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LOGICA
A pergunta pela essência da linguagem

Martin Heidegger

Coordenação Cient[fica da Edição e 7i·adução


IRENE BORGES-DUARTE

Tradução
MARIA ADELAIDE PACHECO
e
HELGA HOOCK QUADRADO

Revisão da 7i·adttção
IRENE BORGES-DUARTE

Martin Heidegger
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Serviço de Educação e Bolsas
1
Tradução do original alemão intitulado
LOGIKALS DIE FRAGE NACH DEMWESEN DER SPRACHE
de Martin Heidegger '
©Vittorio K.lostermann - Frankfurt am Main - 1998

ÍNDICE

Prólogo à edição portuguesa ......... ..... .. ... ...... .......... ........ 11

Glossário......................................................................... 23

INTRODUÇÃO

Edificação, proveniência, significado e abalo


necessário da lógica............................................... 37
Tradução e edição realizadas no âmbito do projecto de investigação
"Heidegger em Português. Da Lógica de 1934 aos Coutributos para
§1. A construção interna da lógica................................ 38
a Filosf!fia (1936-1938)"[POCI!FIL(60600/2004)] do Centro de
a) Decon1posição ........... ... . .... .. ........ .. . .... .. . ... .. . . ..... 39
Filosofia da Universidade de Lisboa e Universidade de Évora
b) Con1posição....................................................... 39
c) Estabelecimento de regras.................................. 40
a) A identidade [Selbigkeit] do representado.... 40
~) A não-contradição....................................... 40
y) A ordem do fundamento e da consequência 41
d) Consideração formal.......................................... 41
§2. A Lógica como propedêutica para todo o pensar. Gra-
mática e lógica. História da lógica ........................... 42
Reservados todos os direitos
§3. Os três critérios usuais do juízo sobre o significado,
de harmonia com a lei
utilidade e valor da Lógica....................................... 44
§4. A tarefa necessária de um abalo da lógica ................ 45
Edição da Fundação Calouste Gulbenkian
Recapitulação.......................................................... 48
Av. de Berna I Lisboa
2008

ISBN 978-972-31-1232-0

[5]
PRIMEIRA PARTE Recapitulação ......................................................... . 86
b) O vós e o nós determinados pelo si mesmo e não
A pergunta pela essência da linguagem como pela mera pluralidade ........................................ . 88
pergunta fundamental e pergunta condutora de c) O si mesmo é o género para o eu, o tu, o nós, o
toda a lógica ............................................................. . 51 , ?
vos ................................................................... . 92
Recapitulação ......................................................... . 97
§5. Objecções contra o procedimento de tomar a per-
gunta pela essência da. linguagem como princípio rei-
§12. O si mesmo e a perda de si mesmo ........................ . 99
52 a) O perguntar errado - condicionado pela perda de
tor e condutor da pergunta pela lógica .................... .
a) A linguagem como objecto da Filosofia da Lin-
si mesmo do ser humano.................................. . 99
b) A pergunta "quem somos nós mesmos?" encerra
guagem ............................................................. . 52
b) Restrição da lógica através da linguagem .......... . 54 uma primazia do nós? ....................................... . 102
c) A subordinação da linguagem: a linguagem como
c) Identificação externa e interna do nós ............... . 106
meio ................................................................. . 55 Recapitulação ......................................................... . 108
§13. '"Nós' somos o povo" em virtude da decisão .......... . 109
d) ~ ~preensão da linguagem - pré-formada pela
log1ca ................................................................ . 56 §14. Resposta à primeira pergunta intercalar: o que é isso,
um povo? ............................................................... . 114
§6. Os dois modos do perguntar. O carácter da pergunta
Recapitulação ......................................................... . 118
essencial como pergunta preliminar e as três perspec-
tivas da pergunta essencial ....................................... . 57 a) Povo como corpo ............................................ .. 120
Recapitulação ......................................................... . 61 b) Povo como alma .............................................. .. 121
c) Povo como espírito ........................................... . 122
§15. Resposta à segunda pergunta intercalar: o que signi-
Primeiro Capítulo fica decisão? ............................................................ . 127
A pergunta pela essência da linguagem .................. . 65 a) Decisão e estar decidido .................................... . 129
b) A resolução como inserção do homem no acon-
§7. A linguagem - conservada no dicionário ................ . 65
tecer futuro ························································ 133
§8. A linguagem como acontecimento no diálogo ........ . 66
§9. A linguagem- determinada a partir do modo de ser
do homem. A resposta da metafisica ........................ . 68
Terceiro capítulo
A pergunta pela essência da história ... :................... . 137
Segundo Capítulo
A pergunta pela essência do homem ...................... . 73 §16. A determinação.da essência da história fundamentada
no carácter da história da respectiva época. A essência
Recapitulação ......................................................... . 74 da Verdade - determinada através do Dasei11 histórico 138
§10. A recta colocação certa da pergunta preliminar. §17. A ambiguidade da palavra "história" ....................... . 140
A pergunta pelo quê e pelo quem .......................... . 78 a) "História" como ingresso no passado. História na-
§11. O homem como um si mesmo .............................. . 80 tural .................................................................. . 142
a) O eu - determinado pelo si mesmo e não inver- b) "História" como ingresso no futuro .................. . 144
samente ............................................................. . 84

[6] [7]
§18. O acontecer humano como o que se cumpre e per- b) Aquilo pelo que se pergunta não se deixa solucio-
manece no saber e no querer: a notificação ............. . 147 nar imediatamente ............................................ . 194
Recapitulação .....................................................~ ... . 149 Recapitulação ......................................................... . 195
§19. A relação entre história, notificação da história (his-
toriografia) e ciência da história .............................. . 152
Recapitulação ......................................................... . 160 Primeiro Capítulo
§20. A história na sua relação com o tempo ................... . 164 A historicidade do homem é experimentada a partir
a) História como o ter passado e como o sido ...... . 168 de uma relação modificada com o tempo ............... . 199
b) A primazia da descrição da história como passado 169 §24. A experiência do tempo através da experiência da
a) Concepção cristã do mundo e análise aristo- nossa deternúnação ................................................ . 200
télica do tempo ......................................... .. 170 a) Encargo e nússão .............................................. . 200
~) O passado como o concluído, o verificável, b) Trabalho ........................................................... . 201
o explicável pelas causas .............................. . 171 c) O estar afinado pela tonalidade afectiva ............. . 203
c) A objectivação da história pela ciência da história. §25. A e}..'}Jeriência originária e derivada do ser e do tempo.
O tempo como marco que está diante dos olhos 172 Temporalidade e intra-temporalidade ...................... . 205
§21. O ser do homem como histórico ........................... . 175 Recapitulação ......................................................... . 209
a) "Somos" históricos? ......................................... .. 176 §26. Discussão da objecção de que o tempo seria algo sub-
b) A questionabilidade do ser do homem. Devir e jectivo, devido à nova deternúnação alcançada ........ . 213
ser .................................................................... . 177 a) Será que os animais têm um sentido do tempo?. 215
c) O ser histórico como um decidir-se continua- b) A pergunta pelo carácter de sujeito do homem .. 217
nlente renovado ................................................ . 181 a) A mudança moderna de significado de "su-
Recapitulação ......................................................... . 182 jeito" e "objecto". O triplo desligamento do
d) O sido é, como futuro, o nosso próprio ser ....... . 185 homem ...................................................... . 219
Recapitulação ......................................................... . 222
~) A nova posição metafísica fundan1ental do ho-

SEGUNDA PARTE mem na prima philosoplzia de Descartes ........ . 224


c) A deternúnação moderna do ser humano como ser
O tempo originário como o solo de todo o coisa, no sentido do mero estar diante dos olhos .. 227
perguntar anterior e o retomar da série de
perguntas em direcção inversa ............................ . 189
Segundo Capítulo
§22. A mutação do nosso ser na sua relação com o poder A experiência da essência do homem, a partir da
do tempo. A responsabilidade .................................. . 189 sua determinação ....................................................... . 231
§23. Refutação de dois equívocos ................................. .. 192 §27. O entrelaçamento da tonalidade afectiva, trabalho,
a) Não se trata de uma tomada de posição sobre a nússão e encargo .................................................... . 231
política actual, mas do despertar de um saber ori- a) Tonalidade afectiva. A relação entre tonalidade
ginário .............................................................. . 192 afectiva e corpo ................................................ . 231

[8] [9]
b) Trabalho............................................................ 234
c) Missão e encargo ............................................... 236
§28. A explosão do ser sujeito através da determinação do
povo........................................................................ 238
a) O estar revelado originário do ente e a objectua-
lização científica. Separação da vida animal e do
ser histórico . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. ... . . .. . . .. . . . .. . .. . . .. . . . ... . .. 240 PRÓLOGO À EDIÇÃO PORTUGUESA
b) O acontecer da história é em si notificação do es-
tar revelado do ente. O conhecimento histórico
como rebaixamento dos grandes instantes inau- A presente obra é o registo do curso dado por Heidegger
gurais................................................................. 242 na Universidade de Fribm;go, no semestre de Vérão de 1934,
c) O Dasein histórico do homem como a resolução tendo sido editada em 1988, segundo critérios que o leitor
para o instante .. .... ...................................... ....... 243
poderá encontrar detalhadamente expostos no poifácio do
d) O ser humano como cuidado: estar exposto no
ente e entrega ao ser. Recusa da má interpretação editor alemão.
de cuidado: cuidado como liberdade do ser si Incluídas na edição integral das obras de Heidegger
mesmo histórico . .... .......... ....... .......................... 244 (Gesamtausgabe, tomo 38), as lições de Lógica vieram dar-
e) O Estado como o ser histórico do povo............. 249 -nos a conhecer um momento de confrontação deste filósofo
com a Lógica aristotélica e a sua tentativa de encontrar a lin-
guagem originária na qual seja possível dizer o ser, agora já
Terceiro Capítulo
Ser humano e linguagem........................................... 251 não pensado como <1Jresença", mas como acontecer histórico-
-temporal.
§29. A linguagem como o vigorar do centro do Dasein his- Heidegger cifirmara já em Ser e Tempo, na continuidade
tórico do povo que constrói e conserva o mundo.... 252
da tradição de Hamann, Herder e Humboldt, que a Lógica
§30. A lógica como encargo ainda incompreendido do
Dasei11 histórico do homem: o cuidado com o vigo- se constituiu historicamente como aquele aspecto da tradição
rar do mundo no acontecin1ento da linguagem ... . ... 254 filosófica que nos vedou o acesso ao ser da linguagem. Deste
§31. A poesia como linguagem originária .................... ... 255 modo, a destnlição da Lógica impunha-se já nessa obra como
procedimento metodológico essencial para que a investigação
Posfacio do editor alemão ...... .... ................... .... ............ .. 257 pudesse tomar o caminho pretendido e chegasse a mostrar
o ser da linguagem, tal como ele aparece ao olhar compreen-
sivo da reconstrução fenomenológica, ou tal como ele se mos-
tra a respeito de si mesmo.
Esta tarifa é aqui retomada, com a indicação expressa
de que destruir a lógica não significa menosprezá-la como

[10] [11]
supéiflua, mas apenas "abalá-la" a partir dos seus funda- toda a linguagem de queda na presença do presente, ou seja,
mentos, tarifa que Heidegger indica como uma tarifa histórica na ditadura anónima das modas e das ideologias. É a poesia
que dá os seus primeiros passos. A magnitude desta tarifa que resgata e conserva as potencialidades ontológicas da lin-
reside no facto de a lógica não ser um qualquer domínio do guagem, a sua capacidade de abrir mundo: "Deste modo,
pensm; mas aquele domínio fimdante da história da nossa a linguagem dos poetas mmca é de hoje, mas sempre do sido
cultura, sob o império do qual se desenvolveu a nossa história e do fitturo. O poeta nunca é contemporâneo. Poetas contem-
espiritual, enquanto história da racionalidade técnica e cien- porâneos deixam-se talvez classificar como tal, mas permane-
tffica que culminará no que mais tarde Heidegger designará cem apesar de tudo uma contradição. A poesia, e com ela a
por Ge-stell. linguagem apropriada, acontece só onde o domínio do ser é
As lições de Lógica retomam ainda outras aquisições trazido à intangibilidade das palavras originárias" 1.
fimdamentais de Ser e Tempo, designadamente a linguagem Estas observações de Heidegger acerca da poesia, aplica-
enquanto existenciário do Dasein e a historicidade constitu- das ao seu próprio discurso, devem advertir-nos contra
tiva do ser do homem e reelaboram estas duas temáticas, que a tentação fácil de fazer uma leitura ideológica deste texto
agora são reequacionadas tendo como horizonte o problema e incitam-nos antes a ter em conta a intencionalidade que
da linguagem, enquanto linguagem fáctica, articulando-se nas o percorre, apontando para um âmbito de questões de natu-
diversas línguas históricas. rezafilosijica ligadas ao problema do ser e da linguagem, que
Aqui se retoma, pois, o percurso teórico iniciado em Ser constantemente ocuparam o pensamento de Heidegger
e Tempo de 1927 a propósito da questão da linguagem que, e constituem ofio condutor da evolução do seu itinerário filo-
contudo, aqui é retomada, já não apenas enquanto discurso sijico.
(Rede), ou articulação compreensiva e cifectiva do ser-no- Dito isto, é preciso ainda acrescentar uma razão suple-
-mundo, mas enquanto língua fáctica (Sprache), ou seja, mentar para ler esta obra: trata-se do registo de aulas que nos
existindo sob a forma da multiplicidade das línguas ifectiva- põem perante um pensar que se confronta de forma viva com
mente faladas pelos diversos povos históricos e, assim, insti- as questões filosijicas que a si mesmo repetidamente coloca,
tuindo diversas aberturas histórico-temporais de tmmdo. sem perder de vista o auditório e as suas reacções. É, talvez
O curso de Lógica,juntamente com Holderlin e a Es-
sência da Poesia de 193 6 e A Origem da Obra de Arte 1 "Deslzalb ist díe Sprache des Díclzters 11íe heutíg, so11dem ímmer
(1935-36), ilustra ainda aquele período do percurso de Hei- gewesen rmd zukiitiftíg. Der Dichter ist 11ie zeitgellossisch. Zeítgelli5ssi-
degger em que a proximidade e o distanciamento entre o sche Dichter lasse11 sich zwar orga11isierell, aber sie bleibe11 trotzdem ei11
dizer poético e o dizerfilosijico se tornaram cruciais. Widersitw. Dichtrmg rmd damit eígentliche Sprache gesclzieht tmr dort,
wo das JMlltell des Sei11s in die iiberlege11e U11ben·ihrbarkeit der urspn·ill-
Efectivamente, nestas lições, Heidegger chama a atenção
glíchen Míc>rtes gebracht íst." Heidegger, Logík ais die Frage nach dem
para o facto de que a transmissão de um mundo histórico, Wése11 der Sprache, Gesamtausgabe, Band 38, Frankfurt am Main,
sendo linguística, está sempre exposta ao perigo inerente a Vittorio Klostermann, 1998, p. 170.

[12] [13]
por essa razão, um texto onde o discurso heideggeriatw con- guísticos que apontam para a futura história do ser e para a
segue alcançar uma grande clareza, sem perder a profun- temática do Ereignis.
didade de outras obras que foram destinadas originariamente Procurámos, assim, continuar a sublinhar, na tradução
à publicação e tomaram, à partida, a forma escrita. portuguesa dos vocábulos-chave do léxico heideggeriano,
A facilidade de leitura destina esta obra, naturalmente, simultaneamente a continuidade de sentido e a irrupção de
a um público mais vasto que o círculo restrito dos especialis- novos matizes e de novos núcleos semânticos que assinalam
tas e dos que, por razoes académicas, se ocupam de Heideg- um pensamento vivo em evolução no interior de uma mesma
ger, tornando o seu pensamento acessível a todos os que ver- trajectória.
dadeiramente se queiram ocupar das questões da história, da No entanto, julgámos necessário, na tradução desta
poesia, do ser e da linguagem. obra, atender àquilo que acima foi dito: ela assinala uma
etapa do curso do pensar heideggeriano, em que a proxi-
midade e a distância relativas ao discurso poético se tornam
A tradução cruciais. A restituição desta proximidade ao discurso poético
na tradução portuguesa exigiu, neste caso, que evitássemos
A tradução, como sublinhou Heidegger, não é uma ino- a utilização de neologismos, sempre que eles se revelavam
peração inofensiva de transposição de uma língua para outra, esteticamente imificazes ou prejudiciais, e dar êrifase aos recur-
que poderia manter intacto o sentido, como ingenuamente se sos estilísticos próprios da poesia, amplamente utilizados aqui
tendeu a pensar, mas essa transposição é sempre simulta- por Heidegger.
tteamente uma expropriação e uma apropriação criadora. Ela A compatibilização entre os critérios filosóficos acima
envolve, por isso mesmo, uma interpretação e, por conse- nferidos e a exigência de respeitar a ressonância poética do
guinte, decisões e pressupostos hermenêuticos que importa texto colocou aos tradutores diversos problemas, nem sempre
explicitar. fáceis de resolver, entre os quais salientamos, pela sua exem-
Procurámos, em primeiro lugar, dar cumprimento ao cri- plaridade, o da tradução do termo germânico Dasein.
tério filosófico que orientou as anteriores traduções do projecto Dasein é o sinónimo de raiz germânica para Existenz
"Heidegger em Português", respeitando sempre nos vocá- e foi adoptado em filoscifia a partir de 1689. Antes de Hei-
bulos-chave do discurso heideggeriano os vínculos semânticos, degget; Dasein era usado, por vezes, como sittónimo de
quer com Ser e Tempo, quer com as obras deste período rela- Vorhandensein, Wirklichkeit ou do termo latino "exis-
tivas à mesma temática da linguagem, designadamente Hol- tentia". Porém, Dasein é usado por Heidegger, em Ser e
derlin e a Essência da Poesia e A Origem da Obra de Tempo, no sentido restritivo da existência à maneira dum
Arte, que foram já traduzidas. Tivemos ainda como preo- ser que se projecta a partir do passado em direcção ao futuro,
cupação traduzir alguns termos novos no léxico heidegge- e é sempre reservado especificamente ao homem, único ente
riano, de modo a dar conta da irrupção de novos núcleos lin- que, segundo este autor, tem uma "existência".

[14] [15]
Dasein tem sido traduzido, para sublinhar esta restrição a sua mullw; 193 4 foi também o ano em que, depois desta
de sentido e a sua conexão com a temporalidade, por ser-aí, renúncia, ele começou a desligar-se, 110 seu íntimo, da Uni-
ser-o-aí, ou ainda aí-se1; tradução que resulta da decompo- versidade 3 .
sição do vocábulo,Jeita por Heidegger [Da-sein] e foi adop- Importa, pois, para a tradução, ter em conta que um
tada pelo projecto "Heidegger em português". Entendemos, horizonte de questões políticas, em sentido lato, relaciona-
no entanto, evitar esta tradução que, plenamente justificada das com o problema da fundamentação do poder do Estado,
noutras obras, quebrarià aqui o ritmo do discurso e prejudi- a natureza e o papel da Universidade e a problemática da
caria a sua ressonância poética (o que não acontece no texto "decisão", atravessam o texto de Heidegge1; e inserem-no de
alemão), optando por manter o termo germâ1iico, destacando-o forma viva no contexto histórico concreto em que o prifessor
em itálico. e o auditório estavam me1;gulhados.
A ressonância poética do discurso éfrequentemente con- Como tradutores, procurámos mostrar (sempre que a
seguida por Heidegger através dum certo ritmo obtido com transposição para a língua portuguesa o permitia) a vincu-
jogos linguísticos permitidos pela variação de partículas em lação da linguagem heideggeriana ao contexto histórico-
torno de uma mesma raiz. Sempre que possível, utilizámos -linguístico desse conturbado ano de 193 4, mw de progressiva
o mesmo recurso, usando diversos vocábulos portugueses deri- consolidação e também progressivo endurecimento do regime
vados do mesmo radical latino. Nos casos em que tal não nacional-socialista, onde tudo tinha de obedecer às novas
poderia ser feito sem falsear o sentido, optámos por manter regras impostas pelo regime e, com maior razão, a linguagem
entre parêntesis rectos os termos do texto original, para assi- usada no espaço páblico.
nalar a presença desses jogos verbais que aqui desempenham Na segunda aula, perante um público já iriformado da
um importante papel. mudança do tema que iria ser leccionado, Heidegger iliformou
Foi ainda necessário ter em conta o contexto das lições, que a Lógica, de que iria tratar não era "nenhum falatório des-
que estiveram inicialmente anunciadas com o título O Es- regrado sobre a visão do mundo ['zuchtloses Weltans-
tado e a Ciência (Der Staat und die Wissenschaft), mas chauungsgerede'] ", mas o "questionar dos fimdamentos do
que inesperadammte Heidegger mudou para Lógica como ser" 4. A expressão alemã "zuchtloses Weltanschauungsge-
Pergunta pela Essência da Linguagem (Logik ais die
Frage nach dem Wesen der Sprache), episódio que tem
sido posto em relação com o seu abandono do Reitorado (que 3 CJ Meiu liebes Seelclzeu! Briife i\llartÍII Hcidcggers au seiue
se verificara poucos dias antes da primeira deste conjunto de Frau E!fridc 1915-1970 Hg, ausgewahlt und kommentiert
lições)2. Segundo testemunho do próprio Heidegger, em carta von Gertrud Heidegger. München, 2005, p. 334, em carta de
Junho de 1959.
-1 Heidegger, Logik ais die Frage uaclz dem Hleseu der
2 Cf Rüdiger Safransk:i, "Eiu Meister aus Deutschlaud. Hei- Spraclze, Gesamtausgabe, Band 38, Frankfurt am Main, Vittorio
degger 1111d seiue Zeit", München, 1994, p. 328. Klostermann, 1998, p. 1O.

[16] [17]
rede" é muito desagradável, chocante até. Victor Klemperer povo?" 7 Para chegar a uma resposta, Heidegger procura-a
chama a atenção para o termo 'Weltanschauungsgerede", numa série de exemplos tirados de palavras compostas, cuja
muito 11a moda em certos círculos intelectuais no princípio do primeira parcela é formada por ''Volk", como seja ''Volks-
século XX. A origem deste termo encontra-se, segundo Klem- lieder" (canções populares), ''Volkstanze" (dm1ças popula-
pem; num romance de Arthur Sclmitzler, Der Weg ins res}, ''Volkszahlung" (censo), ''Volksgesundheit" (Saúde
Freie, escrito entre 1905 e 1907 (1.a edição 1908). 'Wel- Pública), ''Volkskunst" (arte populm), ''Volksgeist" (espí-
tanschauung" tomou~se posteriormente um termo basilar rito de povo/popular, cunhado no Romantismo).
(ein "Pfeilerwort") do nacional-socialismo, ainda na opinião Há um caso especialmente curioso, o de ''Volksbefra-
de Klemperer, o minucioso cronista de Lti. Língua Tertii gung" (plebiscito ou riferendo em português), relativo a uma
Imperü. Die Sprache des Dritten Reiches 5. consulta eleitoral a 12 de Novembro de 193 3, quando o
A expressão portuguesa "visão do mundo", a que recor- povo era chamado a pronunciar-se sobre a sua aceitação da
remos, para traduzir 'Weltanschauung" não tem a mesma política levada a cabo pelo "Führer" e a aprovação da lista
conotação ideológica, que resulta assim inevitavelmente obs- Úttica ("Einheitsliste") para o "Reichstag", o Parlamento
curecida. alemão. Ora, contrariamente ao que era de esperat; a palavra
Na tradução das palavras compostas a partir do radi- qficialnão era ''Volksbefragung", como Heidegger rifere, mas
cal "Volk", nem sempre foi também possível dar co11ta da sim o estrangeirismo "Plebiszit", como se lê em Klemperer
forma recorrente como o "povo" surge no texto e do ifeito que, com fina ironia, põe em dúvida o conhecimento deste
desta recorrência. Klemperer regista, a este propósito: "'Volk' pelo bom povo alemão 8. Mas Heidegget; talvez por uma
('povo') usa-se agora [no Terceiro Reich] tanto na fala razão de coerência fala em ''Volksbefragung".
como na escrita, tantas vezes como se usa sal na comida; No entanto, a linguagem usada por Heidegger infrittge,
tudo leva uma pitada de 'Volk'" 6. Uma das interroga- por vezes, de forma audaciosa esta "normalização" linguística
ções fundamentais da Lógica é mesmo "Que é isso, um imposta pelo poder. Relatando um incidente ocorrido durante
este plebiscito, quando um graduado da polícia deu ordens de
"dispersar o povo à cacetada", Heidegger pergunta: que sig-
5 Cj Victor Klemperer, Língua Tertii Imperii. Die Spmche des nifica povo (''Volk"), tratando-se de um plebiscito (''Volks-
Dritten Reiclzes, Leipzig, 1991, pp. 152/153. Também o Deutsches befragung"), quando a polícia dispersa o povo eleitor à cace-
Worterbuch de ]akob e Willzelm Crimm, vol. XXVII: Weh-Wen-
dunmut, em Weltanschauungsgerede, remete para Klemperer e o
romance de Sclmitzler (1862-1931) Der T#g ins Freie, como fontes. 7 Heidegger, Logik ais die Frage naclz dem r#seu der
O passo em questão encontra-se nas pp. 888 e seg. das Erzãhlende Spmclze, Gesamtausgabe, Band 38, Frankfurt am Main, Vittorio
Schriften, 1. Bd, Bertelsmmm, s/d. Klostermann, 1998, p. 60.
6 Cj Victor Klemperer, Língua Tertii Imperii. Die Spraclze des 8 Cj Victor Klemperer, Língua Tertii Imperii. Di e Sprache
Drittetz Reiclzes, Leipzig, 1991, p. 36. des Dritten Reiches, Leipzig, 1991, p. 43.

[18] [19]
tada? Ainda será o mesmo povo? 9. No mesmo contexto, Heidegger termina, audaciosamente, as suas considerações
renova este tom transgressor citando duas vezes Karl Marx, sobre a raça com o seguinte requintado jogo de palavras:
autor cujas obras já tinham sido queimadas na grande ''Rassisch im ersteren Sinne braucht noch lange nicht
queima dos livros indexados, orquestrada para o 1O de Maio rassig zu sein, es kann vielmehr sehr umassig sein." 11
de 193 3 em muitas cidades alemãs. Já na segunda semana Nós traduzimos, sem estarmos satisfeitos, mas preservatzdo,
de Março de 193 3 se tinha organizado em Freibw;go uma apesar de tudo, o seu sentido essencial (e a transgressão nele
enorme manifestação cot~tra o marxismo que, nas palavras do implícita): "O racial no primeiro sentido pode estar muito
presidente da Câmara desta cidade, deveria ser totalmente longe de ser de raça nobre, pode antes ter muito pouca raça
erradicado. Heidegger rompe, porém, inesperadamente, este nobre."
interdito, riferindo a diftnição de povo dada por Marx, para Na curtíssima terceira e tÍltima parte da Lógica, chega-
quem este é a totalidade dos trabalhadores (''Werktatige"), -se ao fim de todas as interrogações sobre a essêtzcia da lin-
em oposição aos ociosos (''MüBigganger") e exploradores guagem que, para Heidegger, se encontra na poesia, a única
("Ausbeuter"). Riferindo-se à Saúde Pública ("Volks- linguagem originária - com esta lapidar afirmação: "Para se
gesundheit"), Heidegger pe~;gunta se esta só compreende os compreender isto, os alemães que hoje tanto falam de ordem
trabalhadores, no sentido de Marx, ou será que os cidadãos devem aprender o que quer dizer preservar aquilo que já pos-
("Bürger", no sentido de classe média) também estarão suem." 12
abrangidos pela Saúde Pública? Repare-se que esta frase final da Lógica, onde Hei-
Talvez ainda na mesnza aula, senão na aula seguinte, degger critica os alemães "que hoje em dia tanto folam de
Heidegget; retoma ttovamente este tom transgress01; ligando o 'Zucht' {ordem ou autoridade}", remete directamente para
conceito de povo ao de raça. O conceito de raça não significa o 'Jalatório desregrado sobre a visão do mundo" [zuchtloses
apenas o racial ("Rassisches"), no sentido fisico ou genético, Weltanschauungsgerede] do § 4, criando assim uma
mas muitas vezes encerra o conceito de "Rassiges" o que é de coesão íntima quanto à linguagem que é o centro das lições
raça nobre, excelente (não deixa de ser curioso que o adjectivo de Lógica. ·
"rassisch" só em 1922 tenha entrado na língua alemã,
criado pelos teóricos do racismo, sendo "rassig" o vocábulo mais
antigo, embora não se registe a sua primeira ocorrência) 10. 11 Heidegger, Logik ais die Frage uach dem T#se11 der Spraclze,
Gesamtausgabe, Band 38, Frankfurt am Main, Vittorio Kloster-
9 Heidegger, Logik ais die Frage uaclz dem T#se11 der Spraclze, mann, 1998, p. 65.
Gesamtausgabe, Band 38, Frankfurt am Main, Vittorio Kloster- 12 "Um dies zu begreifen, müssen die Deutschen, die
mann, 1998, p. 61. heute so viel von Zucht reden, lernen, was es heil3t, das zu
10 Cj Etymologisclzes Worterbuclz der Deutsclzeu Sprache, von bewahren, was sie schon besitzen." Heidegger, Logik ais die Frage
Friedrich Kluge, 20! ed., revista por Walter Mitzka, Berlin 1967, uaclz dem T#se11 der Spraclze, Gesamtausgabe, Band 38, Frankfut am
p. 584, entrada "Rasse". Main,Vittorio Klostermann, 1998, p. 170.

[20] [21]
.f$~;"
0

É com a mágoa de que "os alemães" não estejam à


altura deste seu património, que Heidegger termina, um tanto
abruptamente, as lições de Lógica do semestre de Verão de
1934. Numa carta à mulher de junho de 1955, explica que
esse título foi escolhido como "camuflagem" ('Tarnung")
para que a verdadeira temática, a linguagem, não fosse logo GLOSSÁRIO
surpreendente demais 13:

MARIA ADELAIDE PACHECO A ot;ganização do presente glossário não obedece tanto


a critérios de rigor filológico como a uma preocupação de
HELGA HOOCK QUADRADO
esclarecer o leitor acerca das soluções adoptadas para a tra-
dução de determinados termos do léxico heideggeriano.
A consulta do glossário deve ter em conta que ele não
segue apenas a ordenação alfabética, mas procura também
integrar os termos em conjuntos derivados de um radical
comum.

Abfolge(e) -sequência
abgekapselt - encapsulado
abgesondert - isolado
abklingen- desvanecer(-se)
ableiten - derivar
Angabe(e)- informação, indicação
Anleitung(e) -orientação
Ansatz(r) - abordagem
ansetzen - começar
Ansetzung(e) -avaliação
antworten - responder
13 Cf Mein liebes Seelchen! Briife Marilz Heideggers an seine
Antwort(e) -resposta
Frau E!friede, 1915-1970. Hg, ausgewahlt und kommentiert
von Gertrud Heideggers. München, 2005, p. 307. As palavras
Verantwortung - responsabilidade
"Tarnung" e "Sprache" estão sublinhadas. -Ueberantwortung(e) - entrega

[22] [23]
Anweisung(e)- orientação Bewahrung(e)- prova
Auflosung(e)- desagregação Bewandtnis(e) -carácter
Aufinachung(e) -aparência Bewahrung(e)- conservação
aufweisender Logos - o logos presentificador Bezirk(r) - âmbito
aufreigender Logos - o logos indicador Bezugnahme(e)- referência
ausbauen desenvolver Blickrichtung(e) -perspectiva
Ausgelassenheit(e) - àlegria Dasein(s) - aí-ser
Ausgesetztheit(e) -exposição Durchsetzung(e)- imposição
Ausgesetzt sein - estar exposto echt - autêntico
Aussage(e) -enunciado ehemals - outrora
aussagender Logos - o logos declarativo eigen próprio
aussehen - parecer Eigensucht(e) -egoísmo
bedrangen - assediar eigentlich - apropriado
Befangenheit(e) -recato eigentümlich - especial; peculiar
Begebenheit(e) - acontecimento Eigentümlichkeit(e) -propriedade; peculiaridade
berechtigen - autorizar Enteignung(e) -expropriação
berechtigt legítimo, autorizado übereignen entregar
Beschlussfassung(e) -resolução einlassen - estar inserido
Besinnung(e)- meditação Einmaligkeit(e) -singularidade
Bestand(r) - consistência; existência Einschlag(r) -embate
Bestandigkeit(e) -constância Einspannung(e) -instrumentalização
Bestandstück(r) - parte constitutiva Entfaltung(e) - desenvolvimento
bestehen - subsistir; consistir enthüllen- descobrir; desvendar
bestatigen - confirmar entrücken - arrebatar
Bestatigung n(e)- comprovação Entwurzelung(e)- desenraizamento
bestimmt especial Ereignis(s) - acontecimento propício; acontecimento
Bestinuntheit(e) -o carácter de determinado de apropriação
Bestimmtsein(s) - ser determinado Erfassung(e) -apreensão
Bestimmung(e)- determinação Ergriffenheit(e) -comoção, abalo
Bestreitung(e) -refutação Erhabenheit(e) -sublimidade
Betrieb(r) - movimento erheben - levantar
Beurteilung(e) -juízo eroffuen - inaugurar

[24] [25]
Errichtung(e) -fundação Geschehnis(s) -acontecimento
erweisen - demonstrar Geschichte(e) - história; distinta de Historie -
feststellen - verificar, afirmar Historiografia
Feststellung(e) -verificação Geschichtlichkeit(e) -historicidade
Frage(e) -pergunta; questão geschichtlich - histórico
fragbar - questionável geschichtslos - a-histórico
Fragbarkeit(e) -possibilidade de ser perguntado Geschlecht(s) -linhagem
fragwürdig - questionável Gewordene(s) - o sido
:fugen - conformar; articular Gewordenheit(e)- o ter vindo a ser
ein:fugen - submeter; inserir Gewordensein(s) o ser desenvolvido
Fügung(e) -articulação Glied(s)- membro (de um grupo)
Fuge - articulação gliedern - articular
Ge:fuge(s) - estrutura Grund(r) - fundamento; razão:
sich :fugen in- submeter-se a Satz des Grundes - princípio do fundamento
ver:fugen - dispor Abgrund(r) - abismo
Ver:fugung(e) -disposição Haltung(e) atitude
Führung(e) -liderança sich verhalten encontrar-se; comportar-se
Ver:fuhrung(e) -sedução Verhalten(s) - comportamento
Fülle(e) -plenitude durchhalten - persistir
Gebilde(s) -forma, configuração einhalten - conservar
Grundgebilde - configuração fundamental festhalten - conservar, agarrar
Gebrauch(r) - costume hemmen - estorvar; coibir
Gegenstand(r) - objecto Hemmnis(s) - obstáculo
gegenstandlich- objectual herabsetzen - rebaixar
Vergegenstandlichung(e) -objectivação Herkunft(e) -precedência
Gegenwart(e)- presente Hinsicht(e)- perspectiva
vergegenwartigen - presentificar ich- eu
Gehaben(s) - comportamento ichbezogen - relativo ao eu
Gehalt(r) - valor Ichhafte(s) - o que tem a ver com a egoidade
Gemüt(s) - alma, coração, interioridade, afectos Ichheit(e) - egoidade
Gerüst(s) - esquema Ichsucht(e)- egocentrismo
Geschehen(s) -acontecer Identitat(e) -identidade

(26] (27]
Satz der Identitat - princípio da identidade entscheidungsha:fi:(e) tendo o carácter de decisão
Instandigkeit(e) -insistência entscheidungmaBig - contendo uma decisão
Kreis(r) - círculo Entschiedenheit(e) o estar decidido
Umkreisung(e) -circularidade Schichtung(e) - classe social; estratificação
Kunde(e)- notificação Schickung(e)- destino
ankündigen - anunciar SchluB(r) raciocínio
erkunden - indàgar Schlussfolgerung - conclusão do raciocínio
bekunden - documentar Selbst(s) - si mesmo
Künderschaft(e) -virtude reveladora Selbigkeit - identidade
Lager(s)- campo; acampamento selbstandig - independente
Leib(r) - corporalidade Selbstandigkeit independência
Leistung(e)- desempenho Selbstbehauptung - auto-afirmação
Lieblichkeit(e) -encanto Selbstbestimmung - autodeterminação
MiBgriff(r) - desacerto Selbstheit - mesmidade
nichthaft o carácter de nada Selbstsein - ser si mesmo
nichtig - nulo sich entschlagen libertar
Offenbarkeit(e) -o estar revelado sich entschlieBen - decidir
offensichtlich - patente Entschlossenheit(e) -resolução
Óffentlichkeit - espaço público entschlussfàhig - capaz de tomar decisões
Rasse(e) -raça sich erstrecken - estender
rass1g de raça nobre sich überliefern - entregar-se
rassisch - racial Überlieferung(e) -tradição
Rede - fala; discurso; articulação Sorge(e) -cuidado
bezeichnende Rede - o discurso designativo Sprache(e) -linguagem; língua
Rückbezüglichkeit - reflexividade absprechen- negar
Sachgehalt(r) - conteúdo ansprechen- dirigir-se a; referir-se a
Satz(r) - frase; princípio aussprechen enunciar
Leitsatz princípio condutor durchsprechen - debater
scheiden separar Gesprach(s) - diálogo
Scheidung(e) -separação mitsprechen falar; ter uma palavra a dizer
Auscheidung(e) -eliminação Sprachphilosophie(e) Filosofia da Lingua-
Entscheidung(e) -decisão gem

[28] [29]
Sprachwissenschaft(e) -teoria da linguagem; lin- verborgen - encoberto
guística Verborgenheit(e) -o estar encoberto
sprechen - falar; Unverborgenheit - o não estar encoberto
Umgangssprache linguagem quotidiana Verdrangung( e) recalcamento
zusprechen - atribuir Vereinzelung( e) singularização
sprengen - fazer explodir Verfall(r) - queda
Sprengung(e)- explosão Verflachung(e)- trivialidade
Standpunkt(r) ponto de vista estável Verflechtung(e) implicação
Stimmung(e) tonalidade afectiva; Vergangene(s)- o ter passado
Grundstimmung(e) - tonalidade afectiva funda- Vergangenheit(e) -o passado
mental verganglich - efémero
Gestimmtheit(e)- estado afectivo Verganglichkeit(e)- fugacidade; caducidade
Gestimmtsein(s) -estar afinado vergehen - o desvanecer-se
übereinstimmen - concordar Vergehende(s) o que se desvanece
Übereinstimmung - concordância Verherrlichung(e) -glorificação
durchstimmen - afinar Verkehrung(e)- inversão
Tatbestand(r) facto Verkettung(e) encadeamento
übersteigern - sobrevalorizar Vermachtnis - legado
übertragen - trasladar; verter Vermogen(s) - capacidade
Übertragung(e)- trasladação, transposição vernünftig racional
Umbruch(r) - mudança radical Vernunft(e)- razão
umdrehen - inverter Versagen(s)- falhanço
umgestalten - modificar Verschlossenheit(e) fechamento; encerramento
Umwalzung(e) -mutação Verschwiegenheit(e) -sigilo
Umwandlung(e)- revolução versetzen - transferir
Unberührbarkeit(e) -intangibilidade Verstellung(e) deslocação; fingimento
unheirnlich - desagradável; inquietante Versunkenheit(e) -recolhimento
Unheirnlichkeit(e)- estado inquietante verwirren - confundir
unterliegen- estar sujeito Volk(s) - povo
unterstellen - submeter Bevolkerung(e)- população
Unumganglichkeit- inevitabilidade Volksbefragung(e) consulta popular
U nvoreingenommenheit(e) - imparcialidade Volksgemeinschaft(e)- comunidade

[30] [31]
Volksgenosse(r) - compatriota widerlegen - refutar
Volksgesundheit(e) saúde pública widersprechen - contradizer
Volksglieder - membros do povo Widerspruch(r) - contradição
Volkslied(s) - canção popular Satz des Widerspruchs - princípio da contradição
Volkstanz(r) - dança popular Widerspruchlosigkeit(e) - não-contradição
Volkszahlung(e) -censo Wiederrückfuhrung(e) reintrodução; regresso
vollziehen - efectuar· Witterung(e) -tempo atmosférico
Vollzug(r) - cumprimento; execução Wort(s) palavra; termo; pl. Woerter- vocábulos
Mitvollzug(r) - preenchimento Worte - ditos
vorankommen - progredir Wortlaut(er)- o som da palavra
voranstellen antepor im Wortlaut - textualmente
Vorausgeworfensein ser previamente lançado Zeichen(s) - símbolo
Voraussetzung(e)- hipótese; condição prévia auszeichnen - assinalar
Vorblick(r) - olhar prévio Zeit(e) tempo
vorhanden sein - "estar presente", "estar diante dos Zeitalter(s) - época histórica; era
olhos" zeitgenossisch - contemporâneo; relativo a deter-
Vorhandenes o que está presente; o que está diante minada época.
dos olhos ze1t1gen temporalizar
Vorkommen(s) - acontecimento Zeitigung(e) - temporalização
Vorkommnis(s) facto; ocorrência Zeitlichkeit(e) -temporalidade
Vormeinung(e)- preconceito Innerzeitlichkeit(e) - intra-temporalidade
Vorrang(r) - primazia Zerrissenheit(e) - discórdia
Vorschule(e)- propedêutica zeugen produzir
walten - vigorar Zeugnis(s) -certificado; testemunho
Weltanschauung(e)- visão do mundo Zucht(e) -rigor; disciplina
werden - devir Zukunft(e) -futuro
Wesen(s) - essência/Unwesen- in-essência Zukünftigkeit- futuridade
wesen - essenciar; estar a ser Zusammenbruch(r) derrocada; ruína
Anwesenheit(e) presença Zuversicht(e) -optimismo
Wesende(s)- o sendo
Gewesene(s) o sido
Gewesenheit(e)- o ter sido

[32] [33]
,
LOGICA
A pergunta pela essência da linguagem
INTRODUÇÃO
Edificação, proveniência, significado
e abalo necessário da lógica

A designação "lógica" é a abreviatura da expres-


são grega "ÀoyLKlj". Esta expressão significa: o que diz
respeito ao ÀÓyoç. Deve-se acrescentar "hnan5EJ.r;";
hnan5EJ.r; ÀoyLKlj é o saber que diz respeito ao
ÀÓyoç.A lógica, enquanto iman5EJ.r; ÀoyLKlj, signi-
fica o compreender-se com base no ÀÓyoç. Porém,
"Àóyoç" significa, em geral, o dizer e o falar, e dizer e
falar com um significado muito especial, num sentido
compreendido de um modo muito especial, designa-
damente como ÀÓyoç árcocpcxvrLKÓÇ. É aquele dizer
que tem em si a realização e a tendência do indicar,
do mostrar. A essência do enunciado está no ÀÓyoç
presentificador e indicador. O enunciado é um tipo
de falar muito especial - diferente da fala no sentido
do ordenar, do exigir, do pedir, do louvar, do propor,
do repreender.
O ÀÓyoç enunciativo diz como uma coisa é e
como se comporta. Por conseguinte, a lógica trata
deste enunciar. Tal enunciar é pronunciado, anunciado
e repetido por outros. Os enunciados pronunciados
são depositados em frases. Estas podem também

[37]
ser escritas e conservadas naquilo que está escrito. a) Decomposição
O .À.Óyoç é então, em certo sentido, algo que, tal como
as árvores, os montes, as florestas, etc., sempre há, algo O enunciado é primeiramente tomado como
que está presente [vorhanden], que é susceptível de ser algo presente, como uma coisa susceptível de ser
encontrado. encontrada. Ele depara-se-nos primeiro numa frase
Os enunciados podem assim ser captados imedia- pronunciada, por exemplo: "O céu está encoberto."
tamente e compreendidos na reflexão. Pode-se dizer A frase, enquanto articulação de palavras, pode ser
que aspecto tem um tal enunciado enquanto enun- decomposta nas seguintes palavras: "céu", "enco-
ciado. Em tal definição, crescem um determinado berto", "está"- palavras a que correspondem deter-
conhecimento do enunciado, a descoberta da sua boa minadas representações.
execução e um ser versado, por exemplo, em argu-
mentar e contra-argumentar: numa contenda, perma-
necer, no modo de dizer, à altura do outro. b) Composição
Abstraímos aqui, à partida, dos diferentes impul-
sos. Começamos aqui por considerar apenas o modo "O céu está encoberto" não é outra coisa senão,
geral como a lógica foi inicialmente, por assim dizer, como dizem os gregos, um entrelaçamento (a V!l-
captada no olhar. JCÀOKYJ'). O enunciado assim composto pode, por seu
A meditação sobre o .À.Óyoç iniciou-se no fim da lado, fornecer a peça a partir da qual uma outra estru-
era da grande filosofia, em Platão e Aristóteles. Houve, tura de tipo lógico é composta; pois a partir de várias
à partida, quatro perspectivas que se tornaram con- frases pode ser composta mais uma estrutura lógica,
dutoras para esta primeira tomada de conhecimento derivando-se de dois juízos um terceiro. A derivação
do .À.Óyoç, tendo o .À.Óyoç sido investigado em quatro de um terceiro juízo a partir de dois juízos dados con-
diferentes modos de proceder. siste na combinação dos conceitos que nestes ainda
não estão ligados. Esta combinação só é possível
quando é mediada por um conceito ligado com
§1. A construção interna da lógica ambos os juízos.
"Todos os homens são mortais."
Tentamos agora, de forma preliminar, expor bre- "Sócrates é um homem."
vemente a estrutura geral da construção interna da "Sócrates é mortal."
lógica, nos quatro procedimentos que determinam a
forma da lógica desde os gregos até nós. Chamamos a uma tal articulação de enunciados
um raciocínio conclusivo. Na composição, ascende-se

