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FEBASP – CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS

ARTES DE SÃO PAULO

FELIPPE MORAES

A CADEIRA BAMBA: APONTAMENTOS PARA UM


DESIGN LIBERTADOR

Trabalho de Iniciação Científica

Apresentado à FEBASP – Centro Universitário

Belas Artes de São Paulo

SÃO PAULO
2009
FELIPPE MORAES

A CADEIRA BAMBA: APONTAMENTOS PARA UM


DESIGN LIBERTADOR

Trabalho de Iniciação Científica

Apresentado à FEBASP – Centro Universitário

Belas Artes de São Paulo

Curso: Design de Produto

ORIENTADOR:
Profª MSc Débora Gigli Buonano

São Paulo

2009
MORAES, Felippe

A Cadeira Bamba: apontamentos para um design libertador / Felippe Moraes – São


Paulo, 2009

62 f.: il.

Trabalho de Iniciação Científica orientado pela Profª MSc Débora Gigli Buonano

1. Percepção 2. Materialidade Pós-Moderna 3.Crítica ao Funcionalismo


Aos que decidiram ver.
Agradecimentos

Agradeço à orientadora deste trabalho Profª Débora Gigli Buonano, à


FEBASP– Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Agradeço àquilo que
não compreendo por inteiro, pelas oportunidades que me foram dadas de
maneiras que igualmente fogem à minha compreensão. E agradeço também à
minha família de relações co-sanguíneas ou não: todos cá estão presentes de
algum forma. Agradeço a todos que me ajudaram de maneira prática, enviando
textos, ensinando, conversando, mas que, para evitar injustiças, optei por lhes
agradecer pessoalmente.
ÍNDICE

INTRODUÇÃO ________________________________________________ 10

CAPÍTULO 1 _________________________________________________ 13

1.1 A tomada de consciência de Gregor Samsa ______________________ 13

1.2 A Ampliação das Questões ___________________________________ 16

1.3 O Objeto do Mercado ________________________________________ 20

1.4 O Criar e o Produzir _________________________________________ 22

CAPÍTULO 2 _________________________________________________ 24

2.1 O Equívoco de Berry e as Assimilações de Wewerka _______________ 24

2.2 As Ruínas Modernas ________________________________________ 33

CAPÍTULO 3 _________________________________________________ 42

3.1 Lygia Clark ________________________________________________ 42

3.2 Laura Lima ________________________________________________ 46

3.3 Hélio Oiticica ______________________________________________ 50

3.4 Marina Abramovic __________________________________________ 55

CONSIDERAÇÕES FINAIS - A CADEIRA BAMBA ____________________ 57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ________________________________ 61


Lista de Imagens

FIG. 1 GABRIEL SIERRA COM SUA MOBÍLIA PARA A 28ª BIENAL DE SÃO PAULO FOTO:
AMÍLCAR PACKER FONTE:
<HTTP://ENTRETENIMENTO.UOL.COM.BR/ARTE/BIENAL/2008/ARTISTAS/GABRIEL-
SIERRA/> ACESSADO EM 07/07/2009 __________________________________________ 17

FIG. 2 MESA M1 DE STEFAN WEWERKA PRODUZIDA PELA ALEMÃ TECTA


FONTE: VOLKER, F. (1989) P.164 ______________________________________________ 26

FIG. 3 CADEIRA DE BORRACHA DE WEWERKA


FONTE: VOLKER, F. (1989) P.154 ______________________________________________ 27

FIG. 4 CADEIRA CORTADA DE 1961 DE STEFAN WEWERKA


FONTE: VOLKER, F. (1989) P.153 ______________________________________________ 27

FIG. 5 CADEIRA VERTRETERSTUHL


FONTE: VOLKER, F. (1989) P.154 ______________________________________________ 28

FIG. 6 SALA DE AULA CONSTRUÍDA NA GALERIE MÜLLER EM COLÔNIA EM 1971 POR


STEFAN WEWERKA
FONTE: VOLKER, F. (1989) P.152 ______________________________________________ 29

FIG. 7 VISTA AÉREA DE PRUITT-IGOE


FONTE:<WWW.COMMONS.WIKIMEDIA.COM> ACESSADO EM 07/07/2009 ____________ 38

FIG. 8 DEMOLIÇÃO DE PRUITT-IGOE EM 1972


FONTE:<WWW.RJDENT.WORDPRESS.COM> ACESSADO EM 07/07/2009 ____________ 39

FIG. 9 UM DOS "OBJETOS RELACIONAIS" DE LYGIA CLARK


fonte: <http://www.cpep-fisio.com.br/noticias/fotos/lygpinaco.jpg> acessado em
07/07/2009_________________________________________________________________42

FIG. 10 UM DOS "NOVOS COSTUMES" DE LAURA LIMA FOTO: ANA TORRES


FONTE: <WWW.INHOTIM.ORG.BR> ACESSADO EM 07/07/2009_____________________ 48

FIG. 11 MENINO VESTINDO UM DOS "PARANGOLÉS" DE HÉLIO OITICA


FONTE: <WWW.SOMDOROQUE.BLOGSPOT.COM> ACESSADO EM
07/07/2009_________________________________________________________________52
Resumo

“A Cadeira Bamba: apontamentos para um design libertador” parte da


desconstrução dos valores modernos em busca de uma nova abordagem
sobre a materialidade que nos cerca. Em um mundo progressivamente
caótico, os objetos têm se tornado catalisadores de alienação. Analisa-se
como o Funcionalismo modernista contribui para tal fenômeno. Discute-se
o cenário de derrocada que se estabeleceu para este e como tal está
aquém das necessidades diversas da pós-modernidade. Sugere-se então
um novo patamar de reflexão. A função e os significados da materialidade
são subvertidos em favor da percepção. Tal atributo é colocado como
gerador de liberdade por meio das escolhas que são apresentadas aos
cidadãos. Por meio de referências da literatura, filosofia, arquitetura,
design e artes visuais são apresentadas formas de compreender e
subverter a realidade perniciosa que nos cerca perseguindo uma
existência menos agressiva e impessoal.
Abstract

“The Slack Chair: appointments for a redeeming design” starts from the
deconstruction of the modern values in the search for a new approach
over the materiality that surrounds us. In a progressively chaotic world, the
objects have become catalyzers of the alienation. The modernist
Functionalism is analyzed in the matter of how he managed to contribute
to this phenomenon. The established downfall scenario for this is
discussed and how it is below the diverse post-modern necessities. It is
suggested a new level of reflection. Function and the meanings of the
materiality are subverted in order to promote perception. That attribute is
taken as a generator of freedom by the choices that are presented to the
citizens. By references from literature, philosophy, architecture, design
and visual arts, ways of comprehending and subverting the pernicious
reality in which we live are presented in the pursuit for a less aggressive
and impersonal existence.
Introdução

“O designer é um educador do gosto”

Esta frase me foi dita pela própria orientadora deste trabalho no início
da minha graduação, muito antes de eu sequer cogitar a existência deste texto,
e vem permeando o meu pensamento desde então e talvez tenha sido uma das
principais motivações para escrever esta obra.

Inicio partindo do princípio de que: como “educadores do gosto”, com


tamanha responsabilidade que é cabida aos designers (e muitas vezes
ignorada), esta deve ser uma classe altamente preparada e, acima de tudo
responsável.

Verificando uma pobreza e inconsistência endêmica na reflexão abstrata


sobre design, essa dissertação surge absoluta e assumidamente ambiciosa em
seus objetivos. Tendo como justificativa a reflexão por si só, a obra inicia-se
nesta introdução, que por sua vez é muito particular e se coloca como uma
declaração de princípios, como sendo um convite à reavaliação de antigos
dogmas catedráticos. Os princípios deste texto se estabelecem no sentido de a
qualquer custo promover um novo alvorecer para o design e lançar luz sobre
questões obscuras e esquecidas.

Parto da premissa de que muitas vezes para se acender uma luz, é


preciso apagar outras. Assim sendo, esta obra em momento algum terá a
pretensão de responder a quaisquer das questões que por ventura tiverem
permeado o leitor que se dignificou a abrir essas paginas, mas sim de criar
novas questões. Então nesse instante talvez os objetivos comecem a ser
alcançados: no momento em que as duvidas forem maiores que a
acomodação, a busca será inevitável e, por sua vez, ainda mais digna pela
própria iniciativa do leitor, que encontrará suas próprias respostas pelos meios
que escolher.

Esta em absoluto foge de padrões acadêmicos. Parte de um ponto


abstrato e não tem a pretensão de chegar a algo mais concreto. Estes
capítulos não pretendem, de forma alguma, esgotar os temas, mas sim ampliá-

10
los, assim como a inquietação pela busca de respostas, que é tão rara na
mente da maioria dos designers contemporâneos. Em verdade não trataremos
aqui apenas de designers, como pode parecer à primeira vista, mas de todos
aqueles que manipulam uma materialidade em direção a uma finalidade
específica e a todos aqueles que são influenciados por esses desígnios. No
entanto essas questões serão elucidadas mais a frente no desenvolver do texto
tais quais a própria utilização do termo “designer”.

Não quero que leia mais um livro. Quero que leia esta obra como sendo
um convite a um despertar, uma constatação de que há outras formas de se
fazer e, acima de tudo, pensar design, além dos métodos bauhausianos e
tantos outros que a academia está acostumada a pregar. E que existem formas
diferentes e mais conscientes de lidar com o mundo material que nos rodeia.
Os métodos mais recorrentes surgem de uma racionalidade e terminam em
alienação. As proposições feitas aqui visam inserir a razão e a consciência
sobre todo o processo, muitas vezes inclusive subvertendo-a.

Antes de haver qualquer equívoco, gostaria de deixar claro que não


haverá, em qualquer momento (mesmo que porventura alguém tente fazer esta
leitura) um desmerecimento de qualquer um desses métodos. Muitos
enxergarão esta obra como um Index, ou como uma transcrição de “tudo aquilo
que não é design”. Pelo contrário. Talvez fosse conveniente encarar esta obra
como “escolástica” que, assim como Tom Wolfe1 fala em seu livro “Da Bauhaus
ao nosso Caos”, trata-se de uma dissidente de valores antigos que não deixa
obrigatoriamente de praticá-los nem os execra, no entanto os questiona e os
eleva a outro nível de reflexão e execução.

Convido-o a conhecer e pensar um design que pode ser arte, uma arte
que pode ser design ou, porque não, algo que ultrapasse tudo isso e sequer
tenha nome? Partiremos de autores que tratam destes temas, refletiremos a
cerca de seus limites, passaremos por referências que parecerão

1
Tom Wolfe (1931), Jornalista e escritor norte-americano, autor de “A Fogueira das Vaidades”, “Da
Bauhaus ao Nosso Caos” entre outros. Conhecido pelo seu estilo irônico, é considerado um dos
fundadores do New Journalism, movimento jornalístico dos anos 1960 e 70.

11
absolutamente discrepantes de toda a temática da obra, mas que em muito
serão convenientes para promover as reflexões e provocar as tão cobiçadas
inquietações.

Antes de começar a ler, livre-se de quaisquer preconceitos ou idéias pré-


concebidas. Não aceite nada sem questionar. Ou melhor: questione sem
aceitar. Duvide de tudo que já estiver escrito e escreva o seu própria forma de
viver a materialidade.

“Todo ponto de vista depende de certas suposições referentes


à natureza da realidade. Se isso é aceito, as suposições funcionam
como hipótese; se isso é esquecido, funcionam como crenças. Os
conjuntos de hipóteses formam os paradigmas. (...) Um paradigma
que se torna normativo se converte em marcos de referência e filtros
conceituais que condicionam a maneira “natural e sensata” de ver as
coisas.”2

2
MACK, John E. apud PINCHERLE, Livio Túlio in WEISS, Brian L. “Muitas Vidas, Muitos Mestres” p.11

12
Capítulo 1

1.1 A tomada de consciência de Gregor Samsa

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa


encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Assim
inicia-se uma das mais importantes obras literárias do século XX: “A
Metamorfose” de Franz Kafka.

