Professional Documents
Culture Documents
Friedrich Nietzsche (1844-1900) ainda hoje é um autor que chama a atenção de muitos
leitores. Seja porque Foucault, Heidegger ou Sartre o tenham citado amplamente, seja porque
tantos outros o chamaram de maldito (em relação à sua herança: as críticas à religião cristã).
Ou ainda por causa das deturpações que sua irmã, Elisabeth Nietzsche, promoveu em suas
obras; especialmente em Vontade de Potência, para agradar Adolf Hitler e os nazistas e se
promover na década de 1930.
Nietzsche escreveu sobre arte (literatura e música), moral e ética, religião, antropologia, teoria
do conhecimento e também é autor de um romance losó co, o Assim falou Zaratustra. A di
culdade para ler Nietzsche está no fato de, além das traduções do alemão para o português
nem sempre serem éis, ele não separar tais assuntos em obras sistematizadas (por exemplo,
Kant - 1724/1804 - o fez), mas aqueles que querem escutar Nietzsche por meio de suas obras
devem executar verdadeiro trabalho de pesquisador atento, pois são muitos os jogos de
linguagem que ele usa, os trocadilhos e ironias, interjeições etc.
Mas Nietzsche era um lósofo do porvir, como gostava de salientar, e isso porque talvez, mais
do que um aFeuerbach (1804-1872) ou um Schopenhauer (1788-1860), tenha vivido na
própria carne seu tempo e as mazelas da Europa de m de século com a Guerra Franco-
Prussiana, que abalou as bases culturais do continente.
(1820-1895) já o tinham feito. Feuerbach mostra que foi em Landshut, no atual território da
o homem quem criou "deus" e não o contrário, e isso se Alemanha, Ludwig Andreas Feuerbach
deu quando o homem projetou em um ser imaginário (1804-1872) foi um pensador humanista
tudo aquilo que desejava ter: imortalidade, sabedoria, que se destacou por suas obras em que
Mas aí surge Nietzsche com outro foco crítico contra a doutrina cristã, a moral e sua gênese. E
é para entender isso que não se poderia inescrupulosamente apresentar o autor sem seu
contexto histórico e sem aqueles que o antecederam. Da mesma forma como é importante
avisar àqueles que tomam primeiro contato com Nietzsche e suas polêmicas declarações de
que ele não con ita apenas uma das igrejas cristãs, mas todas.
Para Nietzsche, o Ocidente, adotando a ética cristã, negou a vida real (material). Então,
segundo ele, a doutrina judaico-cristã, com o conceito de "Deus castigador", moralista e juiz de
homens como no Antigo Testamento, serviu apenas como um "cabresto". Jesus, com ideias
como "ressurreição" e "mundo melhor" após a morte, apenas contribuiu para que todos se
penitenciassem para escapar do pecado original. Mas esse pecado é impossível para
Nietzsche quando ele pressupõe que o homem não tem "alma" (no sentido de algo que
sobrevive após a morte) e que "Deus" não existe fora da mente humana.
O homem, então, é concebido apenas pela força da natureza e se perece com a morte. Caso
isso seja verdade, infere Nietzsche que o "pecado" não passa de invenção que alimenta o
medo (medo de morrer e ir para o "inferno"), medo este que é o fundamento da moral cristã.
Em sua Genealogia da Moral, Nietzsche a rma que primeiramente a moral foi criada para
impedir o homem de cair no niilismo e para dar explicações para a vida e seus sofrimentos.
Entretanto, seu principal fator de fundamentação se constituiu no medo (NIETZSCHE,
Genealogia da Moral In: Os Pensadores, p. 333). Quer dizer, o que o autor percebe de nocivo
aí é que não há nenhuma relação de amor ou gratuidade com um suposto "Deus", o que há é o
culto de "Deus" pelo homem porque o homem é um "covarde da vida". Teme suas mazelas e
se esconde atrás de "Deus", que serve como muleta.
Nietzsche diz que é esse medo que gera a angústia diante da vida e acarreta a busca do
perdão de "Deus". O problema para Nietzsche está no administrador do perdão, o sacerdote.
Para Nietzsche, a lei, falando pela boca do sacerdote, transforma-se na moral vigente. Há uma
máscara sobre "Deus", porque o sacerdote ganha para si o poder da lei, personi cando "Deus".
E, como a lei vem de um "Deus" que precisa de intérpretes (pois os textos bíblicos são a única
manifestação que o crente aceita como tal), os homens elegem o sacerdote como o intérprete
de "Deus". Mas aí surge outro problema, diz Nietzsche: se "Deus" é juiz dos homens e o
sacerdote (padre ou pastor cristão) é seu porta-voz, então, na realidade, é o sacerdote quem
julga os homens? Sim, diz ele, porque mesmo que "Deus" exista quem dá a última palavra é o
sacerdote.
Assim, o sacerdote, se é quem controla o divino (porque interpreta a lei e "sabe" o que "Deus"
quer dos homens), controlando o mundo terreno e controlando as coisas da Terra, controla o
comportamento das pessoas por meio da moral. Assim Nietzsche mostra como os homens se
deixam aprisionar por uma metafísica, ou seja, moral cristã, que é reproduzida de geração a
geração e pela qual são punidos aqueles que desejam apontar suas contradições. É por isso,
conclui Nietzsche, que a moral é uma "prisão" para os homens.