[38] [39]
assim a partir do conceito, através do juízo (o enun- um outro no enunciado na medida em que não
ciado) até à conclusão. o contradiga; e este conceito tem de lhe ser negado
quando o contradiz. "A é B" e "A é não-B" não
podem ser verdadeiros ao mesmo tempo (vale até
c) Estabelecimento de regras Hegel). Esta é a regra fundamental da não-contra-
dição.
O terceiro tipo dê consideracão desta construcão
é o estabelecimento de regras. F;rmas como juíz;s e
raciocínios são primeiramente verificáveis, são algo y) A ordem do fundamento e da consequência
presente. Mas têm, contudo, um tipo peculiar de ser, No raciocínio, a sequência dos enunciados não é
diferente de coisas, como pedras, etc. Tais enunciados casual, mas o conjunto está determinado e regulado
e frases são apenas na medida em que se consumam pela ordem do fundamento e da consequência.
pela livre actividade do homem. No entanto, esta con-
sumação não é arbitrária, mas está subordinada a Em resumo, temos:
regras.
- Princípio da identidade
Princípio da contradição
a) A identidade {Selbigkeit] do representado - Princípio do fundamento

Cada forma está subordinada a uma determinada Assim delimitámos o conteúdo essencial da área
regra fundamental. Um conceito, isto é, uma certa da lógica (do saber do ÀÓyoç).
representação de algo em geral, por exemplo, do céu,
só pode ser utilizado como peça fundamental de um
enunciado, se nele o conteúdo da representação ou o d) Co11sideração formal
significado da palavra se mantiverem na sua identi-
dade; se não dissermos repentinamente "céu", que- Partimos do fenómeno fundamental da lógica, do
rendo dizer árvore. Chamamos a esta regra fundamen- enunciado, como, por exemplo: "O céu está enco-
tal a regra fundamental da ·identidade do representado. berto." Podemos efectuar outros enunciados quaisquer
correspondentes a este, por exemplo: "a árvore flo-
resce". A lógica não investiga estas frases segundo
(3) A não-contradição
aquilo que nelas é enunciado, mas foca a atenção nou-
Aplica-se ao enunciado ou juízo a regra funda- tra coisa. É certo que cada enunciado tem um objecto
mental que diz: um conceito só pode ser atribuído a determinado, mas não é o objecto que ocupa a lógica;

[40] [41]
ela não se ocupa de saber se ele é ou não é. Simul- gramática e a gramática determina a lógica, até ao dia
taneamente, vemos já em frases como, por exemplo, de hoje uma relação mútua peculiar que adiante
"o céu está encoberto" e "o número é ímpar", com ainda nos ocupará. Para realçar, à partida, a simples
toda a diferença do seu conteúdo e da respectiva área consideração da configuração verbal (gramática) em
do ser, uma determinada identidade no modo como relação ao próprio enunciar, procura-se delimitar este
este é objectivado, destacado, articulado e determi- segundo a sua autêntica função. O enunciar tem a
nado. · peculiaridade de, à partida, decompor um objecto que
Chamamos "forma" a este concordar. A lógica é dado, de o delimitar na decomposição e de, assim,
investiga a forma, mas não o conteúdo. Daí que as for- determinar o todo.
mas fundamentais se possam apresentar em símbolos Este determinar analítico e delimitador chama-se
como A = B, no que A é indiferente. É certo que cada pensar. A lógica é a ciência das configurações funda-
enunciado tem o seu objecto, mas, para a lógica, o tipo mentais do pensar. A lógica, enquanto ciência, brota da
do objecto é indiferente. A lógica incide apenas sobre filosofia, como toda e qualquer ciência, mas precisa-
as formas do enunciado, considera as formas das con- mente nesta forma que foi apresentada ela mesma já
figurações fundamentais e as regras fundamentais do não é filosofia. Quanto mais a lógica se desenvolve,
enunciar e, na medida em que esta consideração é mais ela se torna rapidamente numa mera disciplina
ordenada e articulada, a lógica torna-se uma ciência. escolar que se pode aprender. Nela, trata-se das fór-
Ela é a ciência das formas das configurações fundamentais mulas e regras gerais do pensar. Daí que seja estabele-
e das regras fundamentais do enunciado. cida também nas diferentes ciências como propedêutica
para todo o pensar. Já na colecção dos escritos de Aris-
tóteles, os escritos basilares (a lógica) foram chamados
§2. A Lógica como propedêutica para todo õpyavov, isto é, instrumento fundamental para todo
o pensar. Gramática e lógica. o pensar e conhecer.
História da lógica Esta lógica, assim formada e fundamentada em
Aristóteles, manteve-se essencialmente inalterada, na
Nós encontramos normalmente o enunciado na sua substância e no seu carácter, numa história de dois
linguagem. Esta primeira meditação sobre o enun- milénios até aos dias de hoje.Aquilo que se alterou no
ciado orientou-se pela linguagem. A linguagem tor- decurso da história foi o modo do repensar da lógica
nou-se o fio condutor da meditação sobre o enun- pela filosofia, de acordo com o modo dominante e o
ciado. Daí que também a doutrina da linguagem tenha significado do questionamento filosófico. Além disso,
chegado a uma relação peculiar para com a lógica. alterou-se o modo da fundamentação das regras da
Determinam-se mutuamente. A lógica determina a lógica. Nesta perspectiva do repensar, a lógica experi-

[42] [43]
menta, no decurso desta história, transformações Outros dizem: O mero tomar conhecimento de
essenciais - através de Leibniz, Kant, Hegel e, recente- preceitos e regras não garante o uso correcto nas oca-
mente, na chamada lógica matemática -, mas que não siões certas. Muito mais frutuoso é o treino prático do
são de tipo a abalar a sua autêntica estrutura funda- método do pensar. Este só pode ser alcançado na plena
mental. execução imediata nas diferentes ciências. O pensa-
"Pode reconhecer-se que a lógica, desde remotos mento próprio da física aprendemo-lo da melhor
tempos, seguiu a via segura, pelo facto de, desde Aris- maneira nos laboratórios, o pensamento jurídico nos
tóteles, não ter dado nenhum passo atrás, a não ser que julgamentos, o pensamento médico junto da cama do
se tome como aperfeiçoamento algumas subtilezas doente. Para além disso, quem não trouxer consigo
dispensáveis ou a determinação mais nítida do seu num certo grau a faculdade de pensar, também não
conteúdo, coisa que mais diz respeito à elegância do a alcançará através do estudo da lógica, uma vez que
que à certeza da ciência. Também é digno de nota a própria lógica coloca exigências particularmente
que não tenha até hoje progredido, parecendo, por elevadas ao pensar.
conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos Ainda outros dizem: O estudo da lógica pode ser
pode afigurar" (Kant, Crítica da Razão Pura, Prefácio à supérfluo ou mesmo um obstáculo, em qualquer caso
Segunda Edição, p. LVIII). é uma tarefa legítima em si reflectir sobre as leis fim-
damentais do pensar e assim saber o que a esse respeito
foi descoberto no decurso de uma longa história do
§3. Os três critérios usuais do juízo sobre o espírito humano. Ao fim e ao cabo, tem de "haver
significado, utilidade e valor da Lógica alguma razão" para que Kant, Hegel e outros se
tenham ocupado ininterruptamente com a lógica.
Perguntamos agora: O que é que a ocupação com
esta lógica pode significar para nós e para que serve?
Qual o valor da Lógica? As opiniões sobre este assunto §4. A tarefa necessária de um abalo da lógica
dividem-se.
Alguns dizem:Através do conhecimento das con- De quem tomaremos partido? De absolutamente
figurações lógicas fundamentais, dos conceitos e regras ninguém. Nós queremos abalar a lógica desde o seu
do pensar, o nosso pensamento torna-se consciente do início e a partir do seu fundamento - sob este título
seu próprio método e este método consciente oferece queremos instigar e tornar manifesta uma tarefa fun-
a garantia de uma mais alta segurança e de um maior damental - não por qualquer capricho nem para tra-
rigor. Todo e qualquer domínio da técnica do pensar zer qualquer coisa de novo, mas porque a isso estamos
proporciona vantagens e superioridade. obrigados [weil wir miissen]; e estamos obrigados por

[44] [45]
uma necessidade que talvez um ou outro dos senhores ria espiritual remete para há 2000 anos. Esta história,
experimente no decurso deste semestre. Enquanto nós na sua força instituinte, está hoje ainda presente,
nos limitarmos a discutir se a lógica que veio até aos mesmo que a maioria não suspeite nada disso.
nossos dias é supérflua ou não, afirmando uma coisa Nós conservamos para esta luta a simples palavra
ou outra, movemo-nos no mesmo plano que ela. tradicional "lógica". Seja esta palavra para nós a recor-
Na verdade parece que os opositores da lógica dação de que o nosso Dasein histórico e, com ele, todo
estão em certa supremacia e nos acompanham. Mas o confronto são suportados pela lógica dos gregos.
isto é um engano. Não se trata de recusar a lógica Seja para nós esta designação "lógica" a tarefa de per-
como um cânone de regras vazio. Ao desviarmo-nos guntar de modo mais originário e mais amplo por
dos assuntos do espírito, eles estão longe de ser supe- aquilo que se impôs aos gregos na lógica, como poder
rados; eles regressam com um poder mais forte e sem constituinte, como grandeza da sua existência his-
que nós o queiramos. Todos os que crêem ser livres tórica, e de perguntar por aquilo que mais tarde levou
a este respeito movem-se, apesar disso, nos modos e a cabo a dominação sobre o espírito, como lógica oci-
métodos habituais do pensar deste passado de dois dental.
mil anos. Só um afastamento longo e doloroso nos traz
Com isso, acontece o espectáculo cómico e quase para o ar livre e nos prepara para ajudar a criar a nova
caricato, que consiste precisamente nos muitos medío- forma do discurso [Rede]. Nós prescindimos de toda
cres que hoje lutam e outrora lutaram contra o racio- a aparência de vulgar supremacia, que vê na lógica
nalismo e o intelectualismo, neste se atolam às cegas e apenas o formalismo barato. Nós aprendemos desde há
nele se afundam. muito a tomar a sério o poder do pensar e da sua
Não se supera o intelectualismo com o mero res- superação criadora, sem a qual uma transformação do
mungar, mas através da austeridade e do rigor dum nosso Dasein será inconsistente.
pensar completamente novo e seguro. Isso não acon- Neste querer, nós compreendemos que uma
tece da noite para o dia nem por encomenda. Isto não transformação das ciências, se ela ainda for possí-
acontece enquanto o donúnio e o poder da lógica tra- vel, só será cumprida deste modo: a partir de uma
dicional não se tiverem quebrado. Isso exige uma luta inversão da atitude do saber diante de toda a ciência.
na qual o nosso destino espiritual e histórico se decide, Esta inversão só será criada a partir de uma longa e
uma luta para a qual neste momento nem sequer intransigente consumação do questionar revolucio-
temos as armas, e em que não conhecemos ainda o nário, de um questionar que nos coloca no âmbito da
adversário, de modo que corremos o risco de inadver- derradeira decisão.
tidamente fazer causa comum com o adversário, em O homem é dominado de igual modo pelos
vez de o atacar. Nós temos de saber que a nossa histó- poderes da sabedoria e do erro, do ser e do parecer

[46] [47]
e de nada serve lançar um poder contra o outro, pois - o princípio da contradição,
o homem recebe a sua determinação precisamente da - o princípio do fundamento, sobretudo na
discórdia de ambos. composição da interligação de proposições.
A lógica não é, pois, para nós, um adestramento 4. Reflexão formal. Ela significa que estas con-
para um melhor ou pior método do pensar, mas o figurações (conceitos, etc.) foram tomadas em con-
medir questionante dos abismos do ser, não é a res- sideração, abstraindo do respectivo conteúdo (a maté-
sequida colecção das ·perpétuas leis do pensar, mas o ria). Uma tal reflexão, que abstrai inteiramente da
lugar [Stiitte] da questionabilidade do homem, da sua matéria, chama-se reflexão formal.
medida. Só então a lógica será mesmo tudo menos um
falatório indisciplinado sobre a concepção do mundo, Assim, obtêm-se regras para todo o pensar pos-
mas será, sim, um trabalho sóbrio, imposto por um sível sobre todo e qualquer objecto possível. Esta
verdadeiro estímulo e uma necessidade essencial. configuração que se desenvolveu escolarmente em
conexão com a filosofia, ora serviu como seu auxílio,
ora foi incluída repetidamente nas questões centrais da
Recapitulação filosofia e do saber em geral.
A Lógica, tal como foi desde há séculos ensinada
Assim, nós começámos a pôr em evidência a
entre nós, de modo mais ou menos aborrecido, nas
forma tradicional da lógica. Para a lógica, o enunciado,
escolas e nas universidades, está sujeita a diferentes juí-
o logos, é o discurso designativo, o fenómeno funda-
zos de valor.
mental. À volta disto desenvolve-se o sistema que se
apresenta como a lógica posterior. Eu nomeei a este 1. Uns dizem que ela é um treino formal do
respeito quatro perspectivas, de acordo com as quais se pensar.
revela, em sentido esquemático, a sua construção fun- 2. Outros consideram que ela é totalmente inú-
damental. til, pois o pensar aprende-se só na experiência con-
creta.
1. Decomposição em conceitos, termos, signi- 3. Outros ainda dizem: A questão da utilidade
ficados de termos. prática é inadequada para a Lógica. A Lógica tem em
2. Ligação dos elementos fundamentais do s1, como donúnio próprio do saber, a sua própria
enunciado e, em seguida, do enunciado com outro verdade.
enunciado num contexto de dedução.
3. Estabelecimento de regras para estas confi- Nós não nos pronunciamos sobre estas questões,
gurações (conceito, enunciado, juízo, conclusão) de porque não nos ocupamos propriamente com esta
acordo com Lógica. Nós estamos ante a tarefa fundamental de aba-
o princípio de identidade, lar esta Lógica totalmente - não arbitrariamente, nem

[48] [49]
por teimosia, no proposlto de construir uma nova
lógica. Nós estamos diante do abalar da lógica, que nós
não empreendemos em 1934 com o objectivo de uma
qualquer uniformização, mas na qual trabalhamos há
dez anos, e que se fundamenta numa mutação [TMm-
dlung] do nosso Dasein, uma mutação que significa a PRIMEIRA PARTE
mais íntima necessidade da nossa própria tarefa histó-
rica. Nós trabalhamos num abalo que não podemos
A pergunta pela essência da linguagem
querer, no sentido de um planeamento, mas apenas a como pergunta fundamental
partir de uma necessidade do nosso destino [Geschick]. e pergunta condutora de toda a lógica
Mantemos a antiga designação de "Lógica". Pois
a nossa tarefa não nos desvincula daquilo que é dado
pela tradição. O título deve antes expressar que nos A lógica é a ciência do ÀÓyoç, do discurso; em
comprometemos com o debate criador com a tradi- rigor, da linguagem. Se o pensar, segundo as suas
ção, fazendo despertar as forças originárias. configurações fundamentais e as suas regras, é lógica
De acordo com a concepção geral já esclarecida, e é investigado como saber do discurso, então aí está
a lógica é a ciência das configurações formais e das implícito que o pensar, em certo sentido, é um falar,
regras do pensar. Queremos recordar de novo esta um dizer. Ora esta concepção da filosofia grega não
delimitação da essência da lógica e perguntar por foi fundamentada mais extensamente naqueles tempos
aquilo de que aqui propriamente se trata. -e não o tem sido até hoje. É antes defendida a con-
cepção contrária, de que o dizer não é mais do que
uma forma de expressão e de comunicação do pen-
samento.
A questão não está decidida, devendo para nós
permanecer como questão.
Contudo, podemos dizer, em geral, sem nos
comprometermos com uma definição particular de
lógica: a lógica, num sentido qualquer, tem que ver
com o ÀÓyoç enquanto linguagem. Se o pensar fosse
um tipo de linguagem, poderíamos dizer, de um
modo exagerado, que a lógica é um saber acerca da
linguagem. Certamente que esta concepção soa, à par-

[50] [51]
tida, estranha. Saber se ela pode ser fundamentada, tal mediante esta frase, já foi fixado um determinado
só se pode decidir ao vermos o que, em geral, se passa enunciado sobre a essência da linguagem: designada-
com a relação de pensar e dizer. Não podemos fugir mente, que a linguagem é matéria da Filosofia da Lin-
da pergunta pela linguagem e pela essência da lingua- guagem. Já entrámos, assim, numa concepção muito
gem. A pergunta pela essência da linguagem é a per- específica de linguagem.
gunta fundamental e a pergunta condutora de toda a É que a Filosofia da Linguagem só pode ser pen-
lógica, independenteme-nte do modo como se delimi- sada se for diferenciada da Filosofia da Religião, da
tem os conceitos. Filosofia da História, da Filosofia do Estado, da Filoso-
Ao determinarmos logo à partida, de um modo fia do Direito, da Filosofia da Arte, etc. Todas estas filo-
fixo, a lógica, tomamos a pergunta pela essência da lin- sofias são, ao mesmo tempo, ordenadas umas em rela-
guagem como uma certa referência e princípio con- ção às outras dentro do todo, enquanto área junto às
dutor da pergunta pela lógica. outras áreas, enquanto disciplina dentro de um con-
ceito abrangente de filosofia, a partir do qual é previa-
mente determinado o carácter destas disciplinas.
§5. Objecções contra o procedimento de tomar Se remetemos deste modo a linguagem para uma
a pergunta pela essência da linguagem como Filosofia da Linguagem, então já estamos imediata-
princípio reitor e condutor da pergunta mente aprisionados por uma concepção muito especí-
pela lógica fica. O perguntar pela linguagem já está, no fundo,
abafado. Pois talvez seja um preconceito que a lingua-
a) A linguagem como objecto da Filosqfia da Linguagem gem seja, junto da arte, da religião, do Estado, da his-
tória, etc., também uma área qualquer que se poderia
A pergunta pela essência da linguagem é geral- investigar numa disciplina particular.
mente a tarefa da Filosofia da Linguagem; deste modo, Poderíamos dizer em relação a isso: isso é uma
segundo esta abordagein, a Filosofia da Linguagem guerra de palavras vazia; não há dúvida de que a lin-
seria a antecâmara da lógica. Na medida em que afir- guagem é objectivamente distinta daquelas áreas (reli-
mamos que a Filosofia da Linguagem trata da lingua- gião, natureza, arte, história, etc.) e, assim, é ela mesma
gem enquanto tema da lógica, esquivámo-nos ines- abordável como área específica. Talvez ela seja um tal
peradamente àquilo que se nos colocou como tarefa. objecto específico. No entanto, se permanecermos
É certo que dissemos que a tarefa é a pergunta pela fiéis à nossa tarefa, isso quer dizer que primeiro per-
essência da linguagem. Mas, se afirmamos que esta guntamos se a linguagem representa uma área parti-
tarefa é o objecto da Filosofia da Linguagem, então já cular ou se ela é outra coisa da qual, até hoje, ainda
acabámos com o perguntar - na medida em que, não temos qualquer conceito. Talvez seja ao contrário:

[52] [53]
que só a partir de uma compreensão suficiente da lin- tado. A filosofia procura um saber que, ao mesmo
guagem smja a filosofia. Portanto, não podemos forçar tempo, está antes de toda a ciência e vai para além de
a linguagem e o perguntar por ela no quadro de uma toda a ciência; ela procura um saber que não está
Filosofia da Linguagem. necessariamente ligado às ciências.
Quando desvalorizamos a pergunta pela essência
da linguagem - a partir do campo de visão do jurista
b) Restrição da lógica através da linguagem - como supérflua, ou - a partir do do cientista da
natureza - como despropositada, ou a partir do do
Poder-se-ia agora perguntar: valeria realmente a médico - como insignificante, ou - a partir do do filó-
pena que, com a intenção de uma lógica, nos ocupás- logo - como intrigante, então fazemos um juízo sobre
semos extensivamente com a essência da linguagem? a linguagem e a sua essência sem que tenhamos colo-
Indubitavelmente entramos assim num determinado cado a pergunta por ela. Mas, a um tal procedimento,
âmbito do saber, seja ele a Filologia ou a Teoria Geral a um tal sentenciar sem um prévio questionamento
da Linguagem! A Teoria da Linguagem é uma ciência fundamental chamamos, em geral, leviandade - aqui
que não se dirige aos estudantes de Medicina, nem aos chamamos, porém, uma ridícula arrogância de um
estudantes de História, etc. (dirige-se aos estudantes entendimento limitado que quer ser superior.
de Medicina apenas na medida em que trata, num
pequeno apartado, de perturbações da linguagem), en-
quanto que a lógica consegue interessar qualquer c) A subordinação da linguagem: a lilzguagem como
cientista e qualquer pessoa pensante. Corremos assim meio
o perigo de restringir intoleravelmente a área, de tal
modo que ela perca o seu interesse geral e só sirva Mas, mesmo se tivermos a vontade de nos vermos
ainda à Filologia para uma útil observação adicional. livres deste juízo tacanho sobre as coisas, permanece
Tais reflexões são naturais e, enquanto perma- um elemento estranho em relação à pergunta pela
necermos habituados a ver o mundo na repartição das essência da linguagem, em relação a uma pergunta
áreas científicas, através dos óculos das Faculdades, que, pelos vistos, não nos apanha no meio, mas apenas
também são, dentro de certos limites, justificadas. Mas nos conduz à margem e à superficie. Pois a linguagem
este modo de ver tem a sua justificação apenas no é manifestamente apenas um caminho para a comuni-
pressuposto de que o todo do ente possa ser tornado cação, um canlinho do trânsito, um instrumento de
acessível originariamente através das ciências. troca, um instrumento da representação; ela é sem-
Esta concepção é um erro. É na filosofia que, mais pre apenas um meio para outra coisa, sempre apenas
que em qualquer outro lado, este erro tem de ser evi- o que é posterior, aquilo que é de segundo plano,

[54] [55]
invólucro e casca das cmsas, mas não a sua essência Estamos, assim, diante da situação de a lógica,
mesma. Assim parece. para a qual queríamos criar uma antecâmara através da
Mas quem quereria contestar que não é assim? Só tematização da linguagem, ser agora ela mesma o sítio
que também nos envergonhamos de afirmar que com da origem da linguagem. O nosso perguntar pela
isso se esgota, ou é sequer alcançada, a essência da lin- essência da linguagem em relação à lógica torna-se
guagem. um empreendimento desesperado. Giramos em cír-
culo, na medida em que todo e qualquer acesso à lin-
guagem está já determinado pela lógica.
d) A apreensão da linguagem -pré-formada pela lógica Resumindo tudo aquilo que até agora foi dito,
torna-se claro que este perguntar pela essência da lin-
Mas o que queremos é perguntar pela essência da guagem, por inequívoco que pareça, logo se enreda
linguagem, isto é, não nos queremos fixar numa expli- nas maiores dificuldades:
cação qualquer. Mas então o primeiro requisito é que
1. A linguagem é empurrada para uma área
a linguagem se nos torne acessível, que nos seja como
objectal particular.
que previamente dada para então podermos ques- 2. A linguagem é empurrada para um âmbito
tionar aquilo que ela seja. Onde é que a linguagem 1 que não parece tão abrangente como o pensar formal
nos é mais evidente? Seguramente, uma língua é já da lógica.
fixada num dicionário e analisada na gramática. As 3. A linguagem é secundária, na medida em
formas das palavras do dicionário provêm, de acordo que apenas é meio de expressão.
com a sua delimitação, da gramática. A gramática cria 4. A apreensão da linguagem está, para nós, pré-
as diferenças entre palavra e frase, substantivo, verbo, -formada pela lógica dominante.
adjectivo, epíteto, oração afirmativa, oração condicio-
nal, oração consecutiva, etc.
Ora, toda esta estruturação da linguagem que nos §6. Os dois modos de perguntar. O carácter da
é familiar resultou, no entanto, das determinações fim- pergunta essencial como pergunta preli-
damentais da lógica, surgiu orientada para uma deter- minar e as três perspectivas da pergunta
minada língua (a grega) num determinado tipo de pen- essencial
sar, tal como inicialmente se impõe no Dasein grego.
Quando reflectimos sobre isso, começamos a
1
ficar perplexos diante da nossa tarefa de perguntar
N.T.: Note-se que os termos lí11gua e lillguagem não são,
na língua alemã, diferenciados, tendo, pois, a tradução de Spraclze pela essência da linguagem. Nós temos de procurar
que ser diferenciada segundo os contextos. escapar a este pengo da determinação prematura.

[56] [57]
Temos de nos manter abertos para a essência da lin- essência da linguagem nos lança em diversos temas
guagem. Por outras palavras: perguntar e perguntar dignos de serem questionados. Trata-se, agora, de nos
não são a mesma coisa. Perguntar não é falar à toa, retirarmos destas opiniões prévias que se impõem
nem proclamar pensamentos feitos, também não é a sobre a essência da linguagem, mesmo que isso nos
desamparada vertigem no duvidar, mas o perguntar faça acreditar que, assim, escapamos à essência oculta
em sentido próprio e autêntico tem a sua própria dis- da linguagem e começamos a bater em retirada. Con-
ciplina [Disziplín], isto é, rigor [Zucht]. O perguntar tudo, é necessário um recuar peculiar- um recuar que
autêntico, ou seja, essencial é suportado por aquela todo e qualquer um empreende ao tomar balanço
ordem obscura, a partir da qual emerge um interrogar para um longo salto. É que não existe nenhuma gra-
que o indivíduo que põe a pergunta pela primeira vez dual e constante passagem do não essencial em direc-
não domina, porque o indivíduo não é senão a pas- ção ao essencial. Cada um deve saltar este salto por
sagem para a história de um povo, dirigido por aquele si mesmo, ninguém pode fazê-lo por outro e nem
irradiante desassossego, cuja superação exige rigor na sequer por uma comunidade, por muito autêntica
atitude e autenticidade do carácter. Para o pequeno- e indispensável que ela seja. Cada um deve arriscar o
-burguês no campo do saber a penetrante vontade de salto por si mesmo, se quiser ser membro de uma
questionar é incómoda. Para a classe média do espírito comunidade.
toda e qualquer questionabilidade mais longa trans- Nós devemos e queremos colocar eficácia neste
forma-se imediatamente em desagregação e, com isso, questionar e, por isso, temos de clarificar para nós,
torna-se suspeita. Isto está muito bem e nunca será pelo menos nos seus contornos, a força motriz de um
alterado. tal perguntar e o seu carácter, para conseguirmos efec-
Daí não se conclui, porém, que o espírito tacanho tuar em conjunto este caminhar do questionar.
seja a única medida do que é autêntico, do que é Toda a pergunta essencial tem o carácter de uma
essencial e do que não é essencial. O verdadeiro ques- pergunta preliminar e esta deixa-se caracterizar de
tionar exige a vocação e a cultura, a longa educação acordo com três aspectos:
e o longo treino. Por essa razão permanecem tam-
1. Toda a pergunta pela essência é uma per-
bém inúteis todas as belas palavras sobre o perguntar.
gunta preliminar no sentido de que ela é um pro-
O perguntar treina-se apenas no modo do perguntar
cedimento à maneira de um ataque que cria um
[que consiste] num longo aguentar de perguntas es-
caminho, rasga uma via, abre de todo em todo pela
senCiais.
primeira vez um âmbito, cujas fronteiras, direcção e
Nós retomamos, agora, a nossa pergunta pela es- extensão ainda permanecem muito tempo na escuri-
sência da linguagem e recordamo-nos de que a trans- dão. Para a nossa temática isto significa: em que direc-
formação da lógica na tarefa global da pergunta pela ção perguntamos nós, quando perguntamos pela lin-

[58] [59]
guagem? O que se passa com a linguagem? Que essência for dada como resolvida, então começaram
género de ser tem uma língua? Será a língua verda- já a decadência e a má interpretação ilimitada. Filoso-
deiramente registada no dicionário? Ou noutro lugar? far não é senão um constante estar a caminho neste
Existirá, pois, alguma coisa como uma linguagem em domínio prévio das perguntas preliminares.
geral? Ou será que a língua de cada um, a língua his-
tórica, é essencial? Se for sim: porquê e de que modo?
2. Toda a pergunta pela essência é uma pergunta Recapitulação
preliminar, não apenas no sentido de que ela avança
para a totalidade da essência, mas também no sentido
Nós realizamos a nossa tarefa sob o título tradi-
de que ela extrai e obtém, no modo interrogativo,
cional de "lógica" e queremos com isso indicar que
os traços específicos desta essência. Para a linguagem
esta tarefa não é nenhuma inovação arbitrária, mas,
isto quer dizer: o que faz parte de uma língua? O que
mesmo que ela seja nova, é só, apesar disso, a efectiva-
a torna intrinsecamente possível? Qual é o funda-
mento da sua possibilidade? Onde se converte este ção das necessidades que residem no desenvolvimento
fundamento em abismo? do espírito ocidental.
3. Toda a pergunta essencial é uma pergunta É necessário tornar claro o que quer dizer que a
preliminar, não só no sentido de que ela avança, mas disciplina Lógica, que vale como ciência do pensar,
também no sentido de que ela precede todo o per- compreende efectivamente o pensar como À.Óyoç.
guntar individual e particular no respectivo domínio. - Esta observação é para nós decisiva - o pensar
Em toda a filosofia e ciência da linguagem, em todo entendido no sentido do articular [Reden]. O pensar
o campo do discurso, em cada atitude do homem, já é aqui interpretado no sentido do articular [Reden] e
permanece inarticulada uma determinada resposta à falar [Spreclzen]2. Se isto foi alguma vez um facto, hoje
pergunta pela essência da linguagem. desapareceu completamente.
Nós conservamos o velho estado das coisas, no
A pergunta preliminar tem, por conseguinte, um sentido em que determinamos a lógica como pe1;g11nta
triplo sentido: pela essência do À.Óyoç, a linguagem [Sprache] no mais
1. Ela pergunta para diante. vasto sentido. Daí resulta para a reflexão habitual que
2. Ela extrai a estrutura fimdamental. o tratamento do tema é de certa maneira deslocado
3. Ela precede.

Ao contrário daquilo que nós designamos geral- 2 N.T.: A distinção entre Rede (articulação da inteligibili-
mente por perguntar, a pergunta preliminar nunca é dade) e Spmche (linguagem factica) é um tópico capital de Sei11
integralmente resolvida. Se alguma vez a pergunta pela rmd Zeit.

[60] [61]
para uma Filosofia da Linguagem. Com isso, porém, deriva da lógica grega, que determinou os conceitos
aconteceu uma dupla decisão prévia: fundamentais e regras do falar e dizer. Nós chegamos
1. Um âmbito especial, frente aos âmbitos do à situação peculiar em que, por um lado, nos livramos
Estado, da religião, da arte, etc., é encerrado. da lógica, para, por outro lado e ao mesmo tempo,
2. Esse donúnio e o modo de o tratar é desti- recairmos nos grilhões da lógica.
nado a uma filosofia, a um sistema que, de alguma A pergunta pela essência não é evidente, não
maneira, é predetêrminado. pode ser iniciada ao nosso bel-prazer, pois tem um
carácter específico. Três direcções são-lhe caracte-
Devido a este antecedente nós não podemos, rísticas:
à partida, admitir a Filosofia da Linguagem e um ques-
1. A pergunta pela essência é uma pergunta
tionar no sentido da Filosofia da Linguagem, se qui-
preliminar, no sentido em que ela precede, rasga uma
sermos questionar, como verdadeiros questionadores,
via, inaugura um donúnio ao qual pertence o per-
se quisermos deixar em aberto a pergunta sobre a
guntado.
essência da linguagem.
2. A pergunta pela essência é uma pergunta
Um outro reparo consistia em que nós, com este preliminar, no sentido em que ela, neste avanço, ao
colocar a pergunta pela linguagem, restringimos a mesmo tempo pergunta pelas primeiras referências
lógica (frente ao pensar).- Mas o perguntar pela lin- daquilo que foi perguntado, os primeiros traços, o
guagem apenas significa um estreitamento da lógica se contorno - e assim esclarece o que, por exemplo,
virmos a linguagem sob o ponto de vista de uma faz parte da linguagem, em que reside o fundamento
determinada ciência (faculdade), se se pensar que o do seu ser.
valor e o sem valor de uma coisa, de uma situação, se 3. A pergunta pela essência é uma pergunta
deixa decidir a partir de uma ciência. Isto é um erro! preliminar, enquanto ela antecede todo o perguntar
A filosofia é uma outra coisa diferente da ciência. determinado. Em todo o questionar histórico (ou
Além disso, não nos esqueçamos que a lingua- científico-natural) reside uma pré-compreensão não
gem, mesmo se quisermos compará-la ao pensamento, expressa da história, natureza, etc.
de acordo com a extensão do seu donúnio, permanece
sempre algo de segundo plano: um meio de expressão, Estas perguntas prévias nunca podem ser consi-
só invólucro e casca. deradas resolvidas. No momento em que a pergunta
Finalmente, impulsionados pela marcha natural pela essência é considerada resolvida, é também criado
da ciência, deparamo-nos, por fim, no instante em que o caminho para a in-essência [Unwesen]. Filosofar não
tentamos perguntar pela linguagem, com o dicionário é outra coisa senão o permanente estar a caminho no
e a gramática - para verificar que toda a gramática âmbito prévio da pergunta preliminar.

[62] [63]
Quando nós procuramos perguntar o que a filo-
sofia é, o que é a linguagem, o que é a arte, o que é o
povo, então tocamos sempre em algo grande no seio
do Dasein do homem, em algo que ultrapassa o indi-
víduo e simultaneamente o confunde.
Tudo o que é grande no Dasein humano é ao PRIMEIRO CAPÍTULO
mesmo tempo tambêm pequeno, ao mesmo tempo A pergunta pela essência da linguagem
diminuído e, com isso, ambíguo. O dia-a-dia normal do
homem precisa desta diminuição, o dia-a-dia necessita
desta mediocridade, senão o homem não poderia exis- Nós começamos com a pergunta pela essência,
tir neste dia-a-dia. É um mal-entendido querer eli- por conseguinte com a pergunta preliminar. Nós per-
miná-la; ela é útil para o indivíduo e para um povo, guntamos: a que domínio pertence algo assim como
ela é, quando é compreendida nos seus limites, ino- a linguagem? Existirá tal coisa como a linguagem em
fensiva. Ela só é perigosa quando, através dela, o algum lugar?
pequeno é ainda mais diminuído, quando nos esque-
cemos de exigir de nós mesmos a veneração e o rigor
diante das coisas. A grandeza só é conservada quando §7. A linguagem - conservada no dicionário
o homem consegue engrandecer a grandeza, isto é,
exigir de si mesmo rigor diante da grandeza. Isto vale Nós dissemos na última aula que a linguagem
também para aquilo que vamos questionar agora, para estava capturada e conservada no dicionário. É certo
a linguagem. que um dicionário é algo relativo à linguagem, no-
meadamente uma imensidão de fragmentos isolados
e pedaços da língua. Nós dizemos dicionário [Worter-
buch], estão aí vocábulos [Worter] e não ditos [filk>rte],
nada falado. Estes vocábulos não estão, porém, isola-
dos, não estão aí de modo caótico, eles estão orde-
nados segundo a ordem do alfabeto que, em relação à
ordem das palavras faladas, é sem dúvida inteiramente
diferente. Esta soma dos vocábulos no dicionário per-
tence, num sentido determinado, à linguagem.
Ora, se nós admitimos que esta soma de vocá-
bulos pertence à existência da linguagem, qual é a sua

[64] [65]
..

extensão? Estarão todos os vocábulos no dicionário?


Ou será que a língua é delimitável por um determi-
I
I

falam ao mesmo tempo? Estará aí a língua por inteiro


e efectivamente? Ou será que uma língua, neste sen-
nado número de vocábulos? Ou será que a língua está tido, nunca poderá ser efectiva, mas sê-lo sempre ape-
em constante formação e volta, por outro lado, a rejei- nas parcialmente, de modo que nunca acontece que
tar ditos e vocábulos que desaparecem depois subi- uma língua seja?
tamente? Que estado. da língua deve ser de todo em Suponhamos que se dê o caso de todos os homens
todo compreendido num dicionário? Não será um de uma comunidade linguística falarem ao mesmo
dicionário como um ossário num cemitério, onde os tempo esta língua. Estaria com isto garantido que
ossos e os restos mortais de homens há muito desa- agora toda a linguagem seja falada, que toda a lingua-
parecidos estão empilhados muito cuidadosamente, de gem chegue a língua? Presumivelmente ou até mesmo
tal modo que, através desta estratificação, toda a ruína certamente, permaneceria aí muita coisa por dizer,
se torna manifesta? se a linguagem fosse falada numa só perspectiva deter-
minada, por exemplo, enquanto linguagem quoti-
diana. Como poesia, por exemplo, a linguagem per-
§8. A linguagem como acontecimento no diálogo maneceria completamente não realizada; assim, mais
uma vez, ela não seria ela própria no seu ser total.
Está claro: nós não encontramos a linguagem no Mesmo supondo que a linguagem fosse verda-
dicionário, mesmo que toda a sua existência aí esteja deiramente falada em todas as suas direcções e pos-
registada. A linguagem está só aí onde ela é falada, sibilidades, e se seguisse então a sacudidela de um
onde ela acontece, isto é, entre os homens. Havemos tremor de terra, de tal modo que toda a comuni-
de olhar à nossa volta para aprendermos onde e como dade emudecesse de susto, deixaria então a linguagem
uma língua enquanto língua acontece. de ser?
Por conseguinte, uma pessoa fala com a outra, Existirá, pois, a linguagem só quando ela é falada?
entram num diálogo. Logo se afastam uma da outra e Ela não existirá quando as pessoas se calam? Ou será
já não falam. Será que a linguagem deixa de existir? que uma linguagem nunca é, mas surge sempre de
Ou talvez entretanto, em qualquer lugar, numa outra novo no instante do falar? Então ela estaria sempre em
oportunidade, falem outros homens uns com os ou- devir e a passar, não teria nenhum ser, mas seria sem-
tros? Deste modo, a língua salta de um grupo a outro pre um devir. Restaria, então, certamente perguntar se
e está assim continuamente em mudança. Sempre este devir não será também um ser. Supondo que nós
haverá muitos que não falam enquanto outros falam. temos de considerar tudo o que não é nada, como um
Quando e onde está então esta língua? Estará apenas lá ente ou ser, então a linguagem também é, embora ela
onde todos os homens de uma comunidade linguística constantemente esteja em devir.

[66] [67]
Onde, quando e como é uma língua? Nós disse- Os antigos romanos diziam: Homo est animal rationale,
mos espontaneamente: só aí, onde ela é falada, só o homem é um ser vivo, a saber, um ser racional.
então quando ela é falada. Nós vemos agora que esta Por conseguinte, o homem neste modo de ser é,
indicação, muitíssimo ambígua, é acima de tudo ques- à partida, como ser vivo - diferentemente de todos os
tionável. seres não vivos (da simples matéria) -como qualquer
Se nós olharmos à nossa volta na Filosofia da Lin- coisa viva. Ele tem em algum sentido o modo de ser
guagem e aí procurarm:os esclarecer, nos diversos siste- da vida. Mas ele - diferentemente dos seres vivos -
mas, como se pensa o ser da linguagem, então pro- destaca-se no meio dos seres vivos (planta, animal)
curamos a resposta em vão, pois lá a pergunta não é como racional (Àóyov exov). O Homem é aquele ser
sequer colocada. O esquecimento desta p"ergunta preli- que dispõe da linguagem, que possui a linguagem. Esta
minar é a causa de que a especulação acerca da lingua- determinação da essência do homem, há muito fami-
gem paire sem fundamento na Filosofia da Linguagem liar, mas desvanecida, é, por conseguinte, cumprida
e ataque no vazio; precisamente este descuido conduziu pelos gregos de um modo originário, em relação à lin-
a uma série de pseudo-problemas correntes. guagem, em referência a que a linguagem destaca o ser
do homem.
Mas então e agora? Nós dizíamos agora mesmo:
§9. A linguagem - determinada a partir do modo o ser da linguagem que é enigmático e obscuro deve
de ser do homem. A resposta da metafisica experimentar clarificação a partir do ser do homem.
Agora dizemos, inversamente: o ser do homem é
Contra o nosso reparo de que o ser da linguagem determinado em relação ao ser e à essência da lingua-
não é questionado nem determinado, ergue-se uma gem. Isto é uma situação altamente desagradável, isto
contraposição. Respondem-nos que o modo de ser da é, pelos vistos, um movimentar-se em círculo.
linguagem está há muito fixado. Nós mesmos já deter- E se nós agora não nos desviarmos deste movi-
minámos de forma suficientemente segura onde pro- mento circular e não o afastarmos com quaisquer
curamos o ser da linguagem. A linguagem é uma ac- informações pouco convincentes, se levarmos a sério
tividade humana. O modo de ser desta actividade este facto peculiar do círculo, chegamos com o tempo
é determinado a partir do modo de ser do homem, a uma determinada corrente de ar que surge em redor
pois só o homem - de modo diverso do que a pedra, do círculo. Esta circularidade torna-se aos poucos num
a planta e o animal - fala. O ser do homem com- remoinho. Este remoinho puxa-nos lentamente para
preende em si o ser da linguagem. um abismo, mas só quando não nos desviamos logo
E o que é o homem? Isto sabe-se há muito. deste movimento circular. Certamente, nós somos
o homem (diz a filosofia grega) é Çwov À.Óyov exov. capazes disto, ninguém nos pode impedir. Ainda temos

[68] [69]
a escolha. Diante da pergunta o que é o homem, nós Quando agora colocamos a pergunta sobre a
podemos esgueirar-nos sem ninguém o impedir, po- essência da linguagem, perguntamos pela essência do
demos talvez ainda deliberar e talvez cavaquear sobre homem. Nós vemos agora mais claramente que esta
a essência do homem, podemos dedicar-nos às nossas pergunta pela essência da linguagem não é, de facto,
ciências e cuidar que nos oiçam e que passemos nos nenhuma questão da filologia e da Filosofia da Lin-
nossos exames, podemos cumprir os nossos deveres e guagem, mas uma necessidade do homem, caso o
tornarmo-nos um membro útil da comunidade. homem tome a sério o homem.
Podemos chegar à opinião de que um questionar Devido a esse facto, de que nós decidimos pôr
no qual o homem olha para trás é doentio, de que esta questão, nós não escapamos ao embaraço da colo-
seria o tempo de libertarmo-nos da reflexão e chegar cação da pergunta, não escapamos a este estranho cír-
à acção. Certo: um tal perguntar é um obstáculo, per- culo. Existirá algum caminho para progredir na discus-
turba o sono e não há como dormir bem [forte são daquela dependência recíproca?
patear3]. Que necessidade temos nós de saber e de Talvez não precisemos de antepor a pergunta pela
perguntar o que o homem é? É que o homem sem linguagem como uma pergunta isolada, mas talvez
isto já está carregado de saber. O homem é precisa- possamos tomar em conjunto homem e linguagem e
mente aquele que sabe. O homem é saber - e não sabe perguntar pelo homem como homem que fala. Esta
o que ele mesmo é. abordagem vai, de um certo modo, ao encontro do
Nós podemos aceitar isto como uma simples verdadeiro facto do ser do homem. Nós investigamos,
verificação e podemos passar isto por alto em nome por conseguinte, que espécie de ser é esse, o homem.
das exigências do dia-a-dia. Nós podemos, contudo,
sentir nesta verificação de que o homem sabe e não
sabe o que ele mesmo é, um juízo inquietante. Um
estado inquietante que não perde nada pelo facto de
aqueles que são homens joviais e felizes não suspei-
tarem disso. Nós podemos prescindir da pergunta, mas
também podemos perguntar. Ambas as coisas estão em
nosso poder, porque temos liberdade. Decidimos deste
ou doutro modo, em conformidade com o tomarmos
a sério ou não aquilo que, como homens, somos.

3 N.T.: Na Universidade alemã os aplausos assunuam a


forma usual de um patear.