Umberto Eco em seu livro “Obra Aberta” diz que: “Facilmente podemos
pensar na obra de Kafka como uma obra “aberta” por excelência: processo,
castelo, espera, condenação, doença, metamorfose, tortura, não são situações
a serem entendidas em seu significado literal imediato.” .Desta maneira inicio
esta obra, cujo objetivo-mor é a reflexão, partindo da metáfora de Kafka que
tanto trata de nossa condição de humanos, sobre a qual procurarei falar a partir
da materialidade.

N‟ “A Metamorfose”, dois meses após a transformação de Gregor, uma


passagem é convenientemente ilustrativa à cerca dos temas aqui tratados.
Desde a manhã em que acordou metamorfoseado neste “inseto monstruoso”,
Samsa ficara trancado em seu quarto, sendo evitado pela Mãe, Pai e Irmã.
Entre momentos em que se alimentava do lixo deixado no quarto por eles,
sonos prolongados e divagações a respeito de seu estado, aprendeu a rastejar
pelas paredes e teto, tornando-se uma distração para sua mente perturbada,
além de uma conformação e adequação à sua situação. A Irmã, Gretl,
percebendo o novo passatempo de Gregor, decide que o melhor a fazer seria
esvaziar o quarto retirando os móveis para que ele pudesse rastejar livremente.
Para tal pede a ajuda da Mãe. Eis que, nesse instante da narrativa se dá uma
das mais importantes tomadas de consciência de Gregor para as finalidades
desta obra:

“ - E não é como se estivéssemos mostrando – terminou


dizendo a mãe em voz baixa (...) – (...) com o afastamento dos
móveis, que abandonamos qualquer tipo de esperança numa
melhora, largando-o à própria sorte? Acredito que o melhor seria
procurarmos manter o quarto exatamente no estado em que se
encontrava antes, a fim de que Gregor, quando voltar a nós,
13
encontre tudo do jeito como estava e possa esquecer de modo mais
fácil de tudo o que aconteceu nesse meio tempo.
Ao ouvir as palavras da mãe, Gregor reconheceu que a falta
de qualquer comunicação humana imediata, ligada à vida uniforme
em meio à família, no decorrer desses dois meses, deveria ter
confundido seu entendimento, pois de outra forma ele não conseguia
entender como poderia ter coragem de desejar a sério que seu
quarto fosse esvaziado. Tinha de fato vontade de mandar que seu
quarto, aquele quarto morno, confortavelmente instalado com
móveis herdados, fosse transformado em uma toca, na qual ele
poderia se arrastar com liberdade em todas as direções, sem ser
perturbado, mas pagando o preço de esquecer de modo simultâneo,
rápido e completo seu passado humano? De fato agora já estava
próximo de esquecer, e apenas a voz de sua mãe, que ele não ouvia
há tempo, dera-lhe uma sacudida interna. Nada deveria ser
afastado; tudo tinha de ficar; as boas influências dos móveis sobre
sua situação ele não podia dispensar; e se os móveis o
prejudicassem no ato de se arrastar por aí sem sentido, isso não era
um prejuízo, mas sim uma grande vantagem”

Provavelmente Kafka, com a metáfora personificada por Gregor, não


tinha pretensões de falar sobre design. No entanto, como ensaísta da condição
humana, lança mão da questão da ausência de praticidade dos móveis do
quarto da personagem nessa situação para tratar das questões humanas que
lhe dizem respeito. E, em verdade, de que servem discussões à cerca do
design e da materialidade se não têm como finalidade, mesmo que distante, a
humanidade que o concebe, produz e utiliza?

Kafka, ao falar das questões humanas, levanta por conseguinte um


questionamento sobre o que nos torna humanos e qual o limite desta
humanidade. Algumas dessas indagações são muito convenientes para as
finalidades dessa obra. Assim questionamos: Gregor, ao ser transformado num
inseto perde essa condição, mesmo mantendo sua consciência? Não seria a
consciência a portadora da humanidade em si? Todas essas questões fogem
às já ambiciosas pretensões deste texto e entram no campo da filosofia que,
apesar de serem disciplinas distintas, tratam desta condição humana e como
tal devem estar associadas para um crescimento mútuo e uma compreensão
maior do homem.

14
O senso comum nos diz que o que separa o homem dos demais animais
é a razão, a consciência. Então Gregor, mesmo que metamorfoseado num
inseto, mantém-se humano pois sua consciência, apesar de em alguns
momentos estar por um fio, como no transcrito há pouco, mantém-se intocada
e em plenas condições. Talvez inclusive em melhores condições pois, à
margem da sociedade, torna-se consciente de muito do que nela acontece e
principalmente na micro-estrutura de sua casa. E esta é a principal contribuição
que Kafka tem a fornecer às humildes reflexões deste livro que, por sua vez,
estão longe de pretenderem ser tão grandiosas e universais quanto as do
escritor.

O que Kafka queria nos dizer na passagem transcrita? Apesar de, como
diz Eco, ser uma “obra aberta” por excelência, o que lhe permite muitas
leituras, e é aí que jaz uma das maiores genialidades deste, pois trata de
infinitas humanidades em um só texto, para esta obra a leitura se dá sobre o
questionamento do prático e do funcional. O momento em que diz : “se os
móveis o prejudicassem no ato de se arrastar por aí sem sentido, isso não era
um prejuízo, mas sim uma grande vantagem” é , trocando em miúdos a
conclusão deste texto. Se o digníssimo leitor inclusive sentir que já foi tocado
pela obra e que adquiriu tudo que esta teria a lhe oferecer, convido-o a fechar
essas páginas e refletir sobre o tema por si só pois, como já disse na
introdução, a única, e já suficientemente grandiosa, ambição deste texto é
instigar uma nova forma de pensar o design.

Neste momento da narrativa em que Gregor percebe que, abrindo mão


da praticidade e da funcionalidade dos móveis, teria uma melhor consciência
de sua condição de homem, ele a teria pois a todo momento seria lembrado
dela pelos móveis com os quais sempre trombaria. Uma espécie de “saída de
emergência” da alienação. Em um hipotético momento de quase completo
desligamento da consciência humana, em uma eventualidade, acabaria por
esbarrar em um dos móveis. Então naturalmente, recorrendo ao pouco que lhe
restaria de consciência, seria trazido de volta à idéia de que estava em seu
quarto, de que aqueles eram seus móveis e de que um dia, em um passado
distante não possuíra aquela forma monstruosa.
15
Ao abrir mão da funcionalidade, Gregor pensa a longo prazo:
obviamente lhe seria muito conveniente, inclusive para sua fisiologia de inseto,
rastejar-se livremente. No entanto ele se desprende do pretenso conforto e
aceita o desconforto e a ausência de praticidade em prol da consciência que o
tornava humano.

Desta forma Gregor faz uma opção pela vida e pela consciência em
detrimento do conforto. Esta parece uma escolha muito óbvia de ser feita
tendo-se acompanhado o desenvolver do raciocínio. No entanto a
progressivamente exigente e veloz vida contemporânea nos faz optar por
aquilo que nos parece o alívio de necessidade imediatistas por meio de
naturezas fugazes em detrimento da consciência. E a questão é exatamente
essa: tirar o design de uma reflexão industrial que pretensiosamente promete
dar cabo da resolução de todos os problemas imediatos e torná-lo um portador
de poderes transformadores sobre a sociedade. O design passa a ser visto
como um grandioso criador de consciência e liberdade para essa horda de
“Insetos monstruosos” na qual vamos lentamente nos transformando por meio
de um vertiginoso processo de perda de referências sobre nós mesmos.

1.2 A Ampliação das Questões

Segundo Featherstone, a pós-modernidade é um tempo de presentes


perpétuos e, assim sendo, as maiores expectativas humanas são as de
resolução de pequenos problemas a curto prazo, esquecendo-se dos fatores
posteriores a ela encadeados. Quando estes efeitos colaterais por ventura os
atingirem, algum tempo depois, crêem plenamente que darão conta de resolvê-
los assim como antes: imediatamente. Vivemos em um tempo de ações e
reações instantâneas e por isso acabamos condicionados a acreditar que as
reações imediatas são as únicas a acompanharem as ações. Para Gabriel
Sierra “a modernidade trata da padronização do mundo material, das emoções
e, por último, da forma de pensar das pessoas.”3 Esta citação já seria de

3
Guia 28ª Bienal de São Paulo p.26
16
grande valia para a compreensão deste tema por si só, mas torna-se ainda
mais rica por ter sido dita por Gabriel Sierra, artista colombiano, que
desenvolveu o espaço expositivo do terceiro andar da 28ª Bienal de São Paulo,
que ficou conhecida como “a Bienal do vazio”. Seu curioso projeto que revelava
estruturas, materiais, muitas vezes madeira barata, subvertia, com suas formas
extravagantes, a arquitetura do ambiente assim como o próprio conceito de
projeto expográfico e sua natureza de design, tornando-se freqüentemente
híbrido com as obras para as quais servia de suporte ou circundava.

Fig. 1 Gabriel Sierra com sua mobília para a 28ª Bienal de São Paulo foto: Amílcar Packer

O colombiano tem uma relação muito íntima com essas questões da


arquitetura, do design e suas respectivas articulações individualmente ou entre
si e é muito visível o levantamento dessas relações na poética de sua obra. A
seguir ele trata da arquitetura e do design de uma forma que pode colocar
essas duas potências ainda mais próximas e comungando das mesmas
ambigüidades e problematizações:

“A arquitetura, em geral, é um território limitado, não só no que se


refere a seu aspecto físico, como também ao funcional. É projetada
a partir da lógica institucional e produtiva, a partir do cumprimento de
normas, o que faz com que os indivíduos percam a subjetividade e a
capacidade de transformar o mundo com base em sua própria
experiência.”
Aqui Sierra levanta uma questão latente em ambas as áreas, a de que os
projetos são pensados com uma pretensa funcionalidade mas que, abrindo
mão da expressividade e relevância da experiência individual do usuário,
17
perdem seu cerne: servir ao ser humano. Aos olhos modernos, e por isso a
manutenção dos valores desse tempo na arquitetura e design contemporâneos
em geral, o homem de hoje está plenamente servido daquilo que necessita
para viver dignamente. No entanto nossas necessidades como habitantes de
um mundo mediado pela televisão (FEATHERSTONE), ultrapassam
apontamentos simples como a mera iluminação natural através de fachadas de
vidro e edifícios sobre pilotis concebidas como dogmas por um dos grandes
expoentes do modernismo funcionalista, o arquiteto francês Le Corbusier. A
manutenção de ambições tão pequenas e práticas são incongruentes na
realidade contemporânea. Obviamente ainda há muitas questões como essas,
levantadas por Le Corbusier, que são repletas de profundidade discursiva
quanto a suas relações com o homem e que ainda não foram esgotadas.
Entretanto, as questões não devem ser esgotadas para que outras sejam
levantadas e, assim sendo, o tão pregado método moderno tanto na formação
dos designers como na dos arquitetos devem ser colocados a prova e
ampliados em direção a outras problemáticas e discussões.

Deve-se compreender acima de tudo que estas duas áreas devem se


articular em função das necessidades dos homens, se não para eles, para
quem seria? As construções com caráter religioso, que seriam erigidas em
função de um deus, ou quaisquer outras figuras transcendentais, são ótimos
exemplos desse pensamento em função de necessidades alheias às práticas.
Estas construções são projetadas de maneira a levar a cabo uma série de
atributos humanos tais quais fruição estética, experiência de aproximação do
divino, opressão, poder etc.

Após todas as principais conquistas tecnológicas do homem virem sendo


alcançadas desde o século XVI e tendo encontrado seu auge na atualidade
(SEVCENKO), nossas necessidades passam a ser outras: subjetivas, indo
além daquelas expressas por Le Corbusier, Mies Van der Rohe e alguns outros
modernistas. Talvez inclusive nossas necessidades aproximem-se mais das
expressas, em termos diferentes, mas ainda assim similares, na arquitetura
religiosa, com a ambição de provocar esses fenômenos que ultrapassam a
compreensão meramente material e imediatista do universo que habitamos.
18
Nada mais coerente e, ao mesmo tempo curioso, que tais questões
sejam levantadas a partir dos pensamentos de dois artistas (Gabriel Sierra e
Franz Kafka), e que estes as abordem com tanta propriedade, pois esta é uma
de suas principais missões como tais: a de tornar evidente a subjetividade
latente no mundo, invisível nos termos da objetividade.

