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O ENGODO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

19/08/2015 02h00

O novo Código de Processo Civil (CPC) foi aprovado pelo Congresso Nacional e entra em vigência
a partir de 2016. A extensa lei é resultado de grande esforço legislativo e vai regular o andamento de
prováveis 40 milhões de processos judiciais.
Os avanços e aprimoramentos do novo código, entretanto, escondem um engodo, uma maldade contra
os usuários do sistema judicial, contra o cidadão comum, sujeito mais frágil do processo, uma
crueldade que diminui a importância da obra jurídica.
Todo cidadão (ou pessoa jurídica) que é obrigado a ir ao Judiciário para garantir seu direito deve ser
ressarcido também de todas as despesas do processo –custos, viagens, diárias e honorários gastos com
seu advogado. Isso é indispensável para cumprir o princípio do ressarcimento integral, está
expressamente determinado no art. 20 do CPC em vigor e justificado na respectiva exposição de
motivo. É o óbvio ululante.
O novo CPC, lamentavelmente, institucionalizou o desvio da verba indenizatória dos honorários gasto
pelo vencedor do processo. Desconsiderando a natureza indenizatória da verba, aproveitando do
qualificativo "honorários", abusando da desinformação e fragilidade dos jurisdicionados, o novo
CPC, seguindo desvio iniciado no Estatuto da OAB, transfere essa verba indenizatória para o
advogado do vencedor.
A violência legislativa contra direito do jurisdicionado está regulada no poderoso art. 85 do novo
CPC, com 19 parágrafos e vários incisos. A verba indenizatória do vencedor do processo
transformou-se em uma taxa corporativa cumulativa por instância e incidentes, não compensável em
caso de ganho parcial da demanda, pesada contra o Poder Público, com privilégio de verba alimentar
e favorecendo inclusive os procuradores públicos que já ganham salários por seus serviços.
Pelo novo código, um cidadão que cobra judicialmente uma dívida de R$ 100,00, se contratou com
seu advogado honorários contratuais de 20%, como normalmente ocorre, apesar de ter seu direito
reconhecido judicialmente, mesmo sendo vencedor do processo, acaba recebendo somente 80% do
seu direito.
Por outro lado, o advogado do vencedor, além dos honorários contratuais de 20%, passa a receber
também a verba indenizatória do cliente, podendo chegar, com a nova progressividade por instância
e incidentes, a 50% do crédito, com prioridade, podendo receber primeiro que o cliente.
O novo CPC, apesar de expressar o princípio da reparação integral ("A sentença condenará o vencido
a pagar ao vencedor as despesas que antecipou" - §2º do art. 82), contraditoriamente, logo em seguida,
agasalhando defeito técnico, descumpre o princípio: manda ressarcir ao vencedor as despesas
menores do processo (indenização de viagem, remuneração do assistente técnico e diária de
testemunha - art. 84), mas mantém eloquente silêncio quanto ao ressarcimento da despesa maior, o
valor dos honorários pagos ou empenhados pelo vencedor com seu advogado.
O cidadão vencedor do processo, consumidor do serviço público judicial, que deveria ser
especialmente protegido, foi preterido no novo CPC. Caso pretenda receber integralmente seu direito,
recebendo a despesa tida com seu advogado, vai ter que propor outra demanda, gerando um
abominável círculo interminável de processos. Um novo processo para receber despesa do processo
anterior!
O novo CPC vai longe na ânsia de expandir a taxa corporativa. Proíbe a compensação dos honorários
de sucumbência (§ 14 do art. 85 - contrário a Súmula 306 do STJ), permitindo que, em caso de
procedência parcial da demanda, vencido e vencedor parcial sejam obrigados a pagar a taxa
corporativa para os advogados adversos, além dos honorários contratuais sem ressarcimento.
A integridade sistêmica –coerência com as normas morais fundantes: lealdade, reparação integral,
ressarcimento de despesa e processo justo–, diretriz superior, tão aclamada pelos doutrinadores e
expressamente acolhida pelo novo CPC (art. 926), está sendo quebrada por dissimulada conclusão
(os honorários pertencem ao advogado), desconsiderando a função e natureza da verba.
O novo CPC vai entrar para história como a lei que institucionalizou o "indevido processo legal" na
jurisdição civil.
A transformação dos honorários de sucumbência –verba indenizatória do vencedor do processo e um
dos fundamentos do devido processo legal substantivo– em taxa corporativa, é uma vitória
embaraçosa para entidades e operadores que apoiaram a mudança.
Certamente também serão motivo de irônica admiração as peripécias processuais lançadas na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.104-4), permitindo a não declaração de inconstitucionalidade
da transferência de titularidade dos honorários de sucumbência no estatuto da OAB.
Esse malfeito contra os jurisdicionados e outras desconformidades pontuais apontadas por juristas,
associações de juízes e por ministros dos tribunais superiores, fortalece o crescente movimento
político no sentido de suspender o início da vigência do novo CPC, permitindo o seu conserto,
aprimoramento e retirada de desvios que prejudicam o cidadão comum, desvios que descontroem a
Justiça.
JOSÉ JÁCOMO GIMENES, 58, juiz federal e professor universitário

