo qua-
se que inviável, dificultando a emancipação nesta organização de mundo. É como se
o pensador substituísse a pergunta de Kant por outra, a saber: Será que no atual
estágio da técnica e da planificação podemos ainda dizer que vivemos em
uma época de esclarecimento?

O que pensar de tal questão?

Ela põe em risco a própria humanidade do homem, o seu ser compre-


endido como possibilidade, como abertura para possibilidades. Se a
tal pergunta Adorno pudesse responder com um “não”, conforme Kant
respondeu à outra, então tudo já estaria irremediavelmente perdido e o
homem teria se transformado em uma coisa.

capítulo 4 • 85
NOTA Entretanto, a pergunta talvez nos jogue na possibilidade de pensarmos
na contramão desse processo de coisificação, de reificação, lançando-
30 
ARENDT, Hannah. A crise na educa- nos, de maneira ainda mais contundente, ao encontro do que Adorno
ção. In: ARENDT, Hannah. Entre o pas- chamou de uma educação para a contradição e para a resistência.
sado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
2011. p. 222-223.
31
  Ibidem, p. 235. Já no seu texto Crise na educação,
Hannah Arendt nos faz meditar em
torno de uma passagem que diz: “A
essência da educação é a natalidade,
o fato de que seres nascem para o
mundo”. Essa passagem nos leva a
crer que o problema da educação é
muito mais enigmático do que a ques-
tão de saber “por que Joãozinho não
sabe ler.”30 Está em discussão o fato
de que as crianças estão em proces-
so contínuo de vir a ser. A criança
“possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe
é estranho e se encontra em processo de formação; é um ser humano e é
um ser humano em formação.”31

Não está em questão apenas a preservação da vida, como ocorre, por


exemplo, com os animais, mas, muito além, o fato de que as crianças
estão introduzidas em um mundo, isto é, no seio de artificialismos hu-
manos construídos pelo trabalho.

ATENÇÃO
Segundo Hannah Arendt, não nascemos apenas para a vida, mas para o que foi
constituído pelo trabalho de muitas gerações e que nos precede, sendo muito maior
do que nós, pois compartilha tanto com o passado como com o futuro.

A crise exposta no título de seu texto reflete, ao contrário do que


possa parecer, um momento ótimo, isto é, um momento propício para
que pensemos a educação. Não se trata aqui de crise da educação, mas
pensar a crise, isto é, a contemporaneidade destituída de autoridade, de
princípios normativos oriundos da tradição, na educação. Isso significa,
em outros termos, pensar o homem sempre como fazendo parte do iní-
cio, do princípio gerador e estruturador de mundo.
É somente por isso que ela diz que a educação é conservadora, no sen-
tido que é através dela que se pode conservar o legado cultural. Ela precisa
ter um compromisso com o mundo, de maneira que possa mantê-lo a par-
tir de uma relação de pertencimento entre nós e o próprio mundo.

86 • capítulo 4
NOTA
Portanto, compreender que a essência da educação é a natalidade ligada ao
32
“fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo cons-   ARENDT, Hannah. A crise na educa-
tantemente renovado mediante o nascimento. A educação é o ponto em que ção. In: ARENDT, Hannah. Entre o pas-
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabili- sado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
dade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse 2011. p. 247.
a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde
decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de
nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar
de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevis-
ta para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de
renovar um mundo comum.”32

Conclusão
O nosso propósito foi, desde o início, traçar um panorama disso que
chamamos de o contemporâneo. Nesse panorama, que é apenas um en-
tre tantos outros que se poderia constituir, ficou patente a dificuldade
que o homem de nossa época possui no sentido de procurar compreen-
dê-la, não só por estar tão próximo a ela e, por isso, não conseguir en-
xergá-la, como também pelo fato de ter que pensar sem corrimão, caso
queiramos usar emprestado uma expressão de Hannah Arendt. Pensar
sem corrimão significa poder lançar-se no pensamento sem nenhuma
sustentação, nenhuma proteção, nenhum alicerce previamente estabe-
lecido, nenhum fundamento.

Esse é o caso, conforme exposto anteriormente, de nossa época histórica


tão bem pressentida pelos modernistas do início do século XX. Eles não
sabiam mais qual era o sentido da arte e, justamente por isso, tiveram a ne-
cessidade de recolocar a pergunta sobre o seu significado em um momento
que não conseguiam mais repetir o que a tradição havia anteriormente cria-
do. Tratava-se agora de se desprender do que fora produzido até então e
lançar-se na possibilidade de novas criações.

COMENTÁRIO
Um empenho semelhante é o que podemos também perceber em Agamben,
quando este procurou pensar no que seria o contemporâneo. Só é contem-
porâneo quem está e não está em sua época, isto é, aquele que pode saltar
para cima e para além dela ou aquele que, tal como Hannah Arendt nos
mostrou, se dispõe na fratura do presente e, portanto, mantém-se exposto
à possibilidade de meditação. Por isso, o próprio Agamben pode dizer que:

capítulo 4 • 87
NOTA COMENTÁRIO
33 
AGAMBEN, Giorgio. O que é o con- “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâ-
temporâneo? e outros ensaios. Chape- neo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado
có: Editora Argos, 2010. p. 58-59. às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente
por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele
é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.”33

Essa, portanto, é a nossa sina, caso queiramos ser contemporâneos


de nós mesmos: tomar distâncias de maneira a estabelecer uma relação
com o próprio tempo. Talvez, agindo assim, poderemos, em uma hora
madura, encaminharmo-nos em direção às diversas possibilidades de
ser e de não ser herdadas por um passado que ainda não passou e que
também já faz parte de um futuro pressentido por todos aqueles que
não coincidem plenamente com a sua própria época.

88 • capítulo 4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2010.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
ANDRADE. Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2014.
_________. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.
HURSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
_________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_________. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
REALE, Giovanni ; ANTISERI, Dario. História da Filosofia – De Nietzsche à escola de Frankfurt. São Paulo:
Paulus, 2003.
_________. História da Filosofia – De Freud à atualidade. São Paulo: Paulus, 2003.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2012.

