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Humanização da assistência ao parto no Brasil:


os muitos sentidos de um movimento

Humanization of childbirth care in Brazil:


the numerous meanings of a movement

Carmen Simone Grilo Diniz 1

Abstract This paper recovers the origins of the Resumo Este texto recupera as origens do termo
term “humanization of childbirth”, the recogni- humanização do parto, o reconhecimento da sua
tion of birth care as a dehumanizing event, the assistência ao parto como evento desumanizante,
technical criticism to the organization of care, the a crítica técnica à assistência, o surgimento de um
emergence of a national and international move- movimento nacional e internacional de humani-
ment, and the related public policies in Brazil. It zação do parto, as políticas de humanização do
explores the relationships between the critique to parto desenvolvidas no Brasil, e as relações entre
maternal care and the emergence of Evidence- a crítica à assistência e a criação do movimento
Based Medicine (EBM). Based on a research pela medicina baseada em evidências (MBE).
about “humanized maternity hospitals” in the Com base em um estudo de duas maternidades
Brazilian Public Health System, the paper ex- “humanizadas” do SUS, discute os diferentes (às
plores the understanding of “humanization”, de- vezes contraditórios) sentidos do termo, e seu al-
scribing the different (often contradictory) mean- cance em questionar a cultura técnico-assisten-
ings, its possibilities to change the technical cul- cial, a anatomia, a fisiologia femininas, e as rela-
ture, the understanding of women’s anatomy and ções de gênero. Entre os diferentes sentidos estão:
physiology, and gender relations. Those meanings o uso da MBE, o respeito aos direitos (reproduti-
are: the use of EBM, respect for women’s rights vos e sexuais, ao acesso universal e ao consumo de
(sexual and reproductive, to universal access, to tecnologia), o tratamento acolhedor e respeitoso,
available technology); respectful treatment from o manejo da dor do parto e a prevenção da dor
providers; pain relief and prevention of iatrogenic iatrogênica, novas atribuições profissionais e dis-
pain; the new division and conflicts of responsi- putas corporativas; a relação custo-benefício etc.
bilities between doctors and nurses, cost-benefit Longe de querer achar a “humanização certa”,
analysis etc. Instead of finding the “correct hu- busca-se compreender nos diferentes sentidos um
manization”, we try to map a dialogue among diálogo, tenso e produtivo, entre atores sociais em
different actors – a tense and productive one. disputa.
1 Departamento de Saúde
Key words Humanization of childbirth, Evi- Palavras-chave Humanização do parto, Assis-
Materno-Infantil
da Faculdade de Saúde dence-Based Care, SUS, Human rights, Sexual tência baseada em evidências, SUS, Direitos hu-
Pública da Universidade and reproductive health and rights, Gender manos, Direitos sexuais e reprodutivos, Saúde se-
de São Paulo. xual e reprodutiva, Gênero
Av. Dr. Arnaldo 715, sala 218,
01246-904, São Paulo SP.
sidiniz@usp.br
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Origens do termo humanização no parto mente patogênico”; e se implicaria sempre da-


nos, riscos e sofrimentos, seria portanto pato-
Na assistência ao parto, o termo humanizar é lógico (Rothman, 1993). A maternidade se
utilizado há muitas décadas, com sentidos os inauguraria com a violência física e sexual da
mais diversos. Fernando Magalhães, o Pai da passagem da criança pelos genitais: uma espé-
Obstetrícia Brasileira, o empregou no início do cie de estupro invertido (Diniz, 1997). Ofere-
século 20 e o professor Jorge de Rezende, na se- cendo solidariedade humanitária e científica
gunda metade do século. Ambos defendem que diante do sofrimento, a obstetrícia cirúrgica,
a narcose e o uso de fórceps vieram humanizar masculina, reivindica sua superioridade sobre
a assistência aos partos (Rezende, 1998). Esses o ofício feminino de partejar, leigo ou culto.
conceitos eram difundidos por autoridades em Uma vez que o parto é descrito como um
obstetrícia médica no cenário internacional, evento medonho, a obstetrícia médica oferece
entre eles o norte-americano Joseph DeLee um apagamento da experiência. Durante várias
(Rothman, 1993). décadas do século 20, muitas mulheres de clas-
A humanização da assistência, nas suas mui- se média e alta no mundo industrializado de-
tas versões, expressa uma mudança na com- ram à luz inconscientes. O parto sob sedação
preensão do parto como experiência humana total (“sono crepuscular”, ou twilight sleep) co-
e, para quem o assiste, uma mudança no “que meçou a ser usado na Europa e nos Estados
fazer”diante do sofrimento do outro humano. Unidos nos anos 10, e fez muito sucesso entre
No caso, trata-se do sofrimento da outra, de os médicos e parturientes das elites. Envolvia
uma mulher. O modelo anterior da assistência uma injeção de morfina no início do trabalho
médica, tutelada pela Igreja Católica, descrevia de parto e, em seguida, uma dose de um amné-
o sofrimento no parto como desígnio divino, sico chamado escopolamina, assim a mulher
pena pelo pecado original, sendo dificultado e sentia a dor, mas não tinha qualquer lembran-
mesmo ilegalizado qualquer apoio que alivias- ça consciente do que havia acontecido. Geral-
se os riscos e dores do parto (Diniz, 1997). A mente o parto era induzido com ocitócitos, o
obstetrícia médica passa a reivindicar seu papel colo dilatado com instrumentos e o bebê reti-
de resgatadora das mulheres, trazendo: uma rado com fórceps altos. Como a escopolamina
preocupação humanitária de resolver o problema era também um alucinógeno, podendo provo-
da parturição sem dor, revogando assim a sen- car intensa agitação, as mulheres deveriam pas-
tença do Paraíso, iníqua e inverídica, com que há sar o trabalho de parto amarradas na cama,
longos séculos a tradição vem atribulando a hora pois se debatiam intensamente e às vezes ter-
bendita da maternidade (Magalhães, 1916). minavam o parto cheias de hematomas. Para
Agora a mulher é descrita não mais como evitar que fossem vistas nesta situação vexató-
culpada que deve expiar, mas como vítima da ria, os leitos eram cobertos, como uma barraca
sua natureza, sendo papel do obstetra anteci- (Wertz, 1993). No Brasil, o parto inconsciente
par e combater os muitos perigos do “desfila- teve em Magalhães um expoente: ele desenvol-
deiro transpelvino”. Segundo DeLee, para a veu para uso no parto a mistura de morfina
mãe o parto equivaleria a cair com as pernas com cafeína: “Lucina”, um dos nomes da deusa
abertas sobre um forcado (a passagem do bebê Juno (Magalhães, 1916).
