Professional Documents
Culture Documents
O corpo é imagem
Jean-Marie Schaeffer
A importância da imagem em nossa tradição cultural deve-se ao fato de ela ser lugar do
pensamento do corpo. No entanto, essa suposta generalidade antropológica da relação
entre imagem e corpo não é óbvia. Desenvolveremos aqui a hipótese de que a conjun-
ção entre imagem e pensamento do corpo, longe de ser universal, é traço histórico da
civilização cristã. O trabalho que está na base dessa hipótese originou-se de minha
colaboração na exposição coletiva Qu’est-ce qu’un corps, inaugurada em junho de 2006
no Museu do Quai Branly em Paris.
Corpo, encarnação, idéia de modelo.
Temos o hábito de dizer que a cultura oci- cristã e que o essencial do material sobre o
dental é uma cultura da imagem, enten- qual ele se fundamenta provenha da tradi-
dendo que nossa relação conosco e com ção cristã e pós-cristã. A suposta generalida-
o real é profundamente moldada por es- de antropológica da relação entre imagem e
quemas, estereótipos e ideais que são en- corpo está, de fato, longe de ser natural, o
carnados em imagens. Afinal, como negar grande contra-exemplo sendo a tradição pic-
que o poder crescente das imagens ao lon- tórica do Extremo Oriente que parece fa-
go da história e a aceleração prodigiosa zer de tudo para evitar a representação do
desse movimento a partir da entrada na era corpo enquanto corpo.2 Até mesmo a con-
Hans Memling,
da reprodutibilidade técnica fazem parte dos tinuidade entre as tradições antiga e cristã é
Cristo Salvator Mundi
Mundi, traços mais marcantes da história européia? problemática. Com efeito, se a estrutura fi-
1478, óleo s/madeira, Freqüentemente, relacionamos essa impor- losófica da concepção cristã da imagem, a
38,1 x 28,2cm tância das imagens com uma espécie de saber, a idéia de modelo, se nutre efetiva-
Norton Simon Museum of Art,
Pasadena iconofilia indiferenciada, um amor às imagens, mente do dualismo de Platão, essa é, vere-
http://www.wga.hu/...
se não enigmático, ao menos contingente. mos, apenas uma de suas fontes. Em segui-
Michelangelo, da, e este é certamente o ponto mais im-
O juízo final
final, detalhe A hipótese que eu gostaria de desenvolver portante, é duvidoso que a concepção anti-
(São Bartolomeu) aqui é a de que a importância da imagem ga da beleza corporal possa ser interpretada
http://imagesanalyses.univ-paris1.fr/
em nossa tradição cultural liga-se ao fato de como tradutora de uma relação entre
autoportrait-insolite-16.html
ela ser o lugar do pensamento do corpo. imanência e transcendência, que, aliás, é o
Rembrandt, Com isso não anuncio nada novo: notou-se caso do belo na tradição cristã.
O boi abatido
abatido, 1655 diversas vezes que no Ocidente ou, para ser
óleo s/madeira, 94 x 69cm mais preciso, no Ocidente cristão e pós-cris- Portanto, a seguir, eu gostaria de desenvol-
Fonte: Museu do Louvre
http://www.culture.gouv.fr/public/
tão, a questão da imagem e a do corpo es- ver a hipótese de que a conjunção entre
mistral/joconde_fr tão intimamente ligadas. É precisamente a imagem e idéia de corpo, longe de ser uni-
tese de Hans Belting.1 Na verdade, ele vai versal, é um traço histórico da civilização cris-
Albrecht Dürer, mais longe, atribuindo a essa tese valor an- tã. O trabalho que está na base dessa hipó-
Auto-retrato, 1500
Auto-retrato
67,1 x 48,9cm tropológico. No entanto, não é indiferente tese se origina de minha colaboração na ex-
Fonte: http://www.pinakothek.de/... que Belting seja especialista em iconologia posição coletiva Qu’est-ce qu’un corps [O
128
trutura de pensamento que comporta três àqueles que, em vez de se voltarem para as
momentos essenciais: perfeições invisíveis de Deus, confeccionam
imagens para glória das criaturas (Epístola aos
O corpo humano é pensado em relação Romanos, 1:20-1:25). A mesma ambivalência
a um modelo concebido ao mesmo tem- estrutural permite também compreender a
po como sua fonte e seu ideal. O corpo tensão bipolar inerente a nossa idéia de cor-
é então, simultaneamente, uma imagem po, da qual as imagens nunca deixaram de
– um analogon – do modelo e sua im- ser o veículo. O corpo glorioso se oporá,
pressão, seu vestígio (já que é criado, pro- assim, ao corpo sofredor, e a beleza ideal, à
duzido por ele). contingência biológica. A carne concebida
como manifestação da interioridade espiri-
O próprio modelo que assegura a con-
tual encontrará sua negação na obscenidade
sistência do corpo está além de toda re-
da carne sexuada e animal. O corpo
presentação. Daí a necessidade de uma
geometrizado será desestabilizado pela de-
interface, de um lugar de contato e de
troca entre estas duas realidades inco- sordem dos órgãos. O corpo conforme será
mensuráveis que são o modelo imaterial subvertido pelo corpo grotesco, até mesmo
ou abstrato de um lado e o corpo sensí- monstruoso. E assim por diante, segundo as
vel do outro. Isso que surge, num pri- declinações inumeráveis da mesma oposição
meiro momento, como relação dual é entre imagem conforme e imagem não con-
na verdade relação entre três termos: o forme.
