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irurgia
II Série • N.° 24 • Março 2013
Epidemiologia clínica:
história e fundamentos para a sua
compreensão
Henrique Barros
Uma disciplina científica é definida pelo seu ob- saúde, o conhecimento – seja de natureza biológica,
jecto de estudo e pelos seus métodos. Assim, a epide- social ou epidemiológica – é sempre insuficiente, e
miologia clínica pode ser descrita como a aplicação por isso apela para perguntas e estudos que não foram
ao individuo doente dos princípios e dos métodos da respondidas ou delineados, deixa espaço a explicações
epidemiologia. Enquanto a epidemiologia geral es- alternativas ou atitudes conflituais. Contudo, como
tuda a distribuição da ocorrência e determinantes dos escreveu Austin Bradford-Hill, há um momento em
estados de saúde e doença em populações humanas, que tem que se agir mesmo reconhecendo que há esse
a epidemiologia clinica ocupa-se especificamente da espaço de desconhecido, quer essas decisões sejam di-
prática clínica através do estudo da variação e dos de- rigidas à saúde de toda a população ou referentes ao
terminantes da evolução da doença. Por analogia com diagnóstico e ao tratamento de um doente individual.
a epidemiologia geral, que lida com os indivíduos en- Ao leitor menos familiarizado com a história da
quanto membros de um grupo, as populações alvo em epidemiologia e a evolução da ciência clínica, a epi-
epidemiologia clínica são grupos de indivíduos doen- demiologia clínica pode parecer como um fenómeno
tes. Mas este tipo de investigação tem como unidade de moda, relativamente recente. As publicações ini-
de observação o doente e não os seus leucócitos ou os ciais contendo no seu título estas palavras datam da
seus nucleótidos. primeira metade do século vinte mas, como sempre,
A clínica – circunscrita (mesmo que de modo re- as raízes podem ser procuradas muito longe no tempo
ducionista) ao que na prática da medicina vive da ob- porque há mais de dois milénios que os médicos se
servação directa do doente – para ser compreendida, debruçam sobre as questões do diagnóstico, do prog-
aprendida e exercida necessita de um referencial, pro- nóstico e da terapêutica, que quantificados e com-
gressivamente mais absoluto, a que podemos opera- parados entre grupos e contrastados com o conheci-
cionalmente chamar causa e processo de causalidade. mento etiológico – causal – constituem o edifício da
Tendo Karl Popper como referência podemos argu- moderna epidemiologia clínica.
mentar que nenhuma quantidade de informação des- A primeira aproximação científica à escolha de um
crevendo experiências passadas nos permitirá predizer tratamento data do século XVIII. James Lind, médico
com total segurança o resultado de um novo doente a bordo do Salisbury, usou seis grupos de dois ma-
particular. Também quando aplicado aos cuidados de rinheiros para comparar o efeito de seis tratamentos
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O julgamento clínico é o resultado de informa- A discussão extensa da epidemiologia clínica obriga,
ção fornecida pelos doentes, observações realiza- como foi dito, a percorrer três domínios fundamen-
das pelo médico ou medições com grau variado tais: o diagnóstico (e mais em particular o problema
de sofisticação tecnológica, executadas sobre os dos rastreios), o prognóstico e a terapêutica. Embora
indivíduos por exemplo, bioimpedância eléc- controverso, todo o largo campo dos ensaios clínicos
trica, pressão arterial, fracção de ejecção ventri- é por muitos considerado um capítulo da epidemio-
cular) ou tendo por base amostras de material logia clínica. Neste texto vamos limitar-nos a abor-
biológico (titulação de anticorpos no líquido ce- dar as questões da variabilidade e de um elemento
falorraquidiano, contagem de leucócitos séricos especial de toda a prática clínica e epidemiológica
ou doseamento de ferro em biópsia hepática), que é o conceito de normal e de como isso resulta das
sujeitas a erros aleatórios e sistemáticos que po- mensurações.
dem perturbar a apreensão da verdadeira essência Todas as informações obtidas por observação ou
do problema em análise induzindo procedimen- após intervenção clínica são classificáveis e tendem
tos desnecessários ou não apoiando a tomada de tradicionalmente a ser descritas como pertencendo a
medidas indispensáveis; dois grandes grupos que implicam valorização e trata-
– para diminuir a probabilidade de inferências er- mento estatístico diversificado: as informações “duras”
radas, a informação clínica – qualquer que seja ou objectivas e as informações “moles” ou subjectivas.