pela vulva), e para o bebê, a ter sua cabeça es- O modelo de assistência acima descrito, da
magada por uma porta (a passagem pela pélvis sedação completa associada ao parto instru-
óssea). Através da pelvimetria, “base da ciência mental, foi abandonado após várias décadas,
obstétrica”, a pélvis feminina é esquadrinhada quando a alta morbimortalidade materna e pe-
com base na física e na matemática, com o de- rinatal passou a ser considerada inaceitável.
senvolvimento dos pelvímetros, compassos, Porém, com o advento de formas mais seguras
ângulos e cálculos. Nesse período disseminam- de anestesia, persistiu o modelo de assistência
se os itens do armamentário cirúrgico-obsté- com a mulher sendo “processada” em várias es-
trico, uma variedade de fórceps, craniótomos, tações de trabalho (pré-parto, parto, pós-par-
basiótribos, embriótomos, sinfisiótomos, ins- to), como em uma linha de montagem (Mar-
trumentos hoje consideradas meras curiosidades tin, 1987). Inicialmente restrito às elites e às in-
arqueológicas e de que nos vexamos ao lembrá- digentes que acorriam às maternidades-escola,
las (Cunha, 1989). Para esses autores, o parto é o modelo hospitalar se expandiu como padrão
concebido como uma forma de violência in- da assistência nas áreas urbanas. Na metade do
trínseca, essencial, um fenômeno “fisiologica- século 20, o processo de hospitalização do par-
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to estava instalado em muitos países, mesmo tre elas profissionais dissidentes, já na década
sem que jamais tivesse havido qualquer evidên- de 1950, como os do movimento pelo parto sem
cia científica consistente de que fosse mais se- dor na Europa, os ativistas do método Dick-
guro que o parto domiciliar ou em casas de Read e o parto sem medo, e posteriormente os
parto (Tew, 1995). Não sem resistência das par- do método Lamaze e Leboyer (parto sem violên-
teiras, em alguns países a obstetrícia não-médi- cia). Outra vertente é a do parto natural do mo-
ca, leiga ou culta, foi ilegalizada, assim como o vimento hippie e da contracultura, cuja maior
parto não-hospitalizado. expressão é a experiência da comunidade co-
No modelo hospitalar dominante na se- nhecida como The Farm nos EUA (Gaskin,
gunda metade do século 20, nos países indus- 2003). O feminismo, em suas muitas versões,
trializados, as mulheres deveriam viver o parto tem um papel central, desde o movimento de
(agora conscientes) imobilizadas, com as per- usuárias pela Reforma no Parto, nos EUA na
nas abertas e levantadas, o funcionamento de década de 1950, e nas décadas de 1960 e 1970,
seu útero acelerado ou reduzido, assistidas por com a criação dos centros de saúde feministas
pessoas desconhecidas. Separada de seus pa- e os Coletivos de Saúde das Mulheres (BWHBC,
rentes, pertences, roupas, dentadura, óculos, a 1998). Posteriormente, as feministas redescre-
mulher é submetida à chamada “cascata de pro- vem a assistência a partir dos conceitos de di-
cedimentos” (Mold & Stein, 1986). No Brasil, reitos reprodutivos e sexuais como direitos hu-
aí se incluem como rotina a abertura cirúrgica manos (CLADEM, 1998, RNFSDR, 2002), e pro-
da musculatura e tecido erétil da vulva e vagina põem uma assistência baseada em direitos
(episiotomia), e em muitos serviços como os (WHO, 2005). Foram muito influentes a abor-
hospitais-escola, a extração do bebê com fór- dagem psicossexual do parto de Sheila Kitzinger
ceps nas primíparas. Este é o modelo aplicado (1985), a redescrição da fisiologia do parto de
à maioria das pacientes do SUS hoje em dia. Michel Odent (2000), e a proposta de parto ati-
Para a maioria das mulheres do setor privado, vo de Janet Balaskas (1996), entre outros auto-
esse sofrimento pode ser prevenido, por meio res. As vertentes amigas da mulher (woman-
de uma cesárea eletiva. friendly) e centradas na mulher (woman-cente-
Para além da pobreza das relações humanas red) são propostas principalmente para orga-
nessa forma de assistência e do sofrimento físi- nização de serviços (CIMS, 2005). Mais recen-
co e emocional desnecessário que causa, o uso temente, surge uma abordagem do parto como
irracional de tecnologia no parto levou ao seu experiência genital e erótica, com desdobra-
atual paradoxo: é justamente o que impede mentos inéditos na assistência (Vinaver, 2001).