De maneira semelhante à de FEATHERSTONE, SIERRA defende que:


“A modernidade trata da padronização do mundo material, das emoções e, por
último, da forma de pensar das pessoas”4 e conclui que “a arquitetura [onde
também podemos ler o design e tantas outras áreas]5 deveria evoluir com a
mesma lógica com que se desenvolvem as necessidade e expectativas
daqueles que usam o espaço físico de uma construção.”6

A apresentação desta outra realidade do design e da arquitetura (que


estão sempre muito próximos) é feita claramente pela arte ultrapassando as
exauridas questões dos limites entre essas áreas e vislumbrando uma outra
forma de analisá-las. Ainda SIERRA nos diz que:

“A arte não precisa da arquitetura nem dos museus para existir; ela
precisa de redes e de tecidos sociais que suportem seus conteúdos,
fazendo uso da lógica para construir um sistema de maneiras
possíveis para dispor e mostrar arte.”
Dialogando de forma similar sobre essas aproximações entre arte, design e
arquitetura nos termos das suas articulações sociais e mercadológicas,
MAZZUCHELLI nos apresenta uma visão muito similar sobre como esses
campos se relacionam na sociedade e como se assemelham. Quando a arte
torna-se progressivamente mais mercadológica, nada mais natural que também
se aproxime dessas outras áreas nos mesmos termos que elas e passem a se
fundir, assim como o fazem no âmbito da poética, em termos de articulação
social.

4
Guia 28ª Bienal de São Paulo p.261
5
adendo do autor desta obra.
6
Guia 28ª Bienal de São Paulo p.261

19
“Não vemos o design gráfico como arte, mas vemos a arte como uma
forma de design. Embora seja difícil definir a arte, não é difícil definir
seu contexto: há uma infra-estrutura clara de espaços expositivos,
galerias, museus, revistas de arte, editoras de livros de arte, a história
da arte, a teoria, etc. A arte pode ser vista como a produção de
objetos, conceitos e atividades que funcionam dentro desta infra-
estrutura específica. Para nós, esta produção pode certamente ser
vista como uma forma específica de design.”
Partindo então dessas premissas estabelecidas por Kiki Mazzuchelli e
Gabriel Sierra podemos assumir o posicionamento de expectadores
conscientes das crescentes, e cada vez mais influentes, relações
mercadológicas inerentes, na contemporaneidade, às atividades discutidas. Ao
passo que sabemos os princípios do que se quer elucidar, torna-se muito
prático o absorvimento, assim como a assimilação, das intempéries
relacionadas ao uso, à compra e principalmente ao projeto destas três formas
de expressão.

1.3 O Objeto do Mercado

Em um mundo progressivamente funcional e automático, nossa situação


pouco difere da de Gregor Samsa. Por meio de uma pequena mudança de
hábito microcósmica, podemos ter uma compreensão macroscópica, do mundo
em que vivemos e como o fazemos.

Uma das maneiras de criarmos essa compreensão ampliada é por meio


dos objetos com os quais convivemos diariamente partindo da sua assimilação
e utilização consciente. MOLES, em sua obra “O Kitsch”, trata da relação
humana com os artefatos da seguinte maneira:

“As relações do indivíduo com o meio social passam, a partir de


agora e fundamentalmente, pelos objetos e produtos transformados
nas expressões mais tangíveis da presença da sociedade em seu
ambiente.(...) A psicologia da vida social se orientará para o estudo
das relações do indivíduo com as coisas, uma vez que estas coisas

20
são produtos sociais bem mais caracterizados e mais atuais do que
os seres humanos que os realizaram.”7
Moles nos apresenta o cenário de uma sociedade que passa a se
relacionar consigo mesma por meio dos produtos que cria e não a partir das
relações entre as partes criadoras. Passa-se a produzir uma relação:

homem => objeto => homem

É curioso o fato de que essa relação mediada é geralmente inconsciente


e desprovida de intenção, repleta de paradigmas e inconsistências.
FEATHERSTONE trata dessas relações mediadas pelos intermediários
culturais, mas aborda a questão por meio de seres humanos que medeiam as
relações sociais, sendo os intermediários a primeira parte do diagrama
apresentado acima.

“Essas pessoas dedicam-se à oferta dos bens e serviços e serviços


simbólicos (...) – profissionais de marketing, publicitários, relações
públicas, produtores e apresentadores de programas de rádio e
televisão, jornalistas, comentaristas de moda e profissionais ligados
a atividade de caráter assistencial”8
MOLES ultrapassa essa questão e, como se colocasse uma lupa sobre
elas, encontra os objetos e demonstra que estes, em verdade, são os
silenciosos portadores da mensagem. Muitas vezes acidental, pelo próprio
despreparo e ausência de responsabilidade por meio dos criadores, a
mensagem é inconsistente. No entanto os objetos têm se tornado muito
poderosos, ultrapassando as expectativas tanto do criador quanto do usuário.
Silenciosamente tornam-se mais poderosos que quem os projetou gerando
uma dependência alienada na humanidade que os concebeu para seu próprio
usufruto. Sobre isto ele prossegue da seguinte maneira:

“Para Adorno, a dominância cada vez maior do valor de troca não


somente suprimiu o valor de uso original das coisas e o substituiu pelo
valor de troca abstrato, como também deixou a mercadoria livre para
adquirir um valor de uso (...) que Baudrillard posteriormente
designaria como “valor-signo”.

7
MOLES, Abraham p.12
8
FEATHERSTONE p. 70

21
Aqui FEATHERSTONE, apesar de já tratar das relações de troca e
valores abstratos dados aos artefatos, ele compreende o poder simbólico que
possuem e nos dá uma demonstração breve da subjugação do homem aos
próprios valores de troca que cria. “Consumir é muito mais que a simples
aquisição pela qual o homem pretende inscrever-se no eterno, e por esta via,
aliena-se eventualmente aos elementos de seu cenário(...)”9.Para compreender
também estas relações mercadológicas são necessários objetos que portem
perceptividade, de forma a tornar consciente quem os consome, assim como
os demonstrados na história de Gregor Samsa.

1.4 O Criar e o Produzir

Outro fator da relação do homem com seus objetos, estudada por


MOLES, é o da diferença entre criar e produzir. Ele trata o primeiro como
“introduzir no mundo formas que aí não existam: é a invenção, a do artista ou
do inventor.”10 Em oposição a isto coloca o produzir como:

“copiar um modelo já existente de maneira mais ou menos


automatizada, reproduzindo indefinidamente as mesmas formas,
numa tarefa cada vez mais distante da pessoa, sendo o ser humano
apenas o elo mais frágil de uma cadeia operatória, elo em vias de ser
eliminado pela automação, cada vez mais “alienado” seja como for em
relação a essa tarefa, tornando-se a mesma cada vez mais fácil”11
É esta segunda tendência que vem crescendo desde o final do século XIX
que tem tornado as relações homem e objeto perniciosas e alienantes. A
proposição aqui talvez seja a de aproximação da primeira tendência em que a
inventividade e a diferenciação dos momentos tornem o homem menos
alienado no consumo dos bens. Nessa tentativa de aproximação veremos
alguns artistas e designers que abordam de forma diferenciada os objetos,
proporcionando uma experiência repleta de oportunidades para a percepção
9
MOLES p.24
10
MOLES p.15
11
MOLES p.15

22
dos detalhes do uso e da assimilação de valores e símbolos e a conseqüente
consciência e extirpação da alienação presente nessa nova abordagem em
relação aos artefatos.

23
Capítulo 2

2.1 O Equívoco de Berry e as Assimilações de Wewerka

“Only when the design fails does it draw attention to itself; when it succeeds, it‟s
invisible.”12

“Somente quando o design falha ele atrai atenção para si; quando obtém
sucesso, é invisível”

John D. Berry

Quando Berry diz que o design só é percebido a partir da falha, ele


confere a esta um poder transformador que leva a cabo a idéia anteriormente
tratada de libertação do homem por meio da percepção dos objetos. O
designer, sendo um projetista de objetos, deve então conferir-lhes atributos que
lhes permitam serem percebidos, designando-lhes (sendo este o trabalho do
designer, o de designar) a função elementar da percepção, assim produzindo
consciência na utilização dos objetos e, conseqüentemente, liberdade.

Uma metáfora muito contemporânea sobre este tema é a obra “O Ensaio


Sobre a Cegueira” do Nobel da Literatura José Saramago. Este trata de uma
situação limítrofe em que todas as pessoas vão sendo acometidas de uma
súbita cegueira, desfazendo quase que por completo as estruturas sociais
estabelecidas em nossa civilização. Saramago fala, por meio de uma alegoria,
exatamente desta questão da perda da visão, não só literal, mas dos meios de
percepção de nosso mundo e o pandemônio gerado a partir desta. Ele revela e
aponta com muita lucidez a perda deste sentido e as tentativas desesperadas
de manter controle sobre aquilo que não se pode controlar e a conseqüente
histeria e intransigência. Saramago descreve o surgimento de novas formas de
12
<http://www.codeblink.com/2009/05/50-inspirational-quotes-on-the-art-science-of-design/>
acessado em 13/03/2009

24
apreender o mundo pelas pessoas e as relações que estabelecem entre si,
fazendo surgir nelas uma compreensão maior das questões subjetivas
associadas à existência; ao mesmo tempo em que tomam maior consciência
de suas fragilidades e da humanidade da qual fazem parte. Essa espécie de
“fábula” contemporânea, que narra sem dar nomes a nenhuma das
personagens alegorizando assim a perda progressiva de identidade, nos faz
refletir acerca do quão obtusos nos tornamos e o quanto precisamos perder
para reestruturarmos nossas relações de forma menos perniciosa. Produzindo
uma reflexão sobre a necessidade da percepção e das novas formas de se
fazê-la a partir da perda para estabelecermos cenários mais aprazíveis para as
interações entre os homens e de si para consigo mesmo.

Desta mesma forma, apenas quando o design é percebido, o usuário


tem a plena consciência e liberdade de escolha e, somente assim, deixa de ser
um consumidor e passa a ser tratado como cidadão. Assim sendo o designer
cujos projetos são percebidos torna-se um catalisador de liberdade. Desta
maneira é conferido a ele um poder sem precedentes e, como tal,
acompanhado de muita responsabilidade.

A assimilação deste poder surge da mera observação de que os objetos


definem não só questões físicas e práticas da ergonomia e da usabilidade
como também das relações sociais e interpessoais. Pode-se criar um ambiente
muito propício para qualquer finalidade que se deseje, ou podem ocorrer
efeitos reversos por despreparo ou engano do projetista. Um caso muito
relevante para esta discussão é a bem sucedida experiência de Stefan
Wewerka no sentido de produzir um objeto verdadeiramente democratizador: a
mesa M-1, produzida pela alemã TECTA em 1971. Podendo acomodar sete ou
oito pessoas para jantar ou apenas duas numa situação de trabalho, esta mesa
é desenhada para desencorajar a formação de hierarquias em ambas as
situações de uso apresentadas. É aclamada por muitos teóricos como sendo a
primeira mesa verdadeiramente democrática da história.13 Wewerka descreve
sua motivação para a criação do objeto do seguinte modo: “Quando eu crio um

13
FISCHER, Volker p.151

25
relacionamento diagonal o efeito psicológico é completamente diferente
daquele criado pelo confronto cara-a-cara.”14

Fig. 2 Mesa M1 de Stefan Wewerka produzida pela alemã TECTA

Stefan Wewerka é artista com formação em arquitetura e muito familiar


com diversas mídias. Apesar de ter sido muito ativo como arquiteto nos anos
1950, ficou realmente conhecido nos anos 1960 e 70 como artista ao manipular
objetos. Wewerka os cortava ao meio, desaparafusava, deformava e
desmantelava e depois reagrupava novamente as partes à sua própria
vontade. Estes estranhos objetos captaram a atenção do público e entraram
para museus e espaços expositivos.

Em 1961 cortou uma cadeira ao meio no assento e a colocou em uma


parede de forma a parecer que esta havia sido construída deliberadamente
sem perceber a presença da cadeira, ignorando-a e, conseqüentemente
“atropelando-a”. Em 1965 criou uma cadeira de borracha que não conseguia se
manter de pé pela ausência de rigidez do material. Tais objetos desconstroem
preconcepções tradicionais e provocam um reflexão sobre a existência e
condição destes objetos e materiais.