modelo, o corpo-imagem e a interface
Do modelo transcendente ao modelo
que os põe em contato.
interior
Em sua facticidade imediata, o corpo hu-
Além da tensão entre imagem conforme e
mano é sempre uma imagem não con-
forme do modelo. Essa distância que o imagem decaída, há, no próprio cerne de
separa de seu modelo mede-se em ter- nosso pensamento sobre a imagem-corpo,
mos visuais por seu grau de uma grande dificuldade, a da transcendência
dessemelhança da imagem conforme ou do modelo. De que modo a imagem pode
ideal. A fabricação social do corpo con- tomar como modelo algo que está além de
sistirá em levar o homem a imitar a ima- toda visão e, portanto, não se deixa captu-
gem conforme e, conseqüentemente, a rar? Vimos que é a doutrina da Encarnação
se aproximar da perfeição do modelo. que remedeia a dificuldade ligada ao caráter
não acessível do modelo. Mas se a teoria da
A tensão entre modelo e cópia permite com- Encarnação permite resolver o problema do
preender a ambivalência de nossa atitude abismo ontológico que separa modelo e
frente às imagens. Nós tanto as celebramos imagem, o preenchimento desse abismo terá
como aquilo que nos dá acesso ao modelo prolongamento imprevisto e de grande pa-
quanto as condenamos como vãs aparências pel na evolução das concepções européias
que dele nos afastam. Nossa iconofilia está, do corpo: a Encarnação vai pouco a pouco
assim, sempre prestes a se tornar iconofobia, desfazer a tese da transcendência do mode-
à medida que aquilo que a imagem dá a ver lo. Vai humanizá-lo, abrindo assim caminho
nos parece exprimir mais o afastamento do para a concepção moderna e contemporâ-
que a proximidade do modelo. Daí, por nea segundo a qual o modelo é imanente
exemplo, a condenação feita por São Paulo ao homem.
130
lo. Evidentemente, não há espaço aqui para sim, como François Jullien3 lembra, o teatro
desenvolver essa idéia. Assim, para concluir, em que são abolidas todas as oposições, to-
limito-me a esboçar com brevidade duas das as tensões, nas quais se encontra aprisio-
constelações históricas particularmente sig- nada a relação que a Europa mantém com o
nificativas, a primeira consagrada ao momen- corpo e com a imagem: sensível x espiritual,
to “estético” de interiorização do modelo, a matéria x forma, temporalidade x eternida-
segunda àquilo que constitui o ponto de de, percepção x idéia.
chegada atual desse movimento de
interiorização. Nos dois casos mostrarei Esse decoro do nu e da imitação da “bela
como se manifesta a tensão entre imagem natureza” é, porém, perturbado pelo “outro
conforme e imagem não conforme. corpo” e por outra imagem, que não ces-
sam de seguir o corpo ideal e a imagem con-
Beleza, obscenidade, banalidade forme, como sua parte maldita. Se o belo
ideal se inscreve na filiação da via ascenden-
Uma vez que o modelo de perfeição é re- te como espiritualização do corpo, o que
patriado na interioridade subjetiva, o corpo acontece quando a imagem do corpo segue
humano profano pode tornar-se, ele mes- a via descendente?
mo, veículo da Imagem conforme. Esse mo-
mento, como vimos, é o da Renascença. O que ocorre, por exemplo, quando o cor-
Com a busca da harmonia e das proporções, po toma forma sob um olhar desejante,
o pensamento sobre a imagem entra assim quando é sexuado? Cessa então de se pôr
naquilo que chamamos de “era do belo”. Atra- sob o olhar da interioridade espiritual e se
vés da dialética entre exterior e interior, o coloca sob o olhar de outro corpo: o belo
belo pode de fato ser lido como uma secu- ideal é substituído pelo comércio dos cor-
larização do esquema da Imagem conforme. pos situado sob o signo da pulsão escópica.
Assim como a física galileana pretende A sexuação do corpo – e especialmente do
geometrizar o espaço e reduzir os objetos a corpo feminino – sempre foi, portanto, um
vetores de força, a pintura se propõe fundar perigo para o nu, perigo do risco de ver a
a beleza visível do corpo humano sobre uma bela imagem decair em pornografia.
harmonia interior.