UM MUNDO SEM UTOPIAS


24/08/2015 02h00

O processo civilizatório se desenvolve desde que existe o ser humano. A descoberta do fogo, a
invenção da roda, a domesticação de animais, a elaboração de deuses, a estruturação das cidades
foram marcos na história da humanidade.
Mas, depois da fala, dificilmente encontraremos fatores civilizatórios mais importantes do que a
criação, a racionalização e a universalização da palavra escrita. Por meio dela, o homem se tornou
capaz não apenas de produzir cultura como de guardá-la de modo eficiente e de, mais ainda, transmiti-
la aos contemporâneos e às gerações seguintes.
Com a escrita tornava-se mais fácil apresentar descobertas, descrever invenções, divulgar técnicas,
expor ideias, confessar fraquezas, compartilhar sentimentos.
Praticada, inicialmente, apenas por elites a escrita espalhava com muita parcimônia o saber
acumulado, uma vez que o conservadorismo dos detentores do poder bloqueava a democratização
dos avanços na cultura material e imaterial.
Com os papiros e pergaminhos, inicialmente, e mais tarde com o papel e, mais ainda, com a imprensa
de tipos móveis, a cultura, no sentido de patrimônio acumulado, passou a alcançar um número cada
vez maior de pessoas, democratizando o saber e dando oportunidades a uma parcela importante da
população. Sem a palavra escrita, em geral, e sem o livro, em particular, a história não teria sido a
mesma.
Ao longo do século 19, nos países mais desenvolvidos, as pessoas foram aprendendo a ler e a escrever.
A desvalorização do trabalho braçal, substituído por máquinas, o crescimento do setor de serviços, o
aumento da produtividade no campo, o crescimento das cidades: o mundo parecia caminhar para uma
realidade sonhada pelos utopistas.
Ao ler livros, ao escrever cartas, ao redigir o resultado de reflexões complexas, os cidadãos
compartilhavam ideias e sentimentos, tão mais densos quanto mais habilitados estivessem nas
técnicas da escrita e da leitura.
Era permitido sonhar com uma sociedade universal de gente alfabetizada com oportunidades de
ascensão social determinadas apenas pelos seus méritos. Não por acaso é o momento das grandes
utopias igualitárias.
Já no século 21 as utopias parecem coisas de um passado remoto. Mesmo não gostando do mundo
como está, parece que desistimos de mudá-lo. Vivemos ou em sociedades consumistas, ou
burocráticas, ou fundamentalistas. Fingimos que a felicidade pode ser encontrada comprando
mercadorias, obedecendo regras, ou acreditando em um improvável mundo pós-morte.
Jogamos no lixo milhares de anos de avanço civilizatório e nos transformamos em meros
consumidores de softwares. Estamos perdendo a habilidade de ler textos complexos, nos
conformamos com a pobreza da linguagem das redes sociais.
Em nome da interatividade sentimo-nos qualificados a ser banais. Sem leituras sérias abdicamos do
patrimônio cultural da humanidade, arduamente construído ao longo de milênios.
Não precisamos sequer de um Grande Irmão para ordenar a queima de livros: queimamos nossas
estantes, por inúteis. E nem as substituímos por livros digitais, já que vamos deixar o saber apenas
para os criadores de software.
JAIME PINSKY, historiador, é professor titular da Unicamp e diretor da Editora Contexto