Stefan “vê seu método como uma espécie de subversão da percepção


convencional das imagens seja por meio da arte, arquitetura, mobiliário

14
WEWERKA, Stefan apud FISCHER, Volker p.151

26
doméstico, moda, cinema ou outros gêneros artísticos.”15 Desta maneira o
arquiteto e artista nos dá um exemplo do que esta obra discute e defende: o
poder do designer, e do projetista em geral, de ser um agente de
transformação social a partir das articulações que sugere para a utilização dos
seus projetos pelo público simplesmente por subverter a percepção
convencional das imagens.

Fig. 3 Cadeira de borracha de Wewerka

Fig. 4 Cadeira cortada de 1961 de Stefan Wewerka

15
Tradução de FISCHER, Volker p.149

27
“Cortar coisas se tornou para mim o ápice do radicalismo. Eu tinha que
desmembrar, dissolver, chegar ao cerne das coisas, para fugir do aspecto
decorativo. A serra era minha arma, apesar de que certa vez a cortei ao meio
também”16. Esse processo de cortar e rearrumar objetos é um processo, mais
que reconstrutivo, analítico em verdade.17

Fig. 5 Cadeira Vertreterstuhl

A Vertreterstuhl, como ficou conhecida uma de suas mais famosas


cadeiras, demonstra “seu sentimento pela necessidade de desmascarar
atitudes convencionais”18. Em 1971 montou uma sala de aula dessas “cadeiras-
objetos”19 na Galerie Müller em Colônia na Alemanha, desde então ficou
conhecida como “Classroom Chair” ou “Cadeira da Sala de Aula”. A cadeira
traduz distorções e divagações gráficas para o tridimensional. Quando
colocadas juntas, no formato de sala de aula, assumem a associação satírica
do conformismo e de ordem, mimetizando uma forma similar a elas à sua
frente, na parede frontal.20 Desta forma Wewerka subverte seu próprio trabalho:

16
Tradução de citação de WEWERKA de FISCHER, Volker p.149
17
FISCHER, Volker p.150
18
Tradução de FISCHER, Volker p.149
19
FISCHER, Volker p.149
20
FISCHER, Volker p.149

28
as cadeiras, que são pensadas de forma a instigar a reflexão sobre o
convencional, tornam-se convencionais per si ao serem reproduzidas
serialmente e dispostas de forma reproduzir uma matriz à frente.

Fig. 6 Sala de aula construída na Galerie Müller em Colônia em 1971 por Stefan Wewerka

Depois do exemplo de Wewerka o equívoco da frase de Berry torna-se


ainda mais poderoso e condizente com o que se trata neste texto. Colocada
sob a ótica desta obra a citação em questão ganha uma nova leitura de forma
que aquilo que o autor considera uma deficiência passa a ser uma virtude: a
percepção do design. Desta forma ele dissolve a idéia de um design
imperecível que se caracteriza por meio de uma pretensa perfeição e
cumprimento pleno de seus objetivos funcionais. Têm-se então a idéia de que
apenas um design falho, defectível pelo menos sob o olhar modernista, pode
ser percebido. Adriana Kei nos diz sobre isso que “Muito se discute atualmente
a percepção do design como linguagem que resulta em uma produção
cultural”21, reforçando a importância da compreensão do processo de se
perceber os objetos, sendo este um propagador de novas posturas sociais dos
grupos, dos indivíduos e da civilização como um todo.

21
KEI, Adriana Faces do Design 2 p.19

29
Berry, obtendo um efeito reverso ao que desejava, rompe uma série de
valores do funcionalismo modernista. Praticante contemporâneo deste modelo,
o autor em verdade, ao dizer essa frase, muito provavelmente queria conferir-
lhe o efeito de ser uma propagadora de um design indefectível,
consequentemente, em suas próprias palavras, invisível. KEI nos fala sobre
essa metodologia da seguinte maneira:

“O ideal do design era a objetividade, buscando atender às


necessidades práticas do indivíduo. Desta maneira, Pedro Luiz P. de
Souza (2001, p.22) afirma que a beleza de um objeto depende de sua
utilidade e eficiência, ou seja, de sua adequação à função a que se
destina, ao dar a definição de funcionalismo moderno”.22
De maneira similar, mas ainda mais radical, um dos pais do
funcionalismo, Walter Gropius, nos diz o seguinte: “A adaptação ao objetivo
também é bela”23. MOLES elucida esse posicionamento de Gropius dizendo
que assim se está “enfatizando a junção, de caráter aditivo, da beleza
enquanto secreção do emprego justo dos meios em relação aos fins”. Fala-se
aqui de mais que uma metodologia, mas um sistema de dogmas para o design,
arte e arquitetura, muito conveniente para as necessidades operárias da
Alemanha do início do século XX.

Ora, KEI também nos diz que “o objeto deve não somente atender às
necessidade práticas do usuário, mas também ter a propriedade significativa
que contribuirá com a satisfação emocional do indivíduo” e continua dizendo
que “todos os indivíduos tem desejos além das necessidades práticas”24 e
Irene Rodrigues afirma que “Além das necessidades naturais, os humanos
também tem necessidades estéticas”25, seria então muito incongruente
prosseguirmos com a prática desses valores modernistas associados a um
método que, segundo MOLES “pretende ver na beleza um elemento

22
KEI, Adriana Faces do Design 2 p.19
23
MOLES, Abraham apud GROPIUS, Walter O Kitsch p.140-141
24
KEI, Adriana Faces do Design 2 p.20
25
RODRIGUES, Irene G. Faces do Design 2 p.88
30
suplementar, uma percepção de adequação”.26 MAZZUCCHELLI aborda essa
questão da seguinte maneira:

“O design como disciplina independente é o resultado do processo de


industrialização e está associado, em sua origem, à idéias de produção
em massa a serviço da democratização, conferindo um valor estético
ao trabalho desqualificado do operário e transformando o objeto
cotidiano em obra de arte. Possui, tradicionalmente, um caráter
extremamente utópico, ao sugerir que trazendo a arte para a vida seria
possível subverter ou modificar estruturas sociais estanques
proporcionando uma maior igualdade”27
Kiki Mazzucchelli é muito feliz em sua citação pois ao tratar de um design
absolutamente modernista e ao associá-lo à industrialização, lhe confere uma
busca por democratização que é, em geral esquecida na prática tanto pelos
defensores deste modelo assim como pelos contemporâneos
descompromissados com o mesmo. Estes, ainda segundo ela, portam “uma
descrença em relação aos ideais utópicos do racionalismo moderno”28. No
entanto esse método, praticado à exaustão, afastou-se de seus objetivos
iniciais passando a produzir indiretamente efeitos reversos aos almejados:
adequação da arquitetura às hierarquias sociais (ver WOLFE), alienação,
estetização exacerbada da realidade gerando incongruências e fugacidades no
funcionamento e organização da sociedade contemporânea (ver
FEATHERSTONE e MOLES).

Um aspecto interessante sobre a fala de Mazzucchelli é que ela fala do


modernismo como tratando do cotidiano. O dicionário Houaiss define cotidiano
da seguinte maneira:

1 que acontece diariamente; que é comum a todos os dias; diário


2 Derivação: por extensão de sentido.
que é comum; banal29

26
MOLES, Abraham O Kitsch p.140
27
MAZZUCCHELLI, Kiki (2008)
28
MAZZUCCHELLI, Kiki (2008)
29
www.uol.com.br/houaiss acessado em 09/09/2009

31
O conceito de cotidiano, assim sendo, como descrito pelo dicionário, trata
de repetição, algo muito presente na realidade operária modernista. Não
bastando a conclusão histórica da obsolescência de valores modernos em um
mundo completamente diferente chamado por isso mesmo de pós-moderno,
temos também uma conclusão retórica de que o funcionalismo moderno fora
feito para operários igualmente modernos. Assim sendo, quem são esses
operários, onde e como vivem atualmente? Estes tais trabalhadores, aos
moldes que eram nos tempos bauhausianos são uma espécie em extinção, ao
contrário de antes, quando eram a maioria da sociedade. Torna-se então muito
claro o caráter obsoleto desses modelos os quais se insiste em praticar.

Tom Wolfe, em “Da Bauhaus ao nosso caos” diz:

“Lembro-me dos planos ousados que os jovens arquitetos de Yale e


Harvard faziam para o homem do povo no início da década de
cinqüenta. Esse era o termo que usavam, homem do povo. Tinham a
vaga noção de que o homem do povo era um trabalhador, e não um
executivo de publicidade (...).”
Se esse tal “operário” ou “homem do povo” já não era o mesmo da
década de 1920 alemã nos anos 1950 no E.U.A., momento tratado nesse
trecho da obra de WOLFE, porque então ele o seria nesse alvorecer de um
novo milênio, em que a sociedade é tão diferente já da de 1950, quem dirá da
de 1920? Não só é inviável historicamente, como também teimosia tentar
praticar esses tais modelos funcionalistas na sociedade contemporânea.

Assim sendo, apesar de suas motivações em função da defesa do


funcionalismo, Berry consegue um efeito inverso ao que se desejava e muito
conveniente às proposições que estamos discutindo: como um design pode ser
funcional se não pode ser visto? O próprio conceito de funcional incide na
questão da utilização, gerando um entrave teórico: para Berry o perfeitamente
funcional é invisível, como então pode-se considerar a possibilidade de fazer
funcionar algo que é, segundo a própria expectativa do autor, invisível? E para
funcionar, na concepção da palavra, pede-se que haja interação com o homem
e sendo “invisível” esta interface deixa de existir sendo então impossível
funcionar.

32
Berry também prova, com sua citação, a própria falência completa do
método. Segundo ele o design perfeito é invisível. Não havendo, no mundo
presente, algo que se porte com tais características, o método por ele
defendido demonstra-se absolutamente frustrado pois em momento algum
atingiu seus objetivos de projetar objetos com o cumprimento pleno das
funções para as quais foram designados e, conseqüentemente, tornando-se
invisíveis. O funcionalismo é levado a extremos como estes criando diversos
paradoxos insolúveis tanto retoricamente quanto na práxis condenando o
método, tão profundo e poderoso a princípio na sua idealização no início do
século XX, ao obsolescimento e a uma abordagem meramente histórica.

2.2 As Ruínas Modernas

O design moderno foi muito pioneiro em seu tempo, final do século XIX e
início do XX, no sentido de promover esse acesso democrático, não só a uma
vida confortável, funcional, mas que fosse estética na materialidade dos objetos
principalmente por meio da Bauhaus que uniu uma série de movimentos pré-
existente que caminhavam nessa direção. No entanto tais preceitos, praticados
à exaustão, se perderam em meio a uma série de fatores como interesses
econômicos e reestruturação da sociedade. Sobre isso FOLIE inicia o texto de
apresentação da exposição de sua curadoria “Modernism as a Ruin – An
Archaeology of the Present” (Modernismo como Ruína – Uma Arqueologia do
Presente) da seguinte maneira:

“The exhibition sets its sights on modernity‟s design for a more


humane and contemporary society since the early twentieth century:
a design for new forms of living and new cityscapes. What happened
to this utopia?”30

30
Tradução: “A mostra lança seu olhar sobre o design da modernidade para uma sociedade
mais humana e contemporânea desde o começo do século XX: um design para novas formas
de viver e novos cenários urbanos. O que aconteceu com essa utopia?”

33
FOLIE cria uma questão curiosa logo no início de seu texto ao apresentar
o sonho modernista e em seguida sua derrocada ao questionar onde se
encontram as conclusões deste sonho perfeito, idealista e universal concebido
pelo movimento modernista. Ao mesmo tempo que considera louváveis as
ambições modernistas para um mundo futuro, ela compreende a sua
inconsistência no mundo contemporâneo e tenta compreender o que desvirtuou
as suas épicas ambições. A curadora não é a única a perceber tais
incongruências, KEI se pergunta: “o que aconteceu com os conceitos do design
moderno, com toda sua busca pela boa forma, atrelada às questões de
funcionalidade?”