Quanto ao crente (cristão), este se deixa guiar passionalmente por acreditar que o sacerdote o
levará ao paraíso com a graça de "Deus". Mas, para Nietzsche, esse "Deus" (como já foi dito) é
uma muleta que serve para o homem amenizar sua fraqueza carnal diante do mundo real.
Logo, Nietzsche rejeita a doutrina cristã, chamando-a de "moral de rebanho". "Moral de fracos"
que se unem para louvar "Deus" (o cabresto) e pedir perdão a "ele". A moral cristã que
arrebanha crentes para cultuar "Deus" recruta culpados para que "ele" seja reconhecido como
tal. O menosprezo pelo homem que eleva "Deus" torna-o algoz do homem. Foi por isso que
Nietzsche a rmou no Anticristo: "Deus está morto".
O PROBLEMA DA MORAL CRISTÃ
Nietzsche diz que o homem era uma "caricatura", um "aborto" e que assim é que foi feito um
pecador. "Estava enjaulado, fora encerrado no meio de ideias espantosas. Doente e miserável
se aborrecia a si mesmo, estava repleto de ódio contra os instintos da vida, repleto de descon
ança em relação a tudo que permanecia sendo forte e feliz. Em uma palavra: era cristão"
(Idem).
Aqui Nietzsche aponta alguns malefícios que a moral cristã fez ao homem em geral, enjaular o
humano (o animal) e domesticá-lo foi já transformálo em algo doente e estabelecer nele valores
niilistas, porque se negou uma parte de sua própria natureza para dar lugar a outra (mutilada),
ao racionalismo, apenas. Pretende perguntar com isso onde está, a nal, o humano no cristão
quando se comporta negando a sexualidade, o corpo, o amor como encontro com o outro
(encontro até sexual). Em outras palavras, é possível perguntar: Que validade tem, a nal de
contas, ser cristão se este vive ameaçado pela terrível punição de ser excluído da presença de
Deus se não se comportar "bem"? Se não se enquadrar na sua "moral"? Para responder a isso,
Nietzsche propõe "transvalorar" todos os valores.
Diz Nietzsche que o que ele exige do " lósofo é que se coloque além do bem e do mal, que
ponha sob si a ilusão do juízo moral" (Anticristo, p. 69). Ainda diz que o "juízo moral tem
comum com o juízo religioso o crer em realidades que não existem."
Para ele, a moral é uma interpretação de certos fenômenos, mas uma falsa interpretação: "O
juízo moral pertence, como juízo religioso, a um grau de ignorância em que a noção da
realidade, a distinção entre o real e o imaginário não existe, de modo que em tal grau a palavra
'verdade' serve para expressar coisas que hoje chamamos imaginação. Por isso não se deve
nunca tomar ao pé da letra o juízo moral, pois entendido assim seria um contrassenso.
Entretanto, como semiótica possui um valor inapreciável, pois revela ao que sabe entender, ao
menos, realidades preciosas acerca das civilizações e dos gênios que não souberam o
bastante para compreender a si mesmos. A moral é apenas uma linguagem de signos, uma
sintomatologia, é preciso saber de antemão do que se trata para se poder tirar partido dela
(Crepúsculo dos ídolos, p. 69)"
Nietzsche conclui ainda que o erro da moral está em acreditar que seus princípios são
absolutos e ideais. E que seus extremos estão nos ditos homens morais. Para mudar a moral é
preciso mudar a maneira de julgar ("quem disse que o bem e o mal se medem a partir do
homem?", pergunta-se), e também mudar o seu modo de sentir. Por isso, ele a rma que a
moral, como instituição, surgiu para tirar o homem do estado de natureza, legalizar a vida em
sociedade, perpetuar os costumes e dirigir as sociedades pelas gerações como sua cultura,
mas falsa cultura porque foi construída por outros homens e não por divindade alguma.
A moral imortalizou a prática religiosa na vida cotidiana, impôs a noção de culpa (ao sujeito que
a transgredia) e determinou as relações comerciais e afetivas entre os cidadãos por meio dos
castigos: "[...] ca aqui o esquema a que eu mesmo cheguei, com fundamento em um material
relativamente pequeno e contingente. Castigo como tornar-inofensivo, como impedimento de
novo dano. Castigo como pagamento de dano a quem sofreu o dano, sob qualquer forma
(também sob a forma de uma compensação afetiva). Castigo como forma de isolamento de
uma perturbação do equilíbrio, para impedir a propagação da perturbação" (Genealogia da
Moral, p. 318)
A partir daí, pode-se argumentar por que Nietzsche propõe a transvaloração dos valores, ou
seja, a abolição da moral, o que acarreta, por conseguinte, a abolição de sua principal viga
mestra, a religião que domina o Ocidente há mais de 2 mil anos, o cristianismo. Diferentemente
de Marx, Nietzsche não pregava uma revolução para que isso acontecesse, o que ele almejava
(como solução, se é que se pode usar essa palavra) é que cada um de seus leitores tomasse
consciência desses argumentos e percebesse que ser cristão é entregar sua vida para uma
fantasia (crença em "Deus") ou para a vontade da moral dos padres. En m, é mais uma
proposta de cunho individual do que coletiva, pressupondo que seja possível cada homem e
mulher no Ocidente se conscientizar dos equívocos de sua própria cultura.
REFERÊNCIAS