IMAGENS DO CAPÍTULO
As imagens deste capítulo estão em Domínio Público e/ou foram ilustradas por Victor Maia.

capítulo 4 • 89
Filosofia da

5 Educação como
experiência
estética

Angela Santi
5 Filosofia da Educação como
experiência estética

CONCEITO Introdução
Estética Para falarmos em Filosofia da Educação precisamos pensar em novas
A palavra estética vem do grego aesthe- maneiras de concebermos nossa relação com a realidade.
sis, e se refere à sensibilidade e a um
conhecimento sensorial. ATENÇÃO

A estética é uma área da Filosofia que foi historicamente marginalizada, por se
referir a uma dimensão pouco considerada no universo educacional: a esfera do
sentimento. O sentimento, as sensações, na história da Filosofia e do pensamen-
to em geral, foram alijados dos processos de ensino, dentro e fora das escolas,
mas, resgatados se mostram potentes na construção de uma nova relação do
homem com o mundo e, por consequência, com a própria educação. Para pensar
tais questões, iremos trabalhar com a estética, tal como ela foi concebida por
Kant, importante pensador iluminista, além de referências da arte e de questões
ligadas à educação contemporânea.

A dimensão estética, na Filosofia, foi tradicionalmente recalcada,


compreendida como uma esfera inferior, ligada aos sentidos, fonte de
ilusão e erro.

Resumo do panorama histórico


No Renascimento, a estética era associada a tratados de arte, que preten-
diam ensinar as regras para a realização de uma boa pintura ou escultura.
A partir de Kant, passa-se à observação de uma dimensão subjetiva, a do
sentimento, capaz de se debruçar sobre aquilo que constitui os homens atra-
vés de uma relação desinteressada com o mundo. Através de tal dimensão,
é possível pensar em uma educação que possa levar em consideração as
sensações, o sentimento e o corpo. Considerando que, em geral, a educação
está associada ao conhecimento e que este requisita um sujeito racional, em
detrimento de um sujeito total, a estética pode ser, para nós, um importante
canal para pensarmos uma dimensão ampliada da experiência do homem
com o mundo — ampliando também sua relação como ser de conhecimento,
cultura e educação.

92 • capítulo 5
Resumo do panorama atual
Em geral, ainda hoje, as escolas entendem que sua tarefa está ligada ao cumprimento dos pro-
gramas e à transmissão de conteúdos quando, na verdade, importante seria redescobrir o sentido
do educar atualmente, em um mundo onde jovens têm como sua primeira escola, a televisão, a
internet, os jogos e as redes sociais. Qual o sentido de educarmos nos dias atuais? Ou, de outra
forma: “que tipos de corpos subjetividades gostaríamos de forjar hoje em dia, pensando tanto no
presente quanto no futuro de nossa sociedade?” (SIBILIA, 2012, p. 11). Nossa convicção é a de
que a recuperação de uma experiência estética contribui para que possamos pensar uma educa-
ção significativa adequada ao século XXI.
A redução do ensino à dimensão cognitiva, a da instrução, faz com que a escola atualmente seja
considerada irrelevante e desinteressante para os jovens estudantes, ávidos por novidade, velo-
cidade e intensidade. Para dar conta desses impasses, pretendemos trabalhar com a estética, tal
como ela foi concebida por Kant, no século XVIII, percebendo nela o potencial para uma ressigni-
ficação da experiência através de uma experiência em geral, pensando-a em um campo ampliado,
visando construir alternativas à contemporaneidade.

Um pouco do percurso e da história da Estética


Nos primórdios da Filosofia, em Platão, toda a esfera dos sentidos, das sensações, é iden-
tificada como uma esfera inferior, na qual não pode haver senão ilusão e engano. No sis-
tema platônico, as sensações estão situadas em um nível inferior, na ponta contrária a do
conhecimento verdadeiro. Platão desconfia dos sentidos e, principalmente, desconfia dos
simulacros, das imagens que copiam as coisas, que são capazes de dissimular a verdade e
enganar os jovens. Na antiguidade grega, as imagens e os objetos sensíveis são vistos como
um problema e são fonte de desconfiança.

No Renascimento, a estética aparece, como vimos, ligadas a tratados de arte onde se apreende
as regras para a construção da obra de arte. É no século XVIII, com o filósofo alemão Alexander
Baumgarten (1714-1762), que a Estética irá ganhar independência (não significando mais um
conhecimento de tipo inferior), tornando-se uma disciplina, uma dimensão em que se estudam as
obras de arte como criação da sensibilidade, tendo por finalidade o belo. Nesse período, com Kant,
a estética deixa de se referir à arte para ser ligada aos sujeitos, aos efeitos dos objetos sobre os
homens, com a subjetivação do belo, constituindo a esfera do que o filósofo chama de gosto.

ATENÇÃO
O processo de subjetivação da experiência estética se estruturou, então, em torno da noção de
gosto, referindo-se ao sentimento, designando a especificidade de uma experiência singular situ-
ada entre a sensação e o entendimento. O estético passa a dizer respeito, dessa forma, ao modo
como o sujeito é afetado, ao sentimento ligado ao prazer ou ao desprazer.

capítulo 5 • 93
A estética em Kant
Normalmente falamos que gosto não se discute! Mas por que não discutiríamos o gosto?
Em geral, ele está associado a preferências pessoais, eleições particulares que não possuem
uma justificativa razoável pela qual se possa argumentar a favor de algo, em detrimento do
resto. Assim é nossa relação com um time de futebol ou as nossas preferências, por exem-
plo, sobre um alimento ou uma cor, um lugar ou um esporte. Apesar de sentir claramente
afinidade com algumas coisas e repulsa por outras, muitas vezes não sabemos sequer o
motivo e não podemos, então, defender nosso gosto, apenas apresentá-lo.