Num momento seguinte do texto de FOLIE nos é apresentada a seguinte


reflexão:

“When desolation, neglect, and the degeneration to slums as bleak


and relentless final evidence of an exploitative, brutalized society of
competition, profit, and fanaticism have caused the utopia of a
humane, enlightened society to collapse, then humility is called for in
order to make something from the void with whatever means remain
after the catastrophe.”31
Sabine Folie nos apresenta assim um quadro muito evidente de uma
utopia frustrada que culmina na sociedade da qual fazemos parte, repleta de
disparidades, desolação, desigualdade e competição. Como tratado no capítulo
anterior, o estabelecimento da sociedade como a vemos hoje é fruto de uma
série de fatores mas, os que nos cabem, principalmente são os dos valores
distorcidos tanto monetários quanto subjetivos conferidos aos objetos assim
como a crescente alienação da sociedade assim como do indivíduo.
Exatamente por ter-se tratado de um idealismo tão grande e, logo em seguida,
ter-se estabelecido sua derrocada, foi provocado um sentimento de derrota na
sociedade contemporânea que massivamente não se compreende, mas é
naturalmente cansada e passiva, atributos ainda mais perniciosos quando

31
Tradução: “Quando desolação, negligência, e a degeneração para favelas como implacável e
desoladora evidência final de uma sociedade de competição exploradora e brutalizada, lucro, e
fanatismo fizeram a utopia de uma sociedade humana e iluminada vir por terra, então
humildade é convocada para trazer à tona qualquer coisa do vácuo com qualquer significado
que tenha se mantido após a catástrofe.”

34
adicionados à alienação. Desta forma FOLIE prossegue: “a redefinition of the
new, of progress is called for”32. A curadora assim nos convida à redefinição de
valores e uma busca pelo progresso de maneira a subverter a ordem vigente e
de se experimentarem novos métodos. O que ela nos diz é que da maneira
como nos encontramos neste momento, não podemos continuar. O design,
como já vimos, dotado de um poder grandioso, não pode se abster e deve ser
uma engrenagem importante nessa renovação de valores estanques e
perniciosos. Sendo o cerne da cultura material, o design está em todos os
momentos em contato com a humanidade e ela o está com ele. Assim sendo
ele tem muito poder e deve utilizá-lo sendo o portador de mensagens
responsáveis e ter um papel decisivo no estabelecimento da consciência dos
homens em relação à materialidade por eles mesmos criada.

Sabine nos dá uma pista da forma como se deve proceder diante deste
quadro quando trata do trabalho de Robert Smithson e de Gordon Matta-Clark.
Segundo ela, Smithson descrevia o estado da arquitetura pós-industrial com o
conceito de “ruínas reversas”. Ela prossegue dizendo que trata-se de uma
“afirmação pela desconstrução”. Ora, se estamos tratando de uma sociedade
fragilizada, fruto de um modernismo frustrado que almejava um crescimento
perene e indefectível, para subvertê-lo e criar uma nova ordem, nada mais
coerente que compreender o antônimo das afirmativas modernistas: a
desconstrução.

Para compreendermos essa dialética Modernismo-construção versus pós-


modernismo-desconstrução é preciso assimilar os valores agora históricos do
primeiro para então conceber-se o seu antídoto, seu oposto, como uma nova
tentativa de erigir uma civilização melhor, o desejo de tantas outras que nos
antecederam.

O modernismo funcionalista foi de vital importância para a construção e


elaboração técnica e teórica do mundo contemporâneo como o conhecemos
hoje. A questão aqui levantada não é uma possível incongruência desse
método, mas sua inviabilidade contemporânea, assim como a ausência de
32
Tradução: “Uma redefinição do novo, do progresso é convocada”. FOLIE, Sabine (2009)

35
ambição da produção atual e de credibilidade no poder social das atividades
projetuais. As resoluções da arquitetura moderna são essenciais para a
compreensão e funcionamento das cidades tanto no micro quanto no
macrocosmo urbano. Apesar de heróicos, bem resolvidos e até épicos esses
apontamentos, em especial os de Le Corbusier, não dão conta de muitas das
questões contemporâneas e o erro jaz na frustrante persistência do
mantimento purista desta metodologia. É inegável a projeção genial concebida
pelos pensadores modernos das artes e a preocupação com o suprimento das
necessidades do homem e suas tentativas, por meio de articulações teóricas e
experimentação prática, de conferir dignidade à sociedade por meio do projeto
completo da materialidade de sua vida.

Para FIELL o “Funcionalismo é essencialmente uma visão da arquitetura


e do design e não um estilo, e o seu objectivo é o de resolver problemas
práticos de forma lógica e eficiente”33(sic) e segue dizendo que:

“foi o arquiteto americano Louis Sullivan (1856-1924) que criou a


expressão “Form Follows Function” (A Forma segue a Função) em
1896 e é por isso vulgarmente visto como o criador do funcionalismo
do século XX. Estes pioneiros do Funcionalismo promoveram a
metodologia que tinha em consideração a cultura específica e o
ambiente da região onde o design ou edifício era criado. Durante a
primeira metade do século XX, no entanto, os designers do
Movimento Moderno aliaram o funcionalismo ao Racionalismo e
procuraram soluções de design universais e não racionais.”34
A partir desta leitura nos é sugestionado um paradoxo muito evidente sob
o olhar contemporâneo que costuma considerar as diferenças em detrimento
da universalidade do homem. Trata-se aqui de um design pensado não mais
para dar cabo de necessidades e solucionar problemas específicos do público
para o qual se desenhava, mas sim, alinhado com os conceitos do
universalismo marxista, propunha soluções indiscriminadamente iguais para
problemas infinitamente diferentes em locais e situações completamente
alheias às originais para as quais aqueles objetos e/ou edifícios haviam sido

33
FIELL, Charlotte e Peter Design do Século XX p.263
34
FIELL, Charlotte e Peter Design do Século XX p.263

36
projetados. Nesses termos ARGAN nos diz que a arquitetura moderna se
desenvolveu sobre as seguintes bases:

“1) a prioridade do planejamento urbano sobre o projeto arquitetônico;


2) o máximo de economia na utilização do solo e na construção, a fim
de poder resolver, mesmo que no nível de um “mínimo de existência”,
o problema da moradia; 3) a rigorosa racionalidade das formas
arquitetônicas, entendidas como deduções lógicas (efeitos) a partir de
exigências objetivas (causas); 4) o recurso sistemático à tecnologia
industrial, à padronização, a pré-fabricação em série, isto é, a
progressiva industrialização da produção de todo tipo de objetos
relativos à vida cotidiana (desenho industrial); 5) a concepção da
arquitetura e da produção industrial qualificada como fatores
condicionantes do progresso social e da educação.”35
É importante tratarmos especialmente de alguns pontos desta
enumeração de ambições modernistas. Quando fala-se da tentativa de resolver
o problema da moradia mesmo que de uma forma elementar com um “mínimo
de existência” aproxima-se muito dos ideais socialistas embutidos no
pensamento racionalista moderno. No entanto, mesmo que pareça incoerente e
que ainda estejamos muito longe de alcançar estes objetivos em relação à
dignidade habitacional para todos, experiências frustradas desse modernismo
revelam que as vezes o mínimo está longe de ser aceito ou sequer habitável
como nos revela WOLFE no seguinte trecho retirado de sua obra “Da Bauhaus
ao nosso caos”:

“Nem mesmo o pessoal que está na pior, os que vivem do seguro


desemprego, presos nas arapucas que são os conjuntos
habitacionais, agüentaram a coisa tão passivamente.(...) Em 1955
inauguraram em St. Louis um imenso conjunto habitacional chamado
Pruitt-Igoe. O projeto de Minoru Yamasaki, arquiteto do World Trade
Center, ganhou um prêmio do American Institute of Architects.
Yamasaki desenhou-o nas linhas clássicas de Corbu [Le Corbusier]36,
concretizando a visão do mestre de altas colméias de aço, vidro e
concreto, separadas por áreas gramadas.(...) Pruitt-Igoe foi ocupado
principalmente por migrantes recentes vindos do sul rural. (...) Em
cada andar havia passagens cobertas, em harmonia com a idéia de
Corbu de “ruas suspensas”. Uma vez que não havia no conjunto
nenhum outro lugar onde pecar em público, tudo que talvez

35
ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna p.264
36
Adendo do autor desta obra

37
acontecesse normalmente em bares, bordéis, clubes, bilhares,
galerias de jogos, armazéns, paióis de milho, horta de nabos, montes
de feno, cachoeiras, agora se desenrolava nas ruas suspensas.(...) As
pessoas decentes bateram em retirada, mesmo que isso significasse
viver em buracos nas calçadas. Milhões de dólares e incontáveis
reuniões da comissão e projetos especiais foram gastos numa
tentativa desesperada de tornar Pruitt-Igoe habitável. Em 1971, a
força-tarefa final convocou uma reunião geral de todos que ainda
habitavam o conjunto.(...) O coro começou imediatamente:
“Explodam... o conjunto! Explodam... o conjunto! Explodam... o
conjunto! Explodam... o conjunto! Explodam... o conjunto!”(...) Em
julho de 1972, a cidade dinamitou os três blocos centrais do Pruitt-
Igoe.”37

Fig. 7 Vista aérea de Pruitt-Igoe

Esse caso em especial evidencia a intolerância do homem


contemporâneo à esse “mínimo de existência” e a incongruência de tais
divagações teóricas e suas conseqüentes manifestações físicas na pós-
modernidade que exige muito mais do que meras habitações desenhadas
como se para operários alemães da década de 1920.

37
WOLFE, Tom Da Bauhaus ao nosso caos p.62-64

38
Fig. 8 Demolição de Pruitt-Igoe em 1972

O terceiro fator tratado por ARGAN, o da “rigorosa racionalidade das


formas arquitetônicas, entendidas como deduções lógicas (efeitos) a partir de
exigências objetivas (causas)”38 revela essa característica modernista da
crença inabalável no poder da resolução racional universal das questões e que
essas mesmas giram em torno apenas de necessidade igualmente racionais.
Outra questão relevante para essa discussão é a possível transformação
daqueles objetivos funcionalistas ditados por Sullivan em um mero estilo
pretensamente racionalista como nos descreve FIELL, distorcendo as idéias
iniciais de seus criadores:

“(...) os designers do Movimento Moderno aliaram o funcionalismo ao


Racionalismo e procuraram soluções de design universais e não
racionais. O ensino da Staatliches Bauhaus em Dessau baseava-se
nesta busca, e designers como Ludwig Mies van der Rohe, Marcel
Breuer, Le Corbusier e J. J. P. Oud experimentaram materiais
industriais, como metal tubular, aço e vidro na criação de mobiliário
funcional e edifícios. No entanto, estes novos materiais foram
escolhidos tanto pela estética-mecânica moderna como pelo seu
potencial funcional. Nos anos 20, o vocabulário formal do design
Funcionalista tinha-se transformado num estilo, especialmente em
França e na Alemanha, com os designers do avant-garde que

38
ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna p.264

39
estavam preocupados em promover a aparência39 da
modernidade.”40
Revela-se aqui uma questão muito pertinente pois, segundo a visão de
FIELL, as pretensões do Movimento Moderno não só eram ambiciosamente
universais demais como, talvez até inconscientemente, meramente estilísticas
trazendo, a longo prazo, frustrações como as de Pruitt-Igoe.

É relevante também relembrar, ainda em se tratando da terceira


característica apontada por ARGAN, a questão levantada por KEI de que “o
objeto deve não somente atender às necessidades práticas do usuário, mas
também ter a propriedade significativa que contribuirá com a satisfação
emocional do indivíduo”. Foi exatamente o que não aconteceu no caso de
Pruitt-Igoe e foi o que o levou á sua derrocada: a ausência de consideração
para com os fatores emocionais e estéticos dos usuários. Curiosamente
funcionar de maneira impecavelmente racional, até onde se pode considerar,
não só não foi o suficiente para garantir a felicidade dos habitantes como
também foi, provavelmente, o causador de sua infelicidade. Não possuindo
características instigantes e curiosas ou de reflexão e prazer, restou apenas
uma vontade inconsciente e instintiva dos moradores de subverterem esse
lugar plenamente funcional. A privação de prazer nesse tipo de sistema
habitacional levou à subversão do mesmo e a prática de uma manifestação
erótica em lugares públicos exatamente como uma maneira de desconstruir a
estrutura criada para essa vida indefectível idealizada pelo arquiteto. Essa
privação trata-se exatamente de uma visão elitista da arquitetura em relação ao
proletariado que, em acreditando que por este não possuir moradia, ou moradia
digna, esta seja sua única ambição, abrindo mão então de qualquer outra
expectativa humana sobre tal e contentando-se com qualquer projeto
dissociado de preocupações alheias as racionais.