[70] [71]
SEGUNDO CAPÍTULO
A pergunta pela essência do homem

A pergunta pela essência da linguagem ampliou-


-se inesperadamente para a questão: "O que é o ho-
mem?" Contudo, agora começa a mesma dificuldade
que já experimentámos com a pergunta prévia. Com
efeito, a linguagem não paira no ar, mas pertence ao
ser do homem. Mas qual o lugar do homem? Onde
está o homem na totalidade do ser?
Nós podemos também deter-nos aqui de novo
com o perguntar e dar o esclarecimento de que esta
questão está decidida por toda a eternidade através do
Antigo e do Novo Testamento. Mas então nós temos,
contudo, que levar a sério esse esclarecimento. Se qui-
sermos tomá-lo a sério, devemos declarar que este
esclarecimento é um esclarecimento da fé e temos de
verdadeiramente crer nele de agora em diante e não
fingir por detrás, como se perguntássemos.
Mas a essência do homem pode também verda-
deiramente ser e permanecer questionável, mesmo
que apenas 110 swtido de estarmos indecisos e perple-
xos entre diferentes respostas à pergunta pela essência
do homem- respostas, como, por exemplo: o homem
é o mamífero mais desenvolvido e o animal domi-
nante no interior da evolução, por isso é o último

[73]
ramo na árvore genealógica da vida na história da A gramática não é o primeiro, nem o modo decisivo de
terra. Esta resposta quer sobressair, embora ela se tenha compreensão da linguagem. Nós perguntamos pela
já tornado impossível como uma resposta da filosofia essência da linguagem. A lógica é a pergunta pela es-
da natureza. sência da linguagem. A lógica nunca é uma disciplina
Ou é dito: O homem é o olhar retrospectivo escolar poeirenta e murcha. Para nós, a lógica é antes o
e criador da natureza sobre si mesma (Schelling); o nome para uma tarefa, nomeadamente a tarefa de pre-
homem é um predador (Spengler); o homem é algo parar a geração vindoura, para que ela se torne de novo
que deve ser ultrapassado (Nietzsche); o homem é um sapiente, uma geração que seja sapiente e queira saber,
animal doente, um caminho errado, um beco sem e possa ser verdadeiramente sapiente.
saída, no qual a corrente da vida acabou por se perder. Para isso não é necessária a ciência. Aquele saber
Então: o que é o homem? está antes e, ao mesmo tempo, acima da ciência. Por
isso, a decisão sobre a ciência não é tomada na ciência
e nas suas disciplinas, mas ela é tomada na e com a filo-
Recapitulação sofia: com a questão - se nós conseguimos ou não de
novo a força de um saber originário sobre a essência
Nós repetimos o percurso realizado até agora das coisas.
para recuperar o ponto em que estamos e a direcção. Para esta preparação da disposição de um saber
A lógica permanece também para nós aquilo que trata autêntico serve a futura lógica. Nós perguntamos pela
do À óyoç. Mas não permanecemos cegos na com- essência da linguagem. A pergunta pela essência é,
preensão da história do espírito ocidental até aos nos- porém, sempre uma pergunta prévia, e na verdade uma
sos dias. A lógica não é o simples coligir das formas e pré-pergunta num triplo sentido:
regras do pensar, mas a lógica é para nós um questio- 1. ela pergunta para a frente, abre um domínio
nar. Não podemos por isso, à partida, incluir o con- da questão.
ceito e a essência do ÀÓyoç numa compreensão deter- 2. ela pergunta insistentemente pela determina-
minada. ção da essência.
À partida, o ÀÓyoç deve ser geralmente conside- 3. ela está sempre diante das questões concretas
rado como discurso [Rede], como o falar [Sprechen]. e é co-determinante.
Por conseguinte, para já perguntamos pela essência da
linguagem, mas não numa Filosofia da Linguagem que Nós começámos a colocar a pergunta essencial
rebaixa a linguagem a um certo domínio especial. Nós como pergunta preliminar: a que é inerente algo assim
não tomamos a linguagem como algo de segunda como a linguagem? Partimos, nesta ocasião, do que é
ordem, por exemplo, como um meio de comunicação. mais evidente. A linguagem está registada no dicioná-

[74] [75]
rio e na gramatlca. No dicionário encontramos na É característico do pensamento filosofante o
verdade um certo inventário de palavras, mas só como mover-se num remoinho que conduz a um abismo.
uma coleccão, de ossadas. Nunca aí alcancamos
, a lin- A filosofia está sempre em remoinho. Pelo contrário,
guagem viva. A linguagem [Sprache] viva é um falar na ciência o objecto está objectivamente presente
[Sprechen]. [Vorhanden], nós estamos sempre num certo sentido
Assim, a próxima questão é do seguinte teor: diante dele, mas nunca chegamos assim a um questio-
como é o falar? E que. falar constitui verdadeiramente namento filosófico.
a realidade da linguagem? Será que a linguagem só é Há uma coisa que é evidente: nós devemos ligar
real quanto este ou aquele fala, ou será que ela só se a pergunta "o que é a linguagem?" com a pergunta
torna real quando todos os pertencentes a uma comu- "o que é o homem?". Procurámos colocar a pergunta
nidade linguística falam simultaneamente? Terminará "o que é o homem?" e vimos que podemos indicar
ela quando ninguém fala? diferentes respostas. A resposta do Antigo e Novo Tes-
Procurar a realidade da linguagem no falar é tal- tamento é certamente entendida apenas como resposta
vez mais promissor que procurá-la no dicionário. no sentido de crença. Mas podemos também deixar a
Contudo, a indicação de que a linguagem repousa no essência do homem como questão em aberto. Quando
homem não satisfaz, enquanto não soubermos como e nós olhamos para trás, para a história mais recente,
onde está este falar. Este falar acontece entre pessoas. encontramos o homem definido, na biologia, como o
É uma actividade humana. A linguagem é um atributo mais tardio e exterior ramo da árvore da vida na idade
do homem. Quando nós colocamos a pergunta em da terra, no Romantismo, como olhar criador retros-
toda a sua dimensão, chegamos até à pergunta: o que pectivo da natureza sobre si própria, em Spengler,
é o homem? A resposta a esta questão foi já dada na como animal predador ou, em Nietzsche, como aquilo
antiguidade: avepc.JlWÇ (GJOV ÀÓyov EXOV. 0 ho- que dever ser ultrapassado.
mem é aquele ser vivo que dispõe da linguagem. O que é o homem? Onde devemos ir buscar a
Deste modo estamos numa situação peculiar. resposta apropriada? Pelos vistos, a pergunta não se
Nós encontramos a linguagem apenas determinada deixa responder sem mais, pela discussão de um con-
a partir do ser do homem - e depois a essência do ceito vazio do homem. Pois também um tal conceito
homem, por seu lado, determinada a partir da lingua- é sempre tirado de uma certa experiência do homem.
gem. Estamos aqui na situação especial do movi- Por conseguinte, devemos olhar em volta para as dife-
mento circular. Como havemos nós de sair fora do rentes formas de vida, raças, culturas, concepções do
círculo? De modo nenhum! Não devemos sair, mas mundo e épocas. Quando fizermos isto saberemos
sim permanecer no círculo e pôr em acção este movi- então o que é o homem? Podemos, quanto muito,
mento em remoinho. coordenar as variedades da humanidade, compor uma

[76] [77]
espécie de herbário. Podemos então ver que este ou [ Vorhandenes], ordenamos de acordo com a espécie e o
aquele homem pertencem a tal ou tal tipo. Mas a per- género, e expomos conforme a ordem à vista. Mas de
gunta - o que é o homem? - não está assim respon- que outro modo havemos nós de lançar o olhar inter-
dida. Nós apenas dizemos que espécie de Homem rogativo prévio sobre o homem, enquanto pergun-
é precisamente esse homem. Isto não é nenhuma tamos pela sua essência? A essência de uma coisa
reposta à pergunta pela essência do homem. significa, pois, aquilo que ela é. Cada ente tem, pois,
uma essência!
Contudo, nem toda a essência se deixa determi-
§10. A recta colocação da pergunta preliminar. nar como ser o quê? [JiJ.ilssein], a saber, não quando já a
A pergunta pelo quê e pelo quem pergunta nos afasta constantemente na direcção do seu
perguntar pelo quê, em vez de nos aproximar do ente
Já mencionei que a pergunta pela essência tem o em questão - e faz desse modo do nosso perguntar um
carácter de uma pergunta preliminar. Isso significa perguntar enviesado.
que, em relação à pergunta pela essência, não é indife- Temos de decidir se nos movemos num tal per-
rente como e em que direcção a pergunta é colocada; guntar enviesado, quando perguntamos "o que é o
não é indiferente se a direcção é seguida, se, ao pri- homem?". Não haverá ainda uma outra forma de per-
meiro arranque, nós acertamos o suficiente ou se a guntar? Certo! Em vez de perguntar "o que é o ho-
pergunta, ao ser colocada, permanece insuficiente- mem?", nós podemos perguntar "como é o homem?".
mente determinada. A pergunta preliminar tem de Isso pode significar: qual a sua constituição? Qual é o
satisfazer todas as três condições, ela tem de ser colo- seu modo de ser?
cada de modo genuíno e determinar suficientemente, Ora deixa-se facilmente ver que a pergunta
a fim de que permaneça vigorosa para as perguntas "como é o homem?" reconduz sempre à pergunta:
ulteriores e não seja avassalada por uma resposta "o que é o homem?". O como é - uma coisa como
casual. uma montanha, um algarismo, etc. - determina-se a
Mas como havemos nós, no nosso caso, de chegar partir daquilo que o respectivo ente é. A questão do
à situação de errar no perguntar? É que nós pergun- como não nos liberta da questão do que.
tamos de modo totalmente imparcial: "o que é o Não existirá nenhuma outra possibilidade de
homem?" Mas precisamente com esta pergunta errá- colocar a pergunta pela essência do homem, enquanto
mos já no perguntar - pois perguntámos "o que é o nós não compreendermos até que ponto esta pergunta
homem?". Nós avaliamos o homem, à partida, como em relação ao homem é uma pergunta errada. Toda
uma coisa, um objecto, como aquilo que nós acha- a pergunta, e a pergunta pela essência num sentido
mos, achamos e encontramos como objecto presente eminente, surge perante o que nos causa estranheza.

[78] [79]
A estranheza não é porém afastada através do pergun- À pergunta - como se definem os nós e vós, e eu, e
tar. No perguntar, nós deixamos vir sobre nós o que é tu -, poderíamos responder: eles são, diferentemente
estranho mas não vir de tal modo sobre nós que nós das plantas, animais, pedras, etc., pessoas e associações
nos afundemos nele. Nós enfrentamos o estranho. de pessoas. Mas o que devemos entender nós sob o
Quando nós, no nosso donúnio, nos encontramos título "pessoas"? Independentemente do facto de eu,
com um homem como uma coisa estranha, como tu, nós e vós não serem inequívocos, nem claros na sua
vamos ao seu encontro no perguntar? Nós não per- origem, verificamos que, com esta resposta, nos des-
guntamos de modo indeterminado, o que, mas sim viámos da direcção da pergunta para a pergunta pelo
quem ele é. Nós não questionamos e experimentamos quê, pois procurámos determinar o que os tu, eu, e vós,
o homem no âmbito de tal coisa [So] ou do quê, mas e nós são. Nós temos, contudo, de conservar a direc-
no âmbito de um tal, de utna tal, de nós. ção da pergunta pelo quem e temos de perguntar quem
A pergunta pela essência é uma pergunta preli- vem ao nosso encontro, a partir da direcção dessa
minar. A autêntica e justa pergunta preliminar não é a pergunta.
pergunta pelo que, mas a pergunta pelo quem. Nós não Quem és tu? Quem és tu mesmo? Quem sou
perguntamos "o que é o homem", mas "quem é o eu mesmo? Quem somos nós mesmos?- a pergunta
homem". Isto parece ser uma mera questão verbal e, pelo quem aponta para o donúnio daquele ente que
contudo, com este enfoque da questão foi dada uma é sempre um si mesmo [Selbst]. Assim, nós podemos
direcção determinada à resposta. determinar a resposta à pergunta prévia: o homem é
Na sequência desta direcção da questão, a essên- um si mesmo.
cia do homem tem de cintilar agora como que num Quem nos dera saber agora o que é um si
primeiro clarão. À pergunta responde o questionado mesmo! Aqui falta-nos completamente o conceito.
"eu" ou, quando são 1nais pessoas, "nós". Ou respon- Nós pressupomos de maneira pouco clara um deter-
demos com um nome próprio. Por isso a pergunta minado sentido. Compreendemos o que quer dizer
preliminar reza sempre assim: "quem és tu?", "quem nós mesmos, tu mesmo, eu mesmo. Mas a determinação
. vos.
sois , ?" , " quem somos nos
, ?"
.. da essência precisa sempre do conceito. Assim a res-
posta prende só de momento o que é estranho. Por-
tanto, o estranho também não desapareceu, pelo con-
§11. O homem como um si mesmo trário.
Mas o estranho não está no facto de não termos
O nós, o vós, o tu, o eu são aquilo por que se per- do si mesmo nenhuma definição, mas no facto de, com
gunta. Por conseguinte, os homens são-nos dados, o nosso perguntar, já por duas vezes nos termos des-
numa primeira abordagem, como nós e vós, e eu, e tu. viado do sentido. É certo que nós conservámos a

[80] [81]
direcção quando já não perguntávamos "o quê", mas como orientação para o si mesmo, nomeadamente
sim "quem". A resposta "ele mesmo" está correcta, para nós mesmos.
na medida em que dizemos aquilo que já se mostrou - Quem somos nós mesmos?- Isto torna-se len-
a nós, na direcção da pergunta. Ela é, porém, não ver- tamente claro quando nós percorremos passo a passo
dadeira, na medida em que ela oculta o que nela per- e de modo rigoroso a pergunta pela essência do
manece propriamente encerrado. Na ciência, sabemos homem. Daí resulta a dificuldade peculiar. Não admira
em geral dizer muitas ~oisas correctas, mas muito pou- que a pergunta pelo homem, como pet;gunta, até agora
cas verdadeiras. A ciência move-se a maior parte do tenha sido tão pouco desenvolvida, não admira que as
tempo em redor do correcto e não do verdadeiro. respostas sejam tão confusas, acidentais e indecisas. Pois
Ora, em que medida é, porém, apesar de tudo, um labirinto após outro espreita no caminho. Não
a resposta em si correcta -"o homem é um si mesmo" somente esquecemos logo, perante a correcção da
- não verdadeira? Porque nós não persistimos na per- resposta, a verdade da resposta - nós ignoramos tam-
gunta, não respondemos a partir da direcção que a bém sempre de novo a verdadeira ordem interna e a
pergunta aponta. "Quem é o homem?" - um si sequência da pergunta.
mesmo. - "Quem e, um ser s1. mesmo.?" - nos. " ' - Parece que a pergunta "o que é um si mesmo?"
"Quem somos nós então, quem somos nós, nós, os que é correcta. Nós vemos, porém, já na forma interroga-
perguntamos.?" tiva "o que é?" que nos afastámos de novo da direcção.
A pergunta preliminar funda-se no homem, como Na verdade mostrar-se-á que a pergunta "o que é o si
um si mesmo. A pergunta reenvia o que pergunta em mesmo?" está correcta num determinado ponto da sua
direcção a si mesmo. Nós mesmos somos os questiona- direcção, mas apenas num determinado ponto - e só
dos. Quando o perguntador pergunta quem o homem então quando desenvolvemos suficientemente a direc-
é como um si mesmo, torna-se ele mesmo o questio- ção da pergunta.
nado. Por isso, a pergunta não diz: - "o que é o À partida, podemos, porém, passar bem sem o
hornem.?" -, nem - " quem e, o hornem.?" -, mas - conceito do si mesmo. Apresentámos aqui a prova. É que
"quem somos nós mesmos?" compreendemos a pergunta enquanto ela se dirige a
Assim, está definitivamente excluído que nós per- nós. Nós temos uma pré-compreensão da palavra e do
guntemos por tipos, épocas, culturas. Perguntamos por seu significado, contudo, uma compreensão não concep-
aquilo que é perguntado na pergunta. Nós aceitamos tual, não a podemos definir logo à primeira. Enquanto
a resposta correcta como resposta verdadeira só então aspiramos ao conceito, nós designamos a pré-com-
quando, nesta resposta, não esquecermos a pergunta preensão de pré-conceptual. A resposta "o homem é
incluída, quando não entendermos mal a resposta, um si mesmo" descobre-se-nos como pergunta que
como determinação do quê, como propriedade, mas aponta na direcção de nós mesmos.

[82] [83]
Ficamos expostos durante todo o percurso à como consciência, razão, espírito - isto não é apenas,
pergunta "quem somos nós?", e quanto mais verda- aqui na aula, um desenvolvimento conceptual formal,
deiramente a percorrermos, tanto mais insistente- mas é o curso do desenvolvimento da autocompreen-
mente toda a pergunta posterior reconduzirá a nós são do homem da Idade Moderna.
mesmos. Portanto, não progredimos, mas andamos à Com esta reflexão afastámo-nos de novo da nossa
volta de nós mesmos cada vez mais perto e mais niti- pergunta e, na verdade, logo no início da nova aborda-
damente. · gem. Dizíamos: cada um de nós é ele mesmo e como
tal um eu mesmo. Este enunciado não só é não verda-
deiro, como, desta vez, é até não correcto, enquanto o
a) O eu - determinado pelo si mesmo e não inversa- si mesmo é reconduzido ao eu mesmo e assim ao eu.
mente Certo, cada um de nós é um eu mesmo, mas ele é tam-
bém formalmente um tu mesmo, não só noutro tu que
Aqueles que fazem esta pergunta são agora colo- se lhe dirige, mas também enquanto ele se dirige a si
cados na pergunta, eles tornam-se questionáveis. Per- mesmo (por exemplo:":fizeste mal" [dito a si mesmo]).
guntamos: "quem somos nós mesmos?". Cada um de Cada eu é, por isso, não apenas um tu mesmo, no qual
nós é ele mesmo e, como tal, é um eu-mesmo e, assim, fala um eu mesmo, mas também um nós mesmos e vós
demonstra-se que nós mesmos - como a combinação, mesmos.
por assim dizer, como o conjunto de muitos eu-mes- O si mesmo não é uma determinação que distin-
mos, como o conjunto de muitos eus particulares - gue o eu. Este é o erro fundamental do pensamento
reconduzimos com isto o si mesmo ao eu. Cada um moderno. O si mesmo não é determinado a partir do
de nós é um si mesmo, porque é um eu. A essência do eu, mas o carácter do si mesmo pertence do mesmo
si mesmo funda-se na essência do eu, a mesmidade modo ao tu, ao nós e ao vós. O si mesmo é enigmá-
[Selbstheit] na ego idade [Ichheit]. tico de um novo modo. O carácter do si mesmo não
Este eu, ego, compreende-se desde Descartes é particular pertença do tu, do eu, do nós, mas de
como sujeito e subjectividade, como sujeito que se todos, de uma maneira originária. Teremos de pergun-
contrapõe ao objecto e à objectividade. Este eu é res tar se e em que medida nós, com esta abordagem,
cogitans. Em Kant este eu é consciência de qualquer coisa podemos penetrar na essência do si n1esmo e, assim,
ou de si mesmo, num sentido mais amplo, razão, uma na essência do homem.
determinação que, no desenvolvimento subsequente,
foi compreendida como espírito.
Por este caminho nós chegámos de novo à deter-
minação inicial: à compreensão do eu como sujeito,

[84] [85]
Recapitulação tamos: "Quem és tu mesmo?" - "Quem é ele
mesmo?"- "Quem sou eu mesmo?". Os inquiridos
A questão condutora da lógica, tal como nós a são, por conseguinte, cada qual um si mesmo.
queremos compreender, reza assim: "O que é a lingua- Deve perguntar-se a seguir: "O que é um si
gem?" Esta pergunta reconduziu-nos à pergunta: "o mesmo?". Mas, com isto, estamos já de novo fora da
que é o homem?" Esta pergunta tem o carácter de uma direcção a que aponta a pergunta. Nós temos de com-
pergunta preliminar. A· abordagem da pergunta tem preender de novo o homem como um si mesmo. A per-
de ser dirigida de tal modo que acerte naquilo que gunta reza por conseguinte: "Quem é ele mesmo?
é questionado. Nós vimos que a pergunta "o que é o - aquele que pergunta?", "quem somos nós mesmos
homem?" falha naquilo a que aponta. A pergunta pelo -aqueles que perguntamos?"
homem tem que mudar-se da pergunta pelo quê para A pergunta pela essência relativamente ao ho-
a pergunta pelo quem. Pois a pergunta pelo quê com- mem colocou, de uma maneira peculiar, na pergunta,
preende o homem como uma coisa que está diante dos aquele que pergunta juntamente com aquilo que é
olhos [ Vorhandenes]. perguntado. O que pergunta é aqui sempre conjun-
"Quem é o homem?"- neste modo de pergun- tamente atingido pela pergunta. Deve estar ligado com
tar, o homem é à partida atingido, na medida em que, isso o facto de que, não apenas no início, mas sempre
com o quem, nós chamamos um estranho que vem de novo, nós corremos o risco de deslizar para fora
em direcção a nós. Agora, já não estamos em risco de da direcção da pergunta. Corremos o risco de voltar a
subestimar este "quem" no desenvolvimento ulterior. cair na pergunta pelo quê, mas, com isso, também de
A pergunta "quem é o homem?" conduz-nos à procurar uma definição da essência, que é realizada no
resposta seguinte. Quando perguntamos a uma pessoa horizonte do conceito do quê.
determinada "quem és tu?", recebemos como resposta Por isso, exige-se manter a direcção da pergunta
"eu". E quando perguntamos a várias pessoas, rece- orientada para o si mesmo e o quem. Isso parece fácil,
bemos como resposta "nós". Ou recebemos como res- pois nós mesmos parecemos ser os mais próximos de
posta um nome próprio. Nós compreendemos estes nós. Quem somos nós mesmos? Cada um de nós é um
eu, tu, nós, vós como pessoa ou como associação de eu mesmo, os muitos eus juntos são um nós. O si
pessoas. Esta resposta é, contudo, mais uma vez, um mesmo reconduz-se portanto para o eu.
desacerto, na medida em que não determinamos Nós chegamos assim à determinação do eu como
aquele que é questionado a partir de ele mesmo, mas fundamento que desempenhou o seu papel na filosofia
de acordo com uma determinada perspectiva, como moderna. Esta orientação do perguntar pelo homem
ser vivo e como racional. Quando nós nos dirigimos como o eu foi possível porque se falhou, ou, melhor,
claramente àquele que é questionado, então pergun- não se conheceu a pergunta pela essência do si mesmo.

[86] [87]
Certamente, cada um de nós é um eu mesmo, mas pertencente a vós. Neste sentido, digo melhor "tu, ·e
também, do mesmo modo, um tu, um nós, um vós tu, e eu". (Mas posso também certamente dizer "eu,
- mesmos. O carácter da mesmidade não é uma de- e tu, e tu " .)
terminação distintiva do eu, mas o homem como ele Mas mesmo quando digo "tu, e tu, e eu" /zá, ape-
mesmo é, simultaneamente e de modo igualmente sar de tudo, um nós: nós que estamos num determi-
originário, eu, e tu, e nós, e vós. nado encargo, que nos encontramos numa situação
Tem de se sublinhar: o homem não é um si particular. Quando digo "eu, e tu, e tu" isso quer dizer
mesmo, porque ele é um eu, mas, pelo contrário: ele que o eu está confrontado com o vós: uma relação de
só pode ser um eu, porque ele é na essência um si estar de fronte, por exemplo, do professor e ouvinte,
mesmo. O ele mesmo nem é limitado pelo eu nem melhor, uma relação de avançar e, vista a partir dos
reconduzível ao eu. Por isso, a partir do si mesmo bem alunos, do estar sentado em frente, do acompanhar, ou
compreendido, nenhum caminho conduz em direcção talvez também do não acompanhar. Nesta relação re-
ao eu como fundamento da essência; [neste caso] o si cíproca do eu e do vós está um relacionamento muito
mesmo permanecena, antes, no egocentrismo e na particular.
representação. Este vós, por seu lado, não é a soma de tus isola-
dos. Não é o número de muitos tus que dá o vós, tal
como um, e um, e um, e um dá quatro. Muito pelo
b) O vós e o nós determinados pelo si mesmo e não contrário: a pertença conjunta ao curso é o essencial,
pela mera pluralidade ela fundamenta-se no ouvir em conjunto, na inclu-
são do indivíduo no auditório. Este vós dos ouvintes
No facto de que o homem é ele mesmo está divide-se nos tus, aos quais como tais, a partir de uma
encerrada a pertença conjunta a uma teia de inter- tal relação, é dirigida a palavra.
-relações, como tu e eu. Também aqui não temos Ora, se agora só estiver um único ouvinte, então
nenhuma ulterior aglomeração de vários, de muitos é só um tu; e quando um segundo ouvinte chegar,
eus isolados - também o vós não é uma aglomeração, então o tu transformou-se num vós, pela razão do
uma massa do nosso tu. Enquanto eus isolados nós número, do dois! Isto é correcto e contudo é não ver-
nem sequer podemos adicionar-nos numa soma, num dadeiro. Eu, como professor, não direi "tu" e "vós",
nós. Quando digo "eu, e eu, e eu" não me vejo livre mas "tu" e "os senhores aí" [Sie da]. O tu e os senho-
do eu, apenas me estou a repetir constantemente. Nós res aí não dão o vós. No vós está o tu do auditório.
podemos apenas dizer "eu, e tu, e tu". Mas isto tam- Isso acontece quando a segunda pessoa presta atenção,
bém não é nunca uma simples enumeração. Digo, por não está apenas sentada, como visita. Quando isso não
exemplo, "eu, e tu, e tu". Isto pode significar: eu como acontece, o vós do auditório está limitado ao tu.

[88] [89]
O auditório não se define pelo facto de aí esta- de pessoas, então aqueles a quem se dirige a palavra são
rem um ou dez ou trezentos. Estes todos definem-se rebaixados a simples números. Esta depreciação neste
como ouvintes apenas pelo facto de prestarem atenção vós toma aqueles a quem se dirige a palavra, não como
em conjunto, de pertencerem ao auditório. Só neste eles mesmos, mas como uma quantidade de pessoas
há um número maior do que no tu. - Mas "vós" não arbitrariamente imagináveis. No entanto, mesmo que
é, contudo, um plural, ao contrário de um singular? eu diga "vós" deste modo depreciativo a uma quan-
Este ser mais enumerável é num certo sentido uma tidade de pessoas, o vós permanece sempre referido
condição necessária para a passagem do tu para o vós, ao si mesmo e nele fundamentado. Também a multi-
mas de modo nenhum é suficiente. Este "mais um" dão que, por exemplo, se junta à volta de um acidente
não faz a essência da passagem. de automóvel nunca é uma simples soma de pessoas
Mas mesmo o admitir o significado do numérico que estão presentes. Até mesmo as massas estúpidas
para a diferença do tu e do vós não é necessário e não e exaltadas permanecem ainda à sua maneira um si
vai ao encontro dos factos. A linguagem viva numa mesmo.
comunidade ordenada e historicamente enraizada, por Por outro lado, o vós de um autêntico auditório
exemplo numa quinta, cria as verdadeiras referências. pode degradar-se até um número determinado de
Um jovem camponês na quinta não dirá: "Avô, tu sebentas enumeráveis, por exemplo, junto da tesoura-
pareces cansado", mas sim "vós pareceis cansado". ria da universidade. É certo que até aqueles que são
O avô é só um único, mas um único que não precisa representados através das sebentas são designados pelos
de nenhum segundo para que lhe dirijam a palavra funcionários como "vós", mas como determinados
com "vós". Seria completamente erróneo pensar que números na pauta da aula do professor.
"vós" expressa uma relação menos estreita e menos Isto poderá ser suficiente para um primeiro escla-
próxima que o "tu". Isso seria uma interpretação er- recimento da afirmação: o nós é tão-pouco uma soma
rada.A proximidade de um homem em relação a outro dos eus, como o vós uma soma dos tus. Quando mui-
não corresponde ao grau de familiaridade. Inversa- tos eus estão juntos e cada eu diz de si "eu, eu", então
mente, podemos dizer: "vós, meus compatriotas" nasce a partir da pluralidade precisamente o contrário
[Volksgenossen] e o "vós" transforma-se imediatamente do nós, em qualquer caso, do nós em sentido próprio.
em "tu, meu povo". É uma circunstância peculiar essa Mas mesmo este nós fragn1entado não é nenhuma
da mudança do singular em plural. simples soma, mas um modo muito especial do ser nós
Por conseguinte, o vós não é determinado ori- mesn1os.
ginariamente pelo número, mas por aquele carácter do Deduzimos daí positivamente que no vós e no
si mesmo referido aqui. Suponhamos que eu emprego nós o ser enumerável não é o determinante, mas sim
o vós no sentido do dirigir a palavra a uma pluralidade o carácter do si mesmo. O carácter do si mesmo não

[90] [91]
é próprio agora de uma maneira preponderante nem um tu. Como eu, eu não estou incluído apenas na
do eu, nem do tu, nem do nós, nem do vós. O carác- espécie do eu, mas também na espécie do tu, vós, nós.
ter do si mesmo permanece de certo modo acima e Uma correspondência com uma determinada espécie,
diante de todo o eu, tu, nós, vós. De que maneira? aí comparável com a da faia, do carvalho, da bétula, não
reside a questão. é possível aqui. Existe aqui uma relação muito dife-
rente e por isso não há nenhuma correspondência.
Se bem que tenha a princípio a aparência, o si mesmo
c) O si mesmo é o género para o eu, o tu, o nós, o vós? não é o género. Eu e tu, nós e vós não são espécies,
os eus isolados não são casos. Na verdade, podemos
Está-se inclinado a dizer que o carácter da mes- explicar as coisas deste modo, como acabámos de
midade corresponde ao eu mesmo como tal, ao tu fazer, e mover-nos e orientarmo-nos num mundo
mesmo como tal, ao nós mesmos como tal. Com isto, de palavras. Este mundo é, porém, vazio. Enquanto
o si mesmo é o que é comum a todos estes elemen- pensarmos o menos possível e esse pouco do modo
tos indicados. Queremos esclarecer esta relação do si mais indeterminado possível, nós podemos proceder
mesmo com o eu, tu, nós, vós através de um exemplo: assim. Mas esta ordem conceptual só é aplicável aos
faia, carvalho, abeto, bétula têm, como característica seres vivos, plantas, animais, e ainda às meras coisas.
comum, a árvore. A árvore é o género das espécies Contudo, o homem foi definido como um ser
mencionadas de árvores. Em cada espécie estão sem- vivo racional! Mas não será a determinação do
pre incluídos casos singulares, este determinado abeto, homem como ser vivo racional um desacerto, que não
faia, etc. E assim é também o si mesmo o género uni- alcança de modo algum a essência do homem?
versal das espécies subordinadas de eu, tu, nós, vós. Ora, poderíamos ainda supor que a dificuldade
A estas espécies são, por seu lado, subordinadas: este reside em que nós ainda não determinámos suficien-
eu determinado, este e aquele determinado tu, etc. temente, de maneira análoga, o mais alto conceito de
Eu que me refiro a mim digo -"eu"- sou o caso da si mesmo, tal como podemos determinar de maneira
espécie eu em geral. Esta espécie está incluída no mais pormenorizada árvores, se nós nelas distinguir-
género do si mesmo. Por isso, eu sou um si mesmo. mos, em cada caso, folhas, ramos, frutos de outros
Ora, a problemática deste modo de pensar deixa- folhas, ramos, frutos, etc .... Se nós tivéssemos um con-
-se agora reconhecer precisamente no facto de que, se ceito suficientemente claro do si mesmo, poderíamos
eu me refiro a mim mesmo, não sou necessariamente talvez, de facto, derivar o eu, o nós e o tu e o vós. Por-
o brigado a dizer "eu", mas também posso e devo dizer que não damos nós, pois, nenhuma definição do si
"nós". Eu posso assumir-me a mim numa essencial mesmo? Porque é que hesitamos?- Porque já com a
pertença ao outro. Igualmente, eu posso existir como tentativa de definir o si mesmo e a sua essência, espar-

[92] [93]
tilhámo-lo numa conceptualidade e numa lógica Recusámos anteriormente a orientação do ho-
que lhe são totalmente estranhas. As definições são mem na direcção do eu, do sujeito e da subjectividade.
talvez utilizáveis para casas, plantas etc., mas não para Mas será que há então lima superação da acentuação
o homem. Pois, segundo esta lógica, deveria eu, unilateral do eu, se nós trazemos a pergunta pelo si
como si mesmo, ser um exemplar do eu e, ao mesmo mesmo para a fórmula "quem somos nós mesmos"?
tempo, também a outra espécie (tu), o que é contra- Não é isso antes um exagero grosseiro da orientação
ditório. para o eu? É que, até aqui, a filosofia na pergunta pelo
Esta lógica corrente do género, espécie e casos, eu abstraiu precisamente do verdadeiro eu individual,
esta lógica, que nos parece absolutamente válida, perguntou-se em geral pelo eu, pela consciência em
nasceu de uma experiência bem determinada, de geral, queria-se precisamente escapar do indivíduo.
uma compreensão bem determinada de uma espécie Pelo contrário, nós devemos perguntar por nós mesmos,
de ente - de uma lógica bem determinada que come- pela nossa própria essência. Não significa isto levar
çou na filosofia grega, sob cujo donúnio ainda hoje o egocentrismo, o egoísmo ao máximo? Com a per-
estamos. Parece impossível destruí-la; contudo, tem gunta "quem somos nós mesmos?", fazemos de nós,
de acontecer. Supondo que, no fim, nós pudésse- por assim dizer, o centro de toda a humanidade, da
mos compreender conceptualmente a essência do si humanidade real e possível! Podemos já antever que
mesmo como a essência de uma árvore, supondo a resposta à pergunta "o que é o homem?" tem de
então que nós poderíamos realizar uma determinada ser unilateral em supremo grau. Por isso, o resultado
coordenação do eu como si mesmo e do tu como si não pode ter nenhuma validade universal e, por
mesmo mesmo com todas estas investigações con- consequência, tem de ser também cientificamente
ceptuais e classificações, afastar-nos-íamos mais uma sem valor.
vez da questão. Estes escrúpulos são naturais, eles são até mesmo
Esquecemos que a questão do quê volta para nós, correctos, na hipótese de vermos na resposta científica a
que de hoje em diante estamos no domínio da aber- verdadeira resposta. Mas esta hipótese não está decidida
tura da questão e que não podemos afastar de nós de modo nenhum como legítima. Ela é talvez arbitra-
aquilo que é perguntado, o questionado, como um riedade e erro, uma vez que a pergunta pela essência
si mesmo em si - mesmo que seja por fim necessário em geral e, em particular, a pergunta pela essência do
que nós, quando perguntamos pelo homem, no sen- homem não é nenhuma pergunta científica, mas uma
tido de perguntar por nós mesmos, realizemos uma pergunta filosófica.
qualquer objectivação. Só assim é possível perguntar Chegamos agora a uma época, na qual a pergunta
pelo homem, pois só assim é possível uma resposta pela essência do homem tem de ser, pela primeira vez,
objectiva, isto é, válida. de novo colocada como pergunta. Isto será uma tarefa

[94] [95]
demorada. O homem vem a ocupar agora neste pla- Recapitulação
neta um lugar, para o qual não é indiferente quem
coloca a pergunta, quem é o homem e quem responde Salientámos na aula precedente duas coisas: em
realmente, isto é, eficazmente. Esta pergunta não é da primeiro lugar, mostrámos que o nós e o vós não é
espécie que só nasce enquanto ideia astuta da saga- nenhum simples plural e, em segundo lugar, que, para
cidade de um indivíduo, mas atrás dela e diante dela o si mesmo que convém ao eu, tu, nós, vós, não é pró-
estão necessidades muito potentes. Mesmo estas não pria a simples universalidade de um género que paire
actuam sempre, de tal forma que mesmo o aconteci- sobre estes.
mento da Guerra Mundial4 de modo nenhum tocou Podemos clarificar o primeiro facto com quais-
ou favoreceu a pergunta pelo homem. Vencidos e quer exemplos. O vós, neste caso da nossa própria
vencedores voltaram por enquanto a cair no antigo situação presente, é dado por uma relação peculiar que
estado. A guerra mundial, como poder histórico para é fundada pela aula. Não é o número que é decisivo,
o futuro do nosso planeta, ainda não foi ganha, ainda mas uma determinada mesmidade, a unidade do audi-
não foi decidida. Não é decidida pela pergunta tório. Outro exemplo: o capitão de uma companhia na
-quem venceu?, mas é decidida pela experiência que frente manda a companhia alinhar e diz que durante
põe à prova os povos. A decisão acontece, porém, atra- a noite é preciso executar um perigoso reconheci-
vés da resposta que damos à pergunta - quem somos mento. Devem apresentar-se voluntários. Apresentam-
nós?, isto é, através do nosso ser. -se 20. Destes, ele escolhe 1, 2, 3, 4, etc.; exclui simples
A verdade da resposta depende da verdade ante- números. Estes 20 têm que alinhar para receber a
cedente da pergunta. Por muito egocentricamente que ordem em pormenor. Estes nós são agora, quando ali-
a pergunta "quem somos nós mesmos?" se apresente nham de novo, um nós completamente diferente, um
em relação à pergunta "o que é o homem?"- talvez nós sobre o qual não se fala. Eles são tão indetermina-
esta maneira de perguntar pudesse derrubar todo o dos como alguma coisa possa ser; eles devem depor as
egocentrismo e toda a subjectividade, mas também últimas insígnias para não serem reconhecidos, estão
inversamente sacudir a indiferença e o desinteresse dos ligados num agrupamento que talvez não viva o pró-
que perguntam. Por isso não podemos descansar, mas ximo dia. No momento da contagem pelo capitão este
devemos esforçar-nos constantemente pelo correcto nós está concluído. O número, por muito evidente
perguntar desta pergunta. que pareça, é aqui impotente, mesmo que ele, num
certo sentido, seja uma determinação necessária. A lin-
guagem demonstra sabedoria bastante grande quando
4 N.T. Trata-se da "Grande Guerra" que decorreu entre ela não usa o vós como plural, mas de um modo com-
1914 e 1918. pletamente diferente.

[96] [97]
Do mesmo modo, vemos que também a forma §12. O si mesmo e a perda de si mesmo
mais trivial de reunião de quaisquer homens ainda tem
o carácter de um si mesmo e que nós já através da a) O pe1;guntar errado - condicionado pela perda de si
acentuação do eu fragmentamos a unidade originária. mesmo do ser humano
Deste modo, o ser si mesmo. tem uma peculiar prima-
zia no nós, tu, eu e vós. Quando olhamos retrospectivamente para o ca-
Procurámos clarificar para nós esta relação, ao minho do nosso questionar percorrido até aqui, nota-
procurar tomar como auxilio conhecidas relações ló- mos uma constante tendência para perguntar errada-
gicas, nomeadamente género, espécie, caso isolado. mente, para falhar a pergunta. Nós não introduzimos
Mas, deste modo, não conseguimos. Enquanto o caso artificialmente estas perguntas erradas, mas este facto
individual como tal era simultaneamente um eu e tu, é inerente ao desenvolvimento deste perguntar, para
nós e vós, portanto pertencia a várias espécies, o qual nós também podemos aduzir provas da história
tornou-se evidente que nós não podíamos usar estas da pergunta pela essência do homem. Atrás deste per-
relações lógicas. Não podemos compreender o si guntar erradamente está uma necessidade bem deter-
mesmo como género, mesmo que ele pareça estar minada, uma certa tendência do homem para, neste
acima dos indivíduos. questionar, se desviar da pergunta pelo quem. Por isso,
Mais uma vez acabámos por desviar-nos e ocupá- nós não conservamos a pergunta por natureza, porque
mo-nos prematuran1ente com o que era o si mesmo, nós, na realidade, não queremos manter a direcção da
em vez de persistirmos na pergunta. Quem somos nós pergunta.
mesmos? Aqui surge o reparo: o egocentrismo deve- Esta resistência oculta e inconsciente tem o seu
ria ser evitado na pergunta pelo homem. Não se deixa fundamento em que à partida e a maior parte das
resolver previamente, por uma decisão teórica, até que vezes não estamos em nós mesn1os, andamos à volta,
ponto a pergunta "quem somos nós mesmos?" é uma perdidos de nós mesmos e no esquecimento de nós
pergunta egocêntrica. Isso deve resultar de si mesmo mesmos. Por essa razão, a pergunta pelo si mesmo não
no decurso do perguntar. nos é familiar, é penosa, inquietante. O modo como
o homem pergunta pelo homem depende de como e
quem ele é. Inversamente, a pergunta - quem somos?
- faz mesmo parte do nosso ser.
O perguntar da pergunta "quem somos nós mes-
mos?" muda o nosso ser habitual, não de modo a que
acrescentemos ao nosso perguntar habitual uma outra
pergunta, mas de maneira que ou nós nos tornamos

[98] [99]
questionáveis para nós mesmos, ou não nos incomo- época da Universidade politizada. Essa pessoa torna-se
damos com a pergunta. Também esta tomada de posi- dirigente de um departamento: isto chama-se "com-
ção nos modifica, uma vez que manifestamente agora promisso político". Na verdade é uma fuga de si
nos damos por satisfeitos enquanto, deste modo, não mesmo. Uma coisa destas pode acontecer a qualquer
perguntamos a pergunta ou apenas fingimos fazê-lo. um. Isto pode acontecer assim, não tem que acontecer
A pergunta tem assim _a particularidade de que nós assim (patear).
não lhe podemos escapar, temos de passar por esta Um segundo exemplo - aqui também podem
pergunta e saímos dela irremediavelmente modifica- patear. Um senhor medianamente inteligente, como-
dos. Ou nos tornamos questionáveis para nós, ou pas- dista, obstinado, tem que entrar nas S. A. A vida na
samos por ela sem perguntar nada, fechando-nos a ela. comunidade é-lhe porém desagradável e perturba os
Assim, a pergunta tem um carácter muito peculiar. seus nervos. Ora, no seminário ele deve encarregar-
Dizíamos que o modo como a questão é colo- -se de um tema. Ele acha a elaboração do tema tão
cada e como nós nos desviamos dela tem o seu funda- importante e a preparação tem de ser tão extensa, que
mento na essência do homem, no seu estar perdido de ele tem que pedir uma licença nas S. A. 5. Isto não
si mesmo. Antes, porém, verificámos que um si mesmo acontece por uma paixão pela ciência, mas é no fundo
pertence à essência do homem. O que se passa então preguiça.
com o estar perdido de si mesmo? Em ambos os casos, trata-se de egoísmo e do
Também o estar perdido de si mesmo tem uma estado de perda de si mesmo e, no entanto, está em
determinada relação com o si mesmo - tal como até os jogo uma protecção do próprio si mesmo. Isto são
que nada possuem e os deserdados têm uma relação exemplos para nos mostrar que também a aparente
com os bens e a herança (mesmo muito ávida) ao que- entrega a uma tarefa engloba em si o esquecimento de
rerem apropriar-se dos bens ou destruí-los. O si mesmo si mesmo, uma relação com o si mesmo.
não é afastado, está em relação consigo mesmo, também Este estado de perda de si mesmo é a razão da
na situação de perda. Ele desvia-se, subjuga-o através das dificuldade do verdadeiro perguntar pelo si mesmo.
mais variadas maquinações [Machenscluift]. Cada um de O si mesmo nem está coordenado de modo prepon-
nós sem excepção corre constantemente este perigo. derante con1 o eu, nen1 con1 o tu, nem com o vós,
Quando uma pessoa não tem, por exemplo, o desejo nem com o nós. Daí esta dificuldade onde se deve
e a força para conduzir o curso começado até ao procurar o si mesmo, se ele nem corresponde a nós,
termo efectivo, mas acha, por outro lado, a estadia na nem a ti, nem a mim, nem a vós?
Universidade muito simpática e suportável, então
arranja para si um lugar na Universidade, na Asso- 5 N.T.: S.A. (Sclmtzabtcíluug) - organização paramilitar
ciação de Estudantes. Isto torna-se muito divertido na nacional-socialista.

[100] [101]
b) A pe1;gunta "quem somos nós mesmos?" encerra dade. Há coisas essenciais e decisivas para uma comu-
til/la primazia do nós? nidade e precisamente estas coisas não surgem na
comunidade, mas sim na força contida e na solidão de
Apesar disso nós perguntávamos: "quem somos um indivíduo. Pensa-se que depende da comunidade.
nós mesmos?". Assim, evitámos a equiparação de eu e Pensa-se que, se dez ou trinta pessoas novatas e igno-
do si mesmo. Nós temos aí ainda a vantagem de que rantes se juntam dias a fio e tagarelam, então nascerá
a pergunta - quem somos nós mesmos? - é actual, ao uma comunidade ou uma genuína relação. Esta ilusão
contrário da época do liberalismo, o tempo do eu. de acampamento [Lagen11ahn] 6 é manifestação oposta a
Supõe-se que agora seja o tempo do nós. Isto pode ser todo o acampamento [Lager].
correcto e, porém, é insignificante, ambíguo e super- Nem o nós em relação ao eu, nem inversamente
ficial, pois nós podemos ser uns seres quaisquer, que se o eu em relação ao nós têm, sem mais, uma prima-
juntaram por quaisquer razões duvidosas. "Nós" - zia - enquanto neste caso a tarefa não estiver com-
assim fala também uma qualquer multidão anónima. preendida e não for colocada para os homens sábios.
"Nós!" assim grita também uma massa revolucioná- O futuro aperfeiçoamento colocar-nos-á ainda diante
ria, vangloria-se também o clube de bowling. "Nós!" de tarefas não habituais e forçar-nos-á a encontrar
- deste modo um bando de ladrões combina um a autêntica fronteira interna de uma comunidade.
encontro. O nós por si só não é suficiente. Tal como Há coisas que são decisivas para um acampamento,
o eu pode diminuir e fechar o verdadeiro si mesmo, mas o essencial não surge num acampamento nem a
de modo igualmente certo pode também um nós des- partir de um acampamento, mas antecipadamente.
truir o si mesmo, massificar, incitar e até empurrar para Deste modo, o nós tem uma plenitude de misté-
o crune. rios em si, que nós só dificilmente esgotamos e que
Com a exclamação "nós!" podemos falhar o acima de tudo não conseguimos compreender, quando
nosso si mesmo do mesmo modo que numa glorifi- tomamos o nós como um simples plural. Por conse-
cação do eu. Inversamente, podemos encontrar o guinte, quando nós colocamos a pergunta pela essên-
nosso ser si mesmo tão certamente no caminho do eu cia do homem na forma do quem e quando colo-
como no caminho do vós, do nós, pois em todos camos a pergunta pelo quem na forma do nós, então
aqueles importa o ser si mesmo, a determinação do si ainda nada está decidido sobre a autodeterminação
mesmo. Isso quer dizer: o nós,junto do qual agora nos do si mesmo.
detemos com a pergunta "quem somos nós mes-
mos?", o nós, também no sentido de uma genuína
6 N. T.: No período do nacional-socialismo eram realizados
comunidade, não tem simplesmente e incondicional- acampamentos para jovens, que se reuniam para marchar, cantar e
mente a primazia e isso vale também para comum- receber endoutrinação nazi.

