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O Eu-pele:
contribuições de Didier Anzieu
para a clínica da psicanálise
Ligia Maria Durski
Gilberto Safra
Resumo
Este trabalho configura-se como uma resenha crítica da obra de Didier Anzieu intitulada O Eu
-pele (1985). Destacamos aqui algumas contribuições do autor para uma reflexão sobre a clínica
da psicanálise, especialmente a partir de casos que remontam a problemas, abalos, insuficiências
nos limites do Eu. Sublinhamos a ideia de “Eu-pele”, de Didier Anzieu, sobre a formação do Eu
e suas relações com o órgão que cobre nosso corpo orgânico: a pele.
Palavras-chave
Psicanálise, Clínica, Formação do Eu, Pele, Corpo.
dade emergem inúmeros modos de o ser Com isso, Anzieu realiza um paralelo
humano buscar estabelecer uma pele para entre nossa superfície cutânea e a forma-
o seu eu desalojado, por exemplo, o uso ção do Eu e aponta para o que ele nomeou
epidêmico dos anabolizantes, do botox, de uma “passagem do Eu-pele ao Eu psí-
das próteses de silicone, da intensa or- quico”, passagem que demonstraria que
ganização da aparência de si por meio de o Eu psíquico tem suas raízes no Eu-pele.
composições estéticas, na expectativa de Portanto, a pele é aqui pensada como
vir a encontrar o olhar do outro que lhe a base orgânica que auxilia – o que sig-
possa ofertar alojamento e morada. nifica que não necessariamente garante
Tal é, portanto, a posição de Anzieu – a fundamentação de funções específicas
ao fundamentar seu conceito/metáfora para futuras organizações do Eu.
do Eu-pele: Reconhecemos essa perspectiva como
significativa, pois a clínica assinala a im-
[Com o Eu-pele, procuro uma formulação portância do manuseio do corpo do bebê
que] respeite a especificidade dos fenô- não só para o desenvolvimento da elabo-
menos psíquicos em relação às realidades ração imaginativa do corpo, oferecendo
orgânicas como também em relação aos a tessitura simbólica necessária para o
fatos sociais – em resumo, um modelo que estabelecimento e desenvolvimento do
me pareça apto a enriquecer a psicologia psiquismo, como também para a cons-
e a psicanálise em sua teoria e sua prática tituição da unidade psicossomática – a
(Anzieu, 1985, p. 5). possibilidade de o corpo vir a ser a morada
da experiência de si.
Vale acrescentar que Anzieu demons- Vejamos, pois, algumas asserções de
tra ter teorizado o Eu-pele a partir de Anzieu sobre características da pele que
dados oriundos de sua clínica, de casos de fundamentariam certas funções do Eu:
pacientes que pareciam sofrer de “proble- • A pele, além de ser a matéria que
mas e incertezas com relação aos limites”. cobre todo o nosso corpo orgânico servin-
Eram pacientes que apresentavam: do, portanto, de proteção, de sustentação
e de diferenciação, fornece outros índices
[...] incertezas sobre as fronteiras entre o de qualidade, tais como calor, frio, pressão,
Eu psíquico e o Eu corporal, entre o Eu dor, irritação, etc. Ou seja, percepções
realidade e o Eu ideal, entre o que de- táteis, térmicas e dolorosas.
pende do Self e o que depende do outro, • A pele, inteiramente coberta de
bruscas flutuações destas fronteiras, terminações nervosas, capta e transmite
acompanhadas de quedas na depressão, excitações e possibilita úteis informações
indiferenciação das zonas erógenas, sobre a realidade.
confusão das experiências agradáveis e • A pele também fornece numerosos
dolorosas, não distinção pulsional que faz exemplos de funcionamento paradoxal –
sentir a emergência de uma pulsão como lembremos que, ao tocar, somos também
violência e não como desejo, vulnerabili- tocados – e faz com que Anzieu se per-
dade à ferida narcísica devido à fraqueza gunte “[...] se a paradoxalidade psíquica
ou às falhas do envelope psíquico, sen- não encontra na pele uma parte de sua
sação difusa de mal-estar, sentimento sustentação” (Anzieu, 1985, p. 19).