A essa esfera, Kant dará o nome, não de gosto, mas


de agradável, que se “funda sobre um sentimento pri-
vado”, “limitando-se, dessa forma simplesmente à sua
pessoa.” (KANT, 1993, p.56)

A partir de Kant, podemos inserir a questão da estética entendendo-a como uma forma
de apreensão do mundo. Por um lado, temos a dimensão do agradável, por outro, temos
a do conhecimento, da moral e da estética. No campo da moral, temos uma dimensão na
qual os sujeitos se exercitam como seres de uma comunidade, reconhecendo que parti-
cipam de uma coletividade que deve ser reconhecida através, inclusive, da educação. Na
dimensão do conhecimento, entramos em contato com o mundo para dar a ele uma inteli-
gibilidade capaz de organizar as nossas percepções imediatas e fugazes. Compreendemos
o modo de funcionamento da natureza, nomeando-a, classificando-a, construindo leis que
deem conta de certos fenômenos, permitindo que possamos identificá-los e antecipá-los.
Assim, Kant esclarece a diferença entre juízos de conhecimento e de gosto:

“O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim
estético (...) apreender pela sua faculdade de conhecimento (...) um edifício regular e conforme a
fins é algo totalmente diverso do que ser consciente desta representação com a sensação de com-
placência. Aqui a representação é referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao seu sentimento
de vida, sob o nome de sentimentos de prazer ou desprazer (...).” (KANT, 1993, p. 48)

94 • capítulo 5
Já na esfera estética, o que temos é uma postura totalmente desligada de quaisquer pressu-
postos, livre e aberta para a experiência que se dá a cada vez. A experiência estética se apro-
xima muito daquela da criança, diante do mundo, construindo sentidos novos, inusitados,
libertos de qualquer determinação prévia, fruto do hábito ou das convenções. Na experiên-
cia estética, poderíamos experimentar as coisas como se fosse a primeira vez.

ATENÇÃO
O gosto, ou o juízo de gosto, como fala Kant, é aqui fruto do sentimento de prazer que se dá a partir da
relação direta dos sujeitos com o mundo, em uma experiência singular e única. Aqui não afirmamos nada
sobre as qualidades objetivas das coisas, como por exemplo, o “fato de a água ferver a 100°”, ou sobre
“o movimento dos corpos celestes”. No campo do estético, o julgamento é o resultado de um prazer que
advém do fato de não estarmos determinando nem pressupondo nada, mas deixando que as coisas, o mun-
do, a natureza, se apresentem de forma livre. O prazer que advém da possibilidade de exercitarmos novas
combinações, articulações e sentidos em relação às coisas, faz com que nos pronunciemos: isso é belo! A
beleza vem dessa liberdade e prazer de olhar para as coisas como se fosse a primeira vez. Como diz Kant
“entre todos os tipos de complacência, única e exclusivamente o do gosto pelo belo é uma complacência
desinteressada e livre.” (KANT, p. 55) A beleza, aqui, surge do acordo espontâneo entre homem e
mundo, a partir do sentimento que suscita.

A experiência estética, partindo do repertório de Kant, é inaugural. Podemos pensar em


outras formas de contato com o mundo, através do conhecimento, da religião, do uso e dos
hábitos cotidianos, da política e da vida em grupo.

Todas essas experiências possuem sua legitimidade e especificidade, mas a esfera estética é, de
certa forma, anterior e funda todas as outras.

COMENTÁRIO
De acordo com o filósofo, aquilo que caracteriza o estético representaria condições básicas para
que toda e qualquer experiência fosse possível. Na dimensão estética, o homem pode exercitar
uma libertação de sentidos e usos predefinidos, cristalizados, sobre as coisas, permitindo que ele
exercite uma postura de jogo, de livre jogo com os objetos, liberando-os para que eles possam se
apresentar de forma original, inusitada, projetando novas combinações.

Em geral, em nosso dia a dia, tendemos a ter uma relação mecanizada com a realidade,
agindo e reagindo de forma mecânica, impensada, desligada. Também no campo da edu-
cação, reproduzimos práticas já convencionadas, sem refletirmos sobre o sentido delas,
o que pode significar, muitas vezes, uma distorção do próprio papel da educação. Dessa
forma, o campo estético pretende fornecer novas possibilidades de experimentação do
mundo, retirando-nos de ações meramente automáticas e irrefletidas. Então, tendemos a
considerar naturais uma série de atitudes, valores e práticas sociais que só se justificam
pela força do hábito, não sendo objeto de uma reflexão por nossa parte.

capítulo 5 • 95
Nas nossas práticas cotidianas, consideramos verdadeiras certas concepções de mundo, certas
ações que pressupõem valor de verdade. No entanto, várias de nossas atitudes cotidianas são
fruto de convenções, verdades cristalizadas que, muitas vezes, não vigoram mais, e preconceitos
enraizados em nossas crenças mais cotidianas.

A arte oferece uma condição privilegiada para que a dimensão irredutível da singula-
ridade, o valor ao aqui e ao agora, possa se efetivar. Uma das características da dimensão
estética, e que a arte permite exercitar de forma intensa, é a contemplação. A partir de Kant,
podemos pensar que através da contemplação, o homem não impõe significados às coisas,
dá voz ao mundo, que lhe expõe mutabilidade e renovação: “a gente quer submeter o obje-
to a seus próprios olhos.” (KANT, 1993, p. 25). Por não pressupor ou determinar nada, ela
suscita a saída de uma espécie de sonolência que automatiza o sujeito no ato de ajuizar o
mundo. É um olhar incomum, descondicionado, que permite ao objeto se mostrar em sua
totalidade inesgotável.

É importante perceber, no pensamento kantiano, o valor dado à experiência singular, no sentido


de que o autor incorpora a possibilidade de que a cada vez uma nova configuração do real possa
surgir. Uma forma de compreendermos esse processo, que envolve o olhar estético sobre o mun-
do, é através de uma cena do filme Cortina de Fumaça, de W. Wang, em que Auggie, personagem
que possui o hobby de fotografar todos os dias a calçada da rua onde tem sua tabacaria, afirma ao
amigo, perplexo com suas fotos todas iguais:

AUGGIE — São todas iguais, mas cada uma é diferente de todas as outras. Tem as manhãs enso-
laradas e as sombrias. Tem a luz do verão e a luz do outono. Tem os dias úteis e os fins de semana.
Tem pessoas de casaco e galocha, tem pessoas de short e camiseta. Às vezes, as mesmas pessoas,
às vezes diferentes. E, às vezes, as diferentes se tornam as mesmas, e as mesmas desaparecem. A
terra gira ao redor do sol, e a cada dia a luz do sol atinge a terra de um ângulo diferente.

COMENTÁRIO
É nesse sentido, e a partir da dinâmica apresentada, que reconhecemos a possibilidade de a edu-
cação se reconstruir, percebendo aquilo que a cada dia, é diferente, investindo na articulação disso
que se compõe de modo singular, desenvolvendo nos estudantes a capacidade de reconhecer e
estimular o novo, a percepção do diferente, naquilo que parece sempre igual, construindo nas suas
relações diárias com alunos, programas, instituições, pontos de fuga, capazes de apontar para o
inusitado e para o surpreendente.

