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ALICE RUIZ: ANTILÍRICA OU ANTIFRIEDRICH?

Daniel Victor da Silva Souza

À primeira leitura do poema de Alice Ruiz nos muitos podem se questionar acerca
do valor estético dele, pois não obedece aos parâmetros canônicos, já obstruídos com
o modernismo e ainda mais radicalmente subvertidos pelos poetas da geração de 60 e
70 denominados poetas marginais, herdeiros da tropicália e demais movimentos
culturais da época, a poeta ou poetisa começa a publicar seus trabalhos nos anos 70 e
80, séquita do grupo dos poetas denominados marginais. A escolha, porém, deve-se
em razão do diálogo bastante profícuo que ele proporciona com as questões da lírica
moderna e de como o seu conceito pode ser ampliado para além das prescrições do
crítico alemão Hugo Friedrich, que engessa toda a produção moderna e
contemporânea em um cânone específico e esquece de outros autores da mesma
época que, além de não se adequarem aos parâmetros por ele elencados, foram
referência pra uma sucessão de autores que, posteriormente, vieram ao público e que,
sem dúvida, entram na categoria bastante heterogênea de lírica moderna e
contemporânea. Antes de tomarmos nota do texto, relembremos alguns pressupostos
que Fridrich desenvolve na sua obra “Estrutura da Lírica Moderna”, tal como a
“incomunicabilidade” e o “isolamento” do poeta em relação à sociedade, vale
ressaltar também do prestígio da linguagem em detrimento do conteúdo, como se a
forma em si fosse a finalidade de todos os poemas ditos “modernos” e como se o que
está além disso fosse demérito acerca da criação, o autor, desse modo, apresenta
ainda um discurso bastante afinado com o ideal do romantismo, a ideia do gênio
prevalece em boa parte de sua obra, a exceção se dá apenas porque muitos românticos
reverenciavam o que se chama de história oficial e procuravam, através da ficção, dos
seus poemas e de suas epopeias contar a história nacional, resgatar um passado épico,
o que os colocava em contato direto com a história e as questões sociais. Para
Friedrich a lírica moderna está em constante isolamento da sociedade, ela se dá no
plano da linguagem e jamais excede ele, salvo em alguns “relapsos” de alguns
autores , os quais o autor procura justificar como estrategia criativa, porque a lírica
moderna é ,por excelência, um trabalho de linguagem. Curioso o fato de que o seu
trabalho é publicado nos anos 50 do século XX, de modo que até essa década já
haviam sido publicadas inúmeras obras bastante diferentes entre si, sobretudo o que
estabelece a relação da poesia com a sociedade. É importante ressaltar essa discussão
previamente, pois nesse trabalho buscaremos entender a obra de Alice Ruiz como
parte integrante da lírica moderna, mas muito afastada dos ditames estabelecidos por
um teórico bastante difundido na academia como o idealizador do conceito de lírica
moderna.
Outro autor que merece nota é o crítico italiano Alfonso Berardinelli, que, em seu
texto “as muitas formas da lirica moderna” comenta a insuficiência de Friederich e
nos faz questionar o quão nocivo é para muitos estudantes e bibliófilos de modo geral
condicionar a leitura de tudo o que foi produzido no período estudado por Friedrich
sob a ótica que ele lança na sua obra principal. Alguns trechos do seu texto nos
auxiliam a uma insurgência contra as análises de caráter prescritivo de Friedrich,
algumas ideias e sugestões também. O que é torna Friedrich problemático, talvez seja
justamente essa sua ótica “antiindividualista” e “anti-histórica” como nos sugere
Berardinelli. Poderíamos ler a obra de certos autores que Friedrich descreve, segundo
o autor italiano, como uma obra sem sujeito, sem autor e sem história. Algo bastante
curioso que de fato surge na teoria friedrichiana, pois ao reduzir a poesia à sua
linguagem, o autor ignora todos os outros elementos que a compõem, como os
discursos que circulam em cada época, o lugar social de onde parte a escrita do autor,
as referências que ele faz de outras obras literárias e até mesmo os recursos estéticos
que o autor utiliza não podem ser entendidos sem referências sociais, uma vez que a