muitos países de reduzir a morbimortalidade Nas ciências sociais, iniciativas de questio-
materna e perinatal (Barros et al., 2005, Costel- namento da prática usam o termo humaniza-
lo, 2005). Uma vez que esse uso irracional pro- ção da assistência, já na década de 1970 (Ho-
voca mais danos que benefícios, há cerca de 25 ward & Strauss, 1975). A chamada Antropolo-
anos inicia-se um movimento internacional gia do Parto, ao final dos anos 70, mostrou a
por priorizar a tecnologia apropriada, a quali- assistência como construto social, sua revela-
dade da interação entre parturiente e seus cui- dora variabilidade cultural e seu caráter ritual
dadores, e a des-incorporação de tecnologia da- – tanto nas sociedades tidas como primitivas
nosa. O movimento é batizado com nomes di- quanto nas chamadas sociedades complexas.
ferentes nos diversos países, e no Brasil é em Mostra os diferentes conhecimentos autoritati-
geral chamado de humanização do parto. vos – o conhecimento que baseia as decisões na
assistência (Jordan, 1979), entre eles, o do cha-
O movimento pela mudança mado modelo tecnocrático, caracterizado pela
nas práticas no mundo primazia da tecnologia sobre as relações huma-
nas, e por sua suposta neutralidade de valores.
Nada de politicamente útil acontece até que Essas autoras documentaram extensivamente
as pessoas comecem a dizer coisas nunca ditas as relações da assistência ao parto com a sexua-
antes, permitindo assim que visualizemos práti- lidade, com as relações de gênero e com o cor-
cas novas, ao invés de apenas analisar as velhas po feminino. Analisaram as contradições com
(Rorty, 1993). as evidências científicas, e os rituais da assis-
A crítica ao modelo de assistência, batizada tência como expressões do medo extremo, em
com uma diversidade de termos, se desenvolve nossa sociedade tecnocrática, dos processos natu-
a partir de uma variedade de perspectivas. En- rais dos quais esta sociedade depende para conti-
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nuar sua existência (Davis-Floyd, 1992). Cons- Como resultado daquela colaboração, em
titui um campo de pesquisa muito produtivo, 1985, a OPAS e os escritórios regionais da OMS
freqüentemente ligada ao ativismo feminista na Europa e Américas realizaram uma confe-
e/ou ao de mudança nas práticas (Davis-Floyd rência sobre tecnologia apropriada no parto.
& Sargeant, 1997). Esse encontro foi um marco, com forte apelo
Nas ciências da saúde, a crítica à assistência de saúde pública e de defesa de direitos das
foi relegada à condição de marginal até o final mulheres, assim como a resultante Carta de For-
da década de 1970, quando é publicado Bases fi- taleza (WHO, 1985), texto que teve a capacida-
siológicas y psicológicas para el manejo humani- de de inspirar muitas ações de mudança. Reco-
zado del parto normal, de Roberto Caldeyro- menda a participação das mulheres no desenho
Barcia (1979), que constituiu uma cunha no dis- e avaliação dos programas, a liberdade de posi-
curso médico, partindo de um pesquisador de ções no parto, a presença de acompanhantes, o
ponta da fisiologia obstétrica. Redescreve o mo- fim dos enemas, raspagens e amniotomia, a
delo de assistência como inadequado e propõe abolição do uso de rotina da episiotomia e da
mudanças na compreensão das dimensões aná- indução do parto. Argumenta que as menores
tomo-fisiológicas e emocionais do parto. Foi re- taxas de mortalidade perinatal estão nos países
cebida com frieza e certa hostilidade. O texto que mantêm o índice de cesárea abaixo de 10%
questiona a representação da mulher como víti- e afirma que nada justifica taxa maior que 10%-
ma de sua natureza, e do corpo feminino como 15% (WHO, 1985). Publicado no prestigioso
“normalmente patológico”, evidenciando o viés Lancet, o texto provocou reações indignadas
de gênero da interpretação médico-obstétrica. por parte de entidades médicas (Wagner, 1997).
No campo da saúde pública, a crítica do Em 1989 esta Colaboração, já com centenas
modelo tecnocrático se acelera no Ano Inter- de integrantes, publicou uma revisão exaustiva
nacional da Criança (1979), com a criação do dos procedimentos, e em 1993 publicou uma
Comitê Europeu para estudar as intervenções revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos
para reduzir a morbimortalidade perinatal e sobre o tema desde 1950, incluindo 275 práti-
materna no continente. Se detectavam os mes- cas de assistência perinatal, que foram classifi-
mos problemas de hoje: aumento de custos, cadas quanto à sua efetividade e segurança.