PELA MANUTENÇÃO DO EXAME DA ORDEM


22/08/2015 02h00

Como sucede em dezenas de países mundo afora, mesmo aqueles conhecidos pela excelência de seu
ensino superior, como é o caso dos Estados Unidos, França ou Reino Unido, o graduado em direito -
isto é, o bacharel - para se tornar advogado precisa ser aprovado numa prova aplicada pela OAB e
conhecida como exame de Ordem.
Como afirma com propriedade o Presidente da OAB/SP Marcos da Costa, o exame de Ordem não é
um instrumento de proteção da advocacia, mas sim da cidadania, na medida em que visa a assegurar
mínima qualificação para aqueles que têm a relevante tarefa de patrocinar direitos alheios.
E a importância desse filtro é revelada com a eloquência dos números: a aprovação nunca supera a
marca de 20%, e o número de bacharéis que não lograram êxito já passou da casa de 3 milhões. E não
se pense que o exame é só para sumidades: sua dificuldade é quando muito mediana.
Mas há interesses contrários ao exame, vinculados não à massa dos despreparados, porque eles
normalmente são inocentes no despreparo, mas a quem assim os forma, pois esses sim estão
conscientes do embuste que vendem à guisa de ensino. É grei poderosa, já que o Brasil é de longe o
país que mais cursos de direito possui no mundo - 1.300, na sua maioria abaixo da crítica (os EUA,
com população maior, conta com 232, para ficar num exemplo).
Fruto da atuação desse influente lobby, os advogados fomos brindados, no dia em que se celebra a
nossa profissão, 11 de agosto, com o avanço dessa formidável ameaça ao seu exercício - a aprovação,
na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, de projeto de lei que extingue a
exigência de aprovação no exame de Ordem.
O STF já teve a oportunidade de proclamar a constitucionalidade do exame de Ordem: cabe mesmo
à lei impor requisitos de qualificação profissional. Mas do alto de sua sabedoria jurídica de engenheiro
civil, o Relator na CCJ da Câmara, Deputado Ricardo Barros, decretou que o STF estava errado, e
certo ele.
Sem temor à gafe, a Excelência diz que o exame, criado, nos moldes atuais, em 1994, somente se
justificava "na mentalidade do Império de onde se originou", quando na monarquia não havia nem
exame e nem OAB –ao contrário, na linha do ideário da Revolução Francesa, a Constituição de 1824
aboliu as "corporações de ofício".
Diz o deputado que se presume qualificado quem concluiu uma faculdade. Mas como se viu dos
resultados do exame essa presunção é falsa, e não se pode, por conta dela, inundar o país com
profissionais ineptos, que certamente porão a pique o direito dos incautos que lhes confiarem as
causas do mesmo modo como naufragaram nos exames que prestaram.
Para arrematar, o presidente da Câmara, o notório Deputado Eduardo Cunha (autor ele de um dos
projetos contrários à prova), disparou no Facebook, dentre outros vitupérios, que o exame seria
"nefasto e corrupto", sendo a OAB "um cartel".
A Ordem, como toda instituição humana, merece críticas, mas de cartel não pode ser acusada, pois
cartel é um ajuste entre 2 ou mais agentes para burlar a concorrência –não, o nobre deputado tem a
língua viperina, mas não sabe bem do que está xingando.
Já a acusação contra a lisura do exame é mil vezes leviana. Mas às invectivas do deputado talvez se
aplique a resposta do senador Nabuco de Araújo a uma acusação do Visconde de Mauá: quem julga
os outros por si mesmo não comete injúria.
RICARDO TEPEDINO, advogado, é membro do Conselho Seccional da OAB-SP e sócio do escritório Tepedino, Migliore e Berezowski
Advogados