linguagem não é instrumento apenas de expressão estética, mas uma expressão social,
até mesmo nos mínimos elementos formais, há algo que integra uma série de outros
discursos e elementos da cultura e da sociedade que, embora não sejam o fator
primeiro de análise, tampouco deixam de integrar qualquer produção humana.
É notório que a maior parte da poesia escrita no período analisado por Friedrich
entra em contrassenso com o que o autor procura determinar como “a lirica
moderna”, pois, os autores escolhidos por ele não apresentam todas as escolhas e
formatos que muitos adotaram e o próprio Baudelaire que ele analisa por esse prisma
apresenta em sua obra “As Flores do Mal” uma conotação social muito forte,
sobretudo em relação aos “esquecidos” e “malogrados”, também há uma presente
crítica aos valores que circulavam na época. Desse modo, podemos perceber o quão
limitadas são as pressuposições de Hugo Friedrich e o quanto ela não nos auxilia e até
mesmo prejudica nossa leitura de muitos autores modernos e contemporâneos, o que,
aliás, é uma problemática recorrente à canônica crítica literária, determinar
previamente a visão dos leitores sobre a obra, condicionando a leitura que podemos
fazer dos autores por um prisma bastante limitado que cada sujeito apresenta,
imbuído de suas experiências pessoais e literárias anteriores, talvez a crítica precise
mesmo dar mais voz à própria obra e se portar como um bom ouvinte(ou leitor), para
não perder nenhum elemento que a obra nos oferece, nem de forma nem de conteúdo.
Muitos autores que produziram suas obras no período analisado por Friedrich como
Whitman e Elliot também não se encaixam nos seus ditames. Talvez porque o autor
tenha uma preferência notória por poetas de língua francesa e um consequente
neglicenciamento dos trabalhos de escritores anglógrafos, limitando bastante a
percepção de um conjunto que ele dá a entender que contempla a lírica moderna, ou
aquilo que a represente em seus aspectos mais recorrentes, o que é posto por terra no
trabalho de Berardinelli. Essa “lírica da linguagem” que Fris sugere é bastante
problemática por esse aspecto ser notoriamente limitado, uma vez que todos sabem
que a literatura, bem como a língua, é constituída por significante e significado e,
para usar a terminologia saussureana, é um construto social. Esse pormenor que
Saussure difundiu no seu trabalho de linguista estruturalista nos faz aludir a um
famoso texto do pensador Theodor Adorno, lírica e sociedade, no qual ele aponta para
a impossibilidade de o poema estar isolado da sociedade, uma vez que a língua,
instrumento utilizado para o produzir, é um dispositivo compartilhado socialmente,
de modo que, a partir do momento em que ele escreve e publica, há a pressuposição
de um sujeito receptor que vai “entender” e “assimilar” o que foi por ele expressado,
porque compartilha das mesmas experiências sociais que ele e, em alguma medida, a
própria experiência com a língua é uma experiência comum a ambos, uma vez que
cada língua possui suas peculiaridades, modos de expressão e delineamento lógico ou
racional, de modo que há inúmeras experiências compartilhadas por todos os
falantes/escritores das línguas, sobretudo nessa outra comunidade entendida como os
autores e leitores. Outra questão que se deve aludir é que se fosse o poeta isolado,
apenas um experimentador de linguagem,como ele poderia se instaurar dentro de algo
canônico, uma vez que, para se tornar cânone ou parâmetro, ele precisa ser
assimilado por um público, pela crítica e por seus sucessores da escrita, como isso se
daria se ele não se faz entender propositalmente, ou mesmo, se nem ele próprio
entende o que escreve? São algumas questões que são geradas a partir do confrontro
do trabalho de Friedrich com o de Berardinelli.
A ideia propalada pelos poetas marginais de que “a arte deve ser vivida e a vida
transformada em arte” entra em choque com todos os pressupostos do teórico alemão
acima referido. Alice Ruiz fez parte desse conjunto de poetas em seus manifestos,
antologias e produções extraliterárias. Sua poética traz elementos da cotidianidade