96 • capítulo 5
A Estética e a arte NOTA
A experiência estética nos ajuda a quebrar o automatismo e instaurar
1
uma nova forma de lidar com a realidade, que estimula um olhar novo,  “Sinto-me nascido a cada momento
reconhecendo a “eterna novidade do mundo.”1 para a eterna novidade do mundo (...) / O
Mundo não se fez para pensarmos nele /
(Pensar é estar doente dos olhos) / Mas
para olharmos para ele e estarmos de
acordo (...)”, O Guardador de Rebanhos.
Monet (foto), pintor impressionista, nos aju- Os poemas de Fernando Pessoa (aqui
da a perceber tal mudança de atitude, à com o pseudônimo de Alberto Caieiro)
medida que procura captar o instante, irre- contribuem para exercitarmos uma leitu-
dutível, através da atenção voltada para as ra de mundo peculiar, propriamente esté-
diferenças que a luz imprime na natureza a tica. Disponível em: http://www.fpessoa.
cada momento. com.ar/poesias.asp?Poesia=173 Aces-
so em 28 mar. 2014.

EXEMPLO
Como podemos ver abaixo, apesar de reconhecermos as figuras, elas não
aparecem da forma como estamos acostumados a ver — as figuras não
são precisas, elas parecem estar borradas, incompletas. A sensação de es-
tranheza ou de incômodo que a pintura pode criar é parte importante de
uma atitude estética, uma atitude que nos faz prestar atenção, produzir uma
interrogação e um posicionamento sobre o que não se encaixa em nossos
padrões perceptivos e culturais.

E. Monet, Impressão, Nascer do Sol, 1872.

capítulo 5 • 97
A arte nos oferece um universo privilegiado para pensarmos a experiência estética (e a re-
alizarmos), com relação à educação, ela pode atuar como uma forma potente de quebra
de paradigmas, de desconstrução de mecanismos viciados de leitura e de interpretação do
mundo, viabilizando um método de trabalho, em sala, que permite entender a educação
também como desconstrução de preconceitos.
Assim, outra tradição que contribui para um olhar renovado sobre a realidade é o Dadaísmo.

O dadaísmo, a partir de uma experiência de contato com o irracional da ação humana, em função
da Primeira Guerra Mundial expõe o absurdo e o sem sentido como matéria de criação, em obras
que desmontam os sistemas tradicionais de representação da realidade, sendo profundamente
críticas e irônicas.

EXEMPLO
Podemos visualizar tal radicalidade e ironia em Receita para fazer um poema dadaísta, de Tristan Tzara:

“Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do
público.” (TZARA, 1986, p. 132)

A ideia de fazer uma receita para construir poemas é uma provocação que tanto preten-
de denunciar a falta de sentido que envolve certa maneira de compreender o que deva ser a
poesia e a arte, como também demonstrar que se podem construir sentidos (aí, sim, consis-
tentes) a partir da desconstrução daqueles prontos, pré-fabricados. Da mesma forma que
tal processo é realizado pelos dadaístas com o texto, também ocorre nas artes visuais, atra-
vés das colagens e fotomontagens.

Nelas, temos o mesmo processo de ironia, desmontagem de conteúdos e realidades preesta-


belecidas (que geralmente expressavam posições de poder), fazendo com que a fotomontagem
dadaísta, análoga àquelas dos jornais da época, permitisse a concomitância de ângulos e pontos
de vista sobre os fatos; ao mesmo tempo em que evidenciasse o caráter montado, construído, não
só das suas colagens, mas de todo e qualquer material jornalístico e dos fatos dos quais tal material
derivava.

98 • capítulo 5
EXEMPLO

Raoul Hausmann, ABCD, c.1920, Colagem, 40,6x28,6 cm, Paris: Musée d’Art Moderne, Centre
Pompidou

Assim, todas as vanguardas artísticas do início do século XX, motivadas por uma série
de transformações históricas, econômicas e culturais, irão permitir uma reflexão sensível,
detonada por imagens que afirmam o sensorial, consentindo uma nova compreensão dos
fenômenos humanos.

Podemos experimentar tais questões exemplarmente através das obras de René Magritte, que
trabalha com paradoxos, apresentados na própria imagem e na relação entre imagem e texto (no
caso, o título).

EXEMPLO

Neste trabalho, assim como em outros citados, a


incompreensão, a provocação, é o que vigora,
permitindo que reflitamos, pelo incômodo cau-
sado, sobre o sentido do que nos é apresentado

René Magritte, O Sedutor.

capítulo 5 • 99
A reflexão sobre a estética, através da arte, coloca a Filosofia em bases sensíveis, de valori-
zação da esfera das sensações, permitindo uma experimentação concreta (visual, tátil) de
outras formas de conceber a realidade, de construí-la. Uma Filosofia da Educação em bases
estéticas trabalha considerando esses elementos.

ATENÇÃO
Mas, Kant não analisa as obras de arte, especialmente, ele trabalha essa dimensão da experiência do
homem com o mundo que pode ser compreendida como estética, como básica e fundamental para toda
e qualquer experiência, como uma condição que está por trás da pretensão de acordo com aquilo que o
homem entende ser a realidade e a natureza e o que estas são em si. Dessa forma, iremos apresentar
outras características da experiência estética a seguir, que poderão ajudar a pensar a educação em termos
ampliados.

Estética, tempo, jogo e sensus comunnis


Temos pensado e exercitado uma educação restritiva, que trabalha basicamente com a
identificação entre educação e (transmissão de) conhecimento.
Na verdade, precisaríamos reconstruir, como aponta Weber, a experiência como asso-
ciada às esferas; ética, estética e cognitiva.

A estética, por suas características, permite reunir essas esferas, concebendo um homem total.
Como veremos a postura de jogo, ligada ao desinteresse, permite uma abertura para a dimensão
ética, através do diálogo e da argumentação, e também para a dimensão do conhecimento, lhe
ressignificando.

Uma experimentação estética do mundo pelos homens, na dimensão do gosto e do


belo, como falamos anteriormente, passa pela contemplação desinteressada dele, que
coloca tanto sua utilidade quanto sua definição em suspenso. Para Kant, quando con-
sideramos algo belo (juízo de gosto), o julgamos em total liberdade, sem que nada ou
ninguém nos obrigue.