sem a respectiva melhoria nos resultados da as- Uma síntese desse trabalho foi publicada pela
sistência; falta de consenso sobre os melhores primeira vez pela Organização Mundial de Saú-
procedimentos, e a total variabilidade geográfi- de em 1996, sendo desde então conhecidas co-
ca de opiniões. O Comitê é composto inicial- mo as Recomendações da OMS. Uma coletânea
mente por profissionais de saúde e epidemio- bastante completa dessas revisões, em uma ver-
logistas, e posteriormente por sociólogos, par- são popular dirigida a profissionais e usuárias,
teiras e usuárias. A partir desse trabalho, vários foi coordenada pelo canadense Murray Enkin
grupos se organizam para sistematizar os estu- (Enkin et al., 1995).
dos de eficácia e segurança na assistência à gra- Na assistência ao parto, a redescrição ope-
videz, parto e pós-parto, apoiado pela OMS. rada pela MBE é extensa. O corpo feminino,
Inicia-se uma colaboração internacional, que antes necessariamente carente de resgate, é re-
desenvolveu a metodologia de revisão sistemá- descrito como apto a dar à luz, na grande maio-
tica, dando os primeiros passos do que viria a ria das vezes, sem necessidade de quaisquer in-
ser o movimento pela medicina baseada em tervenções ou seqüelas previsíveis. O nasci-
evidências, MBE (Cochrane, 1989; WHO, 1996; mento, antes um perigo para o bebê, é redes-
Wagner, 1997). Ainda que o movimento da crito como processo fisiológico necessário à
MBE tenha tomado rumos diversos, mais pro- transição (respiratória, endócrina, imunológi-
gressistas ou mais conservadores, esta inspira- ca) para a vida extra-uterina. O parto, antes
ção inicial é fortemente questionadora, eviden- por definição um evento médico-cirúrgico de
ciando as contradições e a distância entre as risco, deveria ser tratado com o devido respeito
evidências sobre efetividade e segurança, e a como “experiência altamente pessoal, sexual e
organização das práticas. Trouxe à tona tam- familiar” (WHO, 1986). Os familiares são con-
bém o papel do poder econômico e corporati- vidados à cena do parto, especialmente os pais,
vo na definição das políticas, e no desenho e fi- antes relegados ao papel passivo de espectado-
nanciamento das pesquisas. Além disso, teve res. De evento medonho, o parto passa a inspi-
como forte prioridade a defesa dos direitos dos rar uma nova estética, na qual estão permitidos
pacientes (Cochrane, 1973 os elementos antes tidos como indesejáveis – as
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dores, os genitais, os gemidos, a sexualidade, as Comunitária Monte Azul em São Paulo, e os


emoções intensas, as secreções, a imprevisibili- grupos Curumim e Cais do Parto em Pernam-
dade, as marcas pessoais, o contato corporal, os buco.
abraços. Em 1993, é fundada a Rede pela Humani-
Assim, a chamada MBE – ela própria redes- zação do Parto e do Nascimento (Rehuna), que
crita pela interpretação dos ativistas – vem am- atualmente congrega centenas de participantes,
pliando a legitimidade do discurso pela mu- entre indivíduos e instituições. A Carta de
dança das práticas, e vice-versa. No Brasil, por Campinas, documento fundador da Rehuna,
exemplo, as “Recomendações da OMS” e o “li- denuncia as circunstâncias de violência e cons-
vro do Enkin” tornaram-se as grandes referên- trangimento em que se dá a assistência, especial-
cias para os defensores da humanização do mente as condições pouco humanas a que são
parto. Alguns desses temas viraram bandeiras submetidas mulheres e crianças no momento do
políticas para campanhas no Brasil, como o di- nascimento (Rehuna, 1993). Considera que, no
reito a acompanhantes no SUS (tornado lei em parto vaginal a violência da imposição de roti-
alguns municípios, estados e agora nacional). nas, da posição de parto e das interferências obs-
Outro tema técnico-político é a abolição da tétricas desnecessárias perturbam e inibem o de-
episiotomia de rotina, que já foi objeto de uma sencadeamento natural dos mecanismos fisioló-
campanha (Xô Episio, 2003). A episiotomia é gicos do parto, que passa a ser sinônimo de pato-
um caso emblemático de violação dos direitos logia e de intervenção médica, transformando-se
humanos na saúde (França Jr., 2003), um pro- em uma experiência de terror, impotência, alie-
cedimento danoso quando feito de rotina, aos nação e dor. Desta forma, não surpreende que as
milhões por ano até hoje, apesar de toda a evi- mulheres introjetem a cesárea como melhor for-
dência em contrário (Diniz & Chacham, 2004). ma de dar à luz, sem medo, sem risco e sem dor
As recomendações da OMS foram publica- (Rehuna, 1993).
das no Brasil pelo Ministério da Saúde, sob o É uma denúncia, mas também uma deman-
título Assistência ao Parto Normal – Um Guia da por justiça e um programa de mudanças. A
Prático, e enviada a cada um dos ginecologis- maioria dos integrantes da Rehuna é de profis-
tas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do país sionais de saúde, muitos dos quais atuando na
em 2000. O livro evidencia que o atendimento implantação de serviços ou na pesquisa. São
ao parto no Brasil se baseia em grande medida principalmente enfermeiras e médicos, vindos
naquilo que se busca superar. A distância im- das áreas de obstetrícia ou de saúde pública,
pressionante entre o chamado padrão-ouro da trabalhando em serviços públicos ou em ONGs.