Esse exemplo arquitetônico serve como uma aproximação para o


design, já que, assim como na arquitetura, o modelo funcionalista ainda é muito

39
Grifo do autor desta obra
40
FIELL, Charlotte e Peter Design do Século XX p.263-265

40
praticado às últimas conseqüências, sem levar em consideração quaisquer
outras necessidades humanas além daquelas expressas pela razão.

No quinto item enumerado por ARGAN, há uma revelação intrínseca


muito relevante. Quando fala-se de uma “concepção da arquitetura e da
produção industrial qualificada como fatores condicionantes do progresso
social e da educação” evidencia-se uma consciência moderna desse poder
social do projetista do qual tanto tenho falado nesse texto. Le Corbusier, por
exemplo, acreditava tanto nisso que chegava a alguns extremos de “ter
pretendido ser um benfeitor da humanidade”41. Apesar de ser um exemplo
louvável há outras questões associadas a isso. Exatamente por querer ser um
salvador julgou que todos tivessem as mesmas necessidades e que pudessem
ser alcançadas por meio de seus projetos e pelo poder de sua prática
arquitetônica.

“Todavia, no entreguerras e com a evidente tendência do capitalismo


mundial em se transformar de sistema econômico em sistema de
poder, a humanidade não precisava de um São Jorge que lutasse
com o dragão, mas de alguém que a ajudasse a tomar a consciência
de seus dilaceramentos, de seus males internos, e a encontrar em si
mesma a força e a vontade de resolvê-los. Não precisava, em suma,
que lhe dissessem “nãos e mexa, eu cuido disso”, e sim “vamos,
cuide de suas coisas”.”42

41
ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna p.268
42
ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna p.268

41
Capítulo 3

3.1 Lygia Clark

Fig. 9 Um dos "Objetos Relacionais" de Lygia Clark

Lidando diretamente com a psicologia, Suely Rolnik faz uma leitura muito
relevante sobre a obra de Lygia Clark que muito tem a nos dizer sobre os
termos que aqui vem sendo tratados. No texto “Lygia Clark e o híbrido
arte/clínica” a autora enuncia o mundo em que vivemos da seguinte maneira:

“o mercado hoje converteu-se no principal – senão único – dispositivo


de reconhecimento social. As subjetividades tendem a orientar-se cada
vez mais em função deste reconhecimento e, portanto, das formas que
se supõe valorizáveis, e cada vez menos em função da eficácia da
formas enquanto veículos para as diferenças que se apresentam.”
Indo ao encontro do que nos fala FEATHERSTONE sobre a sociedade do
espetáculo e a estetização da vida, ROLNIK nos diz que “navegam por todo o
planeta imagens de formas de existência glamourizadas, que parecem pairar
sobre as turbulências do vivo. A sedução destas figuras mobiliza uma busca
frenética de identificação, sempre fracassada e recomeçada, já que se trata de
montagens imaginárias”. Esse fluxo excessivo e acesso constante, voluntário
42
ou não, à informação produz um paradoxo em que, ao passo que existe o que
ela chama de “produção de diferença intensificada”, há também “pouca fluidez”
e “potência de experimentação debilitada”. ROLNIK prossegue denunciando
uma realidade sinistra e pouco perceptível: “Neste mundo de subjetividades
mercadológicas, tende a ser mínima a permeabilidade entre a arte (...) e o resto
do planeta”.

Tal distanciamento revelado pela autora, entre arte e o mundo do


consumo que nos rodeia, pode parecer contradizer FEATHERSTONE que, por
sua vez, aborda o processo estetizante da vida. Em verdade, ambos são muito
próximos e, a despeito de aparentemente contraditórios, dialogam muito entre
si tratando dessas aproximações entre vida e arte. Quando FEATHERSTONE
aborda essa questão, o faz de modo a nos elucidar sobre uma sociedade que
pratica seus rituais e se estabelece pelo visual e pelo consumo da imagem.
Além disso, trata também da vida contemporânea como sendo um espetáculo
de imagens velozes, hedonismo, potencialização extrema das sensações e
com uma temporalidade marcada por presentes perpétuos, todos artifícios que
nos afastam da consciência de nossa existência e da dignidade perante nossas
escolhas. Estas são as conseqüências da vida estetizada e espetacularizada.
Suely, então, trata do nosso distanciamento diário da arte exatamente pela
ausência do contato com o subjetivo e com o sutil. Quando a vida toma a
proporção de grande espetáculo de apreciação de frivolidades e
excentricidades individuais perde-se a percepção da emanação das sutilezas e
da compreensão dos meios em que vivemos. “Ética e estética dissociam-se:
desativa-se o processo de criação experimental da existências; a vida
míngua.”43 Assim é estabelecido o cenário pernicioso de nossa sociedade que
permite com que a autora fale sobre o tema que nos é conveniente neste
momento da discussão, Lygia Clark:

“O que Lygia [Clark] quer é que o festim do entrelaçamento da vida


com a morte extrapole a fronteira da arte e se espalhe pela existência
afora. E procura soluções para que o próprio objeto tenha o poder de
promover este desconfinamento. (...) O sentido do objeto passa a

43
ROLNIK, Suely p.4

43
depender inteiramente de experimentação, o que impede que o objeto
seja simplesmente exposto, e que o receptor o consuma, sem que isto
o afete.”44
Para ROLNIK, o mais perto que Lygia Clark chegou disso foram suas
últimas obras os “Objetos Relacionais”, em que, num quarto de seu
apartamento, que chamou de consultório, utilizava diversos objetos como
saquinhos de plástico com água, ar, sementes, areia, além de panos, mel,
conchas, esponjas, canos de papelão, isopor, meias, tubos de borracha e daí
por diante para “um ritual de iniciação que ela desenvolve ao longo de
“sessões” regulares com cada receptor”45. Esses objetos eram tocados pelos
“pacientes” ou esfregados neles, às vezes Lygia pingava uma gota de mel na
língua dele, entre tantas outras ações.

“(...) a iniciação que se dá no consultório experimental de Lygia não


tem rigorosamente nada a ver com expressão ou recuperação de si,
nem com a descoberta de alguma suposta unidade ou interioridade,
em cujos recônditos se esconderiam fantasias, primordiais ou não,
que se trataria de trazer à consciência. Pelo contrário, é para o corpo-
ovo que os Objetos Relacionais nos levam. Estes estranhos objetos
criados por Lygia têm o poder de nos fazer diferir de nós mesmos”
E assim, diferindo-nos de nós mesmos, tomamos ciência daquilo que
somos por meio da aproximação de nossos estados elementares de
consciência, estes corpos dos quais trata Clark. Sobre esse corpo-ovo e o
corpo-bicho, ROLNIK nos diz o seguinte:

“Pássaros e leões nos habitam, diz Lygia – são nosso corpo-bicho.


Corpo-vibrátil, sensível aos efeitos da agitada movimentação dos
fluxos ambientais que nos atravessam. Corpo-ovo, no qual germinam
estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas
composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo
e desfazendo.”46
Para Lygia, esses corpos podiam ser acessados pela materialidade
desses objetos. A artista “quer chegar ao ponto mínimo da materialidade do
objeto onde ele não é senão a encarnação da transmutação que se operou em

44
ROLNIK, Suely p.4
45
ROLNIK, Suely p.4
46
ROLNIK, Suely p.1

44
sua subjetividade, ponto no qual por isso mesmo, o objeto atinge a máxima
potência de contágio do receptor”47.

Em um dos vídeos que relata as experiências com seus pacientes, Lygia


conta que, em uma das sessões, esfregou uma esponja seca no braço de um
de seus pacientes que lhe disse: “é a pele de meu pai”. Relata-se que as
experiências realizadas no “consultório” eram tão intensas que, por precaução
Lygia sempre deixava uma pedrinha na mão do “paciente” para que este não
se esquecesse de seu corpo físico e que pudesse encontrar o caminho de
volta, assim como na história infantil de João e Maria.48

Estabelece-se então uma situação poderosa em que os objetos e a


materialidade de nossas vidas em geral, revelam-se portadores da capacidade
de serem catalisadores de situações de acesso para níveis, quaisquer que
sejam eles e dando-se o nome que lhe convier, além dos físicos e materiais. A
matéria que nos circunda torna-se o acesso para as camadas invisíveis de
nossa existência. Esse poder latente está diretamente associado à sua
utilização. Ele tanto pode ser utilizado como artifício alienante e produtor de
diferenças perniciosas, assim como vem sendo utilizado pela sociedade do
consumo, e também como meio de acesso a essas tantas outras consciências,
as relacionadas ao nosso mundo cotidiano, com o qual entramos em contato
diretamente, ou as que o ultrapassam. Desta forma, o trabalho de Lygia “trata-
se”, segundo Ferreira Gullar, “de uma corajosa tentativa de dar na própria
experiência perceptiva a transcendência dessa experiência”. Então,
aproximando-se muito dos apontamentos de “A Cadeira Bamba”, a obra de
Lygia já era delineada então pela “refutação de uma realidade mediada pela
representação produzida pela arte e a invocação da percepção imediata da
realidade como sendo objeto da arte”. A artista então segue no sentido inverso,
em que “a “obra” artística (...) deve ser uma proposição e não uma proposta” e

47
ROLNIK, Suely p.4
48
ROLNIK, Suely p.5

45
o autor segue: “evidenciando o entendimento que tem dela como virtualidade e
não completude.”49

Um paradoxo estabelecido em nossa sociedade é o da perda de


individualidade. Curiosamente em nosso mundo contemporâneo, ao mesmo
tempo em que existe uma promessa de individualidade nas expressões e nos
modos de vida, também existe uma uniformização das massas e das próprias
manifestações desta individualidade. Sobre essa situação Lygia nos diz que
“Se a perda da individualidade é de qualquer modo imposta ao homem
moderno, o artista oferece uma vingança e a ocasião de se encontrar” 50. Desta
maneira ela convoca a todos os artistas (sobre essa denominação recomendo
a reflexão sobre a questão enunciada no capítulo anterior sobre a fala de
MAZZUCCHELLI sobre a condição da arte como uma atividade de design e
todas as outras áreas que se portam de maneira similar, como manipuladoras
da materialidade em direção a um objetivo, e das não materialidades a ela
associadas), a tomarem em suas mãos a resposta para o fenômeno da
transformação do viver em um consumir alienante. Para tal, a artista pratica “o
exercício de um deslocamento do princípio constitutivo das formas de realidade
que predomina em nosso mundo”51, para que, nas palavras dela, “tudo na
realidade seja processo”52.

3.2 Laura Lima

De forma muito similar, mas simultaneamente muito diferente de Lygia,


outra artista que lida com esse posicionamento do corpo perante a consciência
da realidade é Laura Lima. Em sua obra “Nômades” se dá o seguinte processo:

49
SPERLING, David
50
CLARK, Lygia apud ROLNIK, Suely p.10
51
ROLNIK, Suely p.7
52
CLARK, Lygia apud ROLNIK, Suely p.7

46
“A partir de uma paisagem acadêmica pendurada na casa de sua
família no Rio de Janeiro ela convida um amigo pintor, Rafael
Alonso, para reproduzi-la e da tela realizada ela recorta detalhes e
cria um costume que vai tanto para a parede como para o corpo do
espectador – que pode eventualmente vesti-la, a pintura, como
máscara.(...) No procedimento do corte, que é o gesto ornamental, a
artista vai desenhando seus costumes pintados, criando uma
espécie de “pintura relacional” que se dissemina pela parede e pode
ser trazida para perto do corpo. As relações aí são pura
exterioridade, ao contrário dos objetos relacionais de Lygia Clark,
que convocam potências interiores nos sujeitos que as usam.”53
Como enunciado anteriormente, não colocaria as duas artistas de maneira
tão distante como o faz OSÓRIO. Apesar de concordar com o autor que o
posicionamento das duas artistas perante a realidade é muito diferente, ambas
se dispõem a discutir esse posicionamento e ambas propõem não só uma
reflexão, mas uma experiência e uma nova postura do espectador perante ela,
independentemente do nível em que é tratada, inserindo-o em situações que
reconstroem a percepção da mesma.