EXEMPLO
Quando consideramos belo um pôr do sol ou admiramos um céu estrelado fazemos isso de forma espon-
tânea, sem nenhum tipo de motivação externa à situação.

Kant entende que essa marca do estético permite pensar em uma pretensão de univer-
salidade já que, apesar de julgarmos de forma particular e em uma situação específica, jul-
gamos sem interesse, podendo, portanto, supor que toda e qualquer pessoa, nas mesmas
condições, poderia chegar à mesma avaliação.

100 • capítulo 5
Tal dinâmica da experiência estética abre espaço para a dimensão ética, REFLEXÃO
mostrando a total interdependência dessas esferas. O homem, em liber-
dade, desfaz seus juízos preconcebidos, torna-se disponível, entendendo Finalidade sem fim
aquilo que se apresenta a ele como algo singular e, então, sobre ele se pro- Essa atividade sem finalidade é algo
nuncia. Se seu julgamento se dá de forma livre e despojada, Kant entende bastante potente para pensarmos a
que a esfera estética pode estimular nos homens a sua sociabilidade. educação e seu sentido. Como produzir
interesse e mobilizar a atenção dos indi-
ATENÇÃO víduos? A brincadeira, o lúdico, é aqui-
Essa situação evidenciaria, para ele, um sentido comunitário (sensus communis) lo que, apesar de não ser necessário,
da condição humana individual, que estimula que os homens dialoguem e argumen- obrigatório, mobiliza (e constitui) nossa
tem a favor de seus juízos, sem que, no entanto, os imponham porque pode consi- subjetividade, permitindo, justamente
derar tais juízos: pelo seu caráter não utilitário, um espa-
ço de organização dessa subjetividade,
de suas experiências, abrindo-a para o
“Fundado(s) naquilo que ele também pode pressupor em todo o outro (...) ele novo, permitindo a construção, por con-
tem de crer que possui razão para pretender de qualquer um uma compla- sequência, de novos sentidos. Em uma
cência semelhante.” (KANT, 1993, p. 57). sociedade funcional e utilitária como a
nossa, a dimensão estética é necessá-
ria para que novas concepções de co-
A dimensão estética evidenciaria um campo onde o homem se dispõe a discutir nhecimento, sociedade e mundo sejam
seu posicionamento sobre o mundo, entendendo que ele não parte nem de juízos possíveis.
objetivos, nem de uma posição meramente privada, devendo, então, buscar acordos
e consensos, o que faz com que os sujeitos, como seres autônomos, se exercitem na
sua relação com os outros, potencializando a dimensão ética.

Junto à questão ética, a dimensão estética, por suas características,


se aproxima da experiência lúdica do jogo e do brincar, à medida que
nela trata-se de uma finalidade sem fim. No estético, a experiência é de
alargamento do tempo e da intensidade, que se dá por ocasião do obje-
to. Nessa experiência, não existe um objetivo externo que nos mantenha
presos ali, estendemos nossa presença nela pelo prazer que ela nos pro-
porciona, o que Kant chama de finalidade sem fim (que se aproximaria
da postura das crianças ou a dos apaixonados).
Por fim, temos a relação com o tempo. Na experiência estética, a rela-
ção com o tempo se transforma totalmente, ela é uma relação intensiva,
qualitativa. Nela, há uma suspensão do tempo no tempo, uma suspensão
do tempo quantitativo, linear e vazio, por um tempo forte, significativo:

“Dessa experiência advém também de uma nova relação (não repressiva)


com o tempo. Essa duração abole o tempo no tempo, retendo-o pela sua
intensidade. É como se, se paralisasse o tempo ordinário, numa investida
sobre um tempo vertical.” (SANTI)

capítulo 5 • 101
Tal ponto é interessante porque indica que uma experiência significativa rompe com uma re-
lação repressiva; o tempo linear, cronológico, que exige uma relação automática e homogênea
dos homens com o mundo. Nesse sentido, o movimento surrealista, valorizando a dimensão
do sonho como uma dimensão válida para pensarmos outra ordem, alternativa à racional, nos
ajuda a pensar em outras possibilidades de construirmos regimes de tempo e vida.

“Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem en-


tendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos
lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de
problemas secundários. O racionalismo absoluto que
continua em moda não permite considerar senão fatos
dependendo estreitamente de nossa experiência. Os
fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescen-
tar que à própria experiência foram impostos limites. Ela
Salvador Dali circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil
fazê-la sair. Ela se apoia, também ela, na utilidade ime-
diata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir
do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever
todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum.”
(Manifesto Surrealista, de André Breton, 1924)

A produção artística, estética, dos dadaístas e surrealistas, buscando, como já comenta-


mos, responder ao impacto dos acontecimentos ligados à Primeira Guerra Mundial cons-
truiu outros paradigmas através dos quais podemos legitimar novas referências para pen-
sarmos a educação.

ATENÇÃO
Podemos trabalhar experiências que incorporem outras formas de expressão e relação com o tempo, que
superem o tempo cronológico, que homogeneíza os processos, impedindo momentos qualitativos dos indi-
víduos com suas vivências. Pensamos que tal postura pode contribuir para que professores e profissionais
pensem possibilidades novas de atuação, objetivando modificar o quadro de crise pelo qual a educação,
nos moldes tradicionais, vem passando.

As características da experiência estética expostas remetem a uma atividade próxima ao


jogo, ao lúdico, em que a intensidade da experiência do tempo presente mantém aqueles
que dela participam interessados e envolvidos. Tal envolvimento deveria estar presente na
reflexão sobre estratégias e finalidades do ensino atual. Nesse sentido, a experiência esté-
tica guarda uma potência significativa que, no cotidiano, (que está associado a procedi-
mentos instrumentais e utilitários), normalmente não é requisitada ou viabilizada. Nela, o
automatismo é quebrado e uma relação efetiva e intensiva é criada.

102 • capítulo 5
CURIOSIDADE
Tal caracterização nos parece extremamente rica e pertinente para pensar-
mos a educação, a crise pela qual ela passa, permitindo incorporarmos nela Paulo Freire
as marcas próprias ao nosso tempo.

Estética e Educação para o século XXI


A tarefa da Filosofia da Educação é a de pensar radicalmente o sentido e
as potencialidades da educação no tempo presente.