ciência e a prática obstétrica no Brasil é um Há também presença importante de usuárias,
exemplo de quanto a cultura (institucional, psicólogas, fisioterapeutas, terapeutas alterna-
técnica, corporativa, sexual, reprodutiva) tem tivos e profissionais liberais. No Brasil há uma
precedência sobre a racionalidade científica, forte participação dos movimentos de mulhe-
como conhecimento autoritativo na organiza- res e feminista (Diniz, 2001; Tornquist, 2004),
ção das práticas de saúde. assim como no movimento internacional
(BWHBC, 1998; Goer, 2004). Há também uma
O movimento pela humanização presença importante das idéias da Saúde Cole-
do parto no Brasil tiva e de defesa do SUS. Muitos encontros fo-
ram organizados por participantes dessa rede,
No Brasil, o movimento pela humanização como o Encontro Parto Natural e Consciente
do parto é impulsionado por experiências em no Rio (anual, no qual ocorre a Plenária Nacio-
vários Estados. Na década de 1970, surgem nal da Rehuna), além de encontros locais. Isto
profissionais dissidentes, inspirados por práti- contribuiu para formar uma comunidade que
cas tradicionais de parteiras e índios, como se reunia várias vezes por ano presencialmente,
Galba de Araújo no Ceará e Moisés Paciornick e a partir do fim da década de 1990, virtual-
(1979) no Paraná, além do Hospital Pio X em mente através de listas eletrônicas como Parto
Goiás, e de grupos de terapias alternativas co- Natural, Amigas do Parto, Rehuna, Materna,
mo a Yoga, com o Instituto Aurora no Rio. Na Parto Nosso, Mães Empoderadas, entre outras
década de 1980, vários grupos oferecem assis- (Tornquist, 2004), a maioria criada por consu-
tência humanizada à gravidez e parto e pro- midoras organizadas de classe média – uma
põem mudanças nas práticas, como o Coletivo novidade política de enorme potencial na mu-
Feminista Sexualidade e Saúde e a Associação dança. Esta interação levou a uma multiplici-
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dade de perspectivas, de iniciativas pessoais e mesmo da compreensão da condição humana


institucionais, políticas públicas, conflitos, co- e de direitos humanos.
laborações, divergências e convergências. O mo- Apesar de o termo humanização ser mais
vimento pela humanização do parto no Brasil utilizado na América Latina, tem tido um ape-
é um movimento de diversos, que se abriu, não lo internacional, refletido em iniciativas como
sem conflitos, ao diálogo e à interfecundação. a Conferência Internacional pela Humanização
Já em 1994 surge no Rio uma primeira ma- do Parto, que contou com mais de duas mil
ternidade pública “autodefinida” como huma- pessoas de dezenas de países, realizada em 2000
nizada, que recebeu o justo nome de Leila Di- em Fortaleza. A segunda edição desta Confe-
niz. Outros marcos em termos de políticas pú- rência ocorrerá em novembro de 2005, no Rio
blicas foram a criação do Prêmio Galba Araújo de Janeiro. O encontro pretende consolidar um
para Maternidades Humanizadas, em 1998, e a movimento global pela humanização do parto
proposição das Casas de Parto. Os critérios pa- (Goer, 2004), celebrar os 20 anos da Carta de
ra a concessão do prêmio são baseados na ade- Fortaleza (WHO, 1985) e fazer um balanço dos
são às recomendações da OMS, tais como a avanços desde então, projetando os próximos
presença de acompanhantes no pré-parto, par- 20 anos de movimento.
to e pós-parto, a assistência aos partos de baixo
risco por enfermeiras, e controle das taxas de
cesárea. Concedido em nível estadual, regional Questões para o SUS:
e nacional, o Galba tem provocado uma mobi- os muitos sentidos da humanização
lização dos hospitais e tido a participação de
um número de serviços crescente a cada edi- Enfim como definir humanização do parto? Não
ção, contribuindo para conferir legitimidade pretendemos aqui encontrar a versão mais cor-
ao modelo humanizado – ainda que os servi- reta ou mais “científica” do que seria essa hu-
ços premiados enfrentem incontáveis proble- manização, mas descrever como cada interpre-
mas para a implementação do modelo (Torn- tação do termo explicita a participação dos in-
quist, 2004). O projeto de Casas de Parto, após terlocutores, no diálogo sobre o tema no Brasil.