[102] [103]
Regressamos à pergunta: "Quem somos nós Incessantemente ameaçados e muitas vezes domi-
mesmos?" Para onde nos conduziu a pergunta? nados pelo estado de perda de si mesmo - será que
1. O perguntar é de tal natureza, que nele é somos, pois, nós mesmos ou estamos em nós mesmos?
experienciável um inevitável embate direccionado Ou estamos fora de nós [ver-riickt]? Isto quer dizer
para nós mesmos. Se nós nos colocamos contra a per- colocados fora [herausgeriickt] da via da determinação.
gunta, ou a acompanhamos, ou se nós a deixamos pas- Será que, apesar da plenitude vacilante, alcançámos
sar com imperturbável comodismo - em cada caso o vazio? Será que somos ainda verdadeiramente ator-
acontece uma decisão sobre nós mesmos. Também mentados pela essência das coisas ou estamos nós ape-
quando nós deixamos passar a pergunta somos atingi- nas ocupados com muitas coisas, de modo a escapar a
dos e qualificados como aqueles que se esquivam, aos custo ao grande tédio? Somos nós mesmos ou estamos
quais de resto tudo vai bastante bem. tão alheados deste si mesmo que o próprio si mesmo
Tal perguntar não nos alivia, faz pesar sobre nós
se nos apresenta como alheio?
um fardo, de tal forma que o Dasei11 talvez se torne
Assim parece. De que outro modo podíamos nós
mais importante, tenha um maior calado, tenha que
ter um conceito do si mesmo há tanto tempo cor-
viajar mais devagar e com maior resistência, exija
maior força. Com tal esforço não nos tornamos talvez rente, nomeadamente aquele conceito do si mesmo
mais débeis, mas tornamo-nos mais fortes algum dia. segundo o qual o si mesmo é aquilo que nós alcan-
Independentemente da nossa relação com a pergunta, çamos através da reflexão, da viragem e do voltar atrás?
ela atinge-nos desta ou daquela maneira. Já esta representação corrente da reflexão pode revelar
2. Além deste embate direccionado para nós que nós temos de procurar o nosso si mesmo como
mesmos, o perguntar é de tal natureza que, de acordo que num afastamento, que o si mesmo é aquilo para
com quem nós mesmos somos, a pergunta se torna que temos de regressar e virar. Esta caracterização cor-
mais ou menos possível. Mas esta facilidade variável rente da compreensão do si mesmo ainda não garante
não significa, porém, que a pergunta se torne mais a sua verdade, ela só testemunha uma única coisa: que
corrente para nós. Pois, quanto mais corrente for, mesmo a partir do alheamento é tirado um conceito
menos autenticamente ela será colocada. Deste modo,
do si mesmo, ainda que totalmente vazio.
é certo que conseguimos à partida direccionar a per-
E o que significa a exigência de que nós devamos
gunta para nós mesmos, mas com isso de modo algum
sair da reflexividade e agir irreflectidamente? Com isso,
libertámos a força contida na pergunta. Nós seguimos
a pergunta por nós mesmos. Sabemos que o si mesmo ainda não se provou de todo que, deste modo, seja indi-
poderia permanecer no estado de perda de si mesmo. cado o verdadeiro canunho para o genuíno si mesmo.
Que estejamos conscientes do eu mesmo - esta cer- Deste modo, sentimos cada vez mais a questiona-
teza ainda não prova nada. bilidade que reside na própria questão. Torna-se ques-
tionável:

[104] [105]
1. se nós somos sem mais nós mesmos. tema solar e no universo. Simultaneamente, pode ser
2. se o conceito corrente e a representação ha- determinado claramente o instante, a posição na or-
bitual do si mesmo (como alcançável na reflexão) nas- dem numérica da contagem dos anos, até ao dia e
ceu do verdadeiro si mesmo e se permite indicar-nos hora. Nós próprios somos determinados, de modo
o verdadeiro caminho; pois este conceito poderia ser
único e irrepetível, através desta indicação do aqui
também um sinal do estado de perda de si mesmo.
e agora. Mas será que isto nos determina?
3. Finalmente, é questionável de que direcção,
Estas indicações, por importantes que possam ser,
donde havemos nós de encontrar a resposta à per-
gunta pelo quem, que carácter a resposta deve ter. Pois têm a mesma inalterável possibilidade de determi-
na direcção da pergunta nós dirigimo-nos ao donúnio nação. Elas são certas e determinam do mesmo modo
a partir do qual a resposta deve chegar até nós. quando, em vez de homens, supomos muitos cães,
ou gatos, ou pedras. Nós não somos de modo algum
Não parece que a pergunta é tão completamente determinados através destas correctas indicações.
questionável que nem vale a pena ela ser questionada? Dir-se-á que são descrições exteriores do espaço
Pois, se não há mais nada em que nos basearmos - e do tempo, devemos partir do interior. Poderíamos
então também não podemos fazer mais nenhum pro- agora juntar os curricula da vida individual, muni-los
gresso no perguntar. com relatórios caractereológicos, talvez completados
pela craniometria, etc. Erraríamos assim, do mesmo
modo que com as suposições astronómicas. Mesmo se
c) Identificação externa e interna do nós nós arrumássemos todos os dados em ficheiros e os
descrevêssemos em gráficos, esta informação e deter-
Há uma coisa que ainda não abarcámos com o minação do nosso si mesmo, apesar das muitas coisas
olhar, nomeadamente o nós, isto é, aqueles que nós tomadas em consideração, seria um esforço irrisório.
próprios somos. É certo que já mostrámos que o con- Não é assim tão fácil apresentar a forma de deter-
ceito "nós" não se deve compreender como plural. minação para nós mesmos, de um modo suficiente -
Compreendemos que 11Ós próprios somos o nós e nesta não porque nós mesmos sejamos extraordinariamente
pergunta nos dirigimos a nós próprios e falamos de difíceis de determinar, mas porque nós erramos devido
nós próprios. a tanto zelo, porque pensamos que se trata aqui de
É certo que a comunidade de indivíduos se pode afirmações e descrições. Trata-se de que nós somos
determinar claramente, por exemplo, através da indi- interpelados, em vez de aqueles que se exprimem, eles
cação do lugar geográfico sobre o planeta, que é, como '
no nos.
sabemos, inequívoco. Poder-se-ia ainda acrescentar as
coordenadas do próprio planeta no seu trajecto no sis-

[106] [107]
Recapitttlação - sem estarmos seguros se e como nós mesmos somos.
E, sem uma delimitação do nós, não se pode respon-
A nossa pergunta "Quem somos nós mesmos?" der a isto. Até mesmo a forma nós não predetermina
fundamenta-se no respectivo modo do nosso ser si nenhuma resposta definida, por exemplo, de modo
mesmo. Devido a isso é possível que nós nos oponha- que o nós tivesse alguma primazia diante do tu ou
mos consciente ou inconscientemente à pergunta, que do eu.
nos desviemos dela, que nos movamos num estado de Até mesmo onde uma autêntica comunidade de-
perda de si mesmo e queiramos persistir neste: num termina por completo o ser si mesmo, esta determina-
estado de perda de si mesmo, que não é um pôr de ção não é em todos os aspectos o decisivo, o essencial
lado o si mesmo, mas que inclui a relação determinada para a comunidade. Em muitos aspectos o decisivo não
com o si mesmo. O Homem permanece também no é nunca conquistado nem dentro nem a partir da
estado de perda de si junto de si mesmo e na sua comunidade, mas a partir da força contida de um in-
essência, só que deixou-se dominar [ist ... veifallen] agora divíduo na sua solidão, indivíduo esse que tem de ter
pela inessência da sua essência. em si o impulso, que o autoriza à solidão.
O desviar-se da pergunta é tão natural, porque ela Na tarefa de delimitar o nós, experimentámos
tem a propriedade de não deixar intocado ninguém primeiro o caminho exterior, do qual determinámos
que entre no seu círculo. Cada um deve decidir, diante o lugar geográfico e o tempo astronómico. Mas vimos
desta pergunta, se toma a cargo esta pergunta, ou se imediatamente que esta espécie de determinação é
persiste na ausência do perguntar, ou se, indiferente, válida para qualquer espécie de entes, que nós instituí-
tenta afastar a pergunta de si mesmo. De que o estado mos em vez da nossa. Tão-pouco como uma determi-
de perda de si mesmo pertence à verdadeira essência nação geográfico-astronómica, pode uma característica
do si mesmo há o indesmentível testemunho que a interior encontrada por nós, quer fundada biologica-
representação do si mesmo, corrente desde há séculos, mente quer na biografia, alcançar o nosso Dasein aqui
foi ganha precisamente a partir da perda de si mesmo e agora.
na medida em que determinamos o si mesmo como
aquilo que nós alcançamos no voltar atrás [Riickgang],
na niflexão, como se o homem se tivesse afastado de §13. "'Nós' somos o povo" em virtude da decisão
si mesmo e tivesse que fazer uma viragem para si
mesmo. Daí surge a pergunta: Como efectuamos nós
Se o ser si mesmo é questionável, então também esta determinação? Nós, que estamos aqui agora,
nós, que colocamos a pergunta, não podemos sem enquanto dizemos sem rodeios o nosso Dasein de aqui
mais desatar a perguntar quem nós próprios somos e de agora, estamos inseridos no processo educacional

[108] [109]
duma escola, que quer ser a escola superior da educa- incorporar-me voluntariamente". Nós podíamos exa-
ção científica. Nós submetemo-nos às exigências desta minarmo-nos a nós mesmos - se nós queremos isso,
educação, preparamo-nos para profissões, cujo cum- ou se dissemos "não", ou se tínhamos que confessar
primento está fundado num saber peculiar em cada que não realizamos o sim nem o não, mas só fomos
caso. Nós colocamos antecipadamente o nosso querer trazidos aqui e nos deixamos arrastar.
nestas profissões, que estão vocacionadas para servir, Não efectuámos nenhuma descrição. Este "nós
seja na educação, seja ·no fortalecimento e no treino, estamos aqui" não significa que uma quantidade de
seja na ordem interna do povo, etc. pessoas está presente [vorhanden], mas -"nós estamos
Ao submetermo-nos a estas exigências da Uni- aqui! Nós estamos prontos! Que aconteça!".
versidade, nós queremos a vontade de um Estado, que Por conseguinte, passámos por uma série de deci-
ele mesmo não quer ser senão a vontade de domi- sões de uma maneira ou de outra, estando decididos
nação e a forma de dominação de um povo sobre si ou estando indecisos! Um estar decidido passa a cons-
mesmo. Nós, como Dasein, juntamo-nos de forma tituir o nosso si mesmo. O pequeno e acanhado nós
peculiar na pertença a um povo, estamos no ser do do instante da aula colocou-nos de repente no povo,
povo, somos esse mesmo povo. melhor: tornou claro para nós que e como estamos
Ao expressar-nos assim, isto é, ao dialogarmos, colocados no povo. Trata-se, portanto, de, em vez de
efectuamos uma caracterização do nós completamente descrições profícuas, agarrarmos o nosso instante a fim
diferente da efectuada até aqui, respondemos também de aceitarmos articular-nos com ele para, com isso, nos
de súbito à pergunta "quem somos nós mesmos?": descobrirmos a nós mesmos nele. Nisto, não faz falta
nós estamos no ser do povo, o nosso ser si mesmo é o nenhuma niflexão.
povo. De súbito nós respondemos, sem nos perdermos Vemos claramente que tudo isso nada tem a ver
no espaço e no tempo cósmicos, sem nos comprome- com ciência. Não necessitamos aqui de nenhuns Jactos,
termos com os arcanos da nossa constituição anímica. nem afirmamos coisa alguma no seu ser presente deste
O que aconteceu? Nós articulamo-nos no ins- ou doutro modo. Não se pode provar em sentido
tante. Com a expressão "nós estamos aqui" inseridos objectivo se falámos em coro a partir do instante, se
no processo da educação, algo se cumpriu. É certo passámos pela decisão, se estamos inseridos no acon-
que, textualmente, parece ser uma descrição do que tecer. O discurso soa como uma afirmação, qualquer
aconteceu - só que noutra perspectiva. Contudo, não coisa c01no: os campos, nestas semanas sem chuva,
é assim. Nós podemos examiná-lo, enquanto inves- estão muito secos. O discurso pode até mesmo ser
tigamos se podíamos dizer, tendo em conta aquilo que uma simples maneira de falar, que acompanhámos
foi dito - "Sim, assim o quero. Quero submeter-me sem pensar e também sem vontade. Ou então nós dis-
às exigências, submeter-me ao poder de um querer, semos· "nós estamos aqui, nós estamos inseridos"

[110] [111]
verdadeiramente do fundo de nós próprios e mse- ocultação é essencial. Esta concórdia é, no fundo,
rindo-nos no instante. sempre um mistério.
Nenhum indivíduo entre vós pode, de modo Onde estamos agora no nosso perguntar? Nós
algum, afirmar de qualquer pessoa o modo como ela vimos que agora também o nós, que acreditávamos
se decidiu. Nem os senhores podem dizer o modo poder descrever, só se determina na decisão. Agora ve-
como eu dei a minha aula - se em conformidade com mos que o nós é mais que apenas uma coisa negativa:
a decisão, ou só comÔ exposição, ou como modo de o nós não é nenhum impelir conjunto das pessoas para
discurso. Em conformidade, nós somos mesmo nós, em uma simples soma, o nós tem o carácter de uma deci-
cada caso tal como nós somos, pela igualdade e iden- são. O modo como o nós é, em cada caso, está depen-
tidade do teor. Nós somos propriamente nós apenas na dente da nossa decisão, supondo que nos decidimos.
decisão e cada um individualmente. No instante em que compreendemos o nós como
Afigura-se que os indivíduos só agora teriam que decisão, tomámos também a decisão sobre o nosso ser
ser reunidos numa pluralidade. Contudo, não é assim. si mesmo. Foi tomada já uma decisão sobre quem nós
A decisão não empurra o indivíduo para o eu, mas mesmo somos, designadamente o povo.
alarga-o em direcção ao Dasein ele mesmo [Selbst - Tornámo-nos, porém, no decurso da nossa inves-
Dasein] na educação. Ao querer ser ele mesmo, é en- tigação, ouvintes mais apurados e mais atentos e, por
viado para além de si próprio, para aquilo a que per- isso, surgem também aqui objecções, segundo as quais
tence e a que se submete na decisão. Na decisão, cada poderíamos ter já saído mais uma vez do caminho e
um está tão separado do outro quanto um homem ser afastados da direcção.
alguma vez possa estar. Isto é assim em toda e qualquer Quem somos nós mesmos? Resposta: o povo.
decisão, até mesmo numa decisão que apenas diz res- Nós associámos a esta resposta uma série de objecções
peito a uma comunidade, por exemplo a criação de e de dúvidas.
uma amizade. Também esta decisão distancia os que se
1. Esta resposta parece ter sido dada bastante ra-
decidem tanto quanto um afastamento alguma vez
pidamente e obtida superficialmente, a partir da refle-
possa fazer. É que tais relações não se fundamentam
xão instantânea e obtida sem maior fundamentação.
numa proximidade exterior, de modo que as pessoas
2. A resposta parece ser incorrecta, pois nós, os
sem iniciativa que se aconchegam aos outros fossem as poucos, não podemos ser equiparados com o povo.
mais aptas para a amizade. A amizade surge apenas a Ela mostra, senão arrogância, falta do necessário dis-
partir da maior independência interior possível de cada cernimento.
indivíduo, que é inteiramente diferente do egoísmo. 3. Se o nosso ser si mesmo é relacionado com o
Apesar do afastamento do indivíduo, conforme com povo, então deveria dizer-se pelo menos: nós somos
a decisão, realiza-se aqui uma concórdia oculta, cuja '11111 povo, não o povo.

[112] [113]
Pelos vistos, estas três reflexões convergem numa
dificuldade comum: é que nós falamos de algo sem
r vra "povo". Nós observamos brevemente o facto de
que a palavra "povo" se dispersa numa multiplicidade
mencionar o que com isso queremos dizer. Surge, por- de significados. Para isso, damos exemplos dos usos
tanto, a pergunta: o que é isso, um povo? mais correntes da palavra. Ao avaliarmos a palavra
Ainda uma outra coisa dificulta a compreensão. "povo" ficamos, porém, conscientes que não conse-
Dissemos que o nós é um nós por meio da decisão. guimos apreender a essência do povo, através do tomar
Contudo, não está dependente da nossa vontade se em conjunto os significados da palavra e pelo destacar
pertencemos ao povo ou não, isto não pode ser deci- de um significado médio.
dido através da nossa resolução. Pois isto está sempre Nós ouvimos canções populares e vemos danças
já decidido, sem a nossa vontade, a partir da nossa populares, frequentamos uma festa popular. Nós par-
ascendência, sobre a qual nós não decidimos. Podemos ticipamos na entrega ao domicílio das listas para o
talvez querer a nacionalidade, mas nunca a pertença a censo [ Volkszahlrmg]. São tomadas medidas para a
um povo. De que serve então aqui uma decisão? melhoria e a segurança da saúde pública. O movi-
Por conseguinte, apresentam-se aqui duas per- mento nacional-socialista pretende devolver ao povo
guntas intermédias essenciais: a pureza da sua raça.
1. O que é um povo? Frederico, o Grande, chama ao povo um animal
2. O que se chama decisão? com muitas línguas e poucos olhos. Em 12 de No-
vembro de 1933 o povo foi consultado. Um coronel
Veremos que ambas as perguntas estão inter- da polícia ordena: "dispersem o povo com cacetes".
ligadas. Em 1 de Agosto de 1914 o povo estava em armas.
Assim, nós fazemos aqm, no decurso da nossa Do povo alemão 18 milhões vivem fora das fronteiras
pergunta condutora " quem somos nos
, mesmos.?" , uma do Estado. Karl Marx chama "povo" ao conjunto dos
paragem necessária para a resposta às perguntas in- trabalhadores, diferenciando-os dos ociosos e dos ex-
tercalares. ploradores. No Romantismo, o espírito do povo
[ Volksgeíst] era a raiz fundamental da crença, da poesia
e da filosofia. A religião é o ópio do povo.
§14. Resposta à primeira pergunta intercalar: O que quer dizer, em todos estas expressões,
o que é isso, um povo? "povo"? Quando alguém fala de consulta popular e
quando a polícia dispersa o povo, significa "povo" o
A primeira pergunta pode ser posta em marcha mesmo?
por diversos caminhos. Tomamos intencionalmente Na consulta popular de 12 de Novembro de 1933
um ponto de partida exterior, nomeadamente na pala- todo o povo foi consultado. Na verdade, foram con-

[114] [115]
sultados só os que têm direito a voto. E os outros, os poderemos abreviar as nossas reflexões. Contudo, se
menores de idade, não pertencem ao povo? Pensamos esta maneira corrente e, em certa medida, legítima de
apenas na soma dos eleitores contáveis nas listas? compreender não basta, o que haveremos de fazer?
Será que num censo popular é contabilizado o Não queremos, de maneira alguma, aspirar ou
povo cujas canções populares ouvimos? Ou será que apoiar uma lei para a normalização da linguagem, mas
o povo da arte popular não é de forma alguma conta- queremos tornar claro para nós mesmos que aqui apa-
bilizável, de tal modo q~e no primeiro caso só conta- rece uma multiplicidade interna do ente. Este ente,
bilizamos a população? Reside no espírito do povo do designado como "povo" exige de nós que o experi-
romantismo a característica que também pertence ao mentemos e interpretemos de acordo como diferentes
povo que deve ser conservado saudável? Corresponde aspectos. Esta dispersão é o sinal da plenitude oculta
a saúde popular ao povo, no sentido de Karl Marx da essência, mas também da multiplicidade da sua in-
ou pertencem-lhe também os burgueses? Será o povo -essência. Com maior rigor, nós temos de procurar
em armas o povo a que Frederico, o Grande, chama atingir de modo suficiente a unidade em questão.
animal de muitas línguas com poucos olhos? Em vez de ver em conjunto, logicamente, a mul-
Notamos aqui, sem dificuldade, diferenças muito tiplicidade das significações das palavras e, assim, obser-
grandes, mas não conseguimos compreender suficien- var os conceitos, deve ser dado agora um passo pre-
temente estas diferenças. Mas, por muito que os signi- paratório, de modo que procuremos olhar para o ente
ficados se dispersem, sentimos, apesar de tudo, vaga- pensado com a palavra e tornar manifestas as direcções
mente uma unidade encoberta. do olhar que se mostram nas diferentes significações
É natural, de acordo com as regras da velha lógica, das palavras. Nós não nos limitaremos, porém, a estas
enumerarem-se os diferentes conceitos para deter- diferentes perspectivas; queremos antes procurar ver
minar o que é comum a todos. Assim, chegamos até como estas diferentes perspectivas dão uma deter-
uma representação completamente vazia; povo como minada unidade daquilo que pertence conjuntamente
associação de homens ou povo como ser vivo ou orga- à palavra "povo".
rusmo. Assim, não existe o perigo de uma simples de-
Mas porque não deixamos à palavra a sua ambi- composição conceptual. Para não nos enredarmos
guidade? Será necessário meter tudo no colete de for- neste caminho, através da desagregação da coisa em
ças do conceito? Compreendemos o que queremos significações, teremos de falar, com legitimação e
dizer com "povo". Certo, isso pode ser suficiente, por compreensão, a partir da experiência imediata.
exemplo, para as exigências de um compreender ao
nível de um leitor apressado de jornais. Se este plano
há-de ser o que decide e o que determina, então

[116] [117]
Recapitulação nós e para a pertença a um povo. Nesta situação surge
um acordo oculto de nós mesmos, de tal modo que
Nós tínhamos preparado a pergunta "quem poderíamos de facto dizer nós.
somos nós mesmos?" até ao ponto que pudéssemos Ora, o resultado "nós somos o povo" é sujeito a
arranjar para nós uma resposta. O primeiro passo foi reparos essenciais. Pode-se dizer que avançámos dema-
que procurámos determinar mais em pormenor o nós: siado depressa com esta pergunta, que demos um salto,
1. através de uma determinação espácio-tem- nomeadamente de nós mesmos para a totalidade do
poral. povo. Todos os que aqui estamos, uns poucos, preten-
2. através de uma tentativa de apresentação do demos ser o povo. E, finalmente, deveríamos dizer: não
"biológico". o povo, mas um povo.
Tudo isto não pode ser decidido, enquanto per-
Neste caminho nós só conseguimos ver o nós, manecer indeterminado o que significa "povo". Assim,
de certo modo exteriormente, como um conjunto de chegamos à pergunta: "o que significa 'povo'?" Uma
homens singulares. vez que a pertença a um povo tem carácter de deci-
Nós tentámos então um outro caminho, nomea- são, segue-se outra pergunta: "o que significa aqui
damente a partir do instante. Dissemos: nós estamos decisão?".
aqui, inseridos no processo educacional desta Universi- Empreendemos o esclarecimento da primeira
dade e, assim, inseridos na profissão que nós pretendía- pergunta. Partimos de uma enumeração exterior dos
mos com as suas tarefas e, com isso, inseridos na ordem diferentes conceitos de povo. "Povo" no sentido de
e no querer de um Estado. Nós estamos aqui, incor- canções populares, de festas populares, usos populares,
porados neste acontecer, hoje, nós estamos aqui na censo popular, consulta popular, "povo" no sentido
pertença a este povo, nós somos este mesmo povo. de: o povo é disperso; povo em armas, "povo" como
Isto soa como uma afirmação descritiva sobre nós animal com muitas línguas e poucos olhos, "povo" no
mesmos, contudo tem um carácter diferente. O preen- sentido do que deve ser trazido de volta à sua idios-
chimento desta condição é uma consequência das sincrasia; "povo"- idealizado pelo Romantismo (espí-
decisões pelas quais passamos, uma consequência rito do povo); "povo" como totalidade dos trabalha-
que cada um cumpre para si mesmo, de tal modo que dores (Marx); "povo" na expressão: a religião é o ópio
nenhum de nós pode afirmar com referência a outro, do povo.
se a decisão se cumpriu. Apesar de nós nos singula- Para nós, agora a tarefa não é, no sentido da antiga
rizarmos na decisão, nós não somos revertidos para lógica, extrair um conceito comum, mas é salientar
nós mesmos, no sentido de um egoísmo; através desta a direcção da pergunta, na qual é pensado aquilo que
decisão somos antes lançados sobre nós e para fora de aqui é, em cada caso, designado como "povo". Temos

(118] (119]
de ver se, no meio das diferentes perspectivas, se pode
abarcar uma unidade peculiar, sobre cujo fundamento
T
í
"raça" tem uma relação com a interdependência física,
do sangue, dos elementos do povo, da sua linhagem.
nós possamos falar de "povo", numa multiplicidade de A palavra e o conceito "raça" não são menos ambíguos
significados. que "povo". Isto não é nenhum acaso, pois ambos
estão interligados.
"Raça" não quer apenas dizer racial [Rassisches],
a) Povo como cotpo · como laços de sangue, no sentido da transmissão here-
ditária, da consanguinidade e do impulso da vida, mas
No censo popular o povo é contabilizado no sen- significa também muitas vezes a raça nobre [das Ras-
tido da população - a população, enquanto ela consti- sige]. Mas isto não é limitado à condição corporal,
tui o corpo do povo, os habitantes de um território. antes dizemos, por exemplo: "um carro de raça" (pelo
É de considerar, a este propósito, que na realização esta- menos os jovens).A característica de nobre ocupa uma
tal de um recenseamento só é compreendida uma parte certa posição, dá certas leis, não visa em primeira linha
determinada do povo, nomeadamente aqueles que vi- a corporeidade da fanúlia e dos sexos. Racial no pri-
vem no interior das fronteiras nacionais. Os alemães no meiro sentido não necessita de ser, de modo algum, de
estrangeiro não são contabilizados neste sentido não raça nobre e pode, antes pelo contrário, ser inteira-
pertencem ao povo. Por outro lado, podem também ser mente destituído de raçaS.
contabilizados e tomados como povo, os que são estra- Por conseguinte, "povo" foi agora entendido, à
nhos à etnia e não pertencem ao povo. partida, como população, habitantes, linhagem comum
Por conseguinte, o recenseamento é só o censo -"povo" como corpo do povo.
dos habitantes. Ao contrário, a política demográfica
não se refere aos habitantes, refere-se aos que depen-
dem do mesmo contexto vital, como a fanúlia, de cuja b) Povo como alma
saúde se quer cuidar. Aqui a população é tomada numa
perspectiva mais determinada, como corpo do povo, Nas canções populares, nas festas populares e nos
no sentido de vida física. costumes, mostra-se a vida e sentimentos do povo,
Muitas vezes usamos também a palavra "povo" no o cunho simbólico da atitude fundamental do seu
sentido de "raça" (por exemplo também na expressão
"movimento nacional"7). O que nós designamos por
8 N.T.:Trata-se de um jogo de palavras (de dificil tradução
para português) entre Rassig e Rassisclz, através do qual Heideg-
7 N.T.: Vo/kisclze Bewegzmg era uma expressão usada para ger insinua diante do seu auditório que a "raça" não significa
designar o movimento nacional-socialista. nobrezá, nem superioridade.

[120] [121]
Dasein. Aqui, o povo já não é a simples população e os estrato social inferior, que quer permanecer volun-
habitantes, mas um círculo mais determinado de pes- tariamente nos instintos, muitas vezes também sem
soas inseridas nas povoações históricas. O povo não autodonúnio. O povo, no último sentido, é visto a
está colocado numa simples região com a qual não partir da totalidade do povo, enquanto é tomado
tem relação, mas começa a constituir-se com o povoa- socialmente. À sociedade humana pertence um povo
mento e, com os seus costumes, ele dá à região as suas como estrato social inferior, junto da verdadeira, da
características, por exemplo, pela utilização da força assim designada melhor sociedade.
hidráulica - e até a fauna e a flora são caracterizadas Portanto, temos aqui dois significados que se
em conjunto com o povoamento, mesmo se, muitas entrecruzam; por um lado, o todo do povo (como os
vezes, no sentido negativo da extinção. Inversamente, povos românicos ou os povos germânicos), por outro
a paisagem assim caracterizada participa no Dasein lado uma divisão entre povo (plebe) e melhor socie-
comunitário quotidiano, na alternância do seu acon- dade. Esta divisão em classes sociais não se manifesta
tecer temporal de nascimento, casamento, morte e apenas numa sociedade baseada na propriedade, na
mudanças de estação. economia, mas também é possível numa sociedade
"Povo" é aqui tomado no seu comportamento corporativa. A divisão de um povo, por seu lado, pode
anímico - como alma. pensar-se a partir de modelos e pontos de vista, que
podem ser tomados a partir da cultura universal. E a
força de resolução de um povo há-de devolvê-lo de
c) Povo como espírito novo à sua própria lei.
Em tudo aquilo onde se trata de hierarquia,
Mas, com o povo como alma, nós já temos uma de ordem própria, de decisão, povo existe como algo
área delimitada, em relação à totalidade da população histórico, como relativo ao conhecimento, como
que é contabilizada num recenseamento. À população relativo à vontade, como espiritual. Povo como es-
pertencem também os muitos nos pátios das grandes pírito.
cidades, para os quais não há nem sequer manifesta- Apresentámos 3 perspectivas compreendidas em
ções do tempo atmosférico; a ela pertencem também conjunto, sob as quais se apresenta o conceito de
muitos que não se incluem entre o povo, que tomam "povo":
o povo com usos e costumes apenas como peça de 1. povo como corpo [Kõ1per]/corporalidade
inventário e objecto de prazer para veraneio. [Leíb]
Aqui evidencia-se que este conceito restritivo de 2. povo como alma
"povo" também implica a significação de uma estrati- 3. povo como espírito
ficação social peculiar: povo é aqui um determinado

[122] [123]
Mas corpo, alma e esp1nto são as partes consti- Antes de nos decidirmos a desistir da resposta,
tutivas do homem. Na definição dominante o homem devemos tentar compreender o povo na sua essência
é determinado precisamente atendendo ao corpo, de uma maneira mais determinada e procurar funda-
alma e espírito. Assim, o povo é tomado à semelhança mentar estas determinações. Para este fim poderíamos
de um homem em grande. orientar-nos no sentido de uma nova ciência, a socio-
, Onde nos situan:os agora com a nossa resposta? logia, isto é, a teoria da sociedade e das formas sociais.
A pergunta " quem somos nos " mesmos.?" , nos
, respon- No seio da sociologia são ditas muitas coisas acerca do
demos "nós somos o povo". A pergunta, à qual nós conceito de povo, nomeadamente, acerca da delimita-
queríamos com esta resposta corresponder, rezava ção da sociedade em relação ao Estado [Staat] e ao
assim: "o que é o homem?" Nós respondemos:"O ho- Reino [Reic/z], etc.
mem é o povo", isto é, o povo é o homem em grande É que, certamente, deve-se reparar aqui na direc-
escala. ção de onde são tomadas as definições e se elas não
Isto não é nenhuma resposta, pois: escorregam para o vazio, se estas determinações não
1. Nós respondemos com aquilo que perguntá- serão em princípio um caminho errado, uma vez
vamos; que conceitos como "povo" e "Estado" não podem de
2. Com a nossa resposta" o povo é o homem em maneira alguma ser definidos, mas têm de ser com-
grande escala, é a grandeza física, anímica, espiritual", preendidos, de cada vez, como históricos. Contudo,
não apenas se inseriram as partes constituintes do por outro lado, não podemos renunciar a uma con-
homem, mas foram vertidas para uma grandeza maior; cepção de povo determinada e unificada.
esta trasladação torna estas partes ainda mais inde- O importante será responder à pergunta pela es-
terminadas, mais difusas e questionáveis; sência do povo no mesmo estilo em que já pergun-
3. A determinação do homem como um animal távamos por conseguinte, naq11ela direcção da per-
provido de entendimento, governado pelo espírito, gunta, à qual foi dada a resposta "nós somos o povo",
toma o homem como qualquer coisa que pode ser des-
na direcção da pergunta pelo quem. Por conseguinte,
crita. Contudo, nós já antes vimos que falhámos com
também aqui não devemos perguntar "o que é um
o homem no seu ser si mesmo. Por isso, já tínhamos
povo?", para chegar a uma definição insípida, mas
transformado a pergunta pelo que na pergunta pelo
quem. Nós queríamos precisamente virar as costas àque- "quem é esse povo que nós próprios somos?".
las representações, segundo as quais o homem é tomado Nós já ouvimos que a pergunta "quem é esse
como composição de corpo, alma e espírito. Agora, povo que nós próprios somos?" é uma pergunta-deci-
contudo, viramos na mesma direcção da pergunta. Esta são. Esta pergunta coloca-nos diante da seguinte per-
resposta é duvidosa no mais alto grau. Talvez nós não gunta - "seremos nós, então, este povo que nós pró-
possamos, pois, responder -"nós somos o povo". prios-somos?". Isto parece ser uma pergunta estranha.

[124] [125]
Como pode algo que é não ser precisamente aquilo Este somos e ser estão sob uma decisão. Com a
que é? Pertence indubitavelmente à essência de um transformação da pergunta pelo quê na pergunta pelo
ente que ele seja aquilo que ele é. quem somos nós mesmos, não mudou apenas o pronome
Mas talvez este princípio geral só valha para interrogativo. Todo o sentido da pergunta se tornou
determinados domínios do ente e não para todos. Pre- diferente, não apenas o nós está em conformidade com
sumivelmente é absurdo perguntar acerca da planta: uma decisão, mas também o ser. Daí a segunda dúvida
"Ela é aquilo que é?".A planta, pela sua essência, não -"o que quer dizer aqui decisão?". Ela tem de ser colo-
pode afastar-se dessa essência. cada, porque senão também a resposta - "nós somos o
Mas o que se passa com o ente que está aqui em povo" - permanece incompreensível.
questão, o que se passa connosco? Não temos nós a Pelos vistos, a pertença a um povo não está no
prerrogativa única de podermos afastar-nos da nossa domínio de uma decisão, mas ela já está sempre deci-
essência e de a podermos atraiçoar, de nos perdermos, dida. Contudo, nós não sabemos, para já, o que quer
de nos lançarmos na in-essência da nossa essência e aí dizer aqui "decisão", assim não sabemos o que signi-
permanecermos muito tempo? Com isso, a pergunta fica: o povo tem o carácter de uma decisão. Mas nós
"somos nós o povo que nós próprios somos?" não vimos que o ser pode ser transformado em não-ser,
é tão destituída de sentido, como parecia à prin1eira sem por isso cair no nada; que, assim, nós - não sendo
vista. A pergunta "seremos nós este povo que nós pró- - sempre somos.
prios somos?" é talvez no mais alto grau urgente e
indispensável. Mas então o nosso si mesmo tem um
aspecto muito peculiar: então, sendo, não somos aque- §15. Resposta à segunda pergunta intercalar:
les que nós somos. o que significa decisão?
O que significa então aqui "sendo" e "somos"?
Até aqui, nós, por assim dizer, desatámos a perguntar Por isso, retomamos a pergunta - "o que significa
e pensámos que, com a mudança da pergunta pelo decisão?" - e deixamos cair, por agora, a primeira
que na pergunta pelo quem, tudo estaria resolvido. pergunta intercalar- "O que é um povo?". Nós expe-
Que nós somos, está fora de questão. Quem não rimentámos a ambiguidade e unilateralidade do enfo-
haveria de saber o que a pergunta "quem somos que no homem e nas suas características e compreen-
nós?" significa? As cerejas estão maduras, o tempo demos a pergunta - "quem é este povo?" - como
está abafado. Contudo, agora vê-se: nós somos os que pergunta-decisão. "Quem é este povo?"- é uma per-
somos, daquela maneira, que talvez não sejamos nós. gunta que, como pergunta-decisão, apenas ganha
Este "talvez" não é acessório, mas faz parte neces- clareza, quando nós estivermos informados sobre a
sariamente disso. decisão como tal.

[126] [127]
No regulamento para a realização de uma com- também, embora tome a decisão, esquivar-se à decisão,
petição, diz-se relativamente à distribuição do prémio: enquanto, por exemplo, diz a si mesmo: eu atribuo
em caso de igualdade de desempenhos, decide a sorte. o prémio àquele que estiver espacialmente mais pró-
Pela maneira como cai a sorte (na moeda, se a cara está ximo. Neste caso, ele decide-se mas, apesar disso, é
visível ou escondida), deduz-se a quem o prémio deve apenas um acaso.
ser entregue. O sorteio elimina um e o prémio é atri- Nós vemos aqui: só a autêntica decisão faz do juiz
buído ao outro. Mas, rigorosamente, no aconteci- aquele que ele deve ser, não porque ele reflicta sobre
mento do sorteio não há de todo decisão, porque a si, mas, pelo contrário, porque ele abstrai comple-
sorte não pode decidir de modo algum, supondo que tamente das suas inclinações, tonalidades afectivas
nós compreendemos decisão [Entscheidung] como uma e preconceitos e decide a partir daquilo que ele deve
escolha entre possibilidades. Em caso de sorteio, é rea- decidir - sem uma atitude que reflecte, por conse-
lizada pelo acaso uma separação [Scheidung] um do guinte, sem egocentrismo egoísta. Já aqui vemos a
outro, uma eliminação [Ausscheidung]. É feita uma sepa- curiosa interdependência entre autêntica [echt] decisão
ração entre- mas não é decidido sobre. e o ser si mesmo propriamente dito [eigentlich]
As coisas são diferentes se o regulamento rezar Resta-nos agora a pergunta: o que se passa com
assim: em iguais desempenhos é o árbitro que decide. a decisão que nós levamos a cabo ao dizermos: "nós
Aqui há decisão e, contudo, não pela razão de que estamos inseridos no processo educativo desta Uni-
é decidido desta ou daquela maneira sobre um ou versidade"?
outro - desde que o árbitro tenha ambos diante de
si, conhece os seus desempenhos -, mas temos aqui a
decisão, porque aqui a separação e a eliminação só a) Decisão e estar decidido
podem acontecer, enquanto o árbitro se decide e isto
significa: coloca-se a favor de um, contra o outro. Nós dissemos que estamos inseridos no acontecer
A sorte cai simplesmente, não decide no sentido educacional desta Universidade. Nós dissemos que
agora mesmo discutido. Só se recorre a este cair para estes nós e somos são objecto de uma decisão. Há uma
não ter de tomar uma decisão. Deste modo, atrás desta decisão no sentido do decidir-se de cada indivíduo,
fuga a uma decisão está sempre uma decisão, nomea- mas não de tal maneira que um indivíduo se decida
damente esta: não decidir e não querer decidir. contra outro ou a favor de um terceiro, mas contra ou
Noutro caso, o árbitro decide, ele decide-se como a favor de si mesmo. Contudo, isto não é provavelmente
distribuidor do prémio. Nesta decisão ele torna-se uma decisão reflexiva, mas sim uma decisão a favor do
naquele que ele deve ser, ele torna-se ele mesmo. Antes estar inserido ou contra o mesmo. Não se trata de de-
desta decisão ele ainda não é este si mesmo. Ele pode cidir sobre se estamos facticamente diante dos olhos,

[128] [.129]
mas trata-se de decidir se queremos agir em conjunto,
se queremos agir em conjunto ou ao contrário. Esta
r
r

Ora alguém poderia referir que uma decisão


deste tipo hoje já não é necessária, é evidente, uma vez
decisão não chega ao fim no instante em que ela é que em 1933 os estudantes deram a palavra que o
tomada, mas só então começa e depois perdura, trans- tempo dos estudantes boémios tinha passado. E, con-
forma-se em estar decidido. tudo, permanece a possibilidade de que este estar bem
No caso da atribuição do prémio, com a realiza- decidido, apesar da sua regularidade, se feche ao autên-
ção da decisão o assunto está, pelo contrário, encer- tico acontecer. Dir-se-á que isto hoje já não é possí-
rado, fulano recebe o seu prémio e a reportagem vel. O estudante de hoje afirmará e cumprirá os deve-
desportiva noticia que a decisão foi tomada. Mas a res das S.A. e do departamento - estará assim provado
decisão que nós tomamos não está terminada com que ele se comprometeu com o acontecer actual? De
a realização, apenas começa. Em que consiste esta modo nenhum. Em primeiro lugar, podemos cumprir
decisão, uma vez que nós não podemos decidir-nos todos estes serviços sem sermos tocados pelo aconte-
num sentido indeterminado? Uma decisão, assim na cer. Em segundo lugar, não está de modo algum pro-
generalidade, não é nunca uma decisão - nós podemos vado que estas instituições, apesar da sua necessidade
apenas decidir-nos a favor disto e só a favor disto. interna, sejam capazes de transformar verdadeiramente
Porém, nós também não queremos filosofar em direc- o acontecer educacional desta Universidade. Estas ins-
ção ao vazio, mas nós perguntamos pelo conceito ape- tituições poderiam permanecer um meio acessório,
nas para nos decidirmos. ainda que necessário - e elas assim permanecerão, en-
Em que consiste esta decisão? Porventura num quanto a Universidade não se tiver transformado se-
acto único, agora realizado (ou realizado na aula pas- gundo a sua lei interna, a partir da nova realidade.
sada) - enquanto faço das tripas coração e digo com Dir-se-á: é isso que acontece precisamente agora.
uma expressão dura: "eu estou decidido"- fica tudo na Querem reformar a Universidade, por exemplo, colo-
mesma? Este "eu decidi-me" é expresso na forma do cá-la no espaço do sudoeste alemão9 [alemannischen
passado, mas ele está essencialmente orientado para Raztm]. Contudo, pelo facto de se falar sobre a região
aquilo que se está a passar e para o modo como se está da Universidade, a Universidade não se transforma
a passar, nomeadamente a continuação do processo - quando nem sequer dois por cento dos professores e
educativo tal como o conhecemos. Eu decidi-me a já estudantes falam e entendem a língua desta região.
não ser boémio, a fazer o meu exame, a obter os diplo-
mas; depois, eu quero dedicar-me escrupulosamente à 9 N.T.: Alemalllzisclzen Ra11m - zona sudoeste da Alema-

formação profissional, preencher o meu lugar e, assim, nha, correspondente à região de Baden (actualmente integrada
no Land de Baden-Wurtemberg), onde fica situada a Universi-
tornar-me um bom cidadão e um membro útil da
dade de Friburgo e onde é falado um dialecto designado como
comunidade. allemmínisclz.