A educação, tal como a conhecemos e a exercitamos, associa-se a um pro-


jeto moderno de sociedade, ligada ao Iluminismo e a certa concepção do
que é o homem. Hoje, as formas clássicas de educação estão em crise e
aquilo que as têm identificado deve ser repensado.

Para isso, pensamos em trabalhar pensadores da educação e artistas Paulo Freire criticou a educação de sua
que possuem propostas educacionais e estéticas que abrangem uma con- época, denunciando-a como educação
cepção de homem e mundo de forma mais ampla do que a dimensão cog- bancária (FREIRE, 1983, p. 68), na
nitiva, permitindo redimensionar a dinâmica escolar. qual o aluno é considerado passivo e o
professor é aquele que detém e trans-
COMENTÁRIO mite o conhecimento, em uma relação
Vamos, então, a partir daqui, propor uma constelação de autores e temas que, ima- mecânica e hierárquica. Para ele, o
ginamos, pode contribuir para pensarmos a educação em um campo ampliado, para procedimento educacional deve ser um
além do projeto moderno no qual o atual sistema educacional foi fundado. processo libertador, político, em que o
homem é sujeito e a educação é um
Paulo Freire e a educação para a liberdade processo de significação, de ressignifi-
Vivemos em uma época cujo traço cultural pode ser sintetizado na ques- cação do mundo. Seu foco não são os
tão da imagem e das tecnologias. Ao mesmo tempo, a escola volta-se conteúdos, mas o despertar para uma
fundamentalmente para o texto e para o letramento. nova forma de relação com a experiên-
cia vivida, o enraizamento da educação
na vida e na sua rede de relações.
Em Paulo Freire, encontramos um processo educativo voltado para a
emancipação dos homens (dos educandos), através de uma dinâmica na
qual, como ele diz, “a leitura da palavra é a leitura do mundo”. Freire, no
processo de alfabetização de adultos, promovia a consciência de que seus
educandos eram produtores de cultura e de valores, emponderando-os, fa-
zendo com eles se reconhecessem como autores, à medida que o material
vocabular usado para a alfabetização advinha deles próprios.

capítulo 5 • 103
Para Paulo Freire, a educação deve deixar de ser um meio de adestramento dos homens,
diante de uma sociedade do trabalho, que visa suprir demandas do Estado ou do mercado,
diante de um véu ideológico que oculta profundas diferenças e injustiças entre os homens.
Conhecer não é um ato passivo, é o ato pelo qual o homem conhece o mundo e a si, trans-
formando a ambos. Por isso, aprender é um processo de conhecimento da realidade con-
creta, é uma ação e uma atividade, que transforma a quem dela participa.

CURIOSIDADE
No processo de educação de adultos, Paulo Freire partia do universo vocabular e fonético presente no
dia a dia das pessoas para selecionar o material a ser trabalhado. A partir do que chamou de “círculos de
cultura”, “registravam-se literalmente as palavras dos entrevistados a propósito de questões referidas às
diversas esferas de suas experiências de vida no local: questões sobre experiências vividas na família, no
trabalho, nas atividades religiosas, políticas recreativas etc.” (FEITOSA, 2009)

A partir daí, eram selecionadas o que Freire chamava de


palavras-geradoras e temas geradores. Tais palavras
comunicavam o mundo daqueles indivíduos. A partir
dessas palavras, eleitas pelo próprio grupo e expostas a
ele tal qual um espelho, Paulo Freire fazia o processo
de decomposição fonética das mesmas, ao mesmo
tempo em que lhes apresentava seu próprio mundo.
Pintura de Brennand, Círculos de Cultura. Essa dinâmica demonstra que Paulo Freire trabalhava
com uma concepção ampliada do que seja educação.

ATENÇÃO
Atuando no espaço de vida dos próprios educandos, construindo seu material a partir do universo
de palavras dos próprios estudantes, Freire entendia a educação como algo que envolve a incor-
poração e indissociação de educação e mundo, a partir da inclusão de elementos significativos do
universo dos educandos.

O que, em geral, não sabemos é que Freire utilizava-se de imagens para iniciar o pro-
cesso de alfabetização. Para começar a dinâmica de assenhoramento do código do texto, o
método de Freire lançava mão da imagem, que era apresentada como recurso para que os
alunos reconhecessem aquilo de que era composto seu mundo.

104 • capítulo 5
O processo de alfabetização, em Paulo Freire, começava com a leitura da
imagem, por quê?

Em parte porque, obviamente, seus alunos não dominavam ainda os códigos do texto, mas 
principalmente porque a imagem apresentava aos alunos a sua própria realidade, coloca-
da à sua frente, de forma visível, real. Para a análise da ideia de cultura (a ideia do homem 
como  construtor  da  realidade  social),  Freire  pediu  a  seu  amigo  Francisco  Brennand  dez 
pinturas que foram feitas para que o processo de leitura (da palavra, do mundo) pudesse 
ser começado. 

O  deslocamento  provocado  pela  representação  (pelo  desenho) 


feita  é  transformador  e  redentor,  devolvendo  aos  mesmos,  por 
comparação  e  contraste,  a  potência  que  lhes  é  própria.  Freire 
construiu um método de alfabetização ativo. 

Garrafa

Afirma o autor: “pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de
desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o homem, porque não fosse seu
paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade, característica dos estados de
procura, de invenção e de reinvindicação.” (FREIRE, p. 1974, p. 104)

O trabalho desenvolvido por Paulo Freire pretendia atuar com a alfabetização de adul-
tos e, nesse sentido, é restrito. Mas, consideramos que vivemos em uma cultura de ima-
gens, a possibilidade de resgatarmos a dinâmica e as intenções do método de Freire, pode 
mostrar-se potente para nossos dias e para alunos que são, em geral, jovens, desligados e 
desinteressados dos processos convencionais de ensino. O método freireano encarna ele-
mentos de uma educação estética, uma educação que resgata o signifi cado da experiência 
do aprender e ensinar, ampliando seus objetivos para além da dimensão cognitiva da edu-
cação, da dimensão técnica do transmitir e da dimensão fechada do espaço escolar. 