"PEDALADA", GÊNERO E ESPÉCIES


20/08/2015 02h00

No julgamento das contas de 2014 do governo de Dilma Rousseff, o Tribunal de Contas da União
(TCU) identificou as chamadas "Pedaladas Fiscais", entendidas como atrasos do governo no repasse
de verbas para bancos públicos, ocorridos entre 2010 e 2014. Nesse caso, o governo não teria
repassado recursos para o Bolsa Família e o Seguro-Desemprego, valores que teriam sido pagos por
bancos públicos.
Segundo o TCU, a operação é ilegal, porque os bancos federais "emprestaram" recursos à União para
pagamento de despesas daqueles programas sociais, em desacordo com a Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF). De fato, o artigo 36 da LRF indica a vedação de "operação de crédito entre uma
instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do
empréstimo".
O conceito de "Pedaladas" pode ser ampliado. Veja-se, por exemplo, os "restos a pagar", as despesas
empenhadas pelo governo, mas não pagas. Essa postergação acaba "beneficiando" o resultado fiscal,
nas atuais regras da contabilidade pública. No entanto, o compromisso financeiro permanece e o
impacto futuro sobre as finanças públicas é certo.
Estima-se que os restos a pagar acumulados até 2015 atinjam R$ 230 bilhões. Em suma, um superávit
de curto prazo pode ser construído à base de um desajuste futuro nas contas públicas. Esse mecanismo
foi identificado pelo TCU, no Acórdão nº 3.084, de 2014, com base em trabalhos premiados pelo
governo federal.
Além disso, pode-se considerar "pedalada" o uso crescente das receitas com dividendos na
composição do resultado primário do governo. É o caso em que o governo emprestou recursos às
estatais, que, por sua vez, retornaram vultosos dividendos ao Tesouro, inflando artificialmente o
resultado primário.
Com isso, esses dividendos distribuídos pelas estatais poderiam estar sendo custeados pelo
endividamento daquelas empresas. Tomando as receitas com dividendos pagas pelo BNDES como
uma proxy para captar essa relação entre o Tesouro e as estatais, tem-se um salto de R$ 600 milhões,
em 2003, para mais de R$ 9 bilhões, em 2014.
As "pedaladas", é bom que se diga, refletem a excessiva discricionariedade do governo no campo
orçamentário, decorrência da pré-compreensão equivocada de que a Administração "pode tudo" no
campo das finanças públicas e detém o monopólio da alocação dos recursos do Estado.
Veja-se, por exemplo, que ainda hoje há controvérsias no STF sobre a natureza jurídica das leis
orçamentárias, dissonância que acaba favorecendo o protagonismo do Executivo na execução dos
orçamentos.
O Congresso e o TCU devem ampliar os horizontes na compreensão das "pedaladas", de maneira a
coibir todo e qualquer artifício que implique a chamada "contabilidade criativa". Aliás, foi
apresentada no Senado a PEC 83, de 2015, que cria a Autoridade Fiscal Independente.
Esta não tem atribuições jurisdicionais, normativas ou de controle, mas a missão de acender a "luz
amarela", face à inadequada gestão das contas públicas, o que pode melhorar a nossa reputação fiscal.
ALEXANDRE MANOEL, 38, é pesquisador do IPEA e doutor em Economia pela Universidade de Brasília - UNB
HELDER REBOUÇAS, 50, é consultor de orçamentos do Senado e doutor em Direito pela UNB

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