[130] [131]
Começa-se agora também a encurtar as lições, correcta que esta concepção pareça, ela padece de um
por exemplo em Medicina, de cinco para três horas. erro essencial. Pode ser-se um excelente investigador
Isto é talvez muito aconselhável. Contudo, assim não e, contudo, não estar em estado de abranger a totali-
está garantido que as lições se tornem melhores, pois dade do âmbito da sua especialidade. E um "bom pro-
talvez assim as lições antigas sejam apenas condensa- fessor" pode ser simplesmente um professor hábil que
das. Tão-pouco é certo que um seminário se torne faz os seus alunos empinar.
melhor, se tem lugar n~m prado verde, em vez de no Não se trata aqui nem de investigação, nem de
interior de quatro paredes. ensino, mas de ser atingido e arrebatado a partir do
O Reitor pode hoje apresentar-se no uniforme todo, da essência das coisas que suportam a investi-
das S.A. em vez de na antiga toga. Provou ele com isso gação e o ensino. A discussão actual é apenas o sinal de
que a Universidade mudou? Quanto muito oculta-se que ainda não se compreendeu de que se trata; ela dá
que, no fundamental, tudo permanece como antiga- um testemunho de que ainda hoje estamos no estado
mente. Nós podemos inserir-nos perfeitamente nos em que a Universidade corre para o seu fim. A disso-
novos deveres e instituições e, contudo, fechar-nos ao lução em áreas disciplinares é o fim da Universidade,
verdadeiro acontecer. e aquela já existe há décadas, porque há muito que
No fundamental - dir-se-á agora-, com a deter- falta uma força unificadora fundamental na educação.
minação da Universidade como estabelecimento de Já não haverá nenhuma capacidade unificadora e cria-
ensino ainda não se tratou da verdadeira missão da dora, nem auto-afirmação da força do povo alemão,
Universidade. Não se deve apenas ensinar o que serve mas apenas a insistência no que existe até hoje?
para um adestramento eficaz da profissão, mas deve Nós não lamentamos a dissolução, nem o fim,
investigar-se, a ciência deve ser estimulada. Daí que mas sim o facto de que se dissimula este fim, se pro-
muitos pensem que a muito censurada investigação cura encobri-lo das mais variadas maneiras, preci-
é o fundamento para o ensino e que voltarão a surgir samente no lado daqueles que revolucionam e não
os tempos em que era considerado aluno ideal aquele notam que apenas conservamos um cadáver, uma
que tinha a forma de um professor [Privatdozent] fa- pseudo-unidade.
lhado. Contudo, assim também podemos fechar-nos
ao verdadeirq acontecer. Quer salvar-se a vantagem da
concepção de que o ensino deve fundamentar-se na b) A resolução como inserção do homem no acontecer
investigação, porque senão ele banaliza-se e degenera futuro
num oficio de "marrão"10. Contudo, por muito
O que significa tudo o que foi dito? Que nós nos
to N.T.:Aspas do tradutor.
decidimos pelo cumprimento dos deveres actuais dos

[132] [133]
estudantes, pelos exames, a reforma, pelas consequên- Também aqui se manifesta o facto de que nós, de
cias dos trabalhos científicos - com todas estas decisões certo modo, somos nós mesmos mas, contudo, não
fechamo-nos, em vez de nos abrirmos ao verdadeiro estamos propriamente neste ser. Isto não pode ser supe-
acontecer. É que estas decisões são apenas a afirma- rado através do discurso, mas somente através de ree-
ção daquilo que aconteceu até agora; não acontece ducação radical - e será superado.
nenhum abrir-se, nenhuma resolução [Entschlossenheit], Nós concebemos a nossa decisão na expressão
mas apenas uma cega insistência naquilo que é moeda "nós estamos inseridos no acontecer educativo da
corrente, naquilo que serve o comodismo das pessoas. Universidade"; sublinhamos - este nós e estamos são
Surgiu uma situação peculiar. ·De um lado estão decisivos. Esperámos um esclarecimento desta expressão
os que se preocupam em proporcionar esta constru- por uma discussão conceptual daquilo que designamos
ção, um grande telhado com pára-raios; o fundamento como "decisão". Aconteceu que a decisão que tínha-
será fornecido mais tarde. Do outro lado estão os que mos em mente e que talvez realizássemos, não era uma
afirmam a actualidade, mas que não largam o passado, verdadeira decisão, naquele sentido em que nós a rei-
dá-se um passo à frente e dois para trás. Em ambos os vindicámos e que designámos como uma "resolução".
lados não há nenhuma decisão autêntica. É preciso dizer o que nós aqui pensamos com isso,
É um erro pensar que haverá um movimento ou melhor: é preciso chegar a uma resolução ou preparar
reaccionário na Universidade alemã. Não há nenhuma a sua possibilidade.
reacção porque não existe nenhuma revolução e ela A decisão, como nós até aqui a entendíamos, era
não existe porque não se compreendeu por onde se a execução de uma escolha afirmativa ou negativa do
deveria começar. Certas pessoas também não querem actual e do habitual. Este decidir, este estar decidido,
de modo algum uma revolução; é que se podia provar, é um fechar-se diante do acontecer, em vez de um
nomeadamente, que elas virão a ser dispensáveis em abrir-se a este acontecer. Ora poderíamos talvez dizer:
relação a ela. o estar decidido [Entsclziedenlzeit] e a resolução [Entsch-
Então a decisão em que nos encontramos neste lossenheit] são o mesmo. Seriam apenas duas palavras
instante tem um carácter [Bewandnis] peculiar para para a mesma coisa - contudo, nós usamos a palavra
aquele que compreende - uma questão que nunca "resolução" na base de uma nova visão do agir. Nós
mais o deixa sair do desassossego. Não chega simples- estamos decididos por algo, a favor deste algo foi to-
mente repetir isto, mas é preciso compreender que mada uma decisão. Apesar disso, nós podemos não ape-
atrás de tudo isto pode estabelecer-se uma inquietante nas adiar a execução e as consequências desta decisão,
ambiguidade da vida e da acção. mas sobretudo deixar de nos ocupar com o assunto e
Mas como havemos nós de executar de outro voltar a ele quando for oportuno. O fumador decidiu-
modo a decisão? -se a desistir de fumar, mas só quer começar na pró-

[134] [135]
xima semana. Ele decidiu, mas não está resoluto. Cer-
tamente que ainda fumará daqui a três semanas.
Nós estamos resolutos em relação a algo isso
implica que aquilo em relação ao qual estamos reso-
lutos está sempre diante de nós, a determinar todo o
nosso ser, não nos ocupa apenas ocasionalmente; mas TERCEIRO CAPÍTULO
a resolução dá ao nossó ser um determinado cunho
A pergunta pela essência da história
e consistência. Com isso, nós não pensamos em
nenhuma característica que alguém traga consigo, tal
como dizemos: ele é um homem capaz de tomar deci-
Com a resolução, estamos no âmbito da história,
sões. Na resolução o homem está antes lançado 110 acon-
não num qualquer vulgar domínio de ocorrências,
tecer futuro. A resolução é em si um acontecer, aquele
acontecer que antecipa e cc-determina constantemente mas naquele a que chamamos, no sentido enfático, his-
o acontecer. tória e que temos de tratar agora.
A resolução é um acontecer, não no sentido habi- Ora, é certo que nós não temos agora a presun-
tual de um qualquer acontecimento, não um qualquer ção de desenvolver a pergunta pela essência da histó-
acto, mas a resolução encerra a sua própria consistên- ria, ainda menos de lhe responder. Contudo, tem que
cia, de tal modo que não necessito de repetir a tomada ser dito que a pergunta pela essência da história não
de decisão [Entsclzlt!fJJ. Quando eu tenho que repetir é senão a nossa pergunta condutora: "quem é o
a tomada de decisão, provo que não estou resoluto. homem?". Pois só o homem tem história, porque só
A resolução é um acontecimento eminente mtm acon- ele pode ser história, contanto que ele seja e conforme
tecer. ele seja.
- O que é a história? - Parece que cada vez nos
afastamos mais do nosso tema. Começámos com a
pergunta "o que é a linguagem?". Isto conduziu-nos
às perguntas: "o que é o homem?" "quem é o
homem?" "quem é o si mesmo?" "o que é
o povo?" - "o que é decisão" - "o que é história?".
Como chegamos, assim, ao tema da lógica: "qual é a
essência da linguagem?" - Ocupamo-nos continua-
mente da essência da linguagem, sem que isso seja per-
ceptível para nós.

(136] (137]
A pergunta pela essência da história está sujeita às dade entendemos o estar-revelado [Offenbarkeit] do
mesmas dificuldades que a pergunta condutora. Por ente, estar revelado esse que nos insere e liga ao ser
isso, é natural manter a pergunta no quadro da nossa do ente em cada caso, de acordo com a maneira de
discussão. Contudo, é necessário dar uma visão mais ser do ente que aqui chega ao estar-revelado. O que é
abrangente sobre a essência da história para com- verdadeiro para nós neste sentido de verdade chega
preender o que está aq~i emjogo. e sobra para o curso da vida de um homem.
Não faz falta uma verdade insípida que seja ver-
dade para todos e por isso não vincule ninguém. Uma
§16. A determinação da essência da história verdade não se torna menos verdade pelo facto de
fundamentada no carácter da história da não poder ser destinada a todos. Mas, mesmo que todo
respectiva época. A essência da Verdade - e qualquer homem dê o acordo a uma verdade, esta
determinada através do Daseiu histórico verdade não precisa de ser verdadeira; e, inversamente,
um indivíduo pode estar na verdade, na qual os outros
Renunciamos a fazer uma exposição sobre a con- não estão porque não estão maduros para ela. Por isto
cepção habitual ou actual da história ou a criticá-la. esta verdade não se torna porventura falsa.
Colocamos antes, no início das nossas discussões, a Ora, o que acontece com a seguinte reflexão:
declaração: a determinação da essência da história fi.m- se até para nós não há verdade absoluta, então, pelo
damenta-se no carácter respectivo da história da época menos, tem de ser absolutamente verdadeira a afir-
a partir da qual essa determinação é realizada. mação "não há verdade absoluta". Com isso, sempre
Não existe nenhuma determinação da essência da existe verdade absoluta e a afirmação "não existe ver-
história absolutamente vinculativa em si. Não faz sen- dade nenhuma" é abalada.
tido transferir a concepção medieval da história para O encadeamento deste raciocínio é um artificio
a nossa época; igualmente absurdo é designar aquela formal.A partir da frase "não há verdade absoluta", não
concepção da história como falsa. - Mas então não se segue que a própria frase seja verdade absoluta:
existe nenhuma verdade absoluta! Sem dúvida que é apenas verdadeira para nós. Importa tomar a sério o
não. Já não é sem tempo que nós deixemos de estra- conhecimento de que nós, na verdade, estamos sempre
nhar este facto e finalmente o tomemos a sério, por- num certo âmbito e nível da verdade, mas que, con-
que nós, por enquanto, somos humanos e não somos tudo, exactamente com esta mesma abertura do ente é
deuses. já posto e acontece um encobrimento [ Verbot;genlzeit]
Mas não devemos concluir, a partir do facto de das coisas, até mesmo uma dissimulação e recalca-
que não há nenhuma verdade absoluta, que não existe mento, e que esta não-verdade não está inofensi-
verdade absolutamente nenhuma para nós. Por ver- vamente junto da verdade, como num tapume, mas

[138] (139]
esta não-verdade domina constantemente o nosso do homem. Por outro lado, poder-se-ia objectar que
estar na verdade. há homens e grupos de homens (negros, como por
Esta verdade sobre a verdade também só é ver- exemplo os cafres) que não têm história, dos quais
dadeira para nós. Contudo, este aditamento "ver- nós dizemos que são a-históricos. Mas, por outro lado,
dadeiro para nós" não tem sentido absolutamente a vida da fauna e da flora tem uma história de milha-
nenhum, porque a nossa relação com a verdade per- res de anos e cheia de peripécias. Os fósseis dão um
tence ela mesma à verdade. testemunho instrutivo acerca disso. Não apenas a vida,
sob a qual nós compreendemos os animais e as plan-
Com o que aqui foi brevemente indicado é dito o
que se passa com a verdade do nosso perguntar, isto é, com tas, mas também toda a terra tem a sua história. Nós
a verdade da filosofia. Muitas vezes opina-se que a filosofia seguimos, pois, essa história, por exemplo, as modifi-
deveria, como a mais elevada ciência, ser isenta de pontos cações da crosta terrestre. O geólogo segue a história
de vista. Quis-se erigir isto em princípio. Mas tem de da terra ao longo das suas épocas. Por conseguinte,
haver um ponto de vista estável, sem ponto de vista estável há história também fora do âmbito do homem, por
[Sta11dprmkt] não se pode estar [stehe11]. Não se trata de
outro lado ela pode faltar no seio do âmbito humano,
liberdade de pontos de vista, mas de que seja conquistado
um ponto de vista estável. Trata-se da decisão por um ponto
como entre os negros. Com isso, a história não seria
de vista estável. Isto não é coisa de uma filosofia que paira nenhuma determinação distintiva do ser humano.
nas nuvens, mas de homens filosofantes, determinados pelo Não podemos proibir o uso dos termos "evolu-
seu Dasei11 histórico. ção" e "história da terra". Permanece apenas a per-
gunta sobre o que aí queremos dizer com a palavra
"história". Fala-se, pois, também da história de Frede-
§17. A ambiguidade da palavra "história" rico, o Grande, a história da guerra dos camponeses11,
a história da teologia protestante. Será que compreen-
Não foi casualmente que desenvolvemos esta demos aqui sob o nome "história" o mesmo que nas
pergunta pela essência da verdade, mas necessaria- expressões "história do tempo da terra" e "evolução
mente, pois ela está ligada da maneira mais estreita dos mamíferos"?
com a pergunta pela essência da história. A história Pelos vistos, "história" e "história" não são o
é aquilo que distingue o ser do homem, é a detenni- n1esmo.
nação distintiva da pergunta pela essência do homem. Se isto é assim, temos de investigar esta ambi-
Se nos debruçamos agora sobre a pergunta pela guidade e compreendê-la na raiz. Pois não se trata aqui
essência da história, poder-se-ia pensar que tínhamos
decidido arbitrariamente o que é a história, nomea- 11 N.T.:A guerra dos camponeses, em 1525, foi a primeira
damente que a história é aquilo que distingue o ser grande' sublevação na história da Alemanha.

[140] [141]
simplesmente de uma irregularidade no uso da lin- factos que desaparecem - então até mesmo a sucessão
guagem. Aqui mostra-se antes uma determinada in- do girar de uma hélice de um avião é história. É que
certeza e insegurança da atitude fundamental relativa acontece algo. E, contudo, somos relutantes em falar
aos âmbitos essenciais, que nós enunciamos e a que aqui de história. Nós diferenciamos precisamente a
nos referimos no uso da linguagem. Esta insegurança natureza da história, distinguimos as ciências da natu-
aponta para um desenraizamento peculiar do nosso reza e as ciências do espírito. Cautelosamente, não
ser, no qual permanecémos enredados e que não po- designamos as últimas como "ciências da história" e
demos fixar através de nenhuma normalização do uso estamos assim libertos do embaraço de o geólogo que
da linguagem. trata da história da terra e o zoólogo que trata da his-
tória da evolução pertencerem aos cientistas da natu-
reza e aos historiadores. Mas onde se situa aqui a mate-
a) "História" como ingresso no passado. mática, supostamente a ciência mais segura? Será ela
História natural uma ciência da natureza porque é usada pelos físicos e
pelos químicos? Ou será ela uma ciência do espírito,
Será que "história" e "história" significam o se bem que o filólogo passe bem sem ela?
mesmo? Em caso afirmativo: o que é então a histó- Também a natureza, viva ou não viva, tem a sua
ria? Em caso negativo: em que direcção estão as dife- história. Mas como chegámos nós a dizer que os cafres
renças essenciais? são a-históricos? Contudo, eles têm tanta história
Num caso como noutro, poderíamos dizer que se quanto os macacos e os pássaros. Ou será que a terra,
trata de factos que se seguem uns aos outros, actuam as plantas e os animais não têm, apesar de tudo, his-
uns sobre os outros, sucedem-se no tempo e preen- tória? Na verdade parece indiscutível que aquilo que
chem uma determinada época, que estes factos assina- passa, no mesmo instante pertença ao passado; mas
lados passam coni o tempo, isto quer dizer que entram nem toda e qualquer coisa que passa e pertence ao
no passado e, enquanto entrados no passado, per- passado entrará na história.
tencem à história. "História" significa aqui, desde logo, Como é no caso do girar da hélice? Ela pode
a sucessão temporal da série de factos que mergulham girar dias a fio não acontece nisso propriamente
no passado. Ao passar, esta sucessão ganha uma histó- nada. Mas quando o avião traz o Führer de Munique
ria. Aí é indiferente em que domínio de factos esta até Mussolini em Veneza, então acontece história.
sucessão ocorre. O voo é um acontecer histórico, mas não o trabalhar
Se nós tomamos "história" neste sentido, então da máquina, se bem que o voo só possa acontecer
também a natureza tem história. Se tomamos a sério enquanto a máquina trabalha. E, contudo, não é ape-
este conceito de história - "história" como série de nas história o encontro dos dois homens, mas o

[142] [143]
próprio avião entra na história e será talvez mais tarde cumeada, um rio podem ser lugar de batalhas históri-
exposto num museu. O carácter histórico não de- cas. Nós falamos do "solo histórico", dizemos que toda
pende, contudo, do número das rotações ?a hélice que uma região está, por assim dizer, carregada de história.
ocorreram no tempo, mas daquele acontecer futuro Por isso, o solo terrestre entra também na histó-
que resultará deste encontro dos dois dirigentes. ria. Mas o acontecimento propício [Ereignis] deste
ingresso não é um evento na ordem da sucessão das
mudanças da crosta terrestre. Antes pelo contrário,
b) "História" como ingresso no futuro o acontecer no qual entra o solo é a história feita
pelos povos. E os povos não entram na história como
Por isso, entrar na história não quer simplesmente se ela fosse um espaço pronto no qual encontram
dizer que algo passado, simplesmente por ter passado, refúgio, uma trajectória presente [vorlzaudene Bahn],
é incluído no passado. É, aliás, questionável se o entrar que eles apenas têm de percorrer, mas "fazer história"
na história significa sempre ser como que enviado para significa: criar primeiro o espaço e o solo. Aqui "fazer"
o passado. Quando um povo a-histórico entra na his- não quer dizer fabricar, no sentido em que o homem
tória, com "história" não queremos dizer o passado, pode fabricar e conservar uma coisa. Se bem que um
mas o futuro, que co-determina esse povo que entra povo faça a sua história, a história não é uma coisa
na história. Mas, do mesmo modo, este povo pode fabricada pelo povo - o povo, pelo seu lado, é feito
também ser expulso da história. Está, por assim dizer, pela história.
no exterior, colocado na màrgem, já não tem futuro. Assim, apresenta-se aqui uma nova ambiguidade:
Nós temos, por isso, esta coisa estranha - que um povo um povo ergue a sua história diante de si no seu querer
entra na história (passado), na medida em que é elimi- e é, por outro lado, erguido pela história. A pr~meira
nado da história (futuro). ambiguidade - que um povo entra na história enquanto
A história é equívoca. E quão confusamente pen- dela sai - está ligada à segunda. Em ambos os casos,
samos sobre a história e sobre o nosso próprio ser - torna-se mais claro: a história não é só a sequência dos
dado que a históría representa o carácter mais próprio sucessos. Daí que a terra, em rigor, também não tenha
da nossa maneira de ser! Torna-se claro que um povo história. Mas porque não? Porque o homem não toma
a-histórico, que mais tarde entra na história, carece de parte dela e porque só o homem é histórico. O que é
história num sentido completamente diferente da histórico no homem? As mudanças dos sucos gástricos,
terra. A terra não pode entrar na história nem dela sair, a circulação sanguínea, o tornar-se grisalho do cabelo
não tem qualquer relação com a história. Mas con- - será que isto é história? Ou será história que um ho-
tudo, ela não poderá ter? A península balcânica meri- mem seja gerado e nasça, envelheça e morra? Mas diz-
dional entrou na história há mais de 2000 anos. Uma -se que isso também acontece com o cão e o gato...

[144] [145]
E contudo são história a hora de nascimento de o movimento da crosta terrestre e os processos vitais
Albrecht Dürer e a hora da morte de Frederico, o e, do outro, o acontecer humano, de modo que só
Grande. Quando um cão morre ou uma gata pare isto pressentimos aproximadamente e emotivamente as
não é história, só quando uma velha tia faz daí uma diferenças e deixamos o restante para uma frase oca.
história. A hora do nascimento de Dürer e a hora da A diferença tem de ser compreendida como inerente
morte de Frederico, o Grande, não são história porque à constituição interna do respectivo âmbito do ser.
posteriormente se tornàram significativas, mas o nasci-
mento da pessoa já é em si história. Que quer isto
dizer? A indicação de que aqui se trata de coisas hu- §18. O acontecer humano como o que se cum-
manas, à partida, não pode esclarecer-nos muito tanto pre e permanece no saber e no querer:
mais que estamos a perguntar quem é o homem. a notificação
A referência de que a história só acontece onde há
homens não nos presta neste caso qualquer serviço. As alterações terrestres são determináveis mecâ-
Nós restringimos a história ao ser do homem. nica e fisicamente como detritos. A vida das plantas e
Mas também os entes não humanos, como por exem- dos animais é a unidade instintiva característica duma
plo o mencionado avião do Fiihrer, podem tornar-se totalidade viva. O acontecer humano, pelo contrário,
história através de uma peculiar entrada na história, é voluntário e, por isso, sapiente, e na verdade não ape-
que apresenta um acontecer próprio. Nós determina- nas em cada caso em si mesmo, de tal modo que o saber
mos, com esta restrição, a história como ser do homem e e o querer sejam co-determinantes para o acontecer
recusamos a "história animal" e a "história da terra" humano no seu cumprimento, mas também enquanto
como insignificantes. A história é um carácter dis- este acontecer enquanto acontecer permanece no saber
tintivo do ser humano. e também, de certo modo, no querer - por conse-
Mas devemos precisamente compreender este ser guinte, pode ser dele conservado uma notificação
humano só a partir do conceito da essência da história! [Kunde] e, por isso, esse acontecer é susceptível de ser
Assim movemo-nos mais uma vez em círculo: deter- investigado [erkundbm].
minamos a história a partir do homem e o homem a Uma floresta centenária não só não tem nenhuns
partir da história. Movemo-nos em círculo e estamos, anais nem relatos, mas não tem absolutamente
por isso, no bom canúnho. Resta-nos apenas a conti- nenhuma notificação da sua morte. As formigas, que
nuação do caminho tomado: a consideração provisória empreendem expedições de conquista, não conser-
e comparativa do ser humano como história em com- vam estas, deixando o seu passado como que atrás de
paração com o ser não histórico da terra, das plantas si. Elas nem sequer podem esquecê-las, não têm
e animais. Não é suficiente distinguir, de um lado, nenhuma notificação do que lhes acontece. (Isto não

[146] [147]
deve ser demonstrado empiricamente, mas metafisi- Recapitulação
camente.) Pelo contrário, do acontecer voluntário e
sapiente humano provém sempre, ao mesmo tempo, Perguntámos pela essência da história. Recente-
uma notificação, na qual ele pode ser alcançado e na mente, isto é, no século passado 14, esta pergunta foi
qual se anuncia [ankiindigt] sempre de novo. espartilhada no âmbito da Filosofia da História tal
Para o investigar, os gregos usaram a expressão como a linguagem, no âmbito da Filosofia da Lingua-
Laropia. Só no decurso da sua própria história esta gem. Evitamos esta instrumentalização da história
palavra tomou o significado de "notificação da histó- pelos mesmos motivos pelos quais evitámos a ins-
ria". Esta palavra significa hoje como "historiografia" trumentalização da linguagem. Aqui, como além, há
[Historie] o saber da história [Geschichte].A história [Ges- uma determinada razão fundamental: a história não
chichte]12 é um acontecimento propício [Ereignis]13, é assunto de um determinado domínio espacial, mas
na medida em que ele acontece [geschieht]. Um aconte- intervém directamente nas questões últimas do
cer [Geschehen] é historiogr4fico [historisch] desde que ele conhecimento filosófico.
esteja numa notificação [Ktmde], seja indagado [erkundet] Nós determinámos a verdade como o estar reve-
e documentado [bekundet]. Será que o historiográfico lado [Offenbarkeit] do ente, devido ao qual nós somos
é apenas um suplemento para o que é histórico? Ou inseridos no ente e ligados ao ente. Negámos uma ver-
existe história apenas onde existe historiografia, de tal dade absoluta. Mas isto não significa que defendamos
modo que resulte daí a frase "Nenhuma história sem a tese de uma verdade apenas relativa. A relatividade
historiografia"?. é apenas arbitrariedade. A recusa do ponto de vista fixo
da verdade absoluta significa simultaneamente a recusa
de toda a relação do absoluto e relativo. Se, neste sen-
tido, não se pode falar de verdade absoluta, também
não se pode falar de verdade relativa. Toda esta relação
é equívoca.
12 N.T.: Para traduzir a opos1çao criada por Heidegger
À partida construímos a tese: "A história é o
entre Historie e Geschiclzte, traduziu-se o primeiro termo por his-
toriografia e o segundo por história. carácter distintivo do ser do homem." Mas fizemos
13 Ereiguis, na linguagem corrente significa evento. Con- valer objecções contra ela. Também os âmbitos extra-
tudo, o termo, aqui introduzido, desempenhará um lugar central -humanos têm história; por isso falamos da história
nas obras seguintes de Heidegger, que sublinhará a sua derivação da terra e da história da evolução dos animais. Por
de Eigueu (apropriar), sendo geralmente traduzido, no contexto outro lado, também há etnias e povos sem história.
da história do ser, por acontecimento apropriador. Aqui, optámos
por acontecimento propício, para sublinhar o carácter instantâneo
e único desse acontecer fundante da história humana. 1-1 N.T.: No século XIX.

[148] [149]
O conceito de história mostrou-se, por isso, ambí- processo vital, acontecer -, a direcção do perguntar
guo. O que é que se quer aqui dizer com «história»? e do destacar sempre se torna clara; em qualquer caso
Ou o que compreendemos por "história" quando torna-se claro que só aí onde o homem está - não
restringimos o conceito ao homem? enquanto ser vivo, mas enquanto homem - acontece
O conceito mais extenso de história significa: história.
a sucessão que decorre no tempo e recai no passado. Nós temos que continuar nesta direcção e fazer
Com isso, nós podemos chamar "história" a toda e de modo mais determinado o destaque deste acon-
qualquer sucessão. Por isso, nós podemos perguntar, tecer humano específico perante os outros domínios
a partir daqui, em que medida o girar da hélice é his- do ser. Assim, este ser movimento, o movimento do
tória, e em que sentido e em que medida nós pode- homem, acontece como um movimento voluntário e
mos falar de história a propósito de um avião. Este por isso sapiente. Por causa disso de que este mover-
caso ocorre só aí onde está emjogo a acção e o acon- -se é um mover-se voluntário sapiente - entra numa
tecer humano. Em conformidade com isto, não pode- determinada notificação de si mesmo e é, por isso,
mos falar de história no caso de animais e plantas. susceptível de ser investigado e pode ser notificado
Para fixarmos, à partida, conceitos claros: aquilo a outros. Nós dissemos que esta notificação pertence
que, em sentido muito amplo, compreendemos· como à história em geral. Se nós substituímos "notificação"
"história" significa toda e qualquer forma de mu- pela palavra grega "historiografia" [Historie], então não
dança. É o conceito mais universal de movimento. Num há história [Geschichte] sem historiografia [Historie].
caso, falamos de simples decurso [Ablmif] de um acon- Ora, se nós exploramos esta tese na intenção
tecer mecânico; depois -para um movimento no inte- de compreender o acontecer como modo peculiar de
rior da esfera da vida - de um processo vital [ Vorgang]; e movimento, caracterizado pela notificação, parece sur-
de acontecer [Geschelzen] falamos em relação ao domínio gir uma dificuldade: na verdade, o acontecer é volun-
do homem (-história [Gesclzichte]). tário-sapiente, mas não são só a vontade e o saber que
movimento determinam a acção histórica. Este agir histórico per-
decurso processo vital acontecer manece antes na dependência da força das circunstân-
Terra vida homem cias, do acaso - os acasos tomados como o portal, atra-
vés do qual as forças da circunstâncias se introduzem
Com este conceito mais amplo de história nós no acontecer.
podemos dizer que até um povo a-histórico tem Mas, mesmo no caso de observarmos esta limi-
história. tação, esta acentuação da historiografia, da notificação
Mesmo se não podemos aqui tratar sistematica- da história, permanece, pelos vistos, uma impossi-
mente das formas singulares de movimento - decurso, bilidade:

[150] [151]
1. É que tem que ter acontecido história em Da concepção da ciência da história acima men-
cada caso, antes dela entrar numa notificação e, segui- cionada deduz-se a consequência peculiar: se a ciência
damente, se tornar objecto de uma historiografia. da história encerrar a notificação (historiografia) num
2. Pode acontecer história sem que nós tenha- contexto coeso e se a notificação pertence ao nosso
mos notificação dela. Muita coisa acontece da qual acontecer como tal, então uma época histórica tem
nós não temos notificação alguma e este acontecer
que tornar-se tanto mais histórica quanto mais extensa
não é o de menor importância.
e rigorosamente se alarga e propaga para si a ciência da
história vigente. Mas, pelos vistos, não é assim. Uma
Por isso, a ligação da história e da notificação da
ciência florescente, dispondo da existência de fontes
história é tão sem sentido como a frase: nenhuma na-
com a organização mais metódica, a técnica mais de-
tureza sem ciência da· natureza. O que interessa a ciên-
senvolvida e os congressos mais bem preparados, pode
cia da história [Geschichtswissenschqft] para a história
ter como resultado o contrário e ser um estrangula-
[Geschichte]? É certo que a primeira depende da se-
mento da história, um desconhecimento do acontecer
gunda, mas não inversamente esta daquela.
histórico e uma paralisia e inversão do ser histórico.
Mas nós aqui não falamos de simples possibi-
lidade, mas de factos. "Os historiadores" (cientistas da
§19. A relação entre história, notificação da his- história) compreenderam com a maior dificuldade e
tória (historiografia) e ciência da história tardiamente como a história acontece, não pela razão
de que eles estão "politicamente orientados de outro
Mas nós dissemos: não há história sem historiogra- modo", mas porque eles são precisamente historia-
fia - donde resulta que não equiparamos a historio- dores, historiadores como a actual ciência da história
grafia à ciência da história, mas a tomamos conscien- os forma, há dezenas de anos. Isto não pretende ser um
ciosamente num sentido mais amplo. A ciência da rebaixamento da ciência. Mas nós não podemos ter
história é a formação verificadora e ordenadora de dúvidas a este respeito: nem todo aquele que trabalha
uma notificação histórica. Ela ultrapassa o experimen- num arquivo, nem todo o catedrático, nem todo o
tar casual de curiosidades e casualidades e aponta para professor liceal de história é já historiador no sentido
uma conexão coesa do acontecer e para a apresenta- originário da palavra, isto é, com uma relação essencial
ção do mesmo. Notificação (no sentido grego de his- à história. Certamente nós usamos também essa ex-
tória) é apenas a forma prévia da ciência da história. pressão num sentido mais vasto, e "historiador" signi-
Na ciência da história o que deve ser objecto é a his- fica então aqueles que se ocupam com a ciência da his-
tória. Nós tentaremos alcançar uma visão da história, tória. (E, por vezes, nós compreendemos como história
por via de uma discussão sobre a ciência da história. até uma festa de crianças bem-sucedida.)

[152] [153]
Mas os cientistas da história podem-se excluir e No fundo, a ciência da história é tão-pouco ne-
excluir-nos da história - tal como também existem cessária como qualquer outra ciência, uma vez que
aqueles que se ocupam da medicina e não são médi- pode ser cientificamente incorrecto algo que, como
cos, aqueles que toda a sua vida se ocupam de filosofia notificação da história, é mesmo essencial uma possi-
e nunca se tornam filósofos. "Historiador" pode ser bilidade que tem de causar arrepios ao pequeno-bur-
qualquer pessoa que se ocupe meramente da aparên- guês (por sorte ele não é o objecto da história).
cia, florescimento e desenvolvimento da ciência; que (Foi, por exemplo, um desacerto da ciência da
o objecto desta ciência também lá esteja é, no fundo, história quando ela procurou refutar a obra de Spen-
sem interesse. gler, A Decadência do Ocidente. É certo que o conseguiu
Mas com esta referência à questionabilidade da em larga medida. Com isso, porém, absolutamente
ciência da história não teremos refutado a nossa afir- nada mudou. Apesar disso, o tom decadentista conti-
mação "não há história sem historiografia"? A his- nuou a ser fomentado e, pouco tempo depois, a ciên-
toriografia, ordenada através da ciência da história, cia da história trabalhava na perspectiva de Spengler.
pode de facto estar à margem da história, causar pre- O valor da obra de Spengler não é confirmado pelo
juízo à sua compreensão e, em consequência, não estar grande número de tiragens que testemunha, antes, a vã
na história, estorvá-la e acabar com ela. Mas este aca- patetice do público.)
bar com e estorvar o ser histórico não será, por- A correcção científica do conhecimento histó-
ventura, uma relação com a história? Este acontecer rico não garante por si só a verdade de uma notifica-
fatal e persistente não será mesmo, antes, uma prova da ção, nem tão-pouco, inversamente, deve a incorrecção
nossa afirmação de que a história é co-determinada científica da história ser eficaz em relação à historici-
pela notificação? dade e à notificação.
Por outro lado, acontece que a ciência da histó- Daí tornar-se duvidoso se, a partir da ciência da
ria, tal como pode ter uma relação obstrutiva, pode história, experimentamos o essencial sobre a história.
também ter uma relação favorável. Só depende de criar Por isso, a relação da ciência da história com a notifi-
uma tal relação. O pressuposto disto é que haja clareza cação da história deve ser mais concretamente deter-
sobre o modo como a ciência da história se relaciona minada.
com a notificação - se a ciência apresenta uma forma Como notificação da história nós compreendemos
mais elevada de notificação ou, inversamente, se a o respectivo modo do estar revelado, 110 q11al 11111a época está
ciência da história só é determinada com respeito na história, de tal modo que este estar revelado suporta
à autenticidade e clareza da notificação -precisamente e leva consigo o ser histórico da época.
que só esta decide se a ciência da história é necessária Como se relaciona a notificação assim entendida
ou não. com a ciência da história? - não queremos dar aqui

[154] [155]
uma definição formal da ciência da história. É sufi- homem. Para isso, é recomendado ocupar-se com a
ciente a caracterização da atitude científica hoje do- psicologia e a caracterologia, se possível também com
minante. Esta determina-se totalmente a partir da a psicanálise. Mas, porque o homem também vive em
representação global normativa de ciência em geral. sociedade, também se coroou isto com a sociologia.
O conceito de ciência deriva da representação para- Pelo contrário, muitos historiadores renunciam à psi-
digmática do saber. O conceito de saber fundamenta- cologia e à sociologia e procuram o conhecimento
-se no respectivo entendimento e na respectiva com- humano de que, pelos vistos, necessitam nos grandes
preensão da essência da verdade. A essência da verdade poetas, nas grandes figuras históricas, nas biografias.
surge a partir da posição fundamental do homem no Outros contentam-se com o conhecimento de tipo
meio da totalidade do ser. Esta posição fundamental quotidiano e natural do homem e invocam o saudável
é dominada pelo modo como o homem está no meio senso comum. O historiador deve, por assim dizer,
do ente; ela é dominada pelo facto - quem o homem dirigir-se aos seus objectos com referência às respec-
é - e se e como o homem questiona e responde a esta tivas imagens do homem e ao padrão das coisas huma-
questão. Isto é, portanto, a decisão na qual nós mesmos nas e, segundo a respectiva imagem, deriva a apresen-
estamos. tação e o modo de investigação - incluindo a crítica
Todo este encadeamento não pode ser discutido das fontes.
em pormenor, mas tem de estar no horizonte, quando Mesmo se um historiador apresenta em conjunto
colocamos a pergunta pela ciência. A compreensão todas as implicações das causas e estuda todas as inter-
actual da ciência depende da concepção dominante da dependências, por exemplo da derrocada da Prússia em
verdade: a concordância do enunciado com o objecto. 1807 pode, apesar da objectividade, permanecer
Por isso, a ciência tem de ser objectiva e todos os questionável se no seu trabalho foi alcançada e propor-
meios e modos de experimentação devem ser colo- cionada uma notificação do acontecer passado. O crí-
cados ao serviço deste anseio de objectividade. Trata- tico pode na verdade relatar em pormenor que a obra
-se de apresentar as consequências, as implicações e apresenta um grande progresso e o professor no liceu
articulações da história tão completamente quanto lançar mão dela para usá-la nas aulas - contudo, os seus
possível, de dar atenção a todas as circunstâncias e efei- meninos podem aborrecer-se com ela e passar cientifi-
tos e apresentar tudo isto de modo totalmente im- camente ao lado desta época histórica. Não se tornará
parcial. para eles uma notificação desta época histórica, porque
O homem está no meio do acontecer da história o professor não tem qualquer notificação, mas detém
com as suas obras, as suas produções, as suas façanhas nas mãos uma obra cientificamente ambiciosa.
e os seus falhanços. Assim surge a necessidade de ser- Porque falta esta notificação que se julga banal?
mos informados com suficiente objectividade sobre o Porque nos ocupamos do aumento da literatura sobre

[156] [157]
as coisas e não da história, isto é, das coisas mesmas. Por outro lado, não é no facto que o historiador
Porque permanece a história um objecto morto? Por- olhe para o respectivo presente e o coloque em rela-
que os historiadores não estão em condições de fazer ção com o passado que está o embaraço. Estará, pelo
da história algo vivo e verdadeiro, porque eles não a contrário, contido aí, onde a história presente é expe-
trazem à relação com o presente. Eles não o tentam rimentada. Em cada acontecer há aquilo que faz ruído
fazer. Eles estão na ciência e ocupam-se do seu flores- e estrépito, há apresentação, falatório, movimento, ma-
cer. Eles reproduzem ~eramente o passado. Mas por- quinação, empreendimento, aparência dos acasos, pai-
que há-de um passado tornar-se mais vivo através da xão do indomado, o informe, os acontecimentos dia-
relação com o presente? Aqui seria certamente pres- riamente registáveis. Tudo isso pertence à história tão
suposto que o presente fosse experimentado de um necessariamente como o vale pertence à montanha.
modo historicamente vivo. Ou pensa-se que o pre- E, contudo, isto não é, em sentido próprio, história,
sente e o actual está como que automaticamente mas não-história. Esta não-história deve ser separada
diante dos olhos, do nariz, enquanto o passado passou? rigorosamente da ausência de história. A vida vegetal
Em certo sentido isto é certamente correcto. Uma e animal nunca pode ser não-histórica, porque ela não
amálgama de ocorrências, uma incontável quantidade conhece um acontecer [Geschehen] como modo de ser.
de factos é, na actualidade, imediatamente visível. Mas Não-história existe só onde está o acontecer. Mas,
quem garante que este acontecer, do qual dizemos que contudo, este acontecer não precisa de ser sempre his-
algo "está a passar", é história e não a simples misce- tória [Geschiclzte].
lânea quotidiana? O que nós designamos aqui como não-história
Quando um historiador apreende esta actuali- não deve, apesar da expressão negativa, ser porventura
dade e a apresenta com arte jornalística e, para esse rebaixado ou moralmente desvalorizado. A história
fim, põe o passado em relação com ela e verifica as não pode ser compreendida com os conceitos de bem
correspondências - por exemplo, descreve Xenofonte e mal. Uma coisa moralmente boa pode ser inteira-
como "major" - fará ele, assim, a história passada cor- mente não-histórica, e algo imoral pode ser inteira-
responder à vida verdadeira? Talvez a história pre- mente histórico. Bem e mal não são critérios para o
sente seja ainda mais difícil de apreender do que a do acontecer, da mesma maneira que não o são progresso
passado, pois do passado temos nós, contudo, uma e retrocesso.
certa distância e precisamos de distância para ver um Ora, este não-histórico entra primeiro no hori-
objecto - contudo, não teria que haver apenas distân- zonte. A referência ao não-histórico pode na verdade
cia, porque senão, quanto mais distanciado para trás tornar a exposição mais facilmente compreensível,
ficasse algo, melhor poderia ser apresentado objecti- mas a história não é necessariamente compreendida
vamente. deste modo. Também no interior do passado se tor-

[158] [159]
nam muitas vezes, à partida, apreensíveis o não-histó- característica do homem. Por isso perguntámos: "o que
rico, os assim designados Jactos e as opiniões sobre eles é o homem?" A pergunta "o que é o homem?" trans-
expressas. Este não-histórico é aquilo que em primeiro formou-se na pergunta: "quem somos nós Mesmos?"
lugar e mais facilmente pode ser transformado em - Mesmos com maiúscula, pois o carácter si mesmo é
objecto. Por isso, a "objectividade" da ciência histó- o essencial.
rica ainda não garant~ por si só uma notificação do A primeira resposta que nós demos, era:" o povo".
acontecer. Caracterizámos esta resposta simultaneamente como
A notificaçãó da história está, por isso, tão miste- resposta que contém uma decisão. Vimos a essência da
riosamente ligada com a história que nós não conse- decisão na resolução. Mas a resolução não é um acto
guimos, de facto, penetrar nesta relação por via da isolado, mas um acontecer, através do qual nós somos
ciência. Supondo que a notificação pertence à cons- inseridos no acontecer no qual estamos. Daí surgiu a
tituição íntima do acontecer histórico, devemos escla- questão: "o que é a história?".
recer a partir do acontecer, em que medida pode per-
tencer a este modo de ser algo como a notificação. Lógica
Logos
A pergunta pela relação da notificação com a história
Linguagem
pode, a partir do já alcançado até agora, ser tão ampla- Homem
mente delimitada que nós compreendamos a pertença r - - - - Quem somos nós mesmos?
intrínseca da notificação à história como tal. Povo
Decisão
Resolução
O que é história?
Recapitulação

Chegámos, com a nossa pergunta pela essência da Quando nós tomámos o caminho do questionar
história, a uma posição decisiva de todo o complexo como o decisivo, chegámos como que da maior
das questões, de modo que parece conveniente tornar amplitude conceptual (a saber, do pensar) a conceitos
presente esta interdependência, ainda que apenas exte- cada vez mais estreitos e culminámos com a pergunta
riormente, através da ordenação dos tópicos essenciais. por nós mesmos. E por nós mesmos viemos de novo
Nós colocámos a nós mesmos a tarefa de uma tema- parar a pergunta pela história, na qual nós estamos.
tização da lógica. Esta tem, como tema, o logos que nós Com isso, não nos afastámos do princípio, mas pode-
determinámos como linguagem. Surgiu a pergunta: mos a qualquer instante inverter a ordem das pergun-
"O que e como é a linguagem, e a que donúnio do tas, de tal modo que voltamos ao princípio. A sequên-
ser pertence?" A linguagem é uma determinação cia das perguntas deve ser continuamente renovada,

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precisamente nas questões filosóficas. Cada resposta da história actual e a ciência do século XIX estão sob
coloca de novo em questão o até aí já alcançado. Na a influência essencial daquele conceito de verdade,
ciência as coisas passam-se de outro modo. de acordo com o qual a verdade é a concordância do
Colocámos a pergunta pela história e pela sua enunciado e do objecto. Não é negado por nós que a
essência de tal modo que tomámos a história, à par- objectividade e a concordância são uma necessária
tida, num sentido muito vasto: história da terra, dos determinação da ciência da história. Está apenas em
seres vivos. Vimos aí qu~ este extenso conceito de his- questão o modo como é determinado o objecto e o
tória como decurso do passado é na verdade legítimo, que ele é.
mas que o conceito, neste sentido extenso, não é, Não se podia pôr em dúvida que o homem está
porém, suficiente para a caracterização particular da no meio da história. No século XIX saiu daí a exi-
história, num sentido mais restrito, no qual o homem gência que a investigação histórica fosse fundada na
é participante. A história foi contraposta ao movi- psicologia, na caracterologia e na sociologia. Esse foi
mento no sentido de decurso e de processo vital, en- também o motivo da criação do Instituto Lamprecht
quanto se trata de história relativa ao homem e o em Leipzig 15. Contudo, não se pode defender esta
acontecer suportado pelo homem é sempre também grotesca representação, ainda que esta tomada de posi-
um acontecer voluntário e sapiente. ção ainda recentemente tenha sido suportada por um
A partir desta determinação tinha que se propor amplo espaço público.
uma peculiar interdependência de história e do estar Daí a questão de como a ciência da história podia
revelado da história, isto é, da notificação histórica. Pas- ser fundada de uma maneira originária, para que ela,
sámos então a afirmar uma relação de dependência de acordo com as suas próprias leis, fosse de algum
essencial entre história e notificação da história. modo perfeita. Contudo, mesmo quando isto é con-
As reflexões seguintes conduziram ao desenvolver seguido, como hoje se afirma, pode apesar de tudo
da questão da ciência da história. Esta é uma determi- acontecer que a ciência da história não se aproxime
nada conformação da notificação, mais ordenada em realmente da história, que para ela a história perma-
determinados aspectos, criticamente avaliadora, abran- neça um objecto morto.
gente: ela pode ser modelar na execução. Apesar disso,
a ciência da história não garante sem mais o acesso à
história, mas pode acontecer que a ciência da história
15 N. T.: Instituto fundado por Karl Lamprecht em 1909
até nos separe da história. Mas, do mesmo modo,
sob a designação de Kõniglich Sachsische Institut fiir Kultur und
é possível uma aproximação e uma transposição para o Universal Geschichte. Foi o primeiro Instituto dedicado às ciên-
acontecer histórico, desde que ela corresponda àquilo cias humanas na Alemanha e, embora ligado à Universidade de
de que trata. Nós vimos a esse resp.eito que a ciência Leipzig, dependia directamente do Ministério da Cultura.