Às vezes é a própria idéia da existência de
É no nu que essa busca do belo encontra um modelo subjacente que se torna fonte
seu terreno privilegiado. O nu, contrariamen- de interrogação: e se, em vez de ser o signo
te à nudez, é indissociável de uma de uma harmonia interna, a aparência do
espiritualização do corpo, pois, assim como corpo – a imagem – fosse apenas o rastro
só há ciência das proporções do corpo hu- imanente do próprio aparecer?
mano (e não do corpo animal), só há nu
humano. Portanto, o nu não é nem a nudez A imagem fotográfica é um dos lugares em
da criatura, nem a opacidade do corpo ani- que essa eventualidade de uma imagem sem
mal, nem a carne do corpo sexuado; é, mui- profundidade não cessou de aflorar. Sua
to pelo contrário, seu desmentido (ou sua dupla natureza de impressão e de imagem
negação) mais forte. Como belo ideal, o analógica a predestina de certo modo a isso.
corpo escapa ao tempo orgânico e se cris- Por necessidade técnica ela é, de fato, uma
taliza numa presença imutável submetida uni- impressão do corpo em sua presença física,
camente à lei da forma (e, portanto, unica- sexuada e social, a mais imediata e a mais
mente à lei do modelo). O nu torna-se, as- opaca. Cada vez que ela se mantém fiel a
132
apenas a ligação entre corpo e beleza inte- cristianismo havia conseguido circunscrever
rior, mas também a ligação entre vida e or- ligando a desordem ao princípio do mal,
dem: amontoados de nervos, músculos, va- encarnado pelo diabo e oposto ao Modelo
sos sangüíneos e ossos, eles exibem a vida divino. Nós já não temos essa escapatória
orgânica sob o signo de uma profusão de à disposição. E assim estamos, a partir de
matérias e fluidos que desmente o sonho então, desarmados diante da eventualida-
eugênico de um corpo sem escórias. Sua de de um modelo que seria princípio de
multiplicação no século 18 é, a seu modo, o desordem mais do que de ordem e, por-
signo de uma era nova da representação do tanto, de uma imagem que escapa a toda
corpo humano – o corpo como aquilo que norma de retidão.
nós partilhamos com os (outros) animais.
Texto originalmente publicado em Image [&] Narrative,
A imagem só se pode ocupar desse corpo online Magazine of the Visual Narrative n.15, Battles
around Images: Iconoclasm and Beyond, nov. 2006.
animal – pura matéria, viva ou cadavérica – [http://www.imageandnarrative.be/iconoclasm/
produzida pela anatomia e a fisiologia, na schaeffer.htm]
medida em que consegue emancipar-se
da busca do belo. Pensemos em O boi abati- Jean-Marie Schaeffer é pesquisador do CNRS (França),
do, de Rembrandt, que se inscreve na mes- professor e diretor do Centre de recherches sur les arts
et le langage (Cral) da École des Hautes Études en
ma interrogação de sua Lição de anatomia. E Sciences Sociales (Ehess) em Paris. Suas pesquisas abor-
como não associar a eles o auto-retrato do dam a análise filosófica do campo da estética e das artes
pintor na pele de São Bartolomeu que e o estudo de objetos específicos ligados ao campo das
artes: imagem fotográfica, ficção, narrativa, gêneros lite-
Michelangelo introduziu entre os persona-
rários... Entre outros livros, publicou: Art, création, fiction
gens de O juízo final ? Lá, corpo desprovido (com Nathalie Heinich), Paris: Éditions Jacqueline
de sua pele, pele destacada do corpo aqui: Chambon, 2004; Adieu à l’esthétique , Paris: Presses
carcaça sanguinolenta de um lado, saco va- Universitaires de France, 2000; e A imagem precária ,
Campinas: Papirus, 1996.
zio de seus órgãos do outro, nada mais se-
para o corpo humano daquele do animal
sacrificado. Tradução: Ana Cavalcanti
Talvez ainda mais desestabilizadora seja uma Revisão técnica: Inês de Araujo
segunda suspeita: e se a própria ordem fosse
produtora de desordem? A era do todo
genético é efetivamente também aquela do
Notas
sonho de tecnologia genética que nos per-
mitiria a auto-reprogramação. Assim, sonha- 1 Belting, Hans. Pour une anthropologie des images. Paris:
mos com corpos perfeitos dos quais seriam Gallimard, 2004.
eliminados os genes defeituosos ou dele- 2 No original “corps qua corps”. [N.T.]
térios e cuja conservação indefinida seria 3 Jullien, François. Du nu. Paris: Seuil, 2001.
garantida pela clonagem. E se o próprio mo-
delo estivesse viciado por um princípio de
entropia constitutivo? E se o modelo, como
sugere, por exemplo, Bacon em Study of the
human body, fosse produtor de monstros?
Angústia que de certa maneira sempre
acompanhou a idéia do modelo, mas que o