a sua natureza – deve ser cientificamente sólida, Os dados moles são os não quantificáveis, expressos
assegurando em cada momento o máximo con- geralmente por palavras, como a dor, a náusea os tini-
trolo do efeito de vieses ou do acaso. tos ou a intensidade de um sopro carotídeo. Os dados
A epidemiologia clínica aplica portanto métodos duros são dimensionais, mensuráveis por meios físi-
epidemiológicos à actividade clínica. Ajuda a olhar cos, como a pressão arterial ou a temperatura corpo-
de forma crítica a literatura científica, dá um signi- ral, obtidos objectivamente, passíveis de registo que
ficado particular ao facto da prática clínica ser domi- permite reavaliação. O seu atributo fundamental é a
nada pela relação médico-doente que, por definição, reprodutibilidade das observações. Há um sentido ge-
é única, e ajuda a colocar o doente individual na sua neralizado em considerar os dados duros como mais
comunidade de origem, o que o permite compreen- fiáveis e por isso tendem a ser preferidos para avaliar o
der simultaneamente como um ser único e enquanto efeito das intervenções. Contudo, com o curso crónico
membro de um grupo de indivíduos com os quais das patologias e a impossibilidade de atingir “curas”,
partilha algumas características, não só no sentido da tornou-se um desafio científico atraente transformar
abordagem epidemiológica de população que pode dados moles em informações progressivamente mais
ser descrita estatisticamente – de onde o doente vem objectivas. De um ponto de vista humano pode ser
– mas enquanto mais um membro dessa outra popu- tanto ou mais importante que mostrar um aumento
lação a que passa a pertencer – o daqueles que tam- de 2 gramas por litro na hemoglobina ser capaz de ob-
bém partilham a mesma sintomatologia ou doença. jectivar que o doente se sente “bem”, considera a me-
Situar o doente dentro da sua população de origem dicação “útil” ou a sua família está “feliz” com o curso
permite ao clínico formular um certo número de hi- da doença. Por isso, tem-se investigado muito no sen-
póteses sobre o diagnóstico, prever o efeito do trata- tido de “endurecer” dados moles, através da utilização
mento ou outras consequências da decisão médica e de escalas ou índices, como é já frequente dispor para
depois recalcular probabilidades a priori com base na medir a dor, a sintomatologia depressiva, a ansiedade
informação que vai sendo obtida, ou seja, condicio- ou as diferentes dimensões da qualidade de vida.
nadas, como ensina o teorema de Bayes, o centro do Independentemente da natureza das observações
pensamento probabilístico clínico. clínicas elas terminam a ser descritas ou reconhecidas
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habitualmente se associam a doença, incapacidade ou ção das medições. Essas medições subsequentes serão
morte. Finalmente, o anormal pode ser reconhecido estimativas mais rigorosas do valor verdadeiro, que se
como uma medição passível de modificação por tra- poderia obter por intermédio de múltiplas medições
tamento, embora este conceito implique a dependên- no mesmo doente – uma realidade impraticável. As-
cia de circunstâncias temporais e até locais pois o que sim, faz todo o sentido repetir uma prova que surge
hoje não é tratável pode passar a sê-lo ou pode haver com um valor anormal, embora saibamos que quanto
modificações no limiar de anormal de acordo com a mais extremo for o valor inicial menos provável será
alteração das indicações para tratar, como aconteceu que uma medição seguinte seja normal.
com a pressão arterial ou a hiperglicemia. Este fenómeno é importante para a decisão diag-
Na prática clínica corrente, quando o médico se nóstica ou terapêutica inicial porque o médico sub-
depara com um resultado anormal, por exemplo um mete o seu doente a diversos testes clínicos (sinais,
colesterol sérico elevado, tende a pedir a sua repeti- sintomas, testes de laboratório, imagiologia) que
ção. Muitas vezes o segundo valor é normal. Perante sendo imperfeitos, para os interpretar, exigem que
esta situação, muito frequente na rotina clínica, como se conheça a sua validade, ou seja, a sua capacidade
valorizar os resultados? Porque é que isto acontece? para classificar os indivíduos comparativamente à
Admitindo que ambas medições são obtidas por pro- realidade, quantificável como sensibilidade, especi-
cessos tecnicamente correctos, a segunda medição ficidade e preditividade. Mas uma aproximação se-
vale “mais” que a primeira? Ao decidir repetir a prova, melhante é a que devemos seguir na avaliação dos
o clínico está de facto a seleccionar indivíduos que resultados de qualquer intervenção pois a melhoria
apresentam valores mais extremos numa distribuição observada pode não reflectir um efeito real mas sim-
e, por razões puramente estatísticas de variação alea- plesmente a situação estatística dependente da selec-
tória, pode esperar-se que apresentem valores menos ção e estar sujeita ao mesmo fenómeno de regressão
extremos em medições subsequentes. Este fenómeno para a média.
é conhecido como regressão para a média e a sua de- O contributo da epidemiologia clínica atravessa
signação deve-se a Francis Galton, que desenvolveu todo o processo da relação médico-doente e tem um
uma técnica para investigar a relação entre a altura papel fundamental na análise de decisão clínica tendo
dos filhos e a dos pais, tendo observado que se fosse fornecido as chaves metodológicas para o movimento
escolhido um grupo de progenitores com uma dada da chamada medicina baseada na evidência. No en-
altura média, a média das alturas dos filhos era mais tanto, são conceitos simples que seguram o edifício
próxima da altura média da população que da dos da epidemiologia clínica e que se aplicam – sem que
pais, ou seja, os pais altos tendiam a ser mais altos sempre nos apercebamos disso – na actividade diária.
que os filhos. Galton designou esta constatação como Abre-se agora um caminho mais na avaliação da va-
regressão para a mediocridade, significando com isso riabilidade da prática clínica que importa acrescentar
um movimento em direcção à média, e hoje designa- – a epidemiologia dos cuidados médicos e a forma
-se como regressão para a média esse fenómeno pura- como lida com os diferentes cuidados disponíveis,
mente estatístico resultante da selecção de um valor como descrito por Wenberg: “necessários” – o conhe-
determinado do preditor e da relação imperfeita entre cimento mostra que funcionam melhor que qualquer
as variáveis. alternativa, e os benefícios excedem as desvantagens;
Doentes que são seleccionados (por exemplo após “sensíveis à preferência” – há mais que uma opção e
uma determinação da pressão arterial) por apresen- os resultados variam com elas (exemplo, rastreio de
tarem um resultado mais alto ou mais baixo que os cancro da próstata); “sensíveis ao fornecimento” – não
limites esperados, em média, tenderão a situar-se mais específico de tratamento mas da forma como se lida
próximo do centro da distribuição se houver repeti- com a doença.
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Correspondência:
HENRIQUE BARROS
e-mail: henriquepbarros@gmail.com
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