um início promissor, encontra limites e resis- Abaixo, descreveremos os principais acha-
tências principalmente dos médicos. dos de uma pesquisa de doutorado sobre os di-
Estas iniciativas inauguraram um processo ferentes sentidos, limites e possibilidades das
mais amplo de humanização dos serviços con- propostas de humanização da assistência ao
duzido pelo Ministério da Saúde, como o Pro- parto, em duas maternidades autodefinidas co-
grama de Humanização no Pré-Natal e Nasci- mo humanizadas que atendem pacientes do
mento (PHPN) e o de Programa de Humani- SUS, uma localizada na Zona Sul e a outra na
zação de Hospitais, lançados em maio e junho Zona Leste da cidade de São Paulo. Os serviços
de 2000, com objetivo de abranger centenas de foram finalistas regionais do prêmio Galba
instituições. No caso do PHPN, talvez pela ên- Araújo na sua primeira edição (1999). Nesta
fase em garantir um padrão mínimo na assis- pesquisa, mapeamos as várias interpretações
tência (número de consultas, imunizações, etc.) do termo humanização, reconhecendo que há
e seu registro, o programa não incorporou os entre elas combinações, convergências, diver-
questionamentos feitos pelo movimento de gências e contradições. Com base nesse mapea-
humanização à técnica desumanizada e sem ba- mento, estudamos também quais os fatores que
se na evidência, sendo basicamente um instru- possibilitavam ou limitavam a implementação
mento de gestão. da proposta humanizante, da perspectiva dos
À medida que o uso do termo humanizar se sujeitos envolvidos (Diniz, 2001). Utilizamos
expande e é utilizado pelos diferentes atores so- uma combinação de metodologias qualitativas,
ciais, cada um deles faz sua interpretação e re- incluindo: observação de plantões nas duas ma-
criação do termo, aplicado para outras formas ternidades; produção de depoimentos de pro-
de assistência. Entre elas, propostas de huma- fissionais e parturientes por meio de entrevis-
nização de hospitais, da assistência ao recém- tas semi-estruturadas, e conversas informais
nascido, ao prematuro (associado ao modelo durante os plantões observados. Estudamos
de “mãe-canguru”), ao abortamento, e inclusi- também as discussões realizadas em três en-
ve à morte. A humanização aparece como a ne- contros sobre o tema, gravados e transcritos
cessária redefinição das relações humanas na as- (dos quais participavam ativistas, formulado-
sistência, como revisão do projeto de cuidado, e res de políticas e profissionais); o tratamento
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dado ao tema em órgãos da imprensa médica enquanto a intervenção tecnológica acrítica, ia-
em geral e de gineco-obstetrícia em particular, trogênica e sem base na evidência é o que se
e em documentos normativos. Na análise dos busca superar.
diversos materiais percorremos as seguintes Trata-se de uma apropriação política do
etapas: primeiro a leitura flutuante do material discurso técnico – uma estratégia não isenta de
– o contato exaustivo com o texto, permitindo riscos. A equivalência dos termos humanização
a impregnação pelo conteúdo das transcrições e adesão às recomendações da OMS causa justi-
de entrevistas, seminários, cadernos de campo ficável estranhamento. Porém reflete o fato de
e artigos. Em seguida, fizemos a leitura deta- que essas recomendações expressam, em gran-
lhada e a distribuição em temas; e finalmente, de medida, a perspectiva do movimento pela
uma análise temática do material, a partir das mudança, resultantes do processo de interfe-
categorias de análise iniciais, e daquelas que cundação conceitual, não sem contradições, que
surgiram no decorrer do trabalho (Minayo, se deu pela participação das usuárias e ativistas
1993; 1995). no desenho e disseminação das pesquisas. Isto
se reflete também na criação de novos objetos
Humanização como polissemia de estudos randomizados, digamos, extra-clíni-
e como convite ao diálogo cos, tais como os acompanhantes no parto e a
satisfação com a assistência (Hodnett, 2002), o
No decorrer do trabalho, percebemos como respeito aos direitos no parto e a abordagem
cada um desses sentidos dados à humanização, baseada em direitos (Panos, 2001), e mesmo na
de certa forma, explicita uma reivindicação de recuperação dos chamados ensaios pragmáti-
legitimidade do discurso. Trata-se de um diálo- cos sobre promoção da mudança institucional
go, em um espaço político a ser ocupado, no (BBI, 2005).
qual essas reivindicações de legitimidade, em b) Humanização como a legitimidade política
disputa, podem ser convergentes ou conflitan- da reivindicação e defesa dos direitos das mu-
tes. A ordem dos itens abaixo não corresponde lheres (e crianças, e famílias) na assistência ao
a uma hierarquia de importância, difícil de nascimento. Uma assistência baseada nos di-
mensurar dada a superposição de sentidos. reitos (rights-based), demandando um cuidado
a) Humanização como a legitimidade científi- que promova o parto seguro, mas também a as-
ca da medicina, ou da assistência baseada na sistência não-violenta, relacionada às idéias de
evidência (evidence-based, orientada pelo con- “humanismo” e de “direitos humanos”, dando
ceito de tecnologia apropriada e de respeito à às usuárias inclusive o direito de conhecer e de-
fisiologia). É considerada pelos iniciados como cidir sobre os procedimentos no parto sem
o padrão ouro; a prática orientada através de complicações: [...] As mudanças na oferta de
revisões sistemáticas de ensaios clínicos rando- serviços e no acesso a eles não são suficientes. Os
mizados, em oposição à prática orientada pela objetivos da Iniciativa Maternidade Segura não
opinião e tradição. A superposição entre a crí- serão alcançados até que as mulheres sejam for-
tica política (da organização do cuidado) e a talecidas e os seus direitos humanos – incluindo
crítica à técnica (da indicação clínica dos pro- seu direito a serviços e informação de qualidade
cedimentos) é tão intensa, que a adesão à Re- durante e depois do parto – sejam respeitados
huna por seus filiados é condicionada exata- (WHO, 1998).
