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Christian Schmid
Resumo: Esse artigo trata da teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre com o
objetivo de explicar os seus fundamentos e assim contribuir para a superação de confusões
que têm ocorrido com frequência na apropriação e interpretação de sua obra. Schmid
analisa e reconstroi a teoria de Lefebvre, identificando os elementos que constituem a sua
estrutura básica bem como os fundamentos de sua epistemologia. Para ele, é preciso
considerar três aspectos cruciais até então negligenciados para compreender a teoria de
Lefebvre: (1) sua versão triádica da dialética, desenvolvida com base em Hegel, Marx e
Nietzsche; (2) sua teoria da linguagem baseada em Nietzsche; e (3) a influência da
fenomenologia francesa em seu pensamento.
Introdução
Se nós considerarmos o conteúdo, atividade criativa não tanto real, mas uma
se existe um conteúdo, uma
realização: um devir. Entre as duas
proposição isolada não é nem
verdadeira, nem falsa; toda determinações, a negação e a
proposição isolada deve ser
conservação, se encontra, de acordo com
transcendida; toda proposição
com um conteúdo real é ambos Lefebvre, o indefinido, a abertura: a
verdadeira e falsa, verdadeira se é
possibilidade de realizar, por meio de uma
transcendida, falsa se é declarada
como absoluta (LEFEBVRE, 1968, ação, o projeto. A razão lógica e analítica
p.42).
e o discurso coerente e estritamente
formal não podem capturar o devir, o
Esta citação é a chave para a
movimento da suprassunção no ato
famosa figura de retórica de Lefebvre na
criativo.
qual ele responde às suas próprias
questões com “sim” e “não”.
Nós gostaríamos de dizer que o
Na opinião de Lefebvre, uma
‘conceito’ de suprassunção aponta
contradição, quando suprassumida, não para aquilo que, na atividade viva
(produtiva, criativa), não pode ser
alcança o seu verdadeiro estado ou
alcançado por meio do conceito
destino final, mas sua transformação – é em si mesmo. Por que não?
Porque essa força criativa não
superada, mas ao mesmo tempo também
pode ter uma completa definição,
preservada e adicionalmente não pode ser determinada
exaustivamente (LEFEBVRE, op.
desenvolvida, de acordo com essa dupla
cit.).
determinação (LEFEBVRE, 2000, p. 40).
Assim, suprassunção neste sentido radical Na suprassunção há sempre um
não significa de forma alguma alcançar risco, um possível fracasso e, ao mesmo
uma verdade superior ou definitiva. A tempo, uma possibilidade - uma promessa
contradição tende à sua solução, ainda (LEFEBVRE, op. cit.).
que a solução não negue simplesmente a Estas passagens demonstram
velha contradição mas também claramente que a dialética de Lefebvre
simultaneamente a preserve e a conduza possui fontes extremamente diferentes.
a um nível mais elevado. Portanto, a Esses trechos expressam não somente o
solução carrega nela o germe de uma pensamento de Hegel e de Marx, mas -
nova contradição. Esta compreensão da sobretudo - de Nietzsche.
dialética é caracterizada por uma
interpretação dinâmica e profundamente A DIALÉTICA ALEMÃ: HEGEL, MARX E
histórica do desenvolvimento e da NIETZSCHE
história. Lefebvre destaca: “Movimento é,
por conseguinte transcendência” No curso de seu longo esforço
(LEFEBVRE, 1968, p. 36). Isto poderia criativo, Lefebvre desenvolveu uma versão
também ser lido em seu reverso: altamente original da dialética baseada em
transcendência (suprassunção) significa seu continuado engajamento crítico com
movimento (histórico). Hegel, Marx e Nietzsche; três pensadores
Mas Lefebvre não para por aí. alemães que foram, de longe, os que mais
Lendo de forma materialista, o conceito de influenciaram a configuração de sua
suprassunção denota um ato (ação), uma teoria.
GEOUSP – espaço e tempo, N°32 MARQUES, MARTA
Não é possível apresentar aqui termo que pode ser resumido na figura
uma exposição, mesmo que parcialmente bem conhecida: afirmação, negação e
“válida”, da dialética de Lefebvre, mais negação da negação. O primeiro termo
ainda, uma vez que ele modificou sua postulado, a afirmação, também contém
posição repetidas vezes, enriquecendo-a nele mesmo sua negação que o nega e ao
com novas facetas. Sua familiaridade com mesmo tempo o completa. Baseado em
a dialética se reporta ao período em que sua conexão interior, os dois termos
ele era um jovem estudante de filosofia. exercem uma influência recíproca em cada
Os elementos essenciais das dialéticas um e produzem um terceiro termo no qual
iniciais de Lefebvre já são especificados o primeiro termo reaparece mais bem
em La Conscience Mystifiée. O Marxismo definido e enriquecido, e também o
Dialético apresenta uma discussão mais segundo, cuja definição se junta ao
ampla da dialética de Hegel e a sua crítica primeiro. O terceiro termo volta-se contra
feita por Marx. Finalmente, uma o primeiro ao negar o segundo e assim
formulação detalhada e extremamente redime o conteúdo do primeiro termo pela
sofisticada é encontrada em Lógica superação do que nele estava incompleto
Formal, Lógica Dialética, projetada como o e limitado – destinado a ser negado
primeiro volume e introdução de uma (LEFEBVRE, 2000, p. 34).