de não habitar sua vida, de ver de fora Esclareçamos igualmente que o fato
funcionar seu corpo e seu pensamento, de “ao tocarmos algo, somos concomitan-
de ser expectador de alguma coisa que é e temente tocados por esse algo” é, na obra
que não é sua própria existência (Anzieu, de Anzieu, de grande importância para a
1985, p. 8). futura capacidade reflexiva do Eu (assim
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resumida: “Eu me toco”), capacidade que mergulhado, superfície e volume que lhe
aponta para algo da ordem de um “dois em trazem a experiência de um continente.
um”, no qual se é sujeito e objeto de uma (Anzieu, 1985, p. 41).
mesma ação. Em resumo, a superfície do corpo,
Essa perspectiva é bastante interes- como um limite real de diferenciação entre
sante, pois assinala que muito precoce- o dentro e o fora do corpo orgânico, terá
mente a constituição do si mesmo ocorre por base imaginária o que Anzieu nomeia
por meio do que poderíamos denominar de Eu-pele, e será a base de um eixo narcí-
de experiências fundantes de intercorpo- sico próprio da constituição do psiquismo,
reidade. que tem funções e consequências específi-
Pois bem, com essa base no corpo cas dependendo de como se deu (ou não)
orgânico, na superfície cutânea, não po- tal constituição.
demos desconsiderar a importância das No campo da psicossomática, é fre-
ações realizadas sobre o corpo do bebê quente observar doenças da pele relacio-
e das consequências de tais ações para o nadas ao modo como a pessoa busca não
desenvolvimento de seu psiquismo. só encontrar os limites do interno e do
Em outras palavras: externo em sua corporeidade, mas tam-
bém como esperança de vir a encontrar
[Devemos considerar que] a maneira o toque terno do corpo do outro, que lhe
como uma criança se desenvolve de- possibilite a experiência de existir em sua
pende em boa parte do conjunto dos corporeidade.
cuidados que ela recebe durante sua Num aprofundamento sobre as suas
infância, não apenas da relação de ali- teorizações, é possível asseverar que a
mentação; que a libido não percorre a metáfora do Eu-pele foi criada por Anzieu
série de fases descritas por Freud quando para responder ao fato de o ponto de vista
o psiquismo do bebê sofreu violências; econômico sobre o aparelho psíquico – em
e que um desvio maior das primeiras termos de acumulação, deslocamento e
relações mãe-filho provoca neste úl- descarga de tensão – pressupor, dentro da
timo graves alterações de seu equilíbrio tópica psíquica, um início de formação
econômico e de sua organização tópica do Eu particularmente próximo ao corpo
(Anzieu, 1985, p. 25). orgânico.
Nesse sentido, o Eu-pele é a base de
Anzieu ressalta que a união sólida sustentação para a formação do futuro
entre o Eu psíquico e o corpo orgânico Eu psíquico, uma base ‘mais próxima’ do
dependerá, consequentemente, das rela- corpo orgânico, por assim dizer. E nesse
ções estabelecidas entre a dupla mãe-bebê. início parece não haver diferenciação
Ou seja, os limites da imagem do corpo e representação da unidade corporal, é
(ou a imagem dos limites do corpo) são como se fosse preciso, para que um Eu
também especialmente adquiridos durante se forme, a experiência da pele como
o processo de fusão/desfusão da criança experiência paradoxal de si e do outro
em relação com a mãe (e/ou substitutos). em único evento.
Essas atividades (o manejo do corpo Além disso, as fantasias de esva-
do bebê) conduzem progressivamente a ziamento, que Anzieu presenciara em
criança a diferenciar uma superfície que sua clínica, o levaram a inferir que tal
comporte uma face interna e uma face início de formação está particularmente
externa, isto é, uma interface que permite relacionado à ideia de ‘bolsa’, ‘contorno’,
a distinção do de fora e do de dentro, e ‘continente’, ‘capa protetora’, enfim,
um volume ambiente no qual ele se sente pele.
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O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise
Keywords
Psychoanalysis, Clinic, Ego organization,
Skin and Body.
Referência
ANZIEU, D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psi-
cólogo, 1988.
Gilberto Safra
E-mail: <iamsafra@usp.br>