[162] [163]
Mas nós vimos que a exigência de pôr a ciência presente desempenham um papel em relação ao ser
da história em relação com o presente é duvidosa. histórico e, na verdade, não apenas para tornar a expo-
Quando nós observamos, nomeadamente a actuali- sição mais animada. Antes pelo contrário, exigiu-
dade no seu acontecer - na intenção de compreen- -se que o respectivo presente histórico alcançado, de
dermos, deste modo, o verdadeiro acontecer então certo modo, seja o ponto de referência para o acon-
fica patente que todo o_ acontecer. histórico leva con- tecer decorrido. Presente e passado caracterizam, por
sigo um não-histórico: o inevitável, o quotidiano. Este isso, a história. Pelo contrário, falta evidentemente o
não-histórico não é nada de negativo; ele relaciona- terceiro domínio, o futuro, na pergunta pela essência
-se com a história como o vale com a montanha. da história.
Contudo, esta não-história não está circunscrita ao Nós podemos esclarecer isto na relação da ciência
presente, ela passa também para o passado e aqui ela é, da história com o tempo. Podemos exigir ao historia-
por seu lado, aquilo que primeiro nos salta à vista. dor a tarefa de incluir no seu estudo o presente, mas
O resultado destas reflexões mostra, por con- não podemos exigir-lhe que ele inclua o futuro - ele
seguinte, que o acontecer como tal é não-histórico e teria que ser profeta ou adivinho. Como a experiência
ao mesmo tempo histórico. A história traz em si esta ensina, as coisas são sempre diferentes do que as pen-
ambiguidade de modo oculto. samos. Assim, este adivinhar não só é impossível, mas
seria também desconcertante e completamente inútil.
Contudo, a ciência da história é já uma deter-
§20. A história na sua relação com o tempo minada elaboração da notificação da história. A história
e mesmo a determinação do histórico não podem,
Ora, nós orientaremos o nosso perguntar pela contudo, ser realizadas sem o terceiro donúnio o fu-
'
essência da história apenas pelo acontecer, para turo. Pois quando nós dizemos, por exemplo, que
apreender o carácter de acontecer da história. Deixa- povos até aqui não históricos entram na história e,
remos para mais tarde a pergunta pela notificação. a partir daqui, se tornam aqueles que contribuem para
Nas nossas reflexões, nós fizemos uso, sem ex- o futuro, então é evidente que história e acontecer são
cepção, de uma descrição da história que é a mais cor- determinados em relação ao passado, presente e futuro.
rente, de tal forma que nós não a examinámos mais A discussão da relação da história e do tempo
amplamente - nomeadamente a caracterização da his- pode conduzir a uma determinação essencial da his-
tória como o passado. Trata-se por isso, aqui, da histó- tória. Contudo, a relação da história com o tempo é
ria na sua relação com o tempo. Certamente, a dis- tão manifesta e evidente que nós quase receamos falar
cussão da relação da ciência da história com o tempo sobre isso. Pois não só o acontecer na história, mas
conduziu a que não apenas o passado mas também o também o acontecer no sentido mais amplo, toda a

[164] [165]
espécie de movimento decorrem no tempo. Assim toda história. E, contudo, com isso a relação da história e do
a espécie de movimento pode ser determinada com tempo ainda não está compreendida no essencial, nem
referência ao tempo e até calculada. O que se conclui completamente.
daqui? - que nós não conseguimos alcançar a carac- Se o tempo for uma parte de detenninação da
terística peculiar da história através da relação com o natureza e da história - como acontece, então, que se
tempo. É que o movimento da vida e do não animado determine precisamente a história pura e simples-
na natureza (processo vital e decurso) decorre também mente através do tempo? É que nós dizemos: a histó-
no tempo. ria é o passado. Em relação à natureza, nunca falamos
O factor tempus apresenta-se como aquele pelo neste sentido, nunca dizemos que ela é o passado ou
qual todo o acontecer, toda a espécie de movimento, o futuro, dizemos quanto muito que ela é o presente.
se cc-determina. Compreende-se o tempo até mesmo Mas quando nós dizemos "a cidade tem um grande
como quarta coordenada, como quarta dimensão e passado", então nós pensamos: uma grande história.
falou-se de um mundo quadridimensional. Exprime- Do mesmo modo, a exigência de que a história
-se a ideia de que toda a espécie de movimento pode tenha que ser apresentada na relação com o presente
ser determinada através do tempo, se bem que o modo indica que nós pensamos também aqui a história
de determinação numérica do carácter temporal possa como passado. Aqui a história é simplesmente deter-
ser diferente em cada donúnio. É certo que a ciência minada como âmbito temporal. É evidente que o
da história que conta com o tempo não pode indicar tempo aqui não é apenas um marco indiferente para
o factor t, mas sim datas históricas, como indicações o decorrer do acontecer.
cronológicas, pelas quais é delimitado um espaço de O que se passa com a relação da história com o
tempo. Mas, se bem que o tempo e a data histórica tempo? Colocamos três perguntas, na esperança de
sejam diferentes no seu carácter de detenninação, ass1m encontrar o carácter do acontecer da história:
o tempo é, contudo, sempre representado na natureza 1. O que significa dizer que a história é o pas-
e na história como um marco e uma dimensão, no sado? Como é aqui propriamente pensada a determi-
interior dos quais o movimento se desenrola numa nação temporal passado?
sequência e é, por isso, determinável de acordo com a 2. Como se explica que na descrição do acon-
sua posição. tecer com relação ao tempo seja precisamente o pas-
Deste ângulo ainda não vemos a diferença carac- sado a tomar essa peculiar primazia?
terística entre o acontecer da natureza e a história. Po- 3. O que se conclui da resposta às duas primei-
deríamos dizer que a determinação temporal desem- ras perguntas para a determinação da relação de histó-
penha um papel muito mais essencial na investigação ria e tempo?
da natureza do que na investigação da ciência da

[166] [167]
a) História como o ter passado e como o sido
T
I

ambas as palavras no mesmo sentido e, portanto, sem


pensar, mas aqui não se trata nem da nossa opinião,
Para a pergunta 1. Como devemos compreender nem da palavra mas do assunto. Ao pensar o passado
aqui o passado? Nós podemos dizer em geral: só o olhamos na direcção do deslizar do tempo a partir do
acontecer que já aconteceu é o pretérito, está no pas- presente para o domínio do desvanecer-se, do aniqui-
sado (no pretérito perfeito), é o passado e, como tal, lamento. No ter sido olhamos, pelo contrário, do sido
o objecto exequível para a ciência da história. Con- para o presente. No primeiro caso, tomamos o tempo
tudo, surge aqui a questão de saber se a ciência da his- como qualquer coisa que se afasta a partir do futuro,
tória, de facto, torna apenas o passado o seu objecto, passando pelo presente em direcção ao passado. No
se ela só tem em vista o passado, o decompor-se, o pas- outro caso, tomamos o tempo como qualquer coisa
sar ao nada. Isto não é o caso. Pois, mesmo aí onde é que avança a partir do passado, passando pelo presente
investigada o ruir de um Estado ou de uma época, até em direcção ao futuro. Temos aqui uma peculiar dupli-
aí onde a história é pensada fundament~mente como cação da representação do curso temporal. Por conse-
história da decadência, não se trata apenas da focagem guinte, nós vemos que o pensar da ciência da história
do surgir e do desenvolvimento da decadência. A re- trabalha com uma peculiar ligação de ambos os con-
flexão histórica acompanha o outrora, mas não apenas ceitos de tempo.
no seu passar, mas também no seu devir e no seu ter Quando a história é caracterizada dominante-
sido. Neste ter sido está algo que continua a agir no mente como passado, então isso não exclui que se
futuro, determinando-o, e aponta para mais longe. falhe o curso do tempo na direcção contrária. Pode-
O passado não é simplesmente o que se desva- mos representar para nós mesmos o tempo na imagem
nece, mas o que ainda permanece, o que ainda conti- de uma linha. Parece indiferente em que direcção
nua a actuar, o que está sendo de algum modo desde observamos a linha temporal, em que direcção cor-
o antes, o que, a partir do passado, ainda é, aquilo que remos ao lado do tempo e deixamos decorrer os acon-
ainda está a ser ou o sido. É certo que o sido é sempre tecimentos. Mais premente se torna, por isso, a
um passado, mas nem todo o passado é um sido, no segunda pergunta.
sentido do que, a partir do antes, está sendo, por um
lado, o passado e, por outro lado, o sido e ainda se11do.
Deste modo, a determinação temporal está sujeita à b) A primazia da descrição da história COliJO passado
característica do passar mas também do estar a ser.
Ambos os termos, "passado" e "ter sido", não são Acerca da pergunta 2. Porque tem, na descrição da
simplesmente duas palavras diferentes que nós usamos história, precisamente o passado esta peculiar e, para nós,
indistintamente. É certo que nós podemos não usar tão evidente primazia e de onde vem esta primazia?

[168] [169]
Esta pergunta divide-se em duas partes:
T
I onde nós o temos, sendo de certa maneira inteiro,
nomeadamente no agora. O agora é o ente no tempo,
a) Porque tem o passado para nós, na descrição
do antes, do outrora, há tanto tempo uma primazia que é actual e presente; o futuro é o ente que ainda
relativamente aquilo que nós chamamos o ter sido? não é, o passado é o ente que já não é. Mas, para nós,
b) Porque serve o assim entendido outrora pre- é o agora a substância do tempo que, é certo, tem a
cisamente para a descrição da história? particularidade de desaparecer em cada agora, imedia-
tamente. A experiência imediata disto é que este agora
já não é agora, que ele passa.
a) Concepção cristã do 11111ndo e análise aristotélica do Na base desta representação do decorrer do
tempo
tempo a partir do agora, o tempo suscita a impressão
Quanto à pergunta a): há duas razões para isto: fundamental do desaparecer. Por isso, Aristóteles diz
1. a influência e o predonúnio da concepção cristã do (livro IV. Cap. 13, 222b 19 e seg.):"O tempo tem, por
mundo; 2. o modo e a direcção do primeiro pensa- conseguinte, mais culpa de que algo passe que de que
mento filosófico decisivo sobre o tempo (Aristóteles). algo nasça."
Não podemos discutir aqui pormenorizadamente A cPeopá está no poder do tempo. Hegel diz,
estas duas razões fundamentais, como tantas outras de acordo com isto: o tempo é o devorador. Ele vê o
coisas. Contudo, nós afirmamos: tempo a correr para o passado. Isto exprime-se tam-
1. Para a concepção cristã do mundo o verda- bém na expressão corrente "o tempo passa". (Contudo
deiro ente é Deus como o Incriado, eterno. A partir não se diz: "o tempo nasce".) O tempo é o passar em
dele, é criado aquilo a que nós chamamos "o mundo". sentido eminente. Por isso, tudo o que nele está, as coi-
Com o mundo e ao mesmo tempo que ele, é criado sas humanas e o próprio homem, são o efémero. Daí,
o tempo - ele é criação. Todo o criado é o efémero. nós concluímos que nós pensamos, por assim dizer, na
Deste modo, o efémero é equiparado com a tempo- ligação das concepções cristã e antiga do mundo. Hoje
ralidade: o temporal é o efémero, o desvanecer-se. nós movemo-nos, como se isso fosse óbvio, na repre-
Daí deriva que tudo é determinado pelo tempo, que
sentação do tempo que surgiu desta ligação.
nós experimentamos o próprio homem inserido no
tempo, à partida, como efémero.
2. A influência da primeira determinação filo- {3) O passado como o conc!Hído, o verificável, o explicável
sófica decisiva da essência do tempo: o tratado de pelas ca11sas
Aristóteles, Física, Livro rv, capítulo 10.
Quanto à pergunta b): porque serve o passado,
É um modo natural de proceder que, na primeira entendido como outrora, precisamente para a caracte-
reflexão sobre o que é o tempo, este seja apanhado aí rização da história? É que a história toma interesse no

[170] [171]
.

devir, isto é, no surgir, nas interconexões da evolução.


Como se explica que, apesar de a história estar orien-
T guinte, para o conhecimento da relação da história e
do tempo?- Para a resposta a esta pergunta devemos
tada para a frente, o passado tenha a primazia também o
reunir que dissemos separadamente sobre a primazia
na história? Isso baseia-se no facto de que o passado do passado. São duas as tendências fundamentalmente
é, por assim dizer, o concluído, o acabado e no facto contrárias que fixaram a representação da história
de que nos gregos se tornou exemplar para o conceito como passado:
do tempo o antigo e o. outrora, o que chegou a uma 1. A concepção que compreende o acontecer
conclusão, como '(EVOEJ-E:VOV, o que, como tal, num como passar.
certo sentido, ainda tem uma espécie de permanecer. 2. A intenção da ciência da história de tematizar
O concluído é o que ficou para trás. Como tal, oferece, e objectivar este passado, o que ficou para trás e hoje
para a compreensão corrente do determinar e experi- ainda se nos oferece como tema e objecto.
mentar dos objectos, o domínio para uma ciência.
O passado como concluído está no domínio da ver!fi- O passado é o consolidado, o acabado, o simples-
cabilidade, enquanto à história não interessa apenas a mente inalterável - o passado tem, nesta concepção,
explicação do passado em questão, mas também, sobre no que diz respeito à imutabilidade das suas leis, um
o passado em questão, ir sempre mais atrás, em direc- carácter correspondente à natureza. Por meio desta
ção a um passado ainda mais longínquo, ainda anterior. concepção, o passado torna-se objectivável, só assim a
O recuar a um passado mais longínquo é refor- história se torna objecto, na medida em que por tal é
çado pela tendência para a procura da causa. Quando entendida a solidificação daquilo que está presente
a interdependência das causas fosse suficientemente e que está diante de nós.
ressaltada, então a história estaria entendida. Mas é o A ciência da história tem interesse em empurrar
contrário que acontece. O maior erro é pensar que, e fixar o acontecer para o mais longe possível no pas-
sob o fundamento da interdependência causal, a his- sado. Só assim ela pode representá-lo. Assim, não só a
tória seria compreendida e poderia alguma vez ser escolha e o teor histórico, não só o modo e a direcção,
compreendida. mas também a perspectiva para o esclarecimento e
investigação do histórico dependem da ciência da his-
tória e da direcção do seu perguntar, mas ainda a ciên-
c) A objectivação da história pela ciência da história. cia da história, como ciência, contribui decisivamente
O tempo como marco q11e está diante dos olhos para o facto de que a história seja determinada como
o passado.
Quanto à pergunta 3: o que se conclui da resposta Por conseguinte, reúnem-se aqui a intenção em re-
às duas primeiras perguntas para a terceira, por conse- lação ao que passo11 e a intenção em relação ao object11al.

[172] [173]
Nós deduzimos a partir daqui que a história é apre- A história é aqui entendida como objecto que está diante
sentada como um decurso que é em si fixo, como que dos olhos, o que, exactamente como o tempo, de algum
está diante dos olhos [vorhandener]. E o tempo é aqui modo decorre. O saber da história e igualmente o
um marco que está diante dos olhos [vorhandener saber da natureza estão como que sobrepostos à his-
Rahmen], uma via que está diante dos olhos, na qual o tória e à natureza como um aparelho, através do qual
acontecer decorre. Amb?s, o acontecer e o tempo, têm o objecto, o acontecer, é verificado.
a fatalidade de desaparecerem no passado. Daí surge Assim, a pergunta pela relação entre história e
a tarefa de os conservar de algum modo, de os salvar tempo não nos leva mais longe. Nós corremos o risco
na tradição. O próprio tempo é representado como de, com isto, apresentar apenas lugares-comuns. Con-
presente e este pensado como o agora ampliado e alar- tudo, nunca será suficiente sublinhar que a história
gado, o que está diante dos olhos, o actual, imediata- - tal como o tempo - é aqui compreendida como de-
mente alcançável, sobre o qual se pode falar, de modo curso, como decurso que afastamos de nós, que até
que a peculiar exigência de que o passado tenha que o próprio presente é compreendido como qualquer
ser posto em relação com o presente, no fundo não faz coisa que está afastado de nós, como que diante dos
nenhuma distinção entre o passado e o presente. Am- olhos, que se realiza diante de nós e do qual tomamos
bos são articulados como o que, de certo modo, está conhecimento. Esta representação é-nos dada quase
diante de nós. como a nossa natureza. Nós não vemos qualquer pos-
Ora, o que alcançámos nós relativamente à per- sibilidade de pensar ou perguntar de outro modo.
gunta - em que medida a história é o carácter distin-
tivo do homem e em que medida a notificação per-
tence à história? O nosso resultado é igual a zero. §21. O ser do homem como histórico
Confirmou-se que, no campo da história do homem,
domina a mesma sucessão do movimento do nascer e Apesar disso, temos de questionar de outro modo
passar que nas regiões do ser não humano, do ser dos sem negar sequer por um momento a peculiar
seres vivos e da terra. Não admira que nós, a partir obviedade e sem passar ao lado dela com o pensa-
desta concepção, possamos também falar à vontade de mento. Nós temos de perguntar: qual a razão de que
história da terra e de história dos animais. Mas não é esta representação óbvia tenha uma tal primazia?
verdade que a Geologia e a Zoologia ofereçam uma E que possibilidade e necessidade existem de romper
determinada concepção da história que nós possamos com esta primazia? Qual a razão de que nós não
transpor para a história do homem. Pelo contrário: tenhamos ainda alcançado o que procuramos, nomea-
o conceito de história dominante é tão indetermi- damente compreender a história como ser caracte-
nado que nós também aqui podemos falar de história. rístico do homem?

[174] [175]
As respostas que demos eram insuficientes, por-
que a nossa compreensão da história como ser do
T como uma ironia, se entendermos o ser histórico no
sentido em que o temos entendido até aqui: ser um
homem - e este ser entendido como acontecer - era fragmento da existência, no interior do acontecer das
insuficiente. É certo que esclarecemos que a pergunta ocorrências que nós podemos determinar e que con-
pelo homem devia ser colocada como pergunta pelo tinuamente nos relatam. Para que temos o rádio?
quem- "quem somos nós mesmos?"- e apresentámos Ligamo-lo e em dez minutos podemos experimen-
uma resposta "nós sonios o povo". Mas também essa tar o que se passa. Depois desligamo-lo outra vez. Ser
resposta se tornou para nós questionável, na medida histórico quer, pois, dizer: ser-se arremessado de um
em que verificámos que "povo" é entendido como lado para outro pela agitação.
corpo, alma, espírito. Repetiu-se aqui a concepção "Somos históricos?" A quem ocorre dizer aqui
tradicional do homem como um ser vivo dotado de "não"? Todos estão instruídos sobre isso e podem com
razão, que se encontra entre outros seres vivos. facilidade fazer afirmações indesmentíveis. A pergunta
Agora afirmamos que o ser do homem é histó- "somos históricos?" é supérflua, se nós só a enten-
rico. Nós deveríamos ter aprendido que também este demos como facilmente nos soa ao ouvido. Contudo,
enunciado é ardiloso. Como já ouvimos, o enunciado fechamo-nos a um outro significado que está na base
"nós somos nós mesmos" pode ser correcto e, con- da questão "somos históricos?", nomeadamente, se o
tudo, não verdadeiro - na medida em que nós não nos nosso ser que nós próprios somos se cumpre como
encontramos em nós mesmos, mas na perda de nós histórico, ou se nós apenas somos os contempladores,
mesmos. Assim, o enunciado "nós somos históricos" os verificadores, os observadores e os demasiadamente
pode ser correcto e não verdadeiro. espertalhões. Por conseguinte, nós fechamo-nos ao
significado de o ser do nosso si mesmo ser um acon-
tecer e, com isso, história.
a) "Somos" históricos? Assim, podemos entender. a pergunta. Mas como
havemos nós de decidir se o nosso ser é histórico?
Devemos, por conseguinte, pôr o enunciado "nós
somos históricos" como questão "nós somos histó-
ricos?" Pôr isto em dúvida parece ser uma precaução b) A q11estionabilidade do ser do homem. Devir e ser
exagerada, uma desconfiança doentia. Nós somos, real-
mente, na história bastantes vezes abalados pela ruína, O nosso ser, o ser do nosso si mesmo - será que
pela discórdia interna, acossados por inimigos externos já alguma vez pensámos nisto? Ou é suficiente que nós
e poderes internos, abandonados ao acontecer mun- sejamos? Na verdade, nós nem fomos sempre, nem
dial. A questão "nós somos históricos?" soa aqui quase seremos sempre - pelo menos, os indivíduos não serão

[176] [177]
sempre - mas temos, durante um certo tempo, um E que devir é o conceito contrário de ser é uma
sítio, uma morada sobre a terra. A nossa morada é o antiga noção, tão antiga como a filosofia, tão antiga
nosso ser. Nós somos, a saber, no tempo - a partir de como o reflectir sobre o ente e o ser. Nos gregos,
um momento que mais tarde nos podem comunicar, a filosofia inicia-se precisamente com o facto de esta
até um outro que nenhum de nós conhece, mas que, contradição fundamental entre ser e devir ter sido
apesar de tudo, está determinado para cada um de nós. reconhecida e afirmada. Pois o que primeiramente
O nosso ser é história. A nossa presença limitada, mas, devém, o que primeiramente deve passar por um devir,
apesar disso, constante na terra é uma coisa que pode ainda não é. O que é já não precisa de devir. Ser e devir
ser determinada em qualquer momento por qualquer são inseparáveis e incompatíveis - como fogo e água.
pessoa. A polícia pode verificar, fulano está aqui, existe. Desde o início tudo é determinado pelo ser e o devir.
O nosso ser é algo óbvio. Nós, na verdade, nas- Os dois grandes pensadores Heraclito e Parménides
cemos e passaremos, mas, enquanto dissermos "nós", movem-se, nas suas visões fundamentais e nos seus
somos. Nós somos uma existência permanente como princípios, precisamente nesta contradição originária,
ente, colocados entre outros entes de espécie idêntica que daí em diante domina todo o questionar da filo-
ou diferente, homens, ou animais, ou plantas. Com sofia ocidental, até ao presente. Nietzsche é deter-
todos estes entes, com tudo o que aí permanece e minado na sua verdadeira posição fundamental por
existe, assim também connosco, ocorrem no decurso esta contradição e, na verdade, de modo totalmente
do tempo certas mudanças. Na medida em que somos, consciente.
muda-se algo, mas o nosso ser permanece, não está Parménides diz: o ente é e o não ente não é. Todo
exposto à mudança. O facto de que nós somos como o devir, por conseguinte o surgir e o passar, é um ainda
ente implica já o pressuposto de que estamos expostos não e um já não. Todo o devir é corroído pelo nada,
a toda a espécie de mudança. tem carácter de nada, é nulo. Pelo contrário, Heraclito
Assim se passa também com o acontecer. O que diz: panta rei, "tudo é um devir, um constante devir".
nós chamamos "acontecer", já em sentido mais es- Não há ser. Assim também Nietzsche diz: há só
treito ou mais lato, é movimento, tornar-se diferente, um devir, e o ser e o É permanecem uma aparência.
um devir. Por isso, quando perguntamos "somos his- A causa desta aparência é a lógica, que mesmo aí, onde
tóricos?" e quando entendemos esta pergunta no ela fala do devir, consolida e endurece o significado de
sentido de compreender se o nosso ser será um acon- todas as coisas. O mundo do ser é uma efabulação,
tecer, resulta daqui que é uma pergunta impossível. só há o mundo do devir. O que deste modo domina
Pois acontecer é devir e "devir" é o conceito con- o pensamento ocidental está aí, em cada momento da
trário de "ser". O conceito de ser exclui devir e nossa compreensão quotidiana, e está vivo. Tais contra-
acontecer. dições, como ser e parecer, ser e devir, são-nos fami-

[178] [179]
liares. Ser significa sempre: ser concluído, permanecer, pressa, não como ideia arbitrária, mas na base de uma
permanecer estável, subsistir, a conclusão. primeira resolução livre de o homem tomar uma posi-
Não se discute que somos históricos no primeiro ção fundamental em relação a si mesmo no meio do
sentido, por conseguinte que existimos como entes ente e assim compreender o ser. De acordo com isso,
que estão presentes, no meio dos acontecimentos. Que a nossa questão e a nossa tarefa de compreender a ver-
somos históricos no se~ndo sentido, por conseguinte dade sobre o ser não poderá ser fundada sobre afirma-
que o nosso próprio ser seria acontecer, entendido a ções e discussões de um conceito. Questão e resposta
partir da contradição originária entre ser e devir - isto encerrarão em si uma completa mutação do nosso ser,
é absurdo. E, contudo, permanece a questão: se o sen- que é ela mesma necessidade da história, supondo que
tido anterior de ser como permanência constante, não somos históricos. Se, neste contexto, um novo con-
obstante a sua dignidade e familiaridade, é realmente ceito de história se puder inaugurar para nós, então
verdadeiro. Fica ainda outra questão: se o modo do ser não será com isso exterminada a concepção corrente
histórico, no qual geralmente entendemos a história da história, mas apenas tornada patente na sua neces-
- ser histórico como ser de acontecimentos - não sidade e na sua natureza capciosa.
representa o estar perdido de si mesmo no meio do
histórico, o que nós anteriormente designámos como
não-história, uma espécie na verdade necessária do ser c) O ser histórico como um decidir-se continuamente
histórico, mas não a única, nem a própria. renovado
Além disso, surge a pergunta se um verdadeiro
ser histórico é possível e, em caso afirmativo, como é Tornar-se-á claro que o ser histórico não é nada
possível, e o que então aí significa precisamente ser, que o homem leve consigo como um chapéu. É antes
e como se relaciona esta compreensão do ser com um decidir-se continuamente renovado entre a his-
aquela compreensão do ser na qual nos movemos todos tória e a não-história, na qual nós estamos. No cum-
os dias. primento da decisão nós somos elevados a um nível
A pergunta parece fácil. E, contudo, surge a difi- mais alto de decisão, de· tal forma que o nosso ser
culdade - como se descobre se e como há ainda outros experimenta uma forma mais alta, uma maior nitidez,
modos de ser histórico, se e como tem que ser enten- uma outra amplidão e uma última singularidade.
dida de outro modo a verdade sobre o ser. Deste modo, é anulada aquela errónea conclusão
Apesar de não podermos ver nenhum caminho principal de toda a ciência da história, que paralisa a
para a resposta, temos de compreender que também nossa relação com a história e que se exprime na frase
esta contradição originária entre ser e devir, que hoje "não há nada de novo". Esta conclusão principal de
em dia nos é tão familiar, foi um dia afirmada e ex- todo ·o conhecimento histórico passa-nos um certi-

[180] [181]
ficado, segundo o qual nós podemos esquivar-nos questionar essencial. Mas a questão da essência é sem-
facilmente a tudo o que não é habitual. É que "não há pre uma questão prévia. A questão prévia reza: "a que
nada de novo" - a afirmação torna-se a comprovação domínio pertence a linguagem e o que é a lingua-
da impotência de um tempo. Dá ao saber a aparência gem?" Na sequência desta questão chegámos à com-
da supremacia e consolida um estado, que eu gostaria preensão seguinte: a linguagem fica situada no domí-
de designar como estado da preguiça histórica. Esta nio do ser do homem.
preguiça nasce precisamente do maior conhecimento Assim, continuámos a perguntar: "o que é o
histórico possível. homem?" E depois: "quem é o homem?" O homem é
Não é o estado de um indivíduo, estende-se sobre histórico. "O que é história?" História é a caracterís-
toda uma época, precisamente quando o homem tica distintiva do ser do homem e, assim, da linguagem.
abrange e domina todo o mundo, a história de todas as A discussão da nossa questão, o que é a lingua-
regiões e épocas. Nós não tínhamos até hoje nenhuma gem, está agora no domínio da questão daquilo que
época, na qual todo o acontecer histórico estivesse tão a história seja. Nós procurámos a deternúnação da
abertamente exposto como na nossa. Contudo, por essência da história na interconexão da história com o
outro lado, também não há nenhuma época tão não- tempo. Contudo, nós não alcançámos, através da refe-
-histórica como a nossa e em nenhuma a preguiça his- rência ao tempo, nenhum sinal distintivo para o ser
tórica se tornou tão grande como na nossa. histórico, enquanto compreendemos do mesmo modo
o tempo dos processos naturais e o tempo da história.
O nosso questionar actual da história concluiu
Recapitulação que a história já não pode ser um objecto, um ente
pelo qual perguntamos, mas que ela é um modo de
Nós queremos, para assegurar a continuação da ser. Nós compreendemos o ser histórico como espécie
exposição, estabelecer de novo todo o contexto. De- fundamental de ser. A história não é um nome para
ternúnámos no início a lógica como a questão da um ente, mas um modo de ser.
essência da linguagem. Encontrámos esta deternúna- Neste contexto, ergueu-se, contudo, a objecção:
ção, diferenciando-a da lógica tradicional como teoria se a história como acontecer [Geschelzen] pode ser com-
da forma e das leis do pensar. Com isso, nós não ape- preendida no sentido de um ser - uma vez que o
nas colocámos o objecto da lógica de maneira dife- acontecer é um devir e o ser é precisamente o con-
rente do que até aqui, mas também iniciámos uma ceito contrário do devir. Ser e devir excluem-se, por
maneira diferente de tratar o tema isso ser e acontecer têm também que se excluir. Por
O modo de tratar o tema da linguagem não é conseguinte, parece impossível que a história seja
uma doutrina, mas um questionar e, na verdade, um compreensível como ser.

[182] [183]
.

Ora, era preciso perguntar pela essência do ser da


T
i

d) O sido é, como futuro, o nosso próprio ser


história. Esta questão obriga-nos, a fim de alcançar
o conceito de história, a que nós não investiguemos O que é isso que está sendo desde o antes? Por-
a sua peculiaridade, no que respeita ao conteúdo ·dos ventura aquilo que, a partir do passado, ainda hoje
processos históricos, mas que nós procuremos conce- actua? Existem naturalmente tais coisas, visto que es-
ber o ser histórico. N~s começamos pela caracteri- tamos continuamente sob muitas repercussões que,
zação corrente da história como o ter passado, como o como tal, são também enumeráveis. A verificação
passado. Contudo, um tal pensar não toma o passado, daquilo que ainda actua dependerá, contudo, daquilo
em primeiro lugar, como efemeridade, mas ele tem que nós experimentamos em geral como actuante.
interesse no conservar e guardar a realidade de ou- Achamos ainda actuante, por exemplo, a decadência,
trora. Mas existe já um outro sentido do ter passado, a impotência, a mediocridade, a opressão, tormentos.
quando ele não é pensado no seu passar, mas no seu Tudo isto é ainda actuante [wirksam], mas apesar
ter vindo outrora a ser, quando é compreendido como disto, para nós, não é essencial. Por conseguinte, não
o ter vindo a ser. podemos determinar o essencial a partir do que
Surge-nos a partir daí mais uma possibilidade, actua. Cada época tem a sua in-essência [Unwesen],
nomeadamente o conceito de história como o sido, a sua não-história. Isso tem de ser assim. Não há luz
isto é, o que ainda está sendo desde antes. sem sombra. Contudo, quem só vê as sombras e com
Assim, o anterior seria compreendido de três elas se assusta não compreendeu a luz. O despenhar-
modos: -se pertence à altura proeminente. A história não é
1. como o passar nenhum passeio livre de perturbações em direcção
2. como o vindo a ser ao futuro.
3. como o sido Por conseguinte, o que actua no presente não é o
domínio que pode assegurar-nos o que, a partir do
Quando examinamos as diferenças entre passado, antes, ainda essenceia. A in-essência tem a peculiari-
o ter vindo a ser e o ter sido, chegamos a uma nova dade de não deixar a essência surgir, mas de tentar por
base, nomeadamente da história, já não como a de um seu lado levantar a aparência de uma essência. A in-
objecto, mas a de um acontecer, como nosso ser, -essência seria indiferente, não valeria a pena e seria
[o ser] do povo. O sido não é uma determinação tem-
poral vazia: o ter sido não é um espaço indiferente para
a conservação, mas é o que a partir do antes ainda está
I
1
facilmente observável, se a in-essência tivesse um sig-
nificado idêntico a não-essência. A in-essência é, po-
rém, sempre a aparência da essência e apela à nossa
vaidade, enfeitiça o nosso fazer e deixar de fazer,
sendo, isto é, o estar sendo da nossa própria essência.
mesmo com aparente boa intenção. Deste modo, tam-

[184] [185]
bém é falseada a verdadeira liderança [Fühnmg] que se
T
I
nosso encontro a partir do futuro. Por isso, nós desig-
namos este acontecer como o "futuro". Ele não vem
instala mais tarde como sedução [ Ve!fiihnmg].
Com isso, deverá tornar-se claro que nós não ao nosso encontro sem mais nem menos, mas só
podemos agarrar o sentido da nossa essência, como quando nós estamos em condições de seguir a tra-
nós agarramos a maçaneta da porta. Só podemos dição, de assumi-la, em vez de nos perdermos e des-
alcançar a nossa essência a partir daquilo que é para perdiçarmos nas ocupações do actual. O nosso ter sido
nós o essencial no instante histórico. O que é para nós e o nosso futuro não têm o carácter de dois espaços
essencial determina-se numa espécie própria de saber de tempo, dos quais um está completamente abando-
e não é tão passível de ser sabido como os dados fisi- nado e outro só agora deve ser ocupado, mas aquilo
cos são passíveis de ser sabidos. Nós experimentamos que está sendo a partir do antes é, enquanto futuro, o
o essencial apenas a partir do como e do para quê da nosso próprio ser. O nosso ser previamente lançado no
nossa autodecisão, de quem nós quereremos ser futu- futuro é o futuro do ter sido: é o tempo originariamente
ramente, o que nós queremos colocar sob o nosso único e o tempo próprio [eigentlich].
mando, como nosso ser futuro. O q11e a partir do antes
está sendo determina-se desde o nosso futuro.
No entanto, a determinação deste futuro não
depende de uma profecia, não pode ser pensada e
reflectida vagamente. Esta determina-se antes a partir
do que está sendo desde tempos anteriores. O que a
partir de tempos anteriores está sendo determina-se
a partir do futuro. O futuro determina-se a partir do
que está sendo desde tempos anteriores.
Contudo, o ter sido não deve ser compreendido
como passado. O que a partir de tempos anteriores
está sendo tem a sua peculiaridade em que ultrapassou
desde sempre todo e qualquer actual e agora: está sendo
como tradição.
Esta tradição não é substância de conhecimentos
ou de relatos, mas é o carácter mais intrínseco da nossa
historicidade. Através dela, a nossa própria determina-
ção é levada sobre nós e, através dela, somos lançados
no futuro. Neste lance aquilo que está sendo vem ao

[186] [187]
T
SEGUNDA PARTE
O tempo originário como o solo
de todo o perguntar anterior
e o retomar da série de perguntas
em direcção inversa

O tempo não é uma justapos1çao de espaços


de tempo, dos quais um toma o lugar do outro, mas
aquilo que está sendo temporaliza-se, ultrapassando-se
como o que é futuro. No carácter originário do
tempo, reside o peculiar carácter de devir do aconte-
cer como história - não no deslizar para o passado.
O tempo não é um decurso indiferente para nós.
Também não devemos compreender o tempo a partir
da direcção oposta, do surgir, mas a nossa relação com
o tempo em geral tem de tornar-se diferente.

§22. A mutação do nosso ser na sua relação com


o poder do tempo. A responsabilidade

I Nós concluímos que o ter sido, enquanto nos


ultrapassa e chega até nós, tem futuro. Mas seria um
contra-senso dizer que o passado tem futuro. O pró-
prio ultrapassar é o futuro. Experimentamos o tempo,

(189]
não como marco indiferente, mas como poder que como aqueles que são eles próprios o tempo. Nós somos
suporta a nossa própria essência, como tradição que nos a temporalização do próprio tempo.
leva a nós mesmos para diante na nossa tarefa. Esta é Na medida em que este perguntar pelo tempo
também a razão pela qual o homem pode falhar a sua não se restringe a uma determinação vazia de concei-
tarefa. Isto seria impossível se ela não lhe fosse trazida tos, tudo o que é fundado na essência originária do
em virtude da essência do tempo. tempo - história, povo, homem, linguagem- está tam-
Poderia parecer que se trata, em última análise, bém incluído neste acontecer do tempo.
só de uma outra teoria do conceito do tempo. Se "Quem somos nós mesmos?" - Nós estamos
fosse só isso, nós não teríamos que tratar mais exten- inseridos no processo educativo desta universidade.
samente este assunto. Trata-se porém, antes, de um Esta é uma resposta decisiva, como dizíamos antes.
acontecer que nós mesmos não inventámos. Não se Agora a razão disso tornou-se compreensível. Reside
trata de outra coisa senão do emergir de uma muta- no acontecer como tal. Pois o acontecer já não é uma
ção de todo o nosso ser, na sua relação com o poder sucessão de acontecimentos, mas o acontecer é em si
do tempo, pois esta mutação depende do modo tradição. E inserir-se no acontecer significa: assumir a
como nós mesmos entendemos o poder do tempo, tradição, submeter-se a ela.
de como assumimos o ter sido, de como temporali- O acontecer não é um decurso que se faz por si
zamos o próprio tempo. mesmo. Isto é certamente a aparência que pertence ao
O tempo já não é o efémero q1,1e nós afirmamos acontecer e que nos deixa falhar a sua consumação.
ou até lamentamos, inversamente também não é o A partir daqui nós compreendemos porque, no nosso
simples surgir e ter vindo a ser, até aclamado como perguntar, tivemos que salientar a necessidade da ati-
progresso. tude apropriada. Pois até o próprio perguntar tem o
A transformação diz respeito à mudança do nosso carácter de uma decisão. Se nós insistimos no pergun-
Dasein. A pergunta pelo tempo não diz respeito à afir- tar, se nós aguentamos, vencemos a resistência - tudo
mação e decisão de factos. A própria pergunta é uma isso faz parte do verdadeiro perguntar e depende da
intervenção na nossa verdadeira relação com o tempo. nossa decisão.
Esta intervenção na nossa relação com o tempo é o Nós já não nos movemos numa expectativa
sentido próprio do perguntar pela essência da história. errada, pois nós já não estamos à espera de um qual-
A pergunta resulta de uma grande e longa tradição. quer acontecimento que poderia ser relatado e con-
Nós já não devemos compreender-nos como aqueles servado. Pois também a resposta à pergunta pela his-
que sucedem no tempo, mas como aqueles que se tória tem o carácter de decisão. Ela não reside no
determinam a partir do futuro, estando a ser e projec- enunciado: a história é isto e aquilo, etc. Em tudo isto
tando-se a si mesmos desde tempos anteriores, isto é: trata-se de um compreender no qual nós mesmos

[190] [191]
estamos compreendidos. Em tudo isto trata-se de uma
espécie de responder [Antworten], no qual nós assumi-
r sublinharmos uma série de afirmações. Mas trata-se
com certeza do despertar do estar pronto e do ser
mos um responder e tornamo-lo realmente história. capaz do agir de modo justo, da nomeação das metas
Trata-se aqui de um ser responsável [Verantworten]. verdadeiras. Exactamente por isso, nós insistimos num
Nós estamos habituados a compreender a respon- saber originário, na verdade no sentido do estar reve-
sabilidade moral ou religiosamente. Responsabilidade lado, que nos introduz neste ser e nos liga a ele. Para
diante da lei moral ou diante de Deus. Mas o conceito isso, a principal tarefa é fazer actuar em nós os modos
de "responsabilidade" deve ser compreendido filo- de pensar que nos põem em estado de colocar em
soficamente como espécie distinta do responder. questão e de tornar compreensíveis as coisas es-
Responder é corresponder [Entgegnen] sapientemente senCiais.
e voluntariamente. O ser responsável, contudo, nunca Estes modos de pensar têm um carácter concep-
se dá por terminado. Tais perguntas não podem nunca tual diferente daquele da lógica tradicional. O poder
ser respondidas [beantwortet]. e a penetração da lógica não se tornam por isso
diminuídos, mas até aumentados, na medida em que
aqui os conceitos são retirados de uma falsa con-
§23. Refutação de dois equívocos tradição, de acordo com a qual o conceito, o pensado,
é compreendido como o racional - ao contrário do
A partir daqui torna-se claro como a mudança irracional. Esta diferença reconduz a uma deter-
do nosso ser é radical e extensa, que ela representará minada compreensão da razão e esta, por seu lado,
para nós, durante muito tempo, uma transição e, assim, à do homem como ser vivo racional. Trata-se da
será necessariamente exposta a constantes equívocos. superação da compreensão do conceito como um
Queremos esclarecer dois equívocos. invólucro. A consequência não é o afastamento do
conceito, mas a necessidade mais elevada do questio-
nar conceptual.
a) Não se trata de uma tomada de posição sobre a polí- Por conseguinte, seria um equívoco querer en-
tica act11al, mas do despertar de 11111 saber originário contrar na nossa exposição uma interpelação edifi-
cante para alguma acção. Trata-se antes do salientar de
Poderíamos pensar, com este perguntar e respon- conceitos que são a súmula do nosso ser futuro e que,
der que têm carácter de decisão, que se trata de uma portanto, nos atingem a nós próprios.
tomada de posição simples e prática relativamente
àquilo que ocorre diante de nós, no nosso instante
histórico. Isto não é, porém, exacto, no sentido de nós

[192] [193]
b) Aquilo pelo que se pe1;gunta não se deixa solucio- Recapitulação
nar imediatamente
Estamos a fazer a tentativa de conceber a essência
O outro equívoco residiria na esperança de que da história, agora tomada como acontecer, a partir da
tudo o que perguntamos e a que damos resposta se relação com o tempo. Discutimos três determinações.
solucione, por assim dizer, da noite para o dia. Este A primeira toma a história como passado. A esta deter-
mesmo perguntar não está fora da história, mas, inse- minação ligámos, na discussão, a segunda determi-
rido na sua determinação, ultrapassa os dias e os anos. nação. Esta segunda concepção não compreende a his-
Não está ligado à casualidade actuaL tória como simples passar. É certo que pensamos o
Deste modo, encontrámos o solo para o domínio passado, mas no seu ter vindo a ser. Contudo, também
integral do perguntar que percorremos. Este solo é o esta representação do ter vindo a ser dos tempos ante-
próprio tempo, como o poder que nós vencemos ou riores tem uma limitação, na medida em que ela
que não vencemos. Este solo é o nosso Dasein como a reflecte e também tem que reflectir o presente, como
própria temporalidade. Nós já não podemos dizer que a conclusão do ter vindo a ser.
o tempo seja ou não seja. Temos de conceber a com- De modo distinto destas duas determinações, pas-
preensão do ser mesmo como obtida a partir do tempo. sado e ter vindo a ser, foi designada uma terceira,
Na delimitação do devir em relação ao ser, o ser tinha nomeadamente o ter sido. Ela determina-se como o
ficado como constância. A partir desta permanência, que está sendo desde antes. Primeiro, perguntámos
o agora foi compreendido, por assim dizer, como como pode o que está sendo desde antes ser delimi-
âmago do tempo, o futuro foi tomado como o que tado no interior de uma época: numa história o que
ainda não é efectivamente real e o passado como o está sendo desde antes é captado como o respectivo
que já não é efectivamente real. O ser era consistência hoje, como o que hoje é real e considerado como
e presença; no tempo, só o agora fugaz era sem- actuante.
pre real. Esta delimitação é ameaçada pelo risco de deter-
Ora, enquanto nós averiguámos a temporalização minarmos o hoje real de acordo com o in-essencial,
do tempo a partir do futuro e do ter sido, foi omitido porque a in-essência não é a simples negação da essên-
o presente como aquilo que desaparece. Por conse- cia, mas nela aparece a aparência da essência e assim
guinte, aqui se manifesta uma total mutação da essên- seduz e conduz ao erro. Mas, abstraindo do facto que
cia do ser. Daí que tenhamos que continuar a pergun- o presente também pode ser malogrado no seu acon-
tar pelo ser como história, pelo ser do homem, e pelo tecer essencial, nós não podemos compreender de
ser da linguagem. modo algum o que está sendo a partir dos tempos
anteriores como algo que está presente; determina-se,

[194] [195]
antes, a partir de aquilo pelo qual nós nos decidimos possamos escrever para outros (nós podemos certa-
como entes históricos: a partir do nosso futuro, a par- mente fazê-lo, mas isto é uma simples aparência), mas
tir daquilo sob cujo mando nos colocamos, a partir aqui o responder é sempre a inclusão do dito no ser e
daquilo pelo qual nós nos determinamos como os na própria decisão, é um responsabilizm: Toda e qual-
vindouros. quer pergunta e resposta é responsabilização, num sen-
Esta determinação ~o futuro não depende da ar- tido que ultrapassa o sentido moral e religioso.
bitrariedade, também não é assunto da perspicácia teó- Depois, nós virámo-nos contra dois equívocos.
rica, mas surge a partir daquilo que está sendo a partir Por um lado, virámo-nos contra a opinião de que aqui
dos tempos anteriores, da tradição [Überliiferung]. se trata de uma forma edificante de falar de coisas
A história entrega-se [iiberliifert sich] ao futuro e, a par- humanas. Pois o que importa aqui é agarrar o conceito
tir daí, indica quem e aquilo que ela pode ser. daquilo sobre que se fala. Certamente, este conceito
Assim, o ter sido e o futuro não são dois espaços é de um tipo diferente de "árvore" e "casa". Depois
de tempo, de tal modo que possamos deslizar de um virámo-nos também contra a opinião de que as res-
para outro, mas o futuro e o ter sido são em si aqueles postas poderiam ser alcançadas de um dia para o
poderes do tempo, o poder do próprio tempo no qual outro, devido a uma mera compreensão verbal.
estamos. Nós só somos vindouros na medida em que Ao regressarmos à pergunta condutora, resulta
assumirmos o ter sido como tradição. que o tempo no seu quadro temporal (temporalização)
Deste modo, nós alcançámos uma compreensão é aquele único poder em que o acontecer do nosso
completamente diferente do tempo na sua tempora- Dasein acontece na história.
lidade/ temporalização - e, com isso, o solo, a partir do
qual nós podemos, antes de tudo, determinar a histó-
ria no seu carácter de acontecer. O acontecer não é
um processo, mas tradição. A tradição que nos ultra-
passa, que passa através de nós, só é apropriável quando
nós a assumimos propositadamente e nela somos os
mesmos. Assim, torna-se também compreensível que as
nossas perguntas pela essência da linguagem, pelo
homem, por nós mesmos, pelo povo e pela história
- que todas estas perguntas são determinadas como
contendo uma decisão. Também a resposta tem o carácter
de uma decisão. O enunciado aqui não é uma verifi-
cação, um resultado que possamos transmitir ou que

[196] [197]
PRIMEIRO CAPÍTULO
A historicidade do homem
é experimentada a partir de uma relação
modificada com o tempo

Fala-se hoje muito da historicidade do homem e,


apesar disso, não vimos a saber nada da essência desta
historicidade. O homem não compreende a exigência
interior que reside na essência da historicidade. Este
compreender só é possível numa relação modificada
com o tempo, numa experiência originária do tempo.
Para integrar este conceito modificado de tempo no
nosso Dasein, é necessário submeter o nosso modo de
experimentar e compreender o tempo a uma mu-
dança fundamental, tal como efectuar e levar a cabo
uma experiência fundamental.
Nós não experimentamos o tempo de modo ori-
ginário no facto de vermos as horas e verificarmos
o tempo como um decurso mensurável pela hora que
passa devagar ou depressa e também não, pelo facto
de relacionarmos cada evento que vivemos com o seu
instante e, de acordo com esse instante, o podermos
datar. Nós só experimentamos o tempo apropriada-
mente quando nos experimentamos na nossa deter-
minação.