Nas obras “Costumes” e “Novos Costumes”, em que cria “vestíveis” a


partir do recorte e colagem de vinil, muito pouco funcionais e repletos de
ornamentos, promove discussões a cerca do vestir e do ornar. Para OSÓRIO,
os “Costumes” “são fragmentos enxertados, extensões, quase próteses para
roupas, produzindo delírios ornamentais, adereços para um corpo lúdico e anti-
funcional. Os Costumes apostam na intervenção artificial que perverte a lógica
orgânica, sempre funcional e integrada”.54

53
OSÓRIO, Luiz Camillo
54
OSÓRIO, Luiz Camillo

47
Fig. 10 Um dos "Novos Costumes" de Laura Lima foto: Ana Torres

Curiosamente, associando uma passagem de “O Kitsch” à obra de Laura


Lima, tem-se mais uma subversão do funcionalismo em defesa da percepção.
Em determinado momento no item “Funcionalidade e prazer estético”, MOLES
diz que:

“Os fundadores [do Funcionalismo] consideravam-na [função estética]


inserida na própria existência do semântico, vendo na adequação ao
objetivo uma forma fechada no sentido da Gestalt, e no prazer de
fechar uma forma, colada ao ambiente, a própria função estética. De
qualquer maneira, tal idéia torna a relação estéticasemântica um
dipolo dialético perfeitamente ortogonal ao dipolo naturalartificial.
E rejeita qualquer sinonímia subjacente ou qualquer correlação entre
a Natureza e o prazer estético e, com isso, denuncia a tendência
Kitsch e modern style de recobrir os produtos humanos com flores e
outros elementos da natureza.”55
Da mesma forma “os Costumes jogam com esta possibilidade de uma
outra pele que nos encobre e nos revela, simultaneamente, como coisas que
sentem”56, e sentindo, tanto pelo toque, como pela limitação ou refazimento da
movimentação ou pelo seu apelo kitsch do ornamento, os “Costumes” de Laura

55
MOLES, Abraham p.154
56
OSÓRIO, Luiz Camillo

48
Lima flertam com a desestruturação dos sistemas de alienação que se dão pela
materialidade inconseqüente e pelo consumo desenfreado e irracional.

Luiz Camillo Osório continua dizendo que “a roupa além de sua função
orgânica, afirmar-se-ia como um suplemento poético, um desejo de
individuação”. A roupa, sendo um objeto de design é também um dos
elementos em direção a essa libertação do homem por meio da própria
materialidade inconseqüente que o oprime sem mesmo perceber. As “roupas”
de Laura portam-se desta mesma maneira, sendo desconfortáveis e pouco
convencionais, transformando não só a relação do usuário com seu corpo, mas
também com o ambiente que o rodeia. Isto pois, o ambiente urbano, não tendo
sido projetado para manifestações de excentricidades como as relacionadas
aos “Costumes” torna-se instável. É difícil passar por portas, não esbarrar em
objetos e impossível manter-se indiferente diante dessas “roupas”. Desta forma
a geografia dos espaços deve ser modificada para a permanência desses
vestíveis. Ao mesmo tempo a relação é ambígua, pois é a materialidade
reestruturando a presença física do homem que, por sua vez, reestrutura seu
ambiente para permitir a permanência da relação entre homem e costume. No
entanto a relação homem/objeto é elevada a muitas potências, evidenciado as
situações, cumprindo seu papel de ampliar, para então denunciar as
disparidades. Sobre outro trabalho da artista, o
“Homem=Carne/Mulher=Carne”, Ricardo Basbaum diz que:

“seu projeto parece ser mesmo o de uma engenharia (ou uma


didática) de construção e modelagem, em que cada nova proposta
carrega uma proposição de funcionalidade própria, dentro do campo
lúdico da experiência e da determinação arbitrária de limites.”57
Segundo BASBAUM, o trabalho se dá da seguinte maneira:

“a carne é tomada pela artista como matéria de engenharia com a


qual vai moldar os organismos equipados com instruções precisas de
performance. Ou seja, trata-se não de “carne em estado bruto” mas
de uma “carne informada” por um programa deliberado e explícito,
que se superpõe à Pessoa (mulher, homem, criança, jovem, velha,
etc) capturada pela realização da atividade proposta. Assim, a fórmula

57
BASBAUM, Ricardo

49
de Laura Lima “Homem, Mulher=Carne” indicaria a efetiva construção
de um choque, de um confronto entre a pessoa (que já chega como
um organismo carregando traços de uma individualização qualquer,
então reduzida e categorizada em termos de gênero, idade, aspecto
físico) e sua transformação em carne, portando o programa de
funcionamento trazido pela artista”.58
Esse trecho retirado do texto, obviamente não por acaso, entitulado “A
artista como predadora”, evidencia um paradoxo na obra de Laura Lima muito
conveniente às discussões aqui realizadas. Ao passo que cria trabalhos como
os “Costumes” e “Nômades”, que reestruturam o existir do homem no espaço e
na sociedade, revelando as discrepâncias e salientando o poder subversivo
dos objetos sobre estruturas perniciosas do processo civilizatório, também cria
trabalhos como os “Homem=Carne/Mulher=Carne” que retiram a
individualidade e humanidade dessas pessoas e as transformam em uma
“carne” condicionada à execução de uma função estabelecida pela artista.
Desta maneira, a relevância do trabalho de Laura Lima ultrapassa a
demonstração do poder da materialidade sobre o corpo pelos seus vestíveis,
mas toda a sua obra como artista, evidenciando as disparidades das relações
de poder entre os homens e, muitas vezes, mediadas pelos objetos. Assim, ela
não só desconstrói a rigidez cultivada nos corpos pelas convenções e por todos
os fatores que aqui vem sendo tratados, mas propõe uma reflexão sobre toda a
estrutura que envolve esse endurecimento e transformação dos homens em
carne.

3.3 Hélio Oiticica

A obra de Hélio Oiticica é uma referência de relevância primordial, assim


como a de Laura Lima e Lygia Clark, para a compreensão dos apontamentos
de “A Cadeira Bamba” por meio da arte e seus híbridos. Oiticica e Clark,
contemporâneos e admiradores mútuos nos anos 1960 e 1970 no Brasil, “cada

58
BASBAUM, Ricardo

50
um a seu modo” segundo David Sperling “construiu intenso cruzamento arte-
vida”59 e continua dizendo que:

“A grande afinidade de Oiticica e Clark quanto à superação da arte


como representação e à necessária investida da ação artística no
espaço da vida cotidiana – impressos de modos particulares em suas
trajetórias, mas acompanhadas por certa sincronia em suas
proposições – delineia a constituição de um pensamento de
vanguarda na arte brasileira.”60
Essa relação de proximidade nas proposições de cada um acerca da
relação arte-vida se dá de maneira complementar, uma à outra. “Oiticica
imprime um enfoque da percepção do corpo por sua – cada vez mais –
extroversão e Clark, ao contrário, da percepção do corpo por sua – cada vez
mais – introversão”. Apesar disso, as proposições de ambos, segundo Ricardo
Basbaum, “sempre convidaram VOCÊ a ativá-las, a „conectar-se e ser
conectado‟”61. Os artistas colocam então a responsabilidade pela mudança nas
mãos do observador-experimentador e assumem a posição de propositores e
catalisadores de uma movimentação conceitual que se pode tornar efetiva
apenas por meio da ação de quem recebe a proposição. Assim como nos diria
Sol Lewitt em um de seus textos sobre arte conceitual: “Trata-se somente de
um pontapé emocional” e continua dizendo que:

“Uma vez que a obra sai de suas mãos, o artista não possui mais
controle sobre a maneira como o espectador perceberá a obra de
arte. Pessoas diferentes entenderão a mesma coisa de maneiras
diferentes.”
Com essa citação Lewitt nos aproxima ainda mais desse questionamento
dos modelos imagéticos que vem sendo praticados em nossa sociedade que
visam, em geral, a transmissão de uma única mensagem da forma mais clara e
objetiva quão seja possível, não permitindo nuances ou interpretações mais
fluidas no instante da recepção. O que se defende então é um modelo que
permita interpretações diferentes e até divergentes sobre um mesmo assunto

59
SPERLING, David
60
SPERLING, David
61
BASBAUM, Ricardo

51
feitas por pessoas igualmente diferentes. Essa valorização do indivíduo como
portador de uma narrativa de vida muito particular se aproxima das proposições
de Oiticica e a obra deste coloca o espectador como item relevante nas
dinâmicas coletivas da sociedade:

“Vestir-se com um Parangolé implica, de acordo com Oiticica, uma


“transmutação expressivo-corporal”, aguçando-se a própria
consciência do corpo, movimento, ambiente e suas relações – como
se, por exemplo, a pessoa estivesse num palco, onde toda ação é
magnificada e toma uma nova significação. À medida em que um
“outro” assiste ao movimento dessa pessoa, uma consciência do self
e dinâmicas sociais são colocadas em ação, criando um espaço inter-
corporal que o Parangolé media ativamente.”62

Fig. 11 Menino vestindo um dos "Parangolés" de Hélio Oiticica

Definindo o “Parangolé” Jordan Crandall diz que este “tomava a forma de


uma roupa maleável que podia ser vestida, parecida com uma capa ou manto,
feita de uma ou mais camadas de material brilhantemente colorido que requer
movimento direto do corpo e se revela nesse ato”63. Este tipo de objeto é
relevante especialmente por que “constitui um elemento mediador fluido,

62
CRANDALL, Jordan
63
CRANDALL, Jordan

52
através do qual procura-se desnudar a “modelagem perceptiva” da estrutura
sócio-ambiental – estrutura-ação no espaço”64. Neste momento torna-se muito
relevante novamente citar Sol Lewitt pela forma como este define “percepção”:
“Eu uso o termo “percepção” com o significado da apreensão de dados
sensíveis, a compreensão objetiva da idéia e simultaneamente uma
interpretação subjetiva de ambos.”65 É desta forma de percepção que os
artistas aqui abordados lançam mão em suas obras, assim como é a mesma
que aqui estamos discutindo. O curioso sobre a forma como Oiticica
experimenta essas questões são as características de coletividade e
extroversão de suas experimentações.

Para Basbaum “atuar com o Parangolé é um ato de participação


“ambiental”, parte da “criação de um mundo ambiental””. E ainda nos diz que:

“As peças de Clark e Oiticica podem ser consideradas extensões


sensoriais de duas maneiras: primeiro, no sentido de expandirem a
consciência, gerando uma quantidade adicional de incremento
sensorial que conduz efeitos transformativos para o corpo-mente.
Lygia Clark escreve sobre um processo de “metabolismo simbólico”, o
que significa que a transformação não é do tipo metafórico: a interface
corpo/objeto (via dimensão sensorial) opera um amálgama de signos
orgânico-conceituais que criam novas formas no corpo. (...) Seus
trabalhos podem ser definidos como tecnologia de pensamento
sensorial – um modo de induzir processos transformativos.(...)
Produzir transformações, então, deveria ser visto não como uma
qualidade, mas como uma condição ou propriedade do movimento.”
Todas essas reflexões de Basbaum sobre o trabalho destes dois artistas
demonstram a consciência que tinham do poder de suas obras e de como a
arte pode modificar de maneira muito real a vida das pessoas. Da mesma
forma que os objetos vêm tendo seus poderes utilizados no sentido pernicioso
de nos alienar, os artistas tomam este coeficiente transformador em suas mãos
e promovem mudanças positivas em diversos níveis da existência humana.
Nesse mesmo texto o autor faz a seguinte pergunta: “QUE TIPO DE

64
CRANDALL, Jordan
65
LEWITT, Sol

53
TRANSFORMAÇÃO queremos promover?”, e ele prossegue sem responder,
posicionando-a como propulsora de reflexão:

“Cuidado, não responda agora, seja cauteloso para não cair nas
armadilhas dessa pergunta ardilosa: se um “projeto de metamorfose”
soa como oximoro, em porque o processo transformacional não está
submisso a uma relação linear de causa-efeito”.
O autor então nos coloca diante de uma questão que tratamos
anteriormente de que, já que temos em mãos o poder transformador da
materialidade, o que queremos transformar e como o faremos? Nos
trazendo assim à irrefutável questão da responsabilidade associada às
transformações. E esbarramos inclusive em um entrave retórico: já que
estamos propondo modificações visando à liberdade e consciência por
meio da percepção, levamos em consideração que os receptores desta
ação estão, senão por completo, parcialmente obtusos e, desta maneira
incapazes de compreenderem suas atitudes em sua plenitude e que nem
tenham propriedade sobre suas escolhas. E tomamos a decisão por eles
de que devem ser libertados, atuando de forma absolutamente arbitrária
sobre suas vidas. Bom, é inevitavelmente um entrave. Assemelha-se
muito à atitude de Le Corbusier, enunciada por ARGAN no primeiro
capítulo desta obra, de tomar os problemas do mundo em suas mãos e
querer resolvê-los. Ironicamente critiquei-o no decorrer da obra, no
entanto pareço recair no mesmo erro. Contudo, a atitude heróica presente
nesta obra se dá somente no instante do despertar da consciência, a
partir de então tudo permanece nas mãos do usuário. Este entrave deve
ser derrubado para que possamos seguir com as discussões, proposições
e ações. Devemos então recorrer ao iluminismo, cujo um de seus
principais representantes, o britânico John Locke, nos dizia que todo
homem tem direito a “vida, propriedade e liberdade”, assim sendo,
considero plenamente aceitável a opção por uma breve incursão
despótica para garantir uma consciência e liberdade a longo prazo, visto
que tais direitos enunciados pelo britânico não estão sendo plenamente
garantidos. Assim o entrave é derrubado da mesma forma como se
propõe a geração da percepção neste texto: abre-se mão de um

54
convencionado conforto e estabilidade em prol de uma melhor condição
existencial a longo prazo desencadeada pela consciência.