ATENÇÃO
A atualidade do método de Freire associa-se ao fato de que o mesmo compreendeu que deveria construir
uma metodologia, adequado aos objetivos de uma educação emancipadora, respeitosa do conjunto de
pessoas com as quais iria trabalhar.

capítulo 5 • 105
Para contribuir nesse processo de pensar no potencial contemporâneo da metodologia
de Freire, apresentamos o trabalho do artista plástico brasileiro Jonathas de Andrade que,
convidado a participar da 29ª Bienal de São Paulo (em 2010), desenvolveu sua obra, Educa-
ção para Adultos, a partir dos cartazes educativos de Paulo Freire. O interessante é o frescor
que este trabalho dá a esses cartazes, à medida que mistura cartazes da época (1971) e de
hoje, confundindo-os, mas enfatizando a relação de texto e imagem, palavra e imagem.

Cada cartaz apresenta uma espécie de elemento mínimo de realidade, permitindo que, a partir dela,
sentidos possam ser construídos, além do próprio trabalho de alfabetização (tal como Paulo Freire
fazia, ao usar essas palavras para fazer a decomposição fonética das mesmas).

Vik Muniz e as possibilidades de transformação da


realidade pela arte

AUTOR
Vik Muniz é um artista brasileiro, residente nos Estados Unidos, reconheci-
do internacionalmente por seu trabalho como artista plástico. O artista recria
obras clássicas, utilizando-se de materiais considerados pouco nobres como
o açúcar, o chocolate, o lixo, a sucata. Para fazer suas obras, ele as monta em
estúdio e depois as fotografa.

Em 2011, Muniz realizou um filme chamado Lixo Extraordiná-


rio, documentário feito no aterro sanitário de Gramacho, localiza-
do no Rio de Janeiro. É em função de algumas questões trabalha-
das em sua obra, e comentadas por ele, no filme, que consideramos
interessante apresentá-lo aqui como modo de reflexão rica sobre o
mundo e as possibilidades de olhá-lo de outras formas, a partir de
pequenos deslocamentos.

106 • capítulo 5
Dessa forma, o artista fala, em um momento do filme, sobre sua intenção:

“(A intenção) realmente é mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material com o qual
elas lidam todo o dia (...) tirar as pessoas, nem que seja por poucos minutos, do lugar onde elas
estão e mostrar-lhes um outro lugar, um outro mundo. Mesmo que seja um lugar de onde possam
ver onde estão. Isso muda tudo.” (MUNIZ, 2010)

O trabalho todo, registrado no filme, efetiva vários deslocamentos, ocorridos no próprio


universo dos catadores, colocando-os frente à sua realidade a partir de outra perspectiva.

Muniz decide reencenar a A Morte de Marat, agora com os catadores de lixo, e aquilo que constitui
seu mundo. A cena é remontada por Tião, um dos catadores, em meio ao lixo do Aterro de Gramacho.
Da mesma maneira que os catadores, o trabalho de Muniz ajuda a transmutar uma coisa em outra.
A partir das suas possibilidades, vê-se uma pintura clássica recriada em condições decaídas, com
materiais não nobres, descartados, e um homem comum encarnando o personagem histórico.
No entanto, é exatamente isso que faz com que o contrário seja possível, com que o ordinário seja
visto como extraordinário, o lixo percebido como belo, acionando potencialidades sufocadas até
então. Esse deslocamento transforma o significado e o estigma dados ao universo do lixão, e de
quem nele trabalha, como é o caso do de Gramacho (hoje fechado).

Sendo assim, esse quadro nos mostra que é preciso determinados processos, que nos
retirem de nossa percepção ordinária, naturalizada, para nos colocar em outro lugar, per-
mitindo que, de lá, possamos reconhecer a riqueza e beleza que estava perdida nos escom-
bros do hábito e dos preconceitos.

capítulo 5 • 107
CURIOSIDADE ATENÇÃO
Deslocamento Os trabalhos de Paulo Freire e Vik Muniz possuem em comum a presença do pro-
Deslocamento do precário que se revela cesso de deslocamento.
riqueza, do lixo que se torna luxo, de ho-
mens submetidos a um destino que se
revelam sujeitos conscientes de si e de
sua condição. Toda essa dinâmica faz T. Makiguti e a Criação de Valores
com que possamos pensar em testar,
no universo da escola, diante de alunos Makiguti identifica a sociedade com um organismo dentro do qual
cuja imagem já construída lhes coloca cada indivíduo vive e dele depende, não podendo sem ele sobreviver.
como despossuídos, outras formas de Cabe à educação realizar essa passagem, tornando os indivíduos cons-
compreendê-los a partir de uma meto- cientes de seu vínculo com a sociedade, assim como engajados em sua
dologia de deslocamentos. valorização e crescimento.
Na sua obra, traduzida no Brasil como Educação para uma Vida Cria-
tiva, ele apresenta uma concepção de educação que desloca seu centro
de importância da verdade para o valor.

AUTOR
Outro autor importante, T. Makiguti, pedagogo ja-
ponês do início do século XX, projetou o que ele
chamou de “sistema educacional de criação de
valores”. Makiguti identifica o objetivo da educa-
ção ao da vida, em geral, que é a felicidade que,
para ele, significa a “união do bem público e pri-
vado e se origina através do pleno comprometi-
mento com a vida da sociedade (...) compartilhando os esforços e os sucessos das
outras pessoas e da comunidade.” (BULLOUGH, apud MAKIGUTI, T. 2002. p. 18).

ATENÇÃO
Um dos pontos principais para a construção de um projeto e um sistema de educa-
ção focados na felicidade é, em Makiguti, a desqualificação da questão da verdade
como a finalidade máxima da educação, centrando-se em outro conjunto de elemen-
tos que devem nortear os objetivos da mesma.

Ou seja, a verdade é a “do que é como é.” (MAKIGUTI, 2002, p. 74)


Para ele, a verdade é “a expressão do objeto exatamente como ele é.”
(idem, p. 79). Para o pedago-
“A vida humana é um
go, o homem não cria verdade,
mas cria valor, portanto, seu
processo de criação de
foco está no valor: o objetivo no valores, e a educação
aprendizado de si e da vida, no deve nos orientar para
tempo presente, é a máxima do esse fim.” (idem, p. 72)

108 • capítulo 5
ensino para Makiguti e se reverte em uma potente lanterna a iluminar IDEIA
a busca de educadores por uma transformação nas bases do processo
educativo. Objetivado no valor, Makiguti quer criar um “sistema educa- Pensar
cional que tenha sentido para o ser humano.” Pensar nosso tempo não significa ig-
norar autores e teorias na tradição do
Segundo ele, a vida observa a verdade, mas se relaciona com o valor. pensamento ocidental, ao contrário, é
O valor surge da relação do homem com os objetos e essa relação é fun- fundamental conhecê-los e deles nos
damentalmente criativa. apropriarmos para a produção de refe-
Logo, seu sistema criador de valor é um sistema criador, de homens renciais teóricos e metodológicos que
criadores em sua essência: atuem a favor da recuperação do sen-
tido da educação em uma sociedade de
“No caso do valor, no entanto, procura-se determinar a maneira particular massa, imagética e tecnológica.
ou peculiarmente característica pela qual algum objeto difere dos outros
em seu relacionamento com a vida do indivíduo e da comunidade. (...) O ser
humano não presta atenção ao que não tenha alguma relação consigo.” (...)
(MAKIGUTI, 2002, p. 73).