[199]
"!'I
I
I

§24. A expenencia do tempo através da expe- corporal ou outra, também não como o treino de nós
riência da nossa determinação próprios para quaisquer fins, mas compreendemos a
nossa determinação como aquela para a qual nós nos
Mas então o que significa aqui "determinação"? determinamos, o que nós obtemos para nós como nosso
Nós usamos na nossa discussão a expressão "determi- encmgo. Este encargo do nosso ser é a nossa determi-
nação", num sentido bem delimitado- num determi- nação - não arbitrariamente estabelecida, mas a nossa
nado sentido, teríamos pódido ter dito também "deter- determinação, o nosso encargo, o nosso futuro, no sen-
minado", já não compreendido como caracterização tido de que o encargo nos é predeterminado a partir
de uma qualquer coisa ou conceito. Queremos aqui da nossa missão: a partir daquilo que, desde tempos
dar à palavra "determinação" um sentido mais com- anteriores, essenceia na nossa essência como nossa
pleto, mais originário. essência, mesmo se desde tempos anteriores era dissi-
A palavra pode ser usada quotidianamente, como mulada e mal-interpretada. O encargo como nossa
se quiser. Nós violentamo-la. Mas esta violência, com missão é a nossa determinação em sentido originário,
a qual a filosofia usa e determina as palavras, pertence é o poder do próprio tempo no qual nós nos encon-
à sua essência. Só aos olhos dos espíritos tacanhos e tramos, que nos autoriza ao nosso futuro, ao tnesmo
dos escrevinhadores de jornais, a determinação da pa- tempo que nos lega o legado da nossa origem.
lavra é um arbítrio e uma violência. Não se vê que Ao encontrar-se o nosso Dasein na sua missão, ele
precisamente o encobrimento da linguagem e o uso experimenta a sua determinação e é neste sentido
indiscriminado das palavras constitui muito maior vio- determinada. Determinação, neste sentido, quer dizer:
lência do que uma normalização do significado de ser levado para diante na missão, que vai ao nosso
uma palavra, surgida duma necessidade interna. Aqui, encontro como encargo. Vemos aqui a constituição
não se trata de uma mutação de uma palavra como fundamental do nosso ser histórico.
invólucro vazio, mas sim da essência do assunto. Mas a que pertence a determinação?
A palavra "determinação", enquanto nós falamos
da nossa determinação, tem um triplo significado,
numa unidade e conexão originárias. b) Ti·abalho

A determinação obtém o segundo sentido, que


a) Encargo e missão fundamos no primeiro, ao assumi-la na medida em
que a criamos. Ser determinado, neste sentido, significa
Nós não compreendemos a nossa determinação cunhagem e articulação de todo o nosso comporta-
como o estar apetrechado com a nossa constituição mento e da nossa atitude a partir daquilo que é para

[200] [201]
nós missão e encargo. Tornar operativa a nossa deter- O encargo determinado como trabalho de um
minação, pô-la em obra segundo a esfera da criação e povo na sua missão, a determinação neste duplo sen-
trazê-la à obra isto significa trabalhm: tido, é determinação ainda num terceiro sentido.
O trabalho não é qualquer ocupação que nós
desempenhamos por cálculo, necessidade, passatempo,
tédio, mas trabalho tornou-se aqui aquela determina- c) O estar qfinado pela tonalidade qfoctiva
ção para o ser determinàdo da nossa essência, a cunha-
gem e a estrutura do cumprimento da nossa missão e Nós somos determinados, isto é, qfinados por uma
da obtenção do nosso encargo no respectivo instante tonalidade cifectiva em cada momento16. Por muito que
histórico. os puros encargo e missão tenham a sua determinação
O trabalho é o presente do homem histórico, de no trabalho e só nele, e tal como o trabalho se estende
tal modo que no trabalho e através dele a obra chega- do ter sido para o futuro, assim uma tonalidade afec-
-nos à presença e à realidade. Daí resulta que o pre- tiva fundamental [GrundstÍIIlmung] domina a totalidade
sente histórico se determina para o instante histórico. do encargo, da missão e do trabalho. O carácter deter-
O presente histórico surge como trabalho a partir da minado [Bestimmtheit] está, em cada caso, carregado
missão e do encargo e, assim, o presente surge a partir de um estado qfoctivo [Gestirnmtheit] e de uma tonali-
do futuro e do ter sido. dade afectiva 17.
Daqui podemos ver que o presente histórico Costuma-se compreender as tonalidades afectivas
deve ser compreendido de modo totalmente dife- como um certo acréscimo às verdadeiras faculdades da
rente da concepção corrente, segundo a qual só no alma, pensar e querer. Elas são como que a coloração
presente existe a realidade e o passado e o futuro não e o timbre das vivências, certos estados complemen-
são reais, são o não ente, que se despedaça no respec- tares do lado dos afectos. Nesta concepção ignora-se a
tivo agora. essência interna da tonalidade afectiva como também
O presente como carácter de ser determinado da de- o seu poder. Surge o equívoco de que os designados
terminação existe apenas como passagem do ter sido caracteres fortes, os homens de acção, os homens de
em direcção ao futuro. Como passagem, ele revela-se cabeça fria, seriam livres de tonalidades afectivas; que a
na consumação, isto é, no instante. Isto torna-se mais tonalidade afectiva seria algo de feminino, ela seria
claro, na medida em que experimentamos o tempo
no sentido originário a partir da nossa determinação:
16
N.T.: No original:Wir sind bestimmt, d.h,jederzeit von
como determinação no encargo e na missão, como
einer Stímmwzg durclzstímmt.
carácter de ser determinado no trabalho que se insere 17 N.T.: Trata-se de um jogo de palavras que cria diferen-
no encargo e na missão. tes sentidos a partir da raiz Stimmc.

[202] [203]
somente coisa das pessoas emotivas, que constante-
mente vão de uma tonalidade afectiva a outra e delas
T nossa essência, nos abrimos ou também nos fechamos
ao ente, do modo mais profundo, mais vasto e mais
estão sempre dependentes. originário possível. O nosso ser determinado é deter-
Também aqui deparamos com o facto de que a minado, de cada vez, no carácter de determinado das
essência das características fundamentais do homem duas determinações indicadas.
são desvalorizadas como a in-essência. Não é apenas Este triplo sentido unitário daquilo a que nós
o homem inconstante que está dependente da tonali- chamamos determinação deixa-nos antes de mais ex-
dade afectiva, mas também e precisamente o grande perimentar encargo e missão, trabalho e tonalidade
homem. É certo que este está intrinsecamente estrutu- afectiva na sua unidade sóbria conforme ao acontecer
rado pelas grandiosas tonalidades afectivas fundamen- e, com isso, também o tempo como poder originário,
tais e é por elas conduzido, pelo contrário, o homem que harmoniza o nosso ser e em si o determina como
insignificante é dirigido por tonalidades afectivas me- acontecer. Deste modo, o tempo, experimentado
nores a que chamamos caprichos. A diferença entre como a nossa determinação, não é senão a estrutura do
grandiosas e menores tonalidades afectivas reside em poder [1Uaclz~if!:ige], a grande e única artiwlação [Fuge]
que as tonalidades afectivas grandiosas quanto maiores do nosso ser como um ser histórico. Ele torna-se a
são, mais actuam de modo encoberto. Elas tornam-se unicidade histórica do nosso si mesmo.Assim, o tempo
tanto mais poderosas quanto se tornam patentes na é o manancial do povo histórico e do indivíduo no
criação própria de uma acção, de uma obra. Uma seio do povo. A unidade desta tripla deternúnação é o
grande obra só é possível a partir de uma tonalidade carácter fundamental do acontecer.
afectiva fundamental e, em última análise, da tona-
lidade afectiva fundamental de um povo. Também a
grande arte só é possível quando ela nasce a partir §25. A experiência originária e derivada do ser
de uma tonalidade afectiva fundamental. Enquanto e do tempo. Temporalidade e intra-tempo-
a grande tonalidade afectiva está encerrada no homem ralidade
ou silenciosa na grande obra, a pequena tonalidade
afectiva expõe-se continuamente, seja em lamentações É difícil para o homem actual alcançar, a partir da
ou em insípida alegria. experiência da determinação do ser assim compreen-
As tonalidades afectivas não são um simples res- dida, a relação mais originária da essência do verda-
caldo na nossa vida anímica, mas são acontecimentos deiro ser com o tempo e, na verdade, porque há muito
fundamentais do poder do tempo, nos quais o nosso somos enganados pelas representações do tempo, de
Dasein está originariamente. As tonalidades afectivas fun- acordo com a quais o tempo é uma forma vazia, na
damentais são aquelas devido às quais nós, a partir da qual tudo pode ser arrumado: o tempo como decurso,

[204] [205]
como o desvanecer indiferente, ao lado do qual o nosso riosa entre o poder do tempo e a respectiva com-
quotidiano decorre e assim também se desvanece preensão do ser, o respectivo domínio de um conceito
uma representação alheia ao ser autêntico e mais pró- de ser. Porque esta interdependência existe, fala-se de
prio do homem. Pois o próprio tempo assume, admi- "Ser e Tempo Este não é nenhum vulgar título para um
J).

nistra e cria. A partir desta experiência nós temos, em qualquer livro, mas a mais intrínseca e encoberta ques-
primeiro lugar, que conquistar a relação originária tão da nossa filosofia em geral e, assim, da sua determi-
com o tempo, se queremos tornar-nos um povo histó- nação, da sua missão, do seu encargo e do seu trabalho.
rico em sentido eminente. Por outro lado, quando uma completa mudança
Aqui está a oportunidade para dizer que a con- da representação corrente do tempo se nos impõe e a
cepção do tempo para nós corrente (o tempo como nossa posição em relação ao tempo cumpre uma revo-
forma vazia, decurso e espaço) não é porventura falsa. lução (o tempo já não como simples decurso, moldura
Ela tem antes a sua própria verdade e a sua necessi- para a sequência de eventos), então nesta mudança tem
dade, pois ela pertence essencialmente ao nosso pró- também que mudar-se o nosso compreender e conce-
prio ser histórico-temporal. Precisamente esta con- ber da nossa posição em relação ao ser. Esta mudança,
cepção, para nós corrente, surge a partir da própria em direcção à qual rumamos, pode ser comparada
temporalidade originária. Não pode ser aqui exposto com a mudança que se deu no início da história espi-
o modo como a origem do tempo, para nós corrente, ritual do homem ocidental em geral.
se cumpre a partir do tempo originário e também não A nossa época depende ainda demasiado de mo-
por que razão, primeiro e durante muito tempo, se dos habituais de pensar e de velhas representações para
pôde e teve que tornar dominante na história do ho- que o indivíduo possa sequer adivinhar algo desta mu-
mem o conceito corrente do tempo. dança radical. Nesta peculiar situação de transição, na
Nós também não podemos aqui entrar na ques- qual o vindouro nos atormenta e o antiquado nos
tão de por que razão e de que modo acontece que oprime, resta apenas sempre: desmontar e destruir
o mais essencial, profundo e vasto conceito do nosso inflexivelmente o habitual e fazer actuar o desassos-
compreender, agir e pensar, o conceito de ser, tenha sego do vindouro.
sido criado a partir de uma determinada representa- Na pergunta pelo ser do homem, pelo ser do povo,
ção do tempo. Ser significa, nomeadamente, presença pelo ser da história, todas as questionabilidades têm
constante, oúaL.a. Porque será que justamente o tempo, a sua raiz em última análise na questionabilidade do
que nós costumamos associar ao espaço, representa o conceito "ser em geral" e na nossa posição existencial
âmbito originário para o mais elevado conceito, para a em relação ao ser como tempo.
compreensão do ser? Dos primórdios até ao presente Nós procurámos tornar patente o tempo como
actua na filosofia a interdependência interna e miste- poder,fundamental do nosso Dasein.Assim,já se indi-

[206] [207]
cou que o tempo é próprio do homem e só a ele per- Queremos depois perguntar, o que pode querer dizer
tence e, por conseguinte, de acordo com isso, o tempo que o tempo é algo simplesmente subjectivo, na me-
-pertencente ao sujeito homem- é algo subjectivo. dida em que ele é destinado apenas ao homem, como
De acordo com a determinação actual, que experi- poder que traz o ser.
mentamos como o nosso próprio acontecer, as ocor-
rências sobre a terra, nas plantas ou nos animais são na
verdade decursos e processos vitais no quadro do tempo, Recapitulação
mas pedras, animais, plantas não são eles mesmos tem-
porais em sentido originário, como nós mesmos. Eles Nós tentámos determinar a essência da história
não assumem nenhum encargo, não se articulam numa e do ser histórico, através da demonstração de que o
missão, de modo que este articular-se, este assumir, acontecer como tal está fundado no tempo e em que
constitua o seu modo de ser. Pois animais e plantas não medida o está. Com isto não é, contudo, pensada a
trabalham, não porque sejam despreocupados, mas representação corrente do carácter do tempo, mas o
porque não podem trabalhar. Também o cavalo que tempo em sentido originário, que nos é necessário
puxa a carroça não trabalha; é apenas usado num acon- experimentar originariamente. Aquela concepção do
tecer do trabalho do homem. Também a máquina tempo para nós familiar é: decurso, sucessão dos agora.
não trabalha. Que ela trabalhe é um equívoco do sé- Ela é justificada na medida em que o acontecer his-
culo XIX. tórico é inserido no tempo, por meio de uma crono-
Este equívoco do trabalho vai tão longe que a logia e, assim, datado.
Física adoptou o conceito "trabalho" como conceito Originariamente esta concepção foi alcançada
fisico. Porque à máquina é atribuído o trabalho, inver- numa experiência natural, numa experiência tempo-
samente, o homem foi degradado como trabalhador ral das coisas, com a finalidade da medição do tempo,
na condição de máquina - uma concepção que está na alternância do dia e da noite. A concepção do
na mais íntima conexão com uma posição em relação tempo foi, assim, orientada pelo nascer e pôr do Sol,
à história e ao tempo, no sentido na in-essência do ser cuja trajectória decorre no céu. Daí que o tempo
histórico. tenha sido equiparado ao céu. Cronos era o Deus que
Pedra, planta, animal são mensuráveis no tempo, dominava o curso das coisas. Esta representação mito-
mas não são temporais no sentido de que aí se revele logicamente verdadeira desnaturou-se no decurso da
o seu próprio ser. Nós queremos em seguida discutir história e transformou-se num conceito fisico vazio,
em que medida aqui existe uma diferença essencial que encontramos como t (tempus). Agora o tempo é
entre a temporalidade histórica do homem e as sim- aquilo que determinamos como tempo normal da
ples ocorrências do animal e da planta no tempo. Europa Central.

[208] [209]
Esta representação não é falsa, ela é até em si ne- tempo não é, porém, com isso eliminada. Devemos
cessária, contudo, ela não atinge a essência da tempo- antes compreender primeiro, a partir do tempo origi-
ralidade. Esta surge a partir do tempo originário que nário, como se terá podido chegar à concepção cor-
nós experimentamos naquilo que estipulámos como rente do tempo. O próprio conceito da temporalidade
determinação do nosso ser. não determina apenas a representação do ser histórico,
Esta era uma tripla determinação [Bestimmung]: ser mas, em geral, aquela representação de significado de
determinado [Bestimmtsein], o carácter de determinado ser, não ser e devir. O tempo é o domínio condutor,
[Bestimmtheit], estado afectivo [Gestimmtheit]: ser deter- no interior do qual compreendemos o ser. Na medida
minado em sentido histórico acontece na missão que, em que na história muda o conceito de tempo, modi-
passando por nós e através de nós, chega até nós como ficar-se-ão também o conceito de ser e a nossa posi-
encargo que nós não calculamos racionalmente e não ção fundamental em relação aos entes.
podemos apresentar por meio da razão, mas que tem No triplo significado de determinação experimen-
a sua peculiar objectualidade na origem do próprio ser tamos o nosso ser como temporalidade. O poder do
histórico. Encargo e missão, futuro e ter sido são um tempo preenche e delimita a essência do nosso ser.
poder originariamente coerente que, em si encerrado, Designaremos daqui em diante o ente que nós pró-
determina o presente e domina o nosso ser, enquanto prios somos como existência do homem. Usamos o
histórico; nós designamo-lo como trabalho do homem termo "Daseitz" no sentido restrito e sublinhado. Plan-
- trabalho, não como qualquer ocupação, mas como tas e animais também são, mas o seu ser não é Dasein,
consumação da cunhagem e articulação daquilo que mas vida. Os números e as figuras geométricas tam-
se põe no nosso Dasein histórico, como tarefa, na obra. bém são, mas como simples consistências. A terra e as
Encargo, missão e trabalho são, enquanto este pedras também são, mas como algo meramente pre-
poder unificador, simultaneamente o poder do estado sente [vorhandenen]. Os homens também são, mas de-
afectivo que nos transporta. Aí a tonalidade afectiva signamos o seu ser histórico como Dasein.
não é uma qualquer vivência que apenas acompanha Este uso estruturado do vocabulário é aparente-
a nossa restante atitude anímica, mas a tonalidade afec- mente arbitrário, mas surge de uma necessidade in-
tiva é o poder fundamental do nosso Dasein, em vir- terna, do desenvolvimento interno do próprio tema.
tude do qual nós somos colocados no meio do ente de Porque o Dasein é suportado pelo poder do tempo,
modo eminente. suportado, articulado e dirigido, o ser humano é
Com esta determinação experiente do ser deter- temporal e, enquanto tal, histórico. E, enquanto a
minado, do carácter de determinado e do estar afinado temporalidade é o carácter distintivo da essência do
[Gestimmtsein] podemos experienciar a temporalidade homem, o acontecer como história é o modo de ser
na sua essência originária. A concepção corrente do distintivo do homem. Com isso fica provada a nossa

(210] (211]
tese anterior de que a história é o modo de ser distin- sentido, possa entrar na história, por exemplo, a paisa-
tivo do homem. gem é lugar e sítio de um acontecimento histórico;
Porque o homem, como temporal, é histórico no mas ela não é, por isso, temporal no sentido em que o
fundamento da sua essência, por essa razão, o homem homem o é.
é também não-histórico, isto é, está enredado na in- O tempo como temporalidade é reservado ao ser
-essência da não-história. Na natureza não há histori- do homem, como poder deste. Por isso, a nossa per-
cidade, nem não-historicidade, mas ela não tem his- gunta, a pergunta pelo homem, é, à partida, a pergunta
tória, não é dependente do acontecer. A natureza não pela temporalidade.
tem história porque ela não é temporal. Isto não é O contexto que temos vindo a percorrer tem o
contradito pelo facto de os processos vitais da natureza seu início com a pergunta o que é a linguagem e como
poderem ser medidos e verificáveis no tempo. A natu- ela é. Procuramos agora seguir a direcção inversa na
reza, na medida em que ela é mensurável pelo tempo, ordem do perguntar, tendo sempre em mente a tem-
está de certo modo no tempo. Nós esforçámo-nos por poralidade do ser do homem. Contudo, não respeita-
distinguir verbal e conceptualmente entre o estar-no- remos rigorosamente a sequência, mas procuraremos
-tempo de uma coisa e o ser-temporal, que é apanágio ver de modo uniforme, como que simultaneamente os
exclusivo do homem. Este estar-no-tempo, ser mensu- diferentes estádios, para depois compreender a lingua-
rável pelo tempo, nós designamo-lo como intra-tempo- gem como linguagem. Neste estudo retroactivo des-
ralidade. Aquela temporalidade, de acordo com a qual vendar-se-á também mais e mais a essência da tem-
o tempo é o poder da essência do homem, nós desig- poralidade.
namo-la simplesmente como temporalidade.
O que é determinável através da intra-temporali-
dade, o que é mensurável e determinável pelo relógio, §26. Discussão da objecção de que o tempo
não necessita de ser temporal. Pelo contrário, o que é seria algo subjectivo, devido à nova deter-
temporal, como o homem, pode também ser intra- minação alcançada
-temporal. O acontecer humano pode ser determinado
através do tempo. Podemos indicar a data do nasci- Começaremos esta reflexão globalizante com a
mento e da morte do homem, podemos determiná-los discussão de uma objecção natural que acompanha
temporalmente. A natureza é intra-temporal. (Os nú- toda a pergunta pela essência do homem. A objecção
meros não estão no tempo.A relação dos números não anunciou-se já e agora ainda se tornou mais forte. Pela
é mensurável e determinável através do tempo.) A au- atribuição exclusiva do tempo ao Daseín do homem
sência de tempo da natureza encerra em si a ausência e da ausência de temporalidade a todas as coisas não
de história, o que não exclui que a natureza, em certo humanas, o tempo é adjudicado ao sujeito e assim

[212] [213]
rebaixado a algo simplesmente subjectivo. O tempo a) Será que os animais têm um sentido do tempo?
foi, deste modo, transferido para o domínio das vivên-
cias anímicas, para o interior do homem, para o sujeito O que se passa com este sentido do tempo dos
e é, assim, negado ao objecto, à natureza. animais? O facto de que a Biologia faz investigações
Esta objecção pressupõe que o homem seria um sobre isto não chega para provar que os animais têm
sujeito e o seu ser, de acordo com isto, consistiria na sentido do tempo e estão sob o poder do tempo. Cer-
subjectividade. Pois só rieste caso o tempo, por causa tamente, é um facto que os pássaros começam a cons-
da sua adjudicação ao homem, pode ser definido trução do ninho e chocam num tempo determinado,
como algo subjectivo. que as andorinhas se juntam e voam para o Sul num
Temos a pergunta: será que o ser do homem pode determinado tempo. Mas, para isso, os pássaros neces-
ser delimitado pelo ser sujeito, em oposição ao objecto? sitarão de saber do tempo ou sequer de ter um sentido
O que se passa com a caracterização ainda hoje domi- para o tempo como tal?
nante do homem como sujeito? De modo algum. É suficiente que no seu com-
Ora, poder-se-ia objectar que, para refutar a portar-se estejam sob determinadas influências de cer-
adjudicação por nós efectuada do tempo ao sujeito, tos estados da terra, da atmosfera e do tempo atmos-
a subjectivação do tempo, não seria necessário entrar férico. Que nós experimentemos estes estados como
na vasta questão do carácter de sujeito do homem. pertencendo a uma certa estação do ano e a ela apro-
É que deveria ser suficiente o facto de que as ciências priados, não prova uma idêntica relação por parte dos
da natureza falem do sentido do tempo dos animais, animais que se movem desta ou daquela maneira neste
por exemplo das formigas ou abelhas e o procurem tempo. O espantoso não é que os animais tenham sen-
investigar. É que foram tiradas deste facto consequên- tido do tempo, mas que, sem relação ao tempo, estejam
cias surpreendentes. Por conseguinte, se os animais inteiramente ligados a todo o acontecer geral da natu-
tiverem sentido do tempo, se o seu processo vital não reza e, com isso, conquistem para si um determinado
decorrer apenas no tempo, mas o próprio ser vivo campo, um modo de ser que não compete ao homem.
tiver um sentido para o tempo e se orientar pelo A posição do Sol, a distribuição da luz a ela asso-
tempo e assim for determinado pelo tempo, então o ciada, o grau de arrefecimento, o estado do mundo
tempo como temporalidade não é uma determinação vegetal e animal e outras relações cósmicas, talvez
distintiva do homem e, por conseguinte, não é reser- ocultas para nós, caracterizam o estado da Terra no
vado ao homem. Outono, que nós determinamos como tempo na or-
dem do tempo e nela incluímos. Estas ocorrências,
as mudanças na atmosfera, não têm nada que ver com
o tempo como tal. Surpreendente não é que os ani-

[214] [215]
mais tenham sentido do tempo, mas a ligeireza do A particularidade do ser próprio dos animais
homem, que não está disposto a tornar compreensível não deve ser destruída pela equiparação apressada
para si mesmo aquilo que é tão diferente e peculiar na com o homem. A comparação do ser humano com o
vida animal e vegetal. ser animal conduzirá ao erro, enquanto não forem
Através das investigações sobre o sentido do colocados limites entre aquilo que nós atribuímos
tempo dos animais não s~ prova que os animais tmham aos animais e aquilo que lhes é exclusivo. Contudo,
um tal sentido, nem uma tal relação com o tempo. a delimitação só pode ser colocada quando, antes,
O sentido do tempo não é um dado científico, mas o ser do homem for experimentado de modo sufi-
é pressuposto antes de toda a investigação, como uma cientemente originário e expresso em conceitos, de
asserção metcifísica prévia, baseada numa correspon- acordo com sua própria essência. Só assim será criada
dência, posta de forma acrítica, do ser animal com o a possibilidade de libertar o ser animal e vegetal
homem. como simples ser vivo e aceitá-lo no seu próprio
Contudo, a nossa contestação do sentido do carácter miraculoso.
tempo dos animais é também uma asserção metafisica. Por conseguinte, não podemos deixar por resol-
Como é ela fundada em cada caso? Não é fundada na ver a questão do carácter de sujeito do homem.
Biologia. A fundamentação da nossa contestação reside
no facto de que os animais não podem falar, de que eles
não têm linguagem. Se os animais fossem dotados de b) A pe1;grmta pelo carácter de sujeito do homem
linguagem, então eles teriam que ter uma relação com
o tempo, então eles teriam que ser temporais na sua Se se provar que a caracterização do homem
vida, na medida em que há uma inter-relação entre lin- como sujeito é errada desde o princípio, então a objec-
guagem e tempo. O que se parece com o sentido do ção da subjectivização do tempo tornar-se-á insusten-
tempo dos animais· deve ser explicado de outra maneira. tável, por não ter sentido.
Poder-se-ia retorquir que os animais também Porque pode existir a objecção? Porque "subjec-
poderão ser capazes de falar, que eles poderão ter outra tivo" significa para nós: relativo a um sujeito deter-
linguagem, uma linguagem que os homens não en- minado e a ele limitado, nascido do sujeito individual
tendem. Contudo, os animais comunicam uns com os e isolado, que só neste facto tem a justificação, não
outros. Mas será que a essência da linguagem reside no extraído do objecto. Se, portanto, o tempo pertence
entendimento recíproco em geral e, em segundo lugar, exclusivamente ao homem e, de acordo com isto, ao
será que os animais comunicam alguma coisa, quando sujeito, então isto quer dizer: ele não é objectivo, não
eles emitem entre si sinais, sons de chamamento ou de é tomado a partir dos objectos, é, por conseguinte,
aviso? A estas perguntas deve responder-se que não. simples aparência. Se ele é só isto, então deve refutar-

[216] [217]
-se o poder da história. Como há-de o tempo ser o como o que permanece constante na mudança das
poder da história, se ele só existe no sujeito? suas características - por conseguinte, uma determi-
A pergunta pela subjectividade do tempo é deci- nação do ser das próprias coisas; unaKEÍ.tJ.EVOV tem
siva para a totalidade. O subjectivo na representação aqui um significado ontológico, significa o verdadeiro
corrente é o que tem a ver com a egoidade, o relativo ser da coisa. Mas, por outro lado, unoKEÍ.tJ.EVOV signi-
ao eu, o nascido do eu. O eu do homem é o sujeito, fica aquilo sobre o qual o enunciado, o ÀÓyoç, enun-
subjectum, únoKEÍEJ.EVov: o que subjaz, a base sobre a cia, aquilo que no enunciado existe como fundamento
qual é, por assim dizer, erguida outra coisa. A palavra para o predicado. Por conseguinte, unoKEÍ.tJ.EVOV tem
únoKEÍEJ.EVOV nasceu da filosofia grega e só é com- aqui um significado lógico, refere-se ao o ÀÓyoç.
preensível a partir do conceito de ser nascido na filo- Ambos estes significados não necessitam de coincidir
sofia grega e nela elaborado. O próprio conceito de obrigatoriamente. Ambos podem, contudo, convergir.
únoKEÍEJ.EVOV está essencialmente implicado nesta ela- Por um lado, os gregos compreenderam todo o ser
boração do conceito de ser. como o que está presente [Anwesend] e, ao mesmo
Para os gregos, "ser" quer dizer o mesmo que pre- tempo, a frase, o ÀÓyoç, é a forma originária e a con-
sença constante. Constância e presente são, porém, firmação deste ser.
caracteres do tempo. Ente é para os gregos aquilo No início da exposição sublinhámos que o carác-
que permanece, o permanente nas coisas que existem, ter fundamental da gramática tradicional nasceu da
o que, na mudança do estado das coisas (por exemplo, lógica grega. Agora torna-se mais claro o que isso sig-
tornar-se maior ou menor), resiste na mudança das nifica. A linguagem é tomada pela gramática domi-
qualidades. nante como o contexto do discurso enunciativo, no
Todo o dizer tem de passar através disto que qual se fala sobre as coisas no seu mero estar diante dos
resiste, deste ente propriamente dito, se ele quer afirmar olhos [ Vorhandensein).
algo sobre o ser, sobre o que é e como é. O ser-deste-
-ou-daquele-modo (a qualidade), enquanto é deter-
ex) A mttdança modema de significado de "sttjeito" e
minado no dizer, é predicado, através do qual algo é afir-
"objecto". O triplo desligamento do homem
mado. E o únoKEÍEJ.EVOV, subiectum, é aquilo acerca do
qual o predicado afirma algo. Estas frases inofensivas Na Idade Média "sujeito" tinha o significado de
da gramática são totalmente sobrecarregadas com a uma coisa em si presente [an siclz vorhanden]. Um sujeito,
metafísica grega. algo que está na base, era uma casa, uma árvore, uma
Já em Aristóteles únoKEÍEJ.evov tem um duplo pedra, etc. A Idade Média conhece já também o obiec-
sentido característico que não é acidental para os gre- tum como o que se contrapõe, o que está contra,
gos. Significa, por um lado, a própria coisa respectiva, o obje<õto [ Gegenstand] e, na verdade, no sentido origi-

[218] [219]
nário, como aquilo que se me opõe, na medida em a que se contrapõe. O antecedente medieval da filo-
que eu o coloco diante de mim, o coloco contra mim, sofia é-lhe transmitido por Suarez. Descartes não foi
o represento [vorstelle]. Obiectum é o que é representado. o primeiro a criar a sua posição moderna. Os novos
Quando eu, por exemplo, represento um monte doi- esforços tinham já despertado antes do seu tempo nos
rado, então isso é um obiectum. O objecto é o que é mais diferentes dorrúnios. A sua elaboração cumpriu-
pensado por mim, imaginado, o que é em sentido pró- -se como uma libertação dos laços até aí vigentes; ela
prio meramente subjeCtivo, como hoje dizemos - implicou certamente uma reflexão sobre as próprias
enquanto aquela casa em si diante dos olhos é, inver- forças do homem, as faculdades do homem.
samente, designada por nós como "objecto". Esta libertação cumpriu-se em três dorrúnios fun-
O significado de ambos os conceitos "sujeito" e damentais:
"objecto" transformou-se completamente no seu con- 1. Ela cumpriu-se no desligamento da ordem
trário. Podemos seguir esta transformação na história. sobrenatural da vida da Igreja cristã e da autoridade
Não se trata da transformação indiferente do signi- do dogma. Mas, em compensação, o homem virou-se
ficado de uma palavra qualquer, mas aí reside a grande para a descoberta, a conquista e o domínio do mundo.
mudança do antigo ser para o ser medieval e para o ser Aqui reside a origem da técnica, que é mais do que
actual do homem. o domínio dos instrumentos e das máquinas, que tem
Nós vimos que a origem do conceito de unoKEÍ.- antes o seu significado fundamental numa relação
[.LEVOV está inter-relacionada com a questão funda- modificada do homem com o mundo.
mental do ser. De acordo com Aristóteles, esta pergunta 2. A libertação cumpriu-se no desligamento do
pelo ser é a tarefa da filosofia, a filosofia em sentido homem dos vínculos da natureza, tomada como orga-
eminente, npiirYJ cpLÀoçcpúx, aquilo que mais tarde se nismo vivo. A natureza é reinterpretada de acordo
chamará metafisica. Na medida em que se cumpre, no com o mecânico. O corpo torna-se simples máquina,
ao lado da qual domina o espírito.
abandono do Daseill antigo e medieval, uma mudança
3. A libertação cumpriu-se no desligamento do
do pensar e questionar do ser, esta teve que cumprir-se
homem da comunidade, das ordens originárias. Con-
também na metafisica, na prima philosophia. Por isso, o
tudo, ela não se cumpriu na direcção do caos. O ho-
título da obra na qual se cumpre a mutação fundamen- mem tornou-se, antes, um indivíduo consciente de si
tal na filosofia reza "Meditationes de prima philosoplzia" mesmo e elemento da nova ordem que recebe o carác-
- "Meditações sobre a Filosofia Primeira", publicada ter de sociedade, isto é, uma associação. Aqui está a
em 1641 e cujo autor é Descartes, que é geralmente origem do novo conceito de Estado (contrato social).
tido como o fundador da filosofia moderna.
Mas Descartes depende do pensamento tradicio- No interior da metafisica moderna, as forças
nal, isto é, ele transporta em si também o antecedente actuantes deste triplo desligamento sofrem uma ver-

[220] (221]
dadeira fundação e expansão. Com o decurso desta Depois discutimos a objecção que nasce da nossa
mudança nós podemos compreender a mudança do determinação da temporalidade: quando o próprio
conceito de "sujeito"- de aquilo que permanece das tempo é colocado no sujeito, então ele é subjectivado,
coisas para a egoidade- e do conceito de "objecto" mas com isso completamente retirado do domínio
do representado para o ser objectual das coisas. objectivo. A isso contrapusemos: na verdade, o compor-
tamento dos animais é também, num certo sentido,
determinado pelo tempo. Mas não há nenhuma razão
Recapitulação para concluir, a partir das condições do ser animal, que
os animais têm uma relação com o tempo. Estas con-
Nós determinámos a essência do ser humano dições também podem ser explicadas sem recorrermos
como temporalidade e, por conseguinte, como histo- ao sentido do tempo, como talvez através da influên-
ricidade. Nós caracterizámos este ser humano como cia da luz, do calor ou de outras relações cósmicas.
Dasein. O Dasein do homem é diferente, pela lingua- A impossibilidade da suposição que os animais
gem, do ser do animal como vida, do ser do número têm um sentido para o tempo, no mesmo sentido que
como consistência e do ser da natureza inanimada como o homem, deriva da impossibilidade de pensar que, se
decurso diattte dos olhos. os animais tivessem tempo, também poderiam perder
Se nós compreendermos o ser humano como tempo. Contudo, apenas o homem tem tempo ou
temporalidade, então este ser temporal do homem não não tem tempo, só o homem perde tempo. Mas o ani-
é entendido em sentido habitual, isto é, mensurável mal não pode perder tempo, porque não tem tempo.
no tempo. Temporal, neste sentido corrente, é também A partir daqui não podemos refutar a limitação do
a natureza. E mesmo o que é atemporal, também o tempo ao homem, como sujeito.
número, encontra-se no tempo. Certamente, tanto Por outro lado, não devemos menosprezar esta
o que é temporal em sentido próprio (o ser do homem), objecção, porque ela implica uma determinada con-
como o que é atemporal (o ser da natureza) pode ser cepção do homem: o ser humano como ser sujeito.
medido pelo tempo, ser intra-temporal, sendo o tempo Porque se trata de uma concepção fundamental do
aqui apenas a moldura, mas não o poder que deter- homem devemos discuti-la. O que significa o homem
mina o ser próprio do homem. Devido a esta suposi- ser sujeito? O que significa "sujeito"? Como se chega
ção da temporalidade como a essência originária do a esta avaliação do ser humano?
homem, encontrámos o fundamento para um enten- A origem está compreendida no ÚJroKeÍ[J.evov e
dimento retrospectivo do que tratámos nas aulas pas- nasceu da filosofia grega, para trazer ao entendimento
sadas. Nós procurávamos compreender isto unitaria- a essência do ser e a compreensão do ente. ÚJWKêÍ[-tê-
mente, a partir do fundamento do ser humano. vov é -o ente como presença [Amvesenheit] constante.

[222] [223]
Na Idade Média úrroKEÍ[-1-EVOV foi conservado em tos transmitidos não simplesmente para destruir todo
determinada forma como subiectum, como a coisa que o saber, mas para, através do desligamento do saber
está presente. O conceito contrário é obiectum, o que é humano transmitido e do ser, colocá-lo num funda-
representado pelo homem, lançado contra, simples- mento e solo postos pelo próprio homem.
mente "subjectivo", simplesmente pensado, imaginado Descartes impele o duvidar de todo o conheci-
- onde se começa a preparar a inversão da palavra. mento até ao ponto em que depara com algo indu-
Como e por que- caminhos se chegou a esta bitável, que deve fornecer o fundamento para a nova
inversão dos conceitos fundamentais da filosofia e que construção, um fimdamentum inconcussum, uma base
significa ela? A inversão cumpre-se em relação com inabalável, um substrato para todo o saber, algo estável
a mudança de todo o Dasein ocidental no sentido do e firme, um subiectum.
Dasein moderno e contemporâneo. Esta mutação deve Por que caminho encontra Descartes este subiec-
ser determinada como libertação do homem da tradi- tum humano? Como se apresenta ele como tal pre-
ção e da ordem da Igreja e do dogma, como liberta- sença indubitável e permanente? Ele procura uma
ção dos laços da natureza desenvolvida organicamente primeira e última certeza e só esta. É-lhe indiferente
e como libertação da comunidade. Esta libertação qual o estado de coisas que se apresenta como certo,
- agora entendida positivamente - deve ser determi- como este substrato, o que é suficiente para esta cer-
nada a partir da autonomia do homem, em virtude da teza indubitável contanto que algo se mostre que
sua própria razão e cálculo. satisfaça esta exigência. Certo é, para Descartes, aquilo
que é compreendido clara e distintamente (clare et dis-
tincte percepttl111 est), no sentido da definição matemática
(3) A 11ova posição metcifísica ]1111damwtal do homem na
de um conceito matemático.
prima philosophia de Descartes
É pensada uma certeza específica, uma ideia espe-
No meio desta mudança cumpre-se também uma cífica que dirige a busca do fundamento. Seguindo
mudança da filosofia na sua posição fundamental, da esta orientação, Descartes mantém-se no caminho no
metafisica - por conseguinte, nas questões que a anti- qual ele põe em dúvida todo o saber de todos os
guidade determina como philosophia prima, na per- domínios possíveis e põe-no de lado como incerto,
gunta pelo ser. Com as suas "Meditationes de prima phi- como um saber em relação ao qual não existe certeza.
losophia", Descartes está essencialmente implicado Quando nós duvidamos de tudo fica finalmente ape-
nesta mutação. Pois Descartes, no sentido da mutação nas a própria dúvida. Mas, enquanto eu duvido, não
mencionada do espírito moderno, colocou primeira- posso pôr em dúvida o ser presente da própria dúvida.
mente em dúvida e pôs em questão todo o saber cor- Mas a dúvida é uma maneira de pensar, um modo de
rente, tudo o que é tradicional, todos os conhecimen- comportar-se da consciência. O pensar só existe, se eu

[224] [225]
existo. Eu penso, eu duvido, logo, eu existo. Este meu c) A determinação moderna do ser hummw como ser
ser, o ser do Eu, é indubitável, é o que está constan- coisa, no sentido do mero estar diante dos olhos
temente presente, como ser que ainda resiste a toda a
dúvida. "O Eu penso deve poder acompanhar todas Ora, muito mais importante que esta demonstra-
as minhas representações" (Kant, K.R. V., B 131). O eu ção é a resposta à questão de saber que concepção e
é o que está constantemente presente, aquilo que basta delimitação do ser humano se cumprem, enquanto
ao procurado, um subiectÍim, o eu é sujeito. o eu adquire o papel de subiectum. Na caracterização
Mas o eu não é um sujeito qualquer, mas aquela do eu humano como sujeito torna-se visível o antigo
certeza fundamental, a partir da qual todo o saber conceito de úrroKEÍ[J.EVov, o ser como presença cons-
futuro é construído. Deste modo, este subiectum, o eu, tante, lido no ser das coisas diante dos olhos e ime-
torna-se o sujeito eminente. Ora este sujeito torna-se diatamente dadas. Nesta caracterização, o ser homem
equivalente ao eu. Todo e qualquer sujeito só é, então, é determinado através do ser das coisas, no sentido do
sujeito se for eu. O eu alcança o estatuto de sujeito. mero estar diante dos olhos.
A egoidade, que pertence ao eu, é assim o que é sub- Enquanto o ser eu é, para esta maneira de pensar,
jectivo. a certeza mais originária, por causa desta certeza mais
Este eu como fundamento indubitável é para todo originária já não se pergunta propositadamente pelo
o pensamento moderno aquele tribunal pelo qual é ser do eu. Este fundamento adquire um tal poder, que
decidido se e em que medida o representado, o objecto, não é apenas experimentado como imediatamente
é tal que satisfaz a exigência de certeza, até que ponto certo, mas também o ser dos objectos só é reconhecido
o representado é um ente, um verdadeiro objecto. enquanto satisfaz a exigência de certeza. Nasce a tarefa
Deste modo, o objecto chega ao papel daquele que de compreender o ser dos objectos como um ser do
está oposto ao sujeito, o alheio, o outro, o que está eu. Esta tarefa ocupa a filosofia até Hegel. Este escla-
diante dos olhos, no sentido mais amplo, da natureza. rece na sua Fenomenologia que a tarefa da filosofia é
Subjectivo é tudo o que pertence ao domínio do ente compreender a substância, o objecto em si diante dos
determinado pelo eu, do ente contido na consciência, olhos, como sujeito, estabelecer as coisas como eu e o
do anímico, do que pode ser vivenciado. Todas as sen- eu como cmsa.
sações, por exemplo cores e sons, são subjectivas, per- Segundo esta maneira de pensar, para nós tornada
tencem ao domínio do sujeito. óbvia e gasta, é preterida toda e qualquer pergunta
Com isso demonstrou-se a total inversão e a pela peculiar maneira de ser do homem. Por conse-
transformação das palavras fundamentais no seu signi- guinte, quando o procedimento de Descartes parece
ficado contrário. muito radical por causa da dúvida fundamental e é
considerado como tal, acaba por mostrar-se que

[226] [227]
Descartes não reconheceu a verdadeira pergunta crítica pensar do tempo abala e rompe com a concepção do
naquilo que é decisivo, nomeadamente, se é possível homem como eu. Isto acontece na medida em que
compreender e determinar conceptualmente o ser do a temporalidade na sua essência liberta o confinar do
homem como ser sujeito, através deste modo de ser. homem a um ser eu isolado. Pois a temporalidade, ori-
Acontece, assim, que o próprio ser do homem é expe- ginária e correctamente compreendida, já não pode
rimentado no seu eu independente e isolado num ser deixar difundir-se a representação do homem como
vazio. Por isso, surge também a questão de saber como um eu isolado Esta mudança é dificil e será a nossa
este eu fechado em si chega a uma relação com o não tarefa durante muito tempo.
eu, com o objecto. Não há nada mais habitual do que a representa-
Esta pergunta ainda hoje dominante repousa so- ção do homem como um indivíduo, que aparece entre
bre um fundamento impossível. As consequências outros, entre os seus semelhantes e entre as coisas. As
desta primazia do eu caracterizado como um sujeito, fronteiras do homem decorrem na superfície da sua
na concepção e determinação do ser humano, podem pele, ela é como que a demarcação do que é exterior
ser seguidas na forma da banalização, através de todo e interior. Interiores são o coração, o cérebro, o dia-
o século XIX até aos nossos dias. O liberalismo tem a fragma, como o lugar do anímico, das vivências. Estas
sua raiz nesta concepção do homem. O combate ao vivências acontecem. O homem tem vivências como
liberalismo move-se em frases desgastadas, em vez de tem pernas e estômago. Ele é acometido pelas vivên-
na autêntica revolução de todo o ser e saber. Por isso, cias, anda à volta, e está sujeito às mais diferentes
não devemos admirar-nos que as recaídas sejam mais influências e efeitos, sobre os quais, por seu lado, actua.
frequentes onde se grita mais alto. O nosso modo de Ora, pode-se exprimir esta representação com mais
pensar quotidiano mergulha ainda inteiramente nos espiritualidade, na medida em que se eleva o eu a per-
fundamentos ainda não superados do liberalismo. sonalidade ou se rebaixa a um "sujeito depravado".
Daqui surge também a objecção de que o tempo É determinante o modo de experiência aparente-
se torna, na nossa concepção, algo subjectivo. Enquanto mente natural, em virtude da qual nos encontramos
se pensar o homem como sujeito (e se compreender com seres vivos dotados de razão. Este modo de expe-
o tempo como egoidade) a objecção é, sem dúvida, riência tem uma certa legitimidade, mas é questioná-
fundada. Mas a nossa exposição sobre o ser humano vel se ela pode ser critério quando se trata de alcançar a
evita a suposição do homem como um eu isolado e essência especifica do homem. A nossa reflexão já mos-
tem como fim uma nova experiência originária do ser trou que este modo de experiência não é suficiente.
do homem.
A objecção de que faríamos do tempo algo de
subjectivo torna-se absurda, porque precisamente o