3.4 Marina Abramovic

E nessa mesma luta contra o despotismo da materialidade em que


se colocavam Hélio, Lygia e alguns outros já citados aqui, a artista Marina
Abramovic (Belgrado, 1946) coloca-se na linha de frente. Esta última
encontra paralelo direto com estes artistas, partindo do princípio de que
especialmente esses dois brasileiros, segundo Basbaum: “(...) querem
liberar e expandir o corpo-mente, estão lutando contra as limitações
sociais, culturais e políticas de seu tempo, estabelecendo uma estratégia
eficaz para um combate concreto. Isso permite que permeiem suas
proposições com um sopor de utopia, no sentido do permanente
engajamento na criação de um homem/mulher desreprimido.”66

A aproximação da artista sérvia com Clark se dá, segundo Adolfo Montejo


Navas, pelas “suas atividades com vídeos, fotografias, instalações, objetos,
textos e outros meios” que, continua o autor, “parecem reconhecer, nas
performances, o eixo central de sua poética de plurisensorialidade, reconhecida
pelo grau de experimentação psíquica, a introspecção autobiográfica e a
experiência de limite, além de produzir uma alta transferências de energia, que
exigem uma correspondência com o espectador.” Discute-se aqui o aspecto de
confronto com o observador presente na obra da artista, que torna seu trabalho
ainda mais efetivo na lida com o espectador que, ao se incomodar pela mera
observação das situações limítrofes propostas e vivenciadas em suas obras é
colocado numa situação de reflexão e reavaliação de sua condição, qualquer
que seja ela. Abramovic, além de uma artista pioneira cuja obra se demonstra
muito relevante para essas discussões, sua figura como articuladora e
propositora de discussões, inclusive fora de sua obra, apresentam argumentos

55
favoráveis ao que se está propondo. A artista, tratando desses manipuladores
da materialidade por meio de processos conceituais e posteriormente físicos
(artistas, designers etc), diz:

“Acho que o trabalho do artista é trazer consciência ao público: por


que nossas vidas estão mais rápidas? Porque não temos paz de
espírito? Porque estamos sempre estressados? Então o trabalho tem
que ser mais longo, para que as pessoas possam começar a pensar e
sejam levadas a outros contextos.”
Essa sua fala sela e dá o respaldo necessário, visto a seriedade com que
seu trabalho é realizado e suas inquestionáveis contribuições para a história da
arte, ao que estamos discutindo. Sendo artista, Marina Abramovic compreende
e questiona seu tempo, sendo este um dos principais atributos de seu trabalho.
Ela, assim como eu, você, caro leitor que vem se elucidando e ampliando sua
percepção da realidade ao ler estas páginas, e alguns contemporâneos
nossos, vêm se dando conta das condições em que vivemos. Não são as
melhores a despeito do alto grau de desenvolvimento que alcançados pela
nossa civilização. Abramovic nos diz que “agora é um momento chave, pois
estamos no início de um período de grandes mudanças, não estamos
funcionando bem, algo tem que mudar.” E da mesma forma que ela faz esse
diagnóstico pessimista (ou talvez realista) sobre o mundo, ela confere às artes
o poder, que para a artista é um dever, de transformação: “a arte tem que
estar a serviço da sociedade, tem que trazer consciência, tem que fazer ligação
entre o espiritual e o físico. E agora, com tudo entrando em colapso, temos um
momento bom para reflexão.” Ao fazer essa declaração de princípios ela
confere à atividade artística um poder de modificar o espiritual, assim como o
físico. Como praticantes destas atividades não podemos nos abster e fugirmos
a uma luta que é de todos os seres humanos de tornar nossas próprias vidas
melhores, mais dignas e mais agradáveis. Tais condições devem surgir,
principalmente do bem-estar da psiqué. Temos o acesso direto a esses níveis
de consciência, visto os trabalhos de Clark, cabe então a nós abdicarmos das
frivolidades cada vez mais praticadas e provermos consciência a qualquer
custo. A verdade e a dignidade devem ser elementares.

56
Considerações Finais - A Cadeira Bamba

A metáfora da “cadeira bamba” se dispõe a evidenciar aos projetistas a


sua responsabilidade e poder social para que estes possam contribuir para o
despertar da sociedade em relação aos seus próprios problemas e que esta
levante-se e caminhe em direção a um progresso racional por meio de
alternativas que instiguem e promovam a reflexão por meio da percepção nos
usuários. Talvez este tenha sido um dos grandes erros do modernismo: ser
racionalista apenas na concepção, apenas os projetistas do alto de suas
pranchetas observando o mundo e sendo racionais por ele, relegando a
humanidade à aceitação e utilização indiscriminada daqueles “objetos
indefectíveis”.

“A Cadeira Bamba: apontamentos para um design libertador” ultrapassa


os limites do design como disciplina da forma que a conhecemos. Assim como
Lucienne Roberts nos diz que “não vemos o design(...) como arte, mas vemos
a arte como uma forma de design”67, a arquitetura e tantas outras áreas do
conhecimento humano podem aqui ser enquadradas por designarem
materialidades em direção a um sentido especificado assim como a arte e o
design per si como já o conhecemos. Assim a “Cadeira Bamba” mira muito
além do “design” que tratamos na linguagem corrente, mas de toda essa infinita
gama de designs que surgem em nossos tempos, muitas vezes de maneira
indiscriminada e pretensiosa, mas geralmente portadores de muito poder.

A metáfora da “Cadeira Bamba” tem várias camadas de possíveis


leituras, mas as duas principais, inclusive as que motivaram-me a escolhê-la
para intitular esta obra, são: primeiro porque trata-se de uma completa
subversão dos valores modernistas que almejavam estes objetos perfeitos que
BERRY chega ao extrema de desejar que fossem invisíveis por meio de sua
perfeição. E, esta obra sendo uma questionadora da prática dos valores
modernos na contemporaneidade, encaixa-se perfeitamente nessa leitura da
metáfora: uma cadeira bamba é exatamente o que não se esperaria como
67
ROBERTS, Lucienne apud MAZZUCCHELLI, Kiki (2008)

57
resultado de um projeto modernista. O Segundo motivo, e talvez o mais
importante, seja o dessa cadeira surpreender o usuário que nela se senta. Ela
o desequilibra primeiro fisicamente e depois conceitualmente. O usuário não
apenas senta-se, mas percebe o objeto e assim toma consciência de sua
existência, desencadeando o processo da possibilidade de escolha e tomada
de decisão sobre suas atitudes em relação a esse e outros objetos. Além é
claro de a cadeira ser uma aproximação metafórica muito clara da figura do ser
humano. Estabelece-se então uma situação de liberdade em que o homem,
criador dessa materialidade, toma em suas mãos o poder de decidir sobre o
destino desses objetos, suas criações e, no macrocosmo, de sua vida. Quebra-
se o processo de submissão do homem que se tornou dependente de suas
próprias criaturas e mal sabe viver sem as tais e nem sequer mais as percebe,
além de estar sujeito a outras relações sociais associadas a elas como o
consumismo e a estetização extrema da vida.

Partindo do princípio de que o design exige uma interface com o usuário,


ele deve ser projetado para ser utilizado por alguém. Como então ele pode ser
funcional, ou sequer design per si, se o usuário o utiliza sem percebê-lo? Desta
forma mais parece que o design faz-se ser usado ao invés do oposto. É com
isso que a “Cadeira Bamba” pretende acabar: colocar as coisas nos seus
devidos lugares: criador como portador de poder de escolha e criação como
uma ferramenta do criador.

Em 2009 a Revista Das Artes colocou a seguinte questão ao artista


espanhol Antoni Muntadas: “ Em algum momento você chegou a dizer que a
arte deve ter uma função social, deve ter uma utilidade. Nesse caso, não se
pode falar em arte sem público, sem comunicação. Você se interessa
especialmente pelo público...”. Ele respondeu: “Eu vou dizer algo que acho que
já disse, e que muita gente já disse também. Não há livro sem leitor, nem um
filme sem alguém que o veja. O público fecha o círculo, e o faz de diferentes
formas. (...) Eu acho que a interpretação e os valores pessoais precisam ser
enfatizados. Voltemos ao lema: Warning: Perception requires involvement
(“Atenção: Percepção requer envolvimento”).”

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Muntadas nos coloca diante da situação de uma manipulação de uma
materialidade em função dos seres humanos que só pode existir quando é feita
em função e tendo a plena participação tanto na concepção, quanto na
utilização e em todos os outros recantos do processos, desta última parte: os
seres humanos. O Homem deve permear todo o processo.

Sobre tal, ao fim de uma obra tão repleta de subjetividades, deixo minha
própria inquietação e reflexão para sua apreciação, caríssimo leitor que se
dignou a ler estas páginas.

Um trabalho científico, a despeito do verniz cartesiano no qual é


envolvido, é feito por seres humanos e, assim sendo, acho pouco provável o
estabelecimento de um objetivo e um caminho em sua direção absolutamente
reto, direto, prático e objetivo, sem desvios, sem dúvidas, sem insights,
especialmente em um estudo de uma ciência humana, como este o é. “A
Cadeira Bamba” havia surgido como uma proposição de uma materialidade
que trouxesse o homem de volta à consciência de sua existência física. Como
dito no início do texto, essa obra surgiu e continua muito ampla e ambiciosa.
No entanto confesso, despindo-me desta fantasia cartesiana da ciência e
falando como homem, que quando, num vislumbre, me dei conta da obra de
tantos artistas e referências às vezes até alheias ao tema a princípio e
principalmente o trabalho de Lygia Clark, como sendo uma proposição de uma
materialidade que não só traz à consciência do físico, mas também do
metafísico, me detive diante do quão pequenas são nossas aspirações
humanas, por maiores que pareçam. Fui tomado pela constatação de que é
possível ir ainda além daquilo que havia proposto a princípio. Julgava tudo que
havia elucubrado tão grandioso e agora me parece tão pequeno diante destas
tantas reflexões inquietas que continuam a permear meus pensamentos.
Provavelmente a citação a seguir abarque muitos, se não todos os assuntos
que nessa obra tentei elucidar e espero que, ao encerrar este texto, elas
continuem permeando seus pensamentos assim como continuam a permear os
meus:

“Aqui não se trata da participação pela participação, nem da agressão


pela agressão, mas que o participante dê um sentido a seu gesto e que
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seu ato seja nutrido de um pensamento: a ocorrência do jogo coloca
em evidência sua liberdade de ação.”68

68
CLARK, Lygia apud SPERLING, David

60
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