A criatividade, para ele, não é uma questão específica, mas o próprio


processo da vida e da educação. Trata-se, em Makiguti, de um desloca-
mento da questão dos fatos e da verdade para a questão do valor — de
reconhecimento, de avaliação e de criação de valores. O papel da escola
é identificar, estimular e orientar o potencial criativo individual:

“O ato de criação só se aplica ao valor.” (MAKIGUTI, 2002, p. 75)

O professor seria um orientador e estaria ao lado do aluno dando


apoio às suas experiências de aprendizagem:

“O professor não existe mais como fonte de informação, passando a ser o


catalisador do processo informativo (...). O objetivo principal é fazer com que os
alunos experimentem a validade das aulas nas próprias vidas.” (idem, p.123)

A força motriz deste processo encontra-se no interesse. No conjunto


do seu sistema pedagógico apresentam-se níveis de valoração, sem con-
sideração à natureza de objetos a serem estudados. O foco do sistema
pedagógico de Makiguti concentra-se na dimensão valorativa, na qual o
homem tem condições de intervir e expandir-se como tal, tornando-se
criador, figura ativa no processo educativo, sujeito.

Educar hoje
Sabemos dos desafios de educar contemporaneamente, mas podemos
pensar que novas maneiras de conceber a educação estão na base das
soluções que podemos construir para transformar essa realidade.

capítulo 5 • 109
ATENÇÃO
Partimos da consideração de que existem impasses no ensino que precisam ser superados a partir de
uma educação que recupere e inclua a dimensão sensível, entendendo os sujeitos que participam desse
processo como seres racionais, emocionais, corporais, além de situados em um mundo social e cultural,
que não podem ser deixados do lado de fora da escola. Consideramos que a estética, a arte e a imagem
representam boas entradas para o tempo contemporâneo e abram infinitas possibilidades de pensarmos
um processo de formação dos estudantes sob novas bases.

A partir desses elementos, algumas habilidades, sensibilidades e ações podem ser de-
senvolvidas.

Apresentamos algumas:
•  desenvolvimento da atenção e do interesse;
•  desconstrução de realidades e sentidos já estabelecidos, a partir da percepção de que ambos
são construídos, social e culturalmente;
•  capacidade de reconstrução de realidades a partir de operações como as de “deslocamento” e
de “montagem” (colagem);
•  capacidade de perceber o diferente no sempre igual e o extraordinário no ordinário;
•  desenvolvimento da argumentação para a defesa de determinadas ideias; compreensão de que
nosso posicionamento só pode valer quando apresentarmos (boas) razões;
•  valor à construção de consensos a partir da disponibilidade para o diálogo e para a escuta;
•  “empoderamento” dos sujeitos que participam do processo de ensino, capacidade de autodeter-
minação e autonomia; e
•  deslocamento do centro da educação, da verdade para o valor e o desenvolvimento da consciên-
cia da dimensão coletiva nos indivíduos.

Conclusão
A estética permite recuperar dimensões recalcadas no processo da educação, sendo extre-
mamente pertinente e potente, em um mundo em que gerações de jovens se comunicam e
produzem sentidos a partir da imagem e de elementos ligados à sensorialidade.
A entrada no universo estético, artístico, e a estética como método, permite o resgate
de uma dimensão intensiva da experiência desses jovens com o tempo, com sua história e,
a partir daí, com o próprio conhecimento. A possibilidade de um resgate de valor à escola,
através da inclusão de uma dimensão ampliada da educação, que incorpore a capacidade
de a escola orientar processos estéticos e éticos, abre um novo horizonte de pertencimento
da escola, de uma educação que se faz por encantamento. Dessa forma, talvez seja possível
pensar em redefinir o sentido das escolas, pensando-as “como espaços de encontro e diá-
logo, de produção de pensamento e decantação de experiências capazes de insuflar consis-
tência nas vidas que as habitam.” (SIBILIA, 2012, p. 211)
Tal redirecionamento permitirá entender a educação como um espaço onde é possível a
saída do automatismo e da sonolência com a qual estudantes têm conduzido sua vida; bem

110 • capítulo 5
como é possível que se efetive essa dimensão coletiva e dialógica, na qual os jovens podem
se exercitar como sujeitos capazes de produzir valor não só na esfera restrita de suas vidas
privadas, mas também naquela ligada à sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FEITOSA, S. O método Paulo Freire. Disponível em: http://www.undime.org.br/htdocs/download.php?-
form=.doc&id=34. Acesso em: 20 nov. 2009.
FREIRE, Paulo. Educação como prática para a liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, P. MACEDO, D. Alfabetização: leitura da palavra, leitura do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
KANT, I. Crítica da faculdade de julgar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento? Disponível em: http://ensinarfilosofia.com.br/__
pdfs/e_livors/47.pdf . Acesso em 26 mar. 2014.
MAKIGUTI, T. Educação para uma vida criativa. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
SIBILIA, P. Redes e Paredes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
TZARA, T. In: TELES, G. Vanguarda europeias e modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. Dis-
ponível em: http:// daliteratura.wordpress.com/2012/04/29/dadaismo-o-mais-radical-dos-movimentos-
de-vanguarda. Acesso em: 26 mar. 2014.
WANG, W. (Diretor). Cortina de Fumaça. 1995. EUA /Alemanha; 112 min.
HARVEY, K., JARDIM, J., WALKER, L. (Diretores) Lixo Extraordinário. 2010. Brasil/Reino Unido; 90 min.

IMAGENS DO CAPÍTULO
As imagens deste capítulo estão em Domínio Público e/ou foram ilustradas por Victor Maia.

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