[228] [229]
SEGUNDO CAPÍTULO
A experiência da essência do homem,
a partir da sua determinação

§27. O entrelaçamento da tonalidade afectiva,


trabalho, missão e encargo

A experiência do ser humano na e a partir da sua


determinação em triplo sentido deve ser trazida à luz
ainda mais nitidamente, deve ser tornada conceptual-
mente compreensível e operante para o entendimento
activo.

a) Tonalidade afectiva. A relação entre tonalidade cifec-


tiva e corpo

A nossa determinação em triplo sentido é dis-


posta, suportada pela respectiva tonalidade afectiva,
seja esta o ser oprimido, o ser erguido ou o ser inspi-
rado. Como tonalidades afectivas fundamentais temos
também a harmonia com todas as coisas, a solidão,
o tédio e o vazio ou o sentimento de plenitude e o
optimismo.
Nós tomamos habitualmente estas tonalidades
afectivas como caracterização e indicação do nosso

[231]
estado de alma, como prova de como esse estado de Não estamos primeiro isolados num eu enrolado sobre
alma interior de um sujeito individual aparece, si, que posteriormente chega a uma relação com as
de como ele se sente. Nós tomamos as tonalidades coisas, mas nós estamos em cada caso já numa tona-
afectivas como vivências no sujeito - que fervilham, lidade afectiva, que nos expõe à partida ao próprio
borbulham e evaporam como a água na panela, de ente. Nós mesmos desvanecemos numa tal exposição
acordo com o grau de aquecimento. Interpretamos no ser assim revelado.
mal as tonalidades afectivas, porque não queremos ver Precisamente aquilo que nós gostamos de desig-
que é precisamente a tonalidade afectiva que nos nar como interior e que localizamos no espírito,
coloca na totalidade do ente, que ela delimita à partida não está algures lá dentro, como se dum estômago se
e em cada caso o contorno do ente, enquanto inau- tratasse, mas está fora e, por isso, nós estamos fora
gura e mantém aberto o contorno do ente. em cada caso. A tonalidade afectiva determina-nos
Tomemos, por exemplo, a tonalidade afectiva da de tal modo que estamos essencialmente no estado de
irritação. A pessoa irritada, mesmo que tenha o olhar exposição. _
e o entendimento mais penetrantes, não quer ouvir Aquilo que é visível e palpável em nós a partir
nem ver. Para ela, a irritação esconde todas as coisas, do exterior, o corpo [Lei h] que nós sentimos a partir do
elas estão-lhe encobertas e são-lhe diminuídas. Inver- interior, parece ser, no homem diante dos olhos, o que
samente, a alegria torna todas as coisas claras, simples verdadeiramente o suporta. Com a sua ajuda estamos
e cristalinas, deixa-nos ver as coisas de um modo com os dois pés bem assentes no chão. O corpo, não
como nós não as experimentávamos anteriormente. o pairar no estar exposto através da tonalidade afectiva,
Contudo, também no vegetar [Dahínleben] indiferente vale como o fundamento que suporta. Mas o que que-
não falta a tonalidade afectiva, mas nós encontramo- rem dizer aqui pernas, corpo e outros membros? Se
-nos na sintonia da indiferença. tivéssemos uma dúzia de pernas ou mais, não estaría-
Aqui, porém, não é suficiente que prestemos aten- mos mais firmemente assentes sobre o chão. Nós não
ção às propriedades da tonalidade afectiva - que nós, estaríamos de modo nenhum, se este estar não fosse
em certos casos, nos tornemos cegos e noutras clarivi- perpassado pelas tonalidades afectivas, em virtude das
dentes - e continuemos a representar para nós a tona- quais o chão, a terra, numa palavra, a natureza nos
lidade afectiva como situada no sujeito. Devemos antes suporta, acolhe e ameaça.
compreender que nós somos colocados no meio do O que nós constatamos como corpo, não é algo
ente e no seu ser, pela tonalidade afectiva e devido a que está diante dos olhos, não é o elemento originá-
ela, e que a tonalidade afectiva inaugura e encerra para rio do Dasein, mas está, por assim dizer, como que
nós o ente. Em virtude da tonalidade afectiva, nós pendurado no poder das tonalidades afectivas. Só um
somos expostos ao ser, que nos oprime ou nos eleva. pensar às avessas, que vê o palpável como o ente, tem

[232] [233]
aqui dificuldades: toma a tonalidade afectiva como . agora. O trabalho segundo o seu carácter espiritual é
manobras de um corpo diante do olhos. presente, na medida em que coloca o nosso ser na vin-
Na afirmação de o corpo ser suportado pela culação adequada à obra, na libertação do próprio
tonalidade afectiva, o corpo não é espiritualizado de ente. (Lembremo-nos de que estabelecemos a corres-
forma fantasista, mas já em virtude do ser entrelaçada pondência seguinte: encargo-futuro; missão-ter sido;
na tonalidade afectiva, a corporeidade tem, para nós, trabalho-presente ou instante). Só no trabalho e atra-
aquilo que nos oprime, à que nos liberta, o descon- vés dele o ente se revela nas suas determinadas áreas e
certante ou o que conserva. Conhecemos a inter-rela- o homem, como trabalhador, é arrebatado [ist entrückt]
ção sempre só unilateralmente, como dependência das para a revelação do ente e da sua estrutura. Este arre-
tonalidades afectivas fugazes em relação à consistência batamento não é nada posterior, enxertado no eu, mas
do corpo. Dizemos, por exemplo: "uma dor do estô- este arrebatamento pertence à essência do nosso ser.
mago altera o ânimo", e falamos de "indisposição gás- Este ser arrebatado para as coisas pertence à· nossa
trica"; mas não pensamos que uma tonalidade afectiva constituição.
pode causar uma dor de estômago. O que é a doença? Por isso, diz-se, com razão, que o desemprego não
A doença não é o distúrbio de um decurso biológico, é apenas a carência dum rendimento, mas uma ruína
mas um acontecer histórico do homem, algo que, da alma - não porque a falta de trabalho arremessa o
entre outras coisas, se funda na sintonia. homem para o seu particular eu isolado, mas porque
Assim também o sangue [Blut] e a linhagem a falta de trabalho deixa vazio o ser arrebatado para
[Geblüt] só podem determinar o homem na sua es- as coisas. Porque o trabalho consuma a relação com o
sência, se eles são determinados pelas tonalidades ente, o desemprego é o esvaziamento desta relação
afectivas, nunca apenas por si. A voz [Stinzme] do san- com o ser. É certo que a relação permanece, porém
gue vem da tonalidade afectiva fundamental do não está preenchida. Essa relação não preenchida é a
homem. Ela não paira por si, mas cc-pertence à uni- causa da sensação de abandono daquele que está sem
dade da tonalidade afectiva. A esta pertence também trabalho. Nesta situação de abandono, a relação do ho-
a espiritualidade do nosso Dasein, que acontece como mem ao todo do ente está tão viva como sempre esteve,
trabalho. mas como dor. Por isso, o desemprego é um estar
exposto impotente. Em conformidade com isto, o tra-
balho é um arrebatamento para a estrutura e para a
b) Ii·abalho cunhagem do ente que nos rodeia.
Por isso, o gosto pelo trabalho é tão importante.
Caracterizámos o trabalho como presente. Isto Ele não é uma tonalidade afectiva que apenas acom-
nao deve significar que o trabalho seja o respectivo panha· o nosso trabalho, ele não é nenhum acréscimo

[234] [235]
ao trabalho, mas a alegria como tonalidade afectiva O ter sido como tradição e o futuro (como o que nos
fundamental é o fundamento do verdadeiro trabalho advirá) como tarefa mantêm o Dasein no fundo e
que, na sua consumação, torna o homem apto para o desde sempre numa delimitação. Expostos na tonali-
Dasein. dade afectiva e arrebatados para o trabalho, nós somos
No trabalho como presente [Gegemvart], no sen- históricos. O poder do tempo temporaliza, de modo
tido da presentificação [Gegenwiirtigung], acontece o originário e não posteriormente, o arrebatamento do
fazer presente do ente. O trabalho é presente, no sen- Dasein para o futuro e o ter sido.
tido originário segundo o qual nós estamos à espreita O ser arrebatado para o presente do trabalho e
do ente e assim o deixamos vir sobre nós na sua his- para a extensão da existência no futuro e no ter sido
toricidade, segundo o qual nós nos sujeitamos à sua não são compreendidos no modo de ser diante dos
supremacia e o administramos na grande tonalidade olhos de sujeitos individuais, que são dotados de um
afectiva da luta, do assombro e da reverência e o inten- interior, à volta do qual há algo de exterior. O nosso
sificamos na sua grandeza. ser consiste na exposição originária ao ente. Em vir-
Agora, da mesma maneira que não podemos tude da tonalidade afectiva, nós já desde sempre nos
desenvolver a essência do trabalho na sua totalidade e alçamos, desde o fundamento, à totalidade do ser, de tal
plenitude, também não podemos desenvolver as tona- modo que o ente está revelado. Este estar revelado
lidades afectivas nas suas grandes oscilações. Trata-se liga-nos ao ente e funda uma recíproca pertença ori-
aqui, apenas, de tornar visível numa primeira indica- ginária - determinada deste ou daquele modo - no
ção o estar exposto do Dasein, em virtude do arreba- meio do ente.
tamento afectivo para o trabalho para, com isso, dar Precisamente devido à tonalidade afectiva, o
uma orientação para a experiência do nosso Dasein. homem nunca é um sujeito individual, mas é sem-
pre um-para-o-outro, ou um-contra-o-outro, no
um-com-o-outro. Isto também é válido quando,
c) Missão e encm;go como na saudade, o outro ainda não está imedia-
tamente lá. O ser um-com-o-outro do homem não
Tal como a tonalidade afectiva não é apenas para existe porque há muitos homens, mas muitos homens
si, mas sempre afecta um comportamento laborante, só podem estar na comunidade, porque ser homem
assim também o trabalho não é um estado passageiro já significa: ser destinado a ser um-com-o-outro
no agora. Todo e qualquer trabalho surge de uma tarefa afectivo, o que não desaparece quando o homem
e está ligado à tradição, determina-se a partir do en- está só.
cargo e da missão. Devido a eles, o Dasein está ele pró- O estar exposto cria para si, em cada caso, a sua
prio já respectivamente enviado e entregue à tradição. cunhagem, a sua extensão e os seus limites, através

[236] [237]
do trabalho que, pela sua essência, nos arrebata para a sulado e só posteriormente teria de ser arrancado a
exposição à estrutura do ser libertado para a obra. este estar encapsulado.
O trabalho não é, para fins de uma melhor consuma- Só este modo de ser do homem nos deixa com-
ção, a posteríorí dependente do trabalho de outrem, preender, em primeiro lugar, como e quem tem de ser
mas, inversamente, o trabalho é, como compor- o ente que satisfaz um tal ser. Este ente nunca é su-
tamento fundamental do homem, o fundamento para jeito, também não uma miscelânea de vários sujeitos
a possibilidade do ser um-com-o-outro e do ser-um- que, devido a certos acordos, passam a fundar uma
-para-o-outro. O trabalho como tal, mesmo quando comunidade, mas o ente originariamente unificador
é feito por um indivíduo, transpõe o homem para que suporta a exposição, o arrebatamento, a tradição
o ser em conjunto, com e para-os-outros. Este arreba- e o encargo só pode ser aquilo a que nós chamamos
tamento para o estar exposto acontece enquanto o "um povo".
homem é lançado para além de si mesmo na tradição. Somente por causa deste ser, da determinação,
A missão é ela mesma subtraída ao arbítrio e ao ca- podem também os indivíduos comportar-se e expe-
pricho. rimentar-se como indivíduos. Só por causa duma tal
experiência pode o comportamento do indivíduo ser
invertido e mal-interpretado, ser mal-interpretado
como vazio do eu limitado. Por outro lado, a partir
§28. A explosão do ser sujeito através da deter- da experiência originária do ser homem, entendida
minação do povo a partir da temporalidade e, portanto, do ser histó-
rico, é possível e necessário a singularização de modo
Deste modo, apresentamos o ser do homem autêntico - mas não devemos pensar o indivíduo de
duma tal maneira que, em confronto com a deter- acordo com a representação do sujeito. A singulari-
minação corrente do homem como sujeito, deve- zação na solidão pode tornar-se efectivo para o todo,
ríamos dizer: exposição, arrebatamento, tradição, de um modo magnífico. Inversamente, a participação
encargo - mediante tudo isso, o ser sujeito é explo- activista está longe de provar a ligação viva ao povo;
dido, o que tem carácter de coisa na caixa da cons- ela esconde antes o egoísmo. O ser do povo nem é
ciência é fragmentado, o ente é inaugurado e só dessa o simples ocorrer de uma população, nem o ser ani-
maneira se apresenta um si mesmo. De uma tal mal, mas a determinação como temporalidade e his-
explosão da essência do Dasein humano nós só po- toricidade.
demos falar a partir da representação contrária do
homem, como um eu isolado e encapsulado. Mas é
um erro pen,sar que o ser homem é primeiro encap-

[238] [239]
a) O estar revelado originário do ente e a objectualização Contudo, o ente não se nos revela, em geral, nunca
cient!fica. Separação da vida animal e do ser histórico originariamente no conhecimento científico dos
objectos, mas nas tonalidades afectivas essenciais do
Mas nós ainda não esgotámos completamente a trabalho nelas vibrante e a partir da determinação his-
essência do poder do tempo. Foi já indicado, porém, tórica de um povo que determina tudo isto.
aquando da caracterização da exposição, arrebata- Contudo, o não estar encoberto do ente nunca
mento, tradição e disposição antecipadora como, atra- retira este totalmente do estar encoberto. Pelo contrá-
vés da tonalidade afectiva e nela, através da verdade rio: à medida que ocorre o não estar encoberto do
e nela, através da missão e do encargo e neles, o ente ente, impõe-se precisamente o seu estar encoberto.
na sua totalidade e de acordo com os seus diferentes O irracional, hoje muito apreciado, não se alcança pelo
âmbitos já foi aberto e retirado do estar encoberto. facto de delirarmos na vaga falta de clareza e no dile-
Devido a este não estar encoberto [Unverb01genheit] do tantismo, mas pelo facto de o saber mais radical e mais
ente, este não está como um objecto perante um su- rigoroso chegar aos seus limites.
jeito; o ente não vem de modo nenhum ao nosso en- As plantas, os animais e toda a vida estão entre-
contro, à partida, como ob-jecto. Este erro consoli- laçados no ente, nomeadamente de tal modo que são,
dou-se somente porque só perguntámos sempre de facto, atingidos pelo ente e, por seu lado, instalam-
primeiro pelo ente, na medida em que ele é visado -se nele até no modo de uma certa correcção do com-
e pode ser apreendido na ciência. Originariamente, portamento e duma orientação conforme com a me-
porém, o ente está patente no modo segundo o qual mória e que se move em padrões fixos. Contudo, em
o Dasein humano, enquanto afectivamente sintonizado tudo isso, o animal permanece sempre preso no âm-
e laborante, está inserido no ser da natureza e das for- bito aliás vago - da sua conduta. O ente não vai ao
ças da natureza, no ser das obras produzidas, nos desti- encontro do animal como ente. O ente, para o animal
nos e circunstâncias efectivos. Apenas sobre o funda- não está patente, nem encoberto. O animal corre atrás
mento de um tal estar revelado originário, uma tal daquilo que aflui ao seu ambiente; o animal agarra,
coisa como a objectivação do ente é possível: que ele depois abocanha-o e devora-o. O animal é este aboca-
seja experimentado, visado e considerado como o que nhar - nunca aquilo que o animal abocanha (nunca o
está diante e só assim. que ele abocanha, enquanto tal), aflui como ente que
Contudo, o ser do ente não se esgota no ser insere o animal no ser como tal. A timidez do animal
objecto. Uma tal doutrina errónea só podia surgir e que abocanha, do ser vivo, é essencialmente diferente
até devia surgir precisamente aí onde, à partida, as coi- do estar exposto afectivo e laborante do Dasein histó-
sas foram postas como ob-jectos; e isto pressupõe, rico arrebatado para o ser.
por seu lado, a concepção do homem como sujeito.

[240] [241]
b) O acontecer da história é em si 11otijicação do estar sentam como distúrbios e rupturas. Nos conhecimen-
revelado do ente. O conhecimento histórico como tos históricos, a notificação do acontecer é a maior
rebaixamento dos grandes instantes inaugurais parte das vezes rebaixada à superficialidade e ao ser
esquivo da honestidade sensata, que não tem medo de
O acontecer da história é um acontecer em si nada porque já sabe tudo e sabe tudo melhor.
exposto-arrebatado-extensivo. Isto significa: aquilo no Assim, o noticioso e o anedótico da história o
meio do qual a história acontece está patente através insignificante e calculável - obtiveram caminho livre.
do acontecer como tal. Este assedia e ameaça, coíbe e E o que permanece exterior ao comodismo e à regu-
inaugura enquanto ente. Por outras palavras: o acontecer laridade - o extraordinário e o excessivo -, o que sem-
é em si notificação ele notifica o ente, no qual ele - pre excede o usual e o que é estranho são afastados
distendido nele - permanece inserido. A questão que como aquilo que é incalculável, obscuro e hostil. Con-
nós, à partida, deixámos não resolvida recebe agora a tudo, a verdadeira notificação da história notifica pre-
sua resposta: a notificação não é colada exteriormente cisamente enquanto ela nos põe perante o encoberto.
à história, mas o acontecer como exposto-arrebatado O mistério do instante é a notificação do que nos
é o que notifica, nomeadamente aquilo onde a histó- ultrapassa e do inevitável. No mistério tem o aconte-
ria está exposta, para onde está arrebatada. E a notifi- cer da história a sua estabilidade mais própria. Quanto
cação não é qualquer tomada de conhecimento para- mais simples for o mistério, maior a exposição ao ente
lela àquilo que se passa, mas ela, como pertencente à e, assim, ao seu fechamento.
extensão do histórico, notifica, em cada caso, todo o
acontecer e a situação do seu instante.
Esta situação não é a simples armazenagem de c) O Dasein histórico do homem como a resol11ção
circunstâncias, deste ou daquele modo, mas uma si- para o instante
tuação histórica notifica em si, em cada caso, o ser his-
tórico no todo; "notifica" não quer dizer: apenas dá Por isso, o Dasein humano como histórico só
conhecimento e notícia; mas apresenta encargo, missão pode ser verdadeiramente histórico na resolução para
e trabalho. O propriamente histórico reside sempre na o instante. A resolução não é algo assim como a carga
virtude reveladora dos grandes instantes e no seu po- cega de uma grande quantidade da chamada força de
der revolucionário que reúne em si todo o acontecer, vontade, mas o agir aberto para o mistério e arreba-
mas não aí, onde vulgarmente se procura a história: tado para o ser, do qual a possibilidade de ruína, isto é,
no suave desvanecer-se do instante, cujo desvanecer de sacrifício, está constantemente próxima.
e extinguir se interpreta precisamente como desenvol- Por isso, é uma expectativa errada que pudésse-
vimento, a partir do qual os grandes instantes se apre- mos ser informados sobre o encargo e a missão e ser

[242] [243]
postos ao corrente disso como, por exemplo, acerca do do homem. Contudo, não basta esclarecer o modo de
tempo. A notificação da história só acontece para ser do homem na sua própria constituição, mas
aquele que está na resolução, só ele pode e deve saber importa ver em que medida este ente que nós pró-
a inevitabilidade da existência histórica. Mas os que prios somos tem uma relação com o seu próprio ser.
não sabem e até mesmo aqueles que são agitados pela Pelo contrário, nenhum ente não humano é por-
in-essência da história não podem nunca, apesar disso, ventura alheado do seu próprio ser, pois mesmo um
nem desligar-se da história, nem do trabalho. Pois, alheamento do ser é sempre uma relação com o ser.
mesmo a irresolução, o mero andar trôpego com os O ente não humano está, ao contrário da outorga e do
outros são sempre, pela sua essência, diferentes da timi- alheamento, preso, enroscado, embotado, comprimido,
dez abocanhadora do animal na natureza. isolado. Este ente não se comporta sequer com indi-
A irresolução é, como o renegar da essência do ferenca
, em relacão
, ao seu modo de ser. Inversamente,
Dasein histórico do homem, sempre a afirmação da nós somos de tal forma que neste somos e são está:
sua in-essência. Pelo contrário, o animal a seu modo outorgados e entregues ao ser do qual se trata, na
- conserva sempre a essência da vida. Também no medida em que e enquanto somos entes. E porque ao
abandono da sua tarefa e do seu encargo o homem nosso ser pertence o estar exposto e arrebatado para
não pode afastar-se do seu ser; também na queda [Ver- o ser, precisamente também do ente que nós não
falij ele tem de testemunhar, seja ele quem for e seja somos, a entrega ao ser significa como que a outorga
ele como for, que o seu ser e poder ser lhe permane- ao ser do ente na totalidade.
cem entregues. Esta entrega faz do Dasei11 histórico do homem
aquele ente que, na sua determinação, tem que respon- ·
der de cada vez ao ser desta ou daquela maneira, tem
d) O ser humano como cuidado: estar exposto no mte que responsabilizar-se por ele. Estar exposto ao ente
e entrega ao set: Recusa da má interpretação de patente, arrebatamento para o ser laborado e elaborado
cuidado: cuidado como liberdade do ser si mesmo da obra, e destino no encargo e na missão - tudo isto,
histórico em unidade, significa ao mesmo tempo e de forma mais
originária: entrega responsável [Überat1twortung] ao ser.
Com o que agora acabámos de dizer, aponta- A partir dela e nela acontece todo o acontecer do Dasein.
mos para uma profundidade ainda rriais originária do Este fundamento essencial do ser humano, exposição ao
Dasein humano.Já várias vezes diferenciámos uns dos ente e entrega ao ser, designei eu e designarei eu tam-
outros os vários modos do ser: decurso conhecido do bém futuramente como o "cuidado" [Sotge].
inanimado, vida dos animais e plantas, consistência Esta interpretação da essência do Dasein humano
do número em sentido mais amplo, Dasein como ser como. cuidado foi desvirtuada em todas as direcções

[244] [245]
possíveis. O comodismo que dá estalos com os dedos designamo-lo como "insistência" [I11stiindigkeit]. O ser
do pequeno-burguês achou que o Dasein humano não humano tem a sua duração como histórico, não por-
devia ser dado exclusivamente de modo tão sombrio que ele, como outros entes, apenas esteja continua-
como cuidado, pois pertence à vida humana também mente presente, mas enquanto ele faz durar a sua
o amor. E, para provar isso, na Revista de Literatura exposição do seu ser e a funda na resolução. A insis-
Alemã, no órgão da Academia Prussiana das Ciências, tência é o modo como nós dominamos em cada caso
apontou-se prontamente ·a inevitável Goethe. Outros a nossa determinação. A insistência é um carácter do
acham que a interpretação do Dasein como cuidado cuidado, mas não corresponde totalmente a toda a sua
é expressão de uma "visão do mundo" penosa e timo- essência. Mas porque o homem se essenceia numa
rata, uma vez que algures se fala de angústia; eles reco- relação aberta de entrega e de afastamento com o ser,
mendam a atitude "heróica". Ainda outros ficaram, o carácter de si mesmo pertence ao ser homem. O ser
pelo contrário, incomodados com a acentuação exces- do Dasein como cuidado é o fundamento da possibi-
siva daquilo que é prático e está pronto para o com- lidade da mesmidade do ser humano.
bate e dão pela falta de uma valorização suficiente do Agora torna-se claro por que o carácter do si
homem observador e contemplativo. mesmo não consiste na retro-referencialidade do eu,
Mas todos estão, com as suas objecções contradi- do sujeito; pois é precisamente a fragmentação da
tórias, num caminho errado. Melhor, eles ainda não egoidade e da subjectividade, através da temporali-
estão a caminho de compreender o que já foi dito de dade, que outorga o Dasein como que fora de si
forma mais do que clara: que, com a caracterização do mesmo ao ser e o obriga, deste modo, a ser si mesmo.
ser humano como cuidado, não deve ser sobrevalori- Ora, por isso, certamente o Dasein tem que ser sem-
zado nem salientado um afecto casual do sujeito hu- pre, em cada caso, também o nosso, o meu e o teu.
mano em relação a outros, mas que cuidado, aqui, quer Quando nós dizemos: o Dasein é sempre o meu - isto
dizer o estar exposto ao ser, isto é, a explosão de toda já não pode significar, de acordo com a fragmentação
a subjectividade. O cuidado é a constituição fundamen- fundamental da egoidade e da subjectividade, que este
tal do homem como temporalidade, a partir da qual se Dasein seja recolhido pelo eu individual e por ele
torna possível toda a tonalidade afectiva em geral. Por- confiscado, mas "o Dasein é meu" em cada caso signi-
que o homem está exposto ao ente, arrebatado para o fica precisamente que o meu ser é outorgado ao ser-
ser e estendido como ente histórico - por isso, ele só -com-os-outros e ao ser-para-os-outros. Por conse-
pode ser enquanto estiver em exposição, estiver a favor guinte, eu sou si mesmo só porque eu sou histórico,
ou contra esta, e assim suportar o ente que ele é. na resolução para a história. Não é um acaso que a
Este suportar, aguentar e sustentar o ser ao qual mais alta e a mais dura singularização do ser si mesmo,
nós estamos entregues, o estar no ente como tal, nós quanto ao Dasein próprio, em cada caso, aconteça na

(246] (247]
relação com a morte, onde se manifesta a mais vasta e) O Estado como ser histórico do povo
exposição, o mais duro arrebatamento e a mais pro-
funda extensão do homem em relação ao ser e, assim, Porque o ser da existência histórica do homem
a mais originária expropriação de toda a egoidade. está fundado na temporalidade, isto é, no cuidado, o
Porque o Dasein é cuidado é que ele tem o carác- Estado é, pela sua essência, necessário o Estado não
ter essencial do si mesmo. E porque o Dasein tem este como uma abstracção e não derivado de um direito
carácter de essência é que· a pergunta pelo ser daquele imaginado e relativo a uma natureza humana em si
ente que nós chamamos homem não é uma questão intemporal, mas o Estado como lei da essência do ser
de o quê, mas uma questão de quem. Na medida em histórico, devido a cuja articulação o povo assegura
que é colocada ao homem a pergunta pelo quem, a duração histórica, isto é, a conservação da sua missão
através da pergunta pelo quem, concernindo o nosso e a luta pelo seu encargo. O Estado é o ser histórico
ser como si mesmo histórico, incluímo-nos na per- do povo.
gunta. O povo não é sentimentalismo mole e de me-
O cuidado é a essência fundamental do nosso ser. dusa, como o que hoje é palavrosamente oferecido,
Isto quer dizer: trata-se do nosso ser. E isto, de acordo nem o Estado é só a forma de organização actual e
com o anteriormente dito, significa: trata-se da nossa como que desactivada de uma sociedade. O Estado
determinação no triplo sentido. O cuidado é em si é apenas, na medida em que e enquanto acontecer a
cuidado da determinação. Cuidado quer dizer: a es- imposição da vontade de dominação que nasce da
sência do Dasein é de tal modo que ele, exposto no missão e do encargo e, inversamente, se torna trabalho
ente patente, permanece outorgado à inevitabilidade e obra. O homem, o povo, o tempo, a história, o ser,
do ser. o Estado - isto não são conceitos abstractos coloca-
Compromisso aberto com o inevitável significa dos como objectos para exercícios de definição, mas
liberdade. Cuidado é, como tal, cuidado com a liber- a relação da essência é sempre uma relação histórica.
dade do ser si mesmo histórico. A liberdade não é a Isto quer, contudo, dizer: decidir-se desde o sido para
indiferença do fazer e deixar de fazer, mas imposição o futuro.
da inevitabilidade do ser, assumir o ser histórico na Todo o transmitir da autêntica e inautêntica tra-
vontade sapiente, recunhagem da inevitabilidade do dição tem que ser colocado no cadinho da crítica da
ser no donúnio de uma ordem articulada de um povo. resolução histórica. Isto é válido sobretudo para o
Cuidado da liberdade do ser histórico é em si legiti- título, que deve descrever o desenvolvimento do nosso
mação do poder de Estado, como articulação da essên- ser histórico, do "socialismo". Ele não significa simples
cia de uma missão histórica. mudança da atitude económica, não significa uma
estéril uniformização e a glorificação dos ineficazes.

[248] [249]
Não significa a realização do bem comum, sem objec-
tivos, mas significa o cuidado pelos critérios e a arti-
culação da essência do nosso ser histórico e pretende,
por isso, a hierarquia de acordo com a missão e a obra,
pretende a honra intocável de todo e qualquer traba-
lho, pretende a incondicionalidade do serviço, como TERCEIRO CAPÍTULO
relação fundamental corri a inevitabilidade do ser.
Ser humano e linguagem
A partir da essência do ser histórico como futu-
ridade, como cuidado, nasce o perguntar pelo nosso
ser si mesmo. Pois este perguntar é precisamente A pergunta pela essência do homem e a sua res-
- como tem que se mostrar agora -, não a curiosidade posta modificaram-se completamente para nós. Aqui,
dos mirones, mas perguntar é, em si, cuidado com o o decisivo não é que este questionar e responder sejam
saber. Contudo, o saber é o trabalho do impor-se da simplesmente novos ou diferentes dos conhecidos:
verdade do Dasein como alcançada e compreendida. pois "velho" e "novo" são sempre só valores a partir
do âmbito do estado de ocupado [Gesclziiftigkeit] e do
aborrecer-se [Langweile] com o actual. Do nosso
perguntar e responder fica essencialmente que eles
mesmos têm que ser compreendidos a partir do ser
do nosso Dasein histórico - a partir do cuidado -,
que este perguntar e responder são apenas aquilo que
devem ser quando e enquanto eles têm o carácter do
nosso ser, o carácter da insistência, permanecem in-
sistentes, são um insistente, que compreende aque-
les que perguntam.
Contudo, a pergunta "quem é o homem?" teve
que ser feita, porque colocámos a pergunta pela essên-
cia da linguagem; pois toda a questão da essência é
uma questão prévia. Perguntámos previamente: "onde
e como está a linguagem em geral?" Só há linguagem
enquanto o homem é e, de acordo com isto, ela é ape-
nas no modo como o homem é. Contudo, de que
modo 'o homem é fundamenta-se no quem ele é.

[250] [251]
Procurámos clarificar a essência do Dasein hu- rico e esta notificação é o ser revelado do ser do ente
mano e compreendemos o ser do homem como tem- no mistério. Na notificação e através dela vigora o
poralidade e cuidado, como cuidado da determinação. mundo.
Agora restaria apenas ainda que nós colocássemos a Porém, esta notificação acontece no acontecer
linguagem como que sobre a constituição evidenciada originário da linguagem. Nela acontece o estar ex-
do Dasein humano. A linguagem - mas será que sabe- posto ao ente, acontece a entrega ao ser. Em virtude da
mos o que é a linguagem? Não sabemos. Nós sabemo- linguagem e apenas em virtude dela, vigora o mundo
-lo tão pouco que só agora, com o conceito do Dasein é o ente. A linguagem não ocorre num sujeito en-
humano, a linguagem se torna digna de ser posta em capsulado, para se tornar depois num meio de comu-
questão, questionável, num sentido bem fundado. Seria nicação entre sujeitos. A linguagem não é algo subjec-
uma simples artimanha, se nós agora começássemos, tivo nem objectivo. Ela não recai no donúnio desta
com o auxílio da perspectiva alcançada na constituição distinção sem fundamento. A linguagem, enquanto
da essência do Dasein e dos conceitos daí surgidos, a histórica, não é, em cada caso, nada de diferente do
definir a essência da linguagem. acontecer do estar exposto entregue ao ser, ao ente
no todo.
A amenidade do vale e a ameaça da montanha
e do mar enraivecido, a sublimidade das estrelas, o
§29. A linguagem como o vigorar do centro do enlevo das plantas e a timidez do animal, a fúria cal-
Daseitt histórico do povo que constrói e
culada das máquinas e a dureza do agir histórico,
conserva o mundo
a embriaguês contida da obra criada e a fria audácia
do perguntar sapiente, a firme sobriedade do trabalho
Dissemos várias vezes, na sequência do nosso e o recato do coração - tudo isso é linguagem, ganha
perguntar, que esse perguntar trataria sempre da lin- e perde o ser apenas no acontecer da linguagem.
guagem - mesmo quando não expressamente. Em A linguagem é o vigorar do centro da existência his-
que medida isso foi assim? Na medida em que o po- tórica do povo que constrói e conserva o mundo. Só
der do tempo como temporalidade constitui a nossa onde a temporalidade se temporaliza acontece a lin-
essência, nós estamos expostos ao ente patente e isto guagem; só onde acontece a linguagem o tempo se
quer dizer ao mesmo tempo: o ser do ente é-nos temporaliza.
outorgado. O ser no todo, tal como vigora através
e em torno de nós, a totalidade em vigor deste todo,
é o 1111111do. Mundo não é uma ideia da razão teórica,
mas mundo notifica-se na notificação do ser histó-

[252] [253]
§30. A lógica como encargo ainda incom- A lógica não é para nós nada que uma só pessoa
preendido do Daseitt histórico do homem: fabrique durante a noite e possa lançar ao mercado
o cuidado com o vigorar do mundo no como manual de ensino. A lógica não é nem nunca
acontecimento da linguagem será um fim em si mesma. O seu perguntar acontece
como o cuidado pelo saber do ser do ente, ser esse que
chega ao poder, enquanto o vigorar do mundo acon-
Mas porque perguntamos pela essência da lin- tece na linguagem.
guagem? Porque o nosso Dasein é cuidado - o cuidado
da determinação, do seu despertar, aceitação e con-
servação; porque o cuidado como cuidado da liber- §31. A poesia como linguagem originária
dade é o cuidado do saber e poder saber da essência de
todo o ente; porque para nós o saber nem deve valer Contudo, um tal perguntar pela essência da lin-
como o conhecimento fugaz de meros factos, nem guagem não pode apreender esta na sua in-essência:
como o falatório ~rrante sobre todas as coisas; por- não pode deitar mão a esta aparência da essência e
que o saber só pode ser fundado e cunhado, transmi- interpretar tudo mal. A essência da linguagem não se
tido e despertado através da palavra responsável, isto é, revela aí onde ela é abusada e trivializada, deturpada,
através da autenticidade construída da linguagem cria- deformada e rebaixada a um meio de comunicação
dora no trabalho histórico. e a uma mera expressão de uma designada interiori-
E porque designamos nós este perguntar pela es- dade. A essência da linguagem está aí, onde ela acon-
sência da linguagem de "lógica"? Porque a lógica trata tece como poder criador de mundo, isto é, onde ela
do ÀÓyoç e ÀÓyoç significa discurso, isto é, lingua- começa a modelar e estruturar o ser do ente. A lin-
gem. Porque precisamente através da designada lógica guagem originária é a linguagem da poesia.
a essência da linguagem foi precipitadamente trivia- Contudo, o poeta não é aquele que faz versos
lizada e esvaziada e mal-interpretada, por isso a lógica sobre o respectivo agora. A poesia não é um calmante
é um encargo ainda incompreendido do Dasein histó- para rapariguinhas delirantes, um estímulo para os
rico do homem. Porque esta lógica que vigorou até estetas que pensam que a arte é para desfrutar e lam-
hoje como teoria dos actos do pensar pretendeu valer ber. A verdadeira poesia é daquele ser que já há muito
como a mais alta e modelar regra de toda a deter- nos foi profetizado e que nós ainda não alcançámos.
minação do ser, por essa razão esta pretensão deve Por isso, a linguagem do poeta não é nunca actual, mas
ser compreendida originariamente e renovada sem sempre sido e futuro. O poeta nunca é contempo-
dó nem piedade a partir dos conceitos originários da râneo. Os poetas contemporâneos deixam-se, na ver-
essência da linguagem. dade, classificar como tal, mas permanecem, apesar

[254] [255]
disso, um contra-senso. A poesia, e com ela a lingua-
gem em sentido próprio, acontecem só lá onde o
vigorar do ser é trazido à intangibilidade superior da
palavra originária.
Para compreender isto, os alemães que hoje tanto
falam de ordem devem aprender o que quer dizer pre- POSFÁCIO DO EDITOR ALEMÃO
servar aquilo que já possuem.

A Lógica não é um "adestramento para um me-


lhor ou pior exercício do pensar", mas o "percorrer
questionante dos abismos do ser", não é uma "colec-
ção ressequida de leis intemporais do pensar", mas o
"lugar da questionabilidade do homem". A essa pre-
tensão submetia Heidegger estas lições A Lógica como a
Questão da Essência da Linguagem, dadas duas vezes por
semana, no semestre de Verão de 1934.
As lições, agora apresentadas como tomo 38 da
Edição Integral, observam uma estrutura coesa. A in-
trodução começa por fazer uma apresentação da tra-
dicional Lógica escolar e desemboca na exposição da
tarefa de um "abalar" desta Lógica. O lastro da Lógica
ocidental, a sua dependência da metafisica da presença,
são clarificados e postos em questão no decurso total
das lições com vista a uma determinação futura, não
apenas da disciplina académica, mas do ser homem
vindouro em geral.
Este empenho realiza-se na primeira parte dedicada
às questões essenciais, isto é, prévias, da linguagem, do
homem e da história, para avançar até ao tempo ori-
ginário como solo do que é colocado em questão.
A segunda parte retoma estas questões em direcção contrária
e conclui consequentemente com o domínio a partir

[256] [257]
do qual partiu a primeira parte e que, depois do exposto
T sidade pouco tempo depois da demissão do reitorado.
nas lições, já não pode ser caracterizado como domí- Muito daquilo que, demasiado apressadamente, foi
nio separado: a linguagem. A "lógica" - e Heidegger
insiste neste termo - permanece assim a "tarefa ainda
I escrito sobre o compromisso de Heidegger com o
nacional-socialismo terá de ser corrigido e sujeito a
incompreendida" do Dasein humano histórico: o cui- uma nova interpretação na base destas lições.
dado pelo vigorar do mundo no acontecer da lin- Os acontecimentos à volta da sua demissão do
guagem. cargo de Reitor poderão ter levado Heidegger a mu-
Estas lições são, em múltiplos aspectos, um do- dar abruptamente o título das lições. No registo das
cumento extraordinariamente interessante. Elas apre- lições do semestre de Verão de 1934, as lições estão
sentam, de um modo compreensível, uma proble- anunciadas sob o título "O Estado e a Ciência" (terças
mática ainda hoje actual - quando, por um lado, as e quintas-feiras 17-18 h). De acordo com relatos
cátedras de Lógica são ocupadas principalmente por de alguns ouvintes, a mudança foi dada a conhecer de
matemáticos que aqui tratam naturalmente apenas os modo categórico e demonstrativo no início das lições,
seus problemas, isto é, precisamente problemas ma- com as palavras "Eu leccionarei Lógica" para surpresa
temáticos, por conseguinte científicos, e quando, por e irritação de alguns sequazes do nacional-socialismo
outro lado, para os filósofos da vida académica não que se encontravam na sua conferência.
resta muito mais do que um curso de introdução para O manuscrito de Heidegger destas lições tem de
os estudos do tronco comum. Para meditar sobre esta ser dado actualmente como perdido. Muito prova-
ideia bastante discutível da lógica, temos as lições de velmente ele foi emprestado por Heidegger e depois
Heidegger: deste modo, os lógicos sóbrios confrontar- nunca mais lhe foi devolvido. Apesar das múltiplas
-se-iam com o pensamento não menos sóbrio de buscas do executor testamentário, Dr. Hermann Hei-
Heidegger. Pois, apesar de Heidegger não ter estado degger, não houve até agora nenhuma reacção do seu
interessado na disciplina académica de Lógica, para ele actual proprietário. O próprio Martin Heidegger
a lógica não era "de modo algum um falatório indis- menciona, numa carta de Abril de 1954, que ele que-
ciplinado sobre a concepção do mundo, mas sim tra- ria "em breve" "dedicar-se" com o seu irmão às lições
balho sóbrio ligado a um autêntico impulso e a uma do semestre de Verão de 1934. De acordo com isto,
necessidade essencial". até esse momento o manuscrito ainda estava na posse
Estas lições são também interessantes como um dele. Depois disso, porém, perdeu-se-lhe o rasto.
marco importante da evolução de Heidegger da onto- Para a edição tive à minha disposição 5 do-
logia fundamental para a fase da história do ser. Além cumentos:
disso, estas lições são importantes para uma compreen- 1. Uns apontamentos do Dr. Wilhelm Hall-
são suficiente da situação de Heidegger na Univer- wachs escritos· em letra gótica fixados em ambos os

[258] [259]
lados dos seus impressos contabilísticos ("médico do mente copiados". (No estado actual das coisas, a "des-
distrito Dr. Hallwachs"). São o documento mais ex- conhecida" não pode ter sido senão Luise Grosse.)
tenso.As duas últimas aulas de Heidegger (na presente Abstraindo que, com esta edição não autorizada,
edição, a partir do parágrafo 28 a) são, de acordo com Victor Farias violou os direitos de autor, não devemos
os dados de Hallwachs, uma cópia exacta do manus- perder tempo a falar sobre esta publicação - ou talvez,
crito das aulas de Heidegger. apesar de tudo, dizer uma palavra: quando se lê os
2. Uns apontamentos - igualmente redigidos trechos que Victor Farias colocou como epígrafe da
em letra gótica - de Siegfried Brõse. Estes aponta- sua publicação, no contexto das lições, tal como se
mentos já não seguem exactamente a argumentação apresentam neste volume 38, obtemos um exemplo
heideggeriana, mas são uma síntese e uma revisão das quase paradigmático de como não deve citar-se. Aqui
exposições de Heidegger. Foram sobretudo consul- aprende-se muito sobre a intenção claramente ten-
tados - e foram então um grande auxílio - quando os denciosa de Victor Farias, mas absolutamente nada
apontamentos de Hallwachs continham lacunas ou sobre o curso do pensamento de Heidegger. Por con-
eram ininteligíveis. seguinte, é válido também aqui: Nullus est liber tam
3. Um texto dactilografado por Helmut lbach malus, ut 11011 aliqua parte prosit.
em Agosto e Setembro de 1934, que é resultante de 5. Depois de terminada a impressão tipográfica,
uma revisão dos apontamentos de Luise Grosse. Este eu obtive a cópia de uns apontamentos dactilogra-
fados que o Arquivo da Literatura Alemã (Marbach,
texto tem origem no espólio de Alois Schuh e é pro-
am. Neckar) tinha adquirido pouco antes, do espólio
priedade da biblioteca da Escola Superior de Filosofia
de Luise Krohn (nome de solteira Grosse). Trata-se de
e Teologia de St. Georgen em Frankfurt am. Main.
uma cópia dactilografada dos apontamentos das lições
A cópia que tive presente é uma oferta de Dr. Chris-
tirados por Luise Grosse (depois de casada, Krohn)
toph von Wolzogen, a quem é devido o maior agra-
que estiveram na base da revisão de Helmut Ibach (ver
decimento em nome de todos os interessados no pen-
acima). Uma comparação com os apontamentos antes
samento heideggeriano. Este texto dactilografado é,
referidos revela que esta cópia dactilografada não con-
relativamente aos apontamentos de Brõse, ainda mais
tém nenhum excedente ou variantes aproveitáveis que
resumido. Foi, contudo, ocasionalmente consultado
tivessem de ser introduzidos na edição aqui apresen-
para uma melhor compreensão dos apontamentos de
tada das lições.
Hallwachs. Também aqui as últimas aulas foram repro-
duzidas a partir do manuscrito heideggeriano, apenas
O meu vivo agradecimento pelo trabalho de
com pequenos desvios em relação a Hallwachs.
4. O livro editado por Victor Farias "Lógica. Lec-
compaginação e revisão desta edição é dirigido ao
ciones de M. Heidegger (semestre verano 1934) en e/legado Dr. Hermann Heidegger, ao Prof. Dr. Friedrich-
de Helene Jilíéiss" - como podemos ler aí, uns "apon- -Wilhelm von Hermann e ao Dr. Hartmut Tie~en.
tamentos de uma pessoa desconhecida, não integral- A este último devo também inúmeras indicações para

[260] [261]
a estruturação dos parágrafos. Estou grato, pela trans-
crição do manuscrito de Hallwachs para suporte elec-
trónico, a Herrn Ralf Jochen Ehresmann, pelas pre-
ciosas sugestões relativas ao arranjo tipográfico, a Frau
Ulrike Ordon. Pela revisão cuidadosa e perspicaz da
edição impressa, agradeç? finalmente a Frau Susanne
Weiper M. A. e Herrn Heini-ich Gbur.

Bona, Julho de 1998

Günter Seubold

Esta tradução portuguesa


da LÓGICA -A PERGUNTA PELA ESSÊNCIA DA LINGUAGEM
de Martin Heidegger foi impressa em offiet e encadernada
nas oficinas da G.C.- Gráfica de Coimbra, Lda.
para a Fundação Calouste Gulbenkian
A tiragem é de 1000 exemplares encadernados.
Mês de Fevereiro de 2008
Depósito Legal n. 0 269429/08
ISBN 978-972-31-1232-0

[262]

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