que nada tem a ver com a tese do isolamento e da experiência autônoma da
linguagem. A experiência de inovar a linguagem poética é presente em sua obra e nos
poetas da sua geração, mas de maneira bem politizada. Isso se dá porque os
movimentos como o concretismo e a poesia práxis já existiam e eram bastante
reverenciados pela sua geração, mas em virtude do momento político de forte
repressão que representou a ditadura militar, a produção literária desses autores era
eivada de críticas ao contexto político e social, embora procurassem a todo momento
ousar no trato com a linguagem e experimentar o que estava em voga na época, ainda
que em muitos desses experimentos foram eles os precursores. Essa postura
iconoclasta em relação a linguagem e em relação à afetação da literatura e da cultura
oficial já era reverenciada no modernismo de 1922 e nas gerações sucedentes deste e
antecedentes do movimento da poesia marginal, mas aqui essa postura se dá de
maneira bem mais radical por inúmeros motivos. O primeiro é que o veículo que os
poetas usavam pra divulgar seus trabalhos nem sempre eram os livros, muitos
criavam periódicos semanais, quinzenais e mensais para publicizar seus poemas e
ideias. Outra questão é a influência forte que a Tropicália exerceu em muitos dos
poetas desse movimento como Paulo Leminski, que era casado com Alice Ruiz. Aqui
a influência da Tropicália se dá pela “assimilação” de tudo o que é produzido nos
trópicos sem afunilar demasiadamente os critérios estéticos. Eles se propunham a
algo bem pontual como desinstitucionalizar a literatura, retirá-la do seu pedestal,
torná-la viva, cotidiana. Uma das principais empreitadas dos poetas marginais era
desintelectualizar a literatura e a poesia, reforçando e evocando elementos que não
são ou não eram até então próprios do discurso literário como trechos de matérias
jornalísticas, bulas de remédio, anúncios publicitários. Mais uma vez lembrando que
esse experimentalismo já era praticado,em certa medidas pelos poetas e romancistas
do modernismo, mas não com a mesma dimensão. Alice Ruiz surge nesse contexto e
ainda tem algo a ser adicionado, o poema analisado carrega sua experiência de
feminista, pois as observções minuciosas que ela faz acerca dos mínimos elementos
do discurso machista é bem afinado com as principais críticas das feministas da
época. Evidente que esse não é um fator determinante para a produção do poema,
uma vez que essa análise acerca da condição da mulher nem sempre vem de um
discurso feminista tal como o conhecemos, mas, seguramente, ele traz elementos que
nos permite fazer essa referência à vivência feminista da autora. Outro elemento
bastante notório é o prosaísmo da poesia de Alice, que parece em muitos momentos
uma compilação de falas machistas, até mesmo pela disposição visual do poema que
sugere que essas falas são ouvidas por essa suposta orelha. Aqui se dá uma ruptura
com o que é tradicionalmente entendido como poesia, pois embora existam rimas
internas bem sutis, ele não é, por excelência, um poema ritmado, musicado; é quase
uma confissão oral, um texto composto de uma série de discursos machistas que
ganham pela disposição uma outra conotação. O título já e bastante sugestivo “O que
é a que é”, em formato de adivinha e ao mesmo tempo sugerindo um sujeito sem
individualidade, à sombra e resignado ao que é determinado pelos discursos que
circulam na sociedade. A crítica se dá de modo ainda mais intenso pela ausência de
qualquer menção do nome “mulher”, por estar oculto, à margem dos seus direitos. A
poeticidade nesse sentido é presente pela riqueza de sentido que o poema traz e por
evocar em série todas as falas presentes no mundo patriarcal à exaustão, para que
atentemos para a dimensão desse problema, que é a sociedade machista, com seus
discursos de manutenção de sua ordem vigente. Outro elemento particular da geração
dos poetas marginais que Alice oferece nesse poema é a coloquialidade e o uso de
jargões e elementos da língua oral, expressões cotidianas como “sangue de barata”.
Contesta também a obrigatoriedade da maternidade, o mito da mulher como reduto