série amplamente ambiciosa de oito Lefebvre critica esta dialética
volumes sobre o materialismo dialético. O hegeliana em dois planos. Primeiro, ele
próximo estágio importante é rejeita sua concepção idealista. Para
Métaphilosophie. Nela, Lefebvre Hegel, o movimento dialético ocorre no
desenvolve uma crítica radical da filosofia conceito e,6conseqüentemente, apenas no
focada em Nietzsche, articulando ao pensamento. A crítica de Lefebvre chama
mesmo tempo uma nova dialética triádica. a atenção para o fato de que esta dialética
A mais importante realização e aplicação não pode ser aplicada à realidade. Além
dessa dialética encontra sua expressão em disso, a contraditória natureza da vida não
A Produção do Espaço. Porém, ela só é é imaginada, mas real. Consequentemente
desenvolvida completamente em estudos é mais importante compreender a vida
posteriores, particularmente em o Retour real em todas as suas contradições. Por
de la Dialectiqueiv. isso, Lefebvre segue Marx que pôs de pé a
Seguindo a dialética hegeliana, a dialética de Hegel e deu precedência não à
dialética de Lefebvre começa no nível do ideia, mas ao processo material da
conceito: a identidade de um termo produção social.
somente pode ser compreendida em A segunda crítica de Lefebvre
relação a outros termos e assim em relaciona-se ao “sistema” dialético
relação à sua própria negação. Assumir a construído por Hegel: ao sistematizar a
existência de um objeto, então, também filosofia, Hegel para o fluxo do tempo,
significa sempre assumir a existência de declara o processo do devir fechado,
seu oposto. Um terceiro termo emerge de destruindo sua mais valiosa abordagem.
modo que, ambos, nega e incorpora os Essa linha de pensamento impede a
outros dois. A postulação de um termo, liberação do homem porque tende a
desta forma, inicia um auto-movimento do dominar a prática e desse modo alia-se
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i
Ver, dentre outros: Harvey (1996) e Werlen ix
Ver também em Lefebvre, op. cit.
(1993).
x
ii
Ver também em Lefebvre (1991, p. 139).
Termo emprestado por Lefebvre do estudo de
sons musicais. Fant (1960) definiu formantes xi
Ver, como exemplo, em Lefebvre (1978, p.
como os picos espectrais do espectro sonoro. 282; 1991, p. 117).
Em diversas passagens de sua obra Lefebvre
usa o termo formante como sinônimo de xii
O tradutor para a língua inglesa utiliza aqui o
elemento, componente, dimensão. (nota dos termo “espaços de representação” ao invés de
tradutores) “espaços representacionais” o qual aparece na
iii
tradução para o inglês de A Produção do
Paulo Meneses e José Machado na tradução Espaço. A razão para tal não é somente pela
da Enciclopédia das Ciências Filosóficas e da precisão lingüística (em francês, Lefebvre utiliza
Fenomenologia do Espírito adotam o o termo “espaces de représentation”), mas para
neologismo “suprassumir” para traduzir o verbo dar importância ao termo “representação” que
aufheben e assim alcançar o seu triplo sentido é diretamente ligado à teoria (inacabada) de
de: negar, conservar e elevar. Suprassumir Lefebvre sobre a representação. Ver em
associa foneticamente termos que apresentam Lefebvre (1980).
o significado que se deseja expressar: supra
(elevar, ir além, ultrapassar); assumir xiii
Ver também em Gosztonyi (1976).
(conservar, manter para si); sumir (negar,
desaparecer). (nota dos tradutores) xiv
Ver Soja (1989; 1996; 2000).
iv
Ver Lefebvre & Guterman (1936) e Lefebvre xv
Ver Milgrom, et. al. (2005) e Stanek (2006).
(1947; 1986).
v
Ver Lefebvre (1980; 1986).
vi
Compare em Lefebvre (1986, p. 41-42).
vii
Ver também em Lefebvre (1991, p. 138).
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GEOUSP – espaço e tempo, N°32 MARQUES, MARTA
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