mente à defesa por parte dos mesmos daqueles Falar em humanização é também uma es-
textos técnico-políticos (WHO, 1985; 1996). tratégia: uma forma mais dialógica e diplomá-
Pelo menos na interpretação dos ativistas, a tica, menos acusatória, de falar da violência de
humanização, no caso do parto, pressupõe que gênero e demais violações de direitos praticadas
a técnica é política, e que inscritos nos procedi- pelas instituições de saúde, o que facilitaria o
mentos de rotina – na imobilização, na indu- diálogo com os profissionais de saúde. Entre
ção das dores do parto e cortes desnecessários, eles os direitos à integridade corporal (não so-
na solidão, no desamparo – estão “encarnadas” frer dano evitável), à condição de pessoa (o di-
as relações sociais de desigualdade: de gênero, reito à escolha informada de procedimentos); o
de classe, de raça, entre outras. Assim, a mu- direito a estar livre de tratamento cruel, desu-
dança técnica busca inverter a lógica que avalia mano ou degradante (prevenção de procedi-
o parto vaginal como primitivo e arcaico. Pro- mentos física, emocional ou moralmente peno-
põe que o objetivo de facilitação da fisiologia e sos), o direito à eqüidade, tal como definida
da satisfação com a experiência é o “moderno”, pelo SUS etc. Esta abordagem baseada nos di-
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reitos busca compor uma agenda que combine mais profissionais de saúde devem estar sub-
os direitos sociais em geral e direitos reprodu- metidos à sua supervisão – o que seria incom-
tivos e sexuais em especial. Está relacionada à patível com a prática autônoma das enfermei-
reivindicação do movimento de mulheres por ras obstetrizes. Esta lei estaria em contradição
desfazer as supostas incompatibilidades entre com as próprias portarias do Ministério da
essas gerações de direitos, reivindicando sua in- Saúde, inclusive as que instituem os Centros de
tegralidade. Considera que o direito de decidir Parto Normal, constituindo um dos impasses
sobre sua vida e saúde (um direito individual, à atuais da mudança das políticas públicas.
liberdade) não pode se realizar sem que exis- e) Humanização referida à legitimidade finan-
tam os direitos sociais (serviços, eqüidade) que ceira (sic) dos modelos de assistência, da racio-
viabilizem essas escolhas (Dora, 1998). nalidade no uso dos recursos. Esta racionalida-
c) Humanização referida ao resultado da tec- de é argumentada tanto como desvantagem
nologia adequada na saúde da população. Além (economia de recursos e sonegação do cuidado
dos melhores resultados nos indivíduos de uma apropriado para as populações carentes, uma
assistência apropriada, esse resultado é visto “medicina para pobres”), quanto como vanta-
em sua dimensão coletiva. A reivindicação de gem (economia de recursos escassos, propi-
políticas públicas no sentido de uma legitimi- ciando um maior alcance das ações e menos
dade epidemiológica, ou de saúde pública. Essa gastos com procedimentos desnecessários e
adequação tecnológica resultaria em melhores suas complicações). Do ponto de vista dos pla-
resultados com menos agravos iatrogênicos nejadores, essa vantagem aparece como um
maternos e perinatais. Essa é a tônica de alguns elemento definidor da adesão ao modelo, por
documentos da Iniciativa Maternidade Segura, sua relação custo-benefício, extensão de cober-
pois a racionalidade no uso de recursos apro- tura e melhora de indicadores, como na fala de
priados aparece como um conceito diferente do um representante do Ministério da Saúde em
mero acesso quantitativo a consultas pré-na- um seminário: Não é por mero acaso que essas
tais, a leitos e procedimentos obstétricos, inde- coisas se reúnem apontando para a mesma dire-
pendentemente de seu conteúdo e adequação. ção, a de uma legitimidade financeira, quando se
Este sentido se torna ainda mais importante à pensa também na eliminação de tecnologias des-
medida em que se avolumam as evidências de necessárias ou na não intervenção. Felizmente,
que o excesso de intervenção leva a um aumen- quando a gente discute com os economistas, um
to da morbimortalidade materna e neonatal, e novo projeto, uma nova postura, a gente também
se postula uma redução das intervenções iatro- pode usar o argumento deles, que além de todas
gênicas como forma de promoção da saúde: O as vantagens técnicas, das vantagens das filoso-
objetivo da assistência é obter uma mãe e uma fias, afetivas, de crédito, de justiça, elas são mais
criança saudáveis com o mínimo possível de in- econômicas também. Eventualmente, esse argu-
tervenção que seja compatível com a segurança. mento é muito mais forte do que os anteriores.
Essa abordagem implica que, no parto normal, É importante notar que o setor privado po-
deve haver uma razão válida para interferir so- de se beneficiar do modelo oposto, pois uma
bre o processo natural (WHO, 1996). vez incorporada, a tecnologia deve pagar-se e
d) Humanização como legitimidade profissio- ser lucrativa. Estudos da relação custo-benefí-
nal e corporativa de um redimensionamento cio dos modelos de assistência – e sobre quem
dos papéis e poderes na cena do parto. Inclui- paga e quem se beneficia – tem sido uma quase
ria o deslocamento da função principal, ou pe- total ausência quando deveriam ser prioritários
lo menos exclusiva, no parto normal, do cirur- (NPEU, 2005).