do afeto, como é moldada socialmente para sê-lo. O interessante é percebermos como
esse lugar de mulher numa sociedade machista é um fator que não pode ser ignorado
na leitura desse poema de Alice Ruiz, porque o significado é construído a partir desse
dispositivo, de ela pressupor um público que entenderá com exatidão, em tese, seu
poema porque esses discursos integram esse dia-a-dia comum de ambos. Sabemos
exatamente que o poeta tem muito do “fingidor” do qual Fernando Pessoa fez alusão,
mas mesmo sendo “fingidor” sabemos que o ato da criação não trabalha apenas com
elementos inventados, mas com um sujeito que , em maior ou menor escala, expressa
uma postura individual política e social, não necessariamente engajada. Esse aspecto
político da escrita já se dá na preferência por certos temas e desinteresse por outros,
aí já notamos como escrever literatura é também um ato político. Referendar
discursos em voga na sociedade, negar esses discursos, não mencionar nada que seja
aparentemente politico, já e um elemento para pensarmos politicamente a obra de
qualquer escritor, o que ele traz da sociedade para o poema, o que ele nega, o que ele
tem por predileção ou o que ele condena. As referências a outros autores na obra dele
e a postura desses autores por ele reverenciados também podem nos dizer muito no
conjunto do que aquele escritor propõe politicamente. O fato de Alice trazer esses
elementos da oralidade já nos indica que ela está atenta aos discursos que estão para
além do mundo literário e acadêmico, e, que, pela sucessão deles, há de se notar que
sua experiência com o discurso machista não se dá apenas exterior a ele(mundo
acadêmico/literário), mas no interior dele. O personagem-poeta criado por ela, a voz
que está “falando” no poema é uma voz universal. É uma voz que está acostumada a
ouvir essas sentenças que estereotipam as mulheres e que estão integradas ao todo da
nossa cultura. Fato relevante se dá para comprovar essa tese quando ela traz para o
poema um suposto excerto de jornal, que está em destaque no interior do poema.
Mesmo não sabendo que a escrita é de uma mulher, percebemos o quão conectado à
nossa sociedade(e quanta importância o lugar da mulher na sociedade tem para quem
está escrevendo) está o poema pela própria utilização desses elementos que
constroem o arquétipo da mulher ideal e nos chama a atenção para esses discursos.
Essa presença dos discursos do senso comum na poesia, esses elementos de
cotidianidade destituem a sua poesia desse intelectualismo, academicismo e
isolamento que Friedrich nos fez referência. Na verdade, Alice Ruiz utiliza a poesia
como veículo de reflexão e crítica sociais, colocando em xeque a própria linguagem
como elemento central da produção, aqui percebemos que a linguagem, o
experimentalismo poético está em segunda instância, o que ganha força nessa obra é
seu caráter fortemente ácido a uma sucessão de práticas sociais e atos de fala
cotidianos. Outro trecho digno de nota é “Domingo, dia do senhor, não descansa”, no
qual a poeta reflete sobre o patriarcalismo presente na própria língua portuguesa,
língua preservada, difundida, trabalhada e “poetizada” por um grupo de homens,
cristãos e celibatários, que, em certa medida, a língua apresenta já no seu repertório
uma língua ideológica e, nesse sentido, cabe à poesia a ressignificar, esse
ressignificar já é entendido como ato político.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADORNO, Theodor W. Palestra sobre Lírica e Sociedade. In: Notas de literatura.


São Paulo: Editora 34 ,2003

BERARDINELLI, Alfonso. As muitas vozes da poesia moderna. In: Da poesia à


prosa. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a


meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni e Dora F. Silva. São Paulo: Duas
Cidades, 1978.

MARQUES, Helena Maria Medina. A lírica de Alice Ruiz: Imagens Poéticas, Mito e
Sociedade. Cascaval, 2013. 189 f. Dissertação(Mestrado em Letras). Programa de
Pós-Graduação em Letras da UNIOESTE- Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, Cascavel, 2013.

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