gião-obstetra para a enfermeira obstetriz – le- f) Humanização referida à legitimidade da
gitimado pelo pagamento desse procedimento participação da parturiente nas decisões sobre
pelo Ministério da Saúde. Desloca também o sua saúde, à melhora na relação médico-pa-
local privilegiado do parto, do centro cirúrgico ciente ou enfermeira-paciente – ênfase na im-
para a sala de parto ou casa de parto, a exem- portância do diálogo com a paciente, inclusão
plo dos modelos europeu e japonês de assistên- do pai no parto, presença de doulas (acompa-
cia. Essa perspectiva envolve disputas corpora- nhantes de parto), alguma negociação nos pro-
tivas e de recursos, e é um campo de intenso cedimentos de rotina, a necessidade da gentile-
conflito, pois os médicos sentem seu espaço ex- za e da “boa educação” na relação entre insti-
propriado, reagindo de várias formas. Como na tuições e seus consumidores. Diferentemente
proposta de lei do Ato Médico, em que os de- de uma noção referida a direitos sociais, aqui
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está fortemente presente a tradição liberal, de tre outras. Por isso a experiência, para profis-
direitos do consumidor à escolha, criando uma sional, de infligir esses procedimentos doloro-
“rede privada de assistência humanizada” e sos, e para parturiente de submeter-se a eles, é
ampliando a legitimidade do modelo da MBE, muito diferente com e sem a peridural. E supor-
até então restrita ao setor público. Isto inclui a tar a dor da paciente, provocada pelos procedi-
mudança arquitetônica de vários serviços par- mentos que ele pratica pode ser uma experiên-
ticulares para a superação do modelo de linha cia muito penosa também para o profissional.
de montagem, com a instalação de salas PPP A ponto de, em um estudo recente, a disponi-
(pré-parto e pós-parto) ou “Labour and Deli- bilidade da anestesia peridural ser considerada
very Rooms”, banheiras de hidromassagem pa- pelos médicos o fator mais importante na lista
ra o trabalho de parto e outras inovações. de “boas condições de trabalho do obstetra”
g) Humanização como direito ao alívio da dor, (Diniz, 2004).
da inclusão para pacientes do SUS no consumo
de procedimentos tidos como humanitários,
antes restritos às pacientes privadas – como a Conclusões
analgesia de parto. Entre os médicos menos pró-
ximos do ideário baseado em evidências ou ba- O termo humanização do parto se refere a uma
seado em direitos, “parto humanizado” é prati- multiplicidade de interpretações e a um con-
camente um sinônimo de acesso à anestesia pe- junto amplo de propostas de mudança nas prá-
ridural, como explica essa médica: Primeiro, eu ticas, trazendo ao cotidiano dos serviços con-
acho que não pode haver humanização sem ter ceitos novos e desafiadores, às vezes conflitan-
peridural. Como podemos ser humanos com a tes. As abordagens baseadas em evidências cien-
parturiente sem sedar a dor dela, que é uma ta- tíficas e as baseadas em direitos, entre outras,
refa primordial do médico?[...] Aí a gente vê que são recriadas pelos diversos atores sociais, que
na prática não tem anestesia disponível no SUS, as utilizam como instrumento para a mudan-
é só discurso. ça, que ocorre muito lentamente e apesar de
Ainda que a anestesia seja formalmente pre- enorme resistência. Humanização é também
vista e pagável desde 1998 pelo SUS (portaria/ um termo estratégico, menos acusatório, para
GM/MS 2815), na prática é inviabilizada, pois dialogar com os profissionais de saúde sobre a
o pagamento do procedimento “parto” foi au- violência institucional.
mentado de valor, sem incluir honorários espe- No caso brasileiro, a obstetrícia parece ter
cíficos para o anestesista. apelo inegável em defesa das mulheres, que se-
Essa idéia da humanização, que coloca a riam aqui mais beneficiadas, barganhando
peridural como condição necessária no parto, é mais alívio da dor e mais preservação genital,
sempre referida à tradição hipocrática, ao pa- desde que paguem por isso: eis o padrão ouro
pel humanitário do médico, que resgataria a da assistência na prática. Nossos obstetras se-
parturiente da pena do Gênesis, uma ação em riam mais humanos que os obstetras das ou-
defesa das mulheres e seus direitos. A escolha tras: se o parto é um evento medonho, um agra-
ou a contingência, por parte do profissional, da vo à saúde, por que não simplesmente preveni-
assistência ao parto sem analgesia é considera- lo, através da cesárea de rotina? Um parto mo-
da pelos médicos má técnica, “tigrada” ou “me- derno, indolor, conveniente em horários e da-
dicina para pobre”, orientada pela carência de tas, racional, sem gemidos, genitais expostos ou
recursos. Seria papel do SUS oferecer a indul- destroçados. Nesta via de parto, há também uma
gência desta pena a todas, democraticamente. certa decência, um apagamento da dimensão
O que não ocorre, como conta esse médico: En- sexual do parir.
tão a gente praticamente só conta com anestesis- As propostas de humanização do parto, no
ta quando é cesárea. Uma rara vez, a gente faz SUS como no setor privado, têm o mérito de
uma peridural humanitária, quando a paciente, criar novas possibilidades de imaginação e de
às vezes uma adolescente, está muito descompen- exercício de direitos, de viver a maternidade, a
sada. Já no consultório, a gente faz analgesia em sexualidade, a paternidade, a vida corporal. En-
praticamente 100% dos partos vaginais. fim, de reinvenção do parto como experiência
A dor do parto é em grande medida iatro- humana, onde antes só havia a escolha precária
gênica, amplificada por rotinas como a imobi- entre a cesárea como parto ideal e a vitimiza-
lização, o uso abusivo de ocitócitos, a manobra ção do parto violento.
de Kristeller, a episiotomia e a episiorrafia, en-
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