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Capítulo 2
Juridificação e Paradigmas de Estado
Aclaram, ainda, o horizonte de um projeto de realização dos sistemas de direito como abertura
de perspectivas interpretativas, revelando as restrições e âmbitos de concretização dos direitos
fundamentais, a serem interpretados, desenvolvidos e configurados, por se apresentarem
como “princípios não saturados”.6 Os paradigmas encerram, assim, possibilidades descritivas
e prescritivas.
A interpretação do direito procura, por meio dos paradigmas, responder a desafios sociais
delimitados no tempo e no espaço. São ideais sociais, modelos e visões sociais com descrição
e valoração de fatos sociais e também funcionamento dos sistemas sociais. Não são
propriamente os acontecimentos sociais, mas as representações que os tribunais fazem desses
acontecimentos sociais. O paradigma contém uma proposta de explicação e justificação das
referências assumidas pelos juristas na sua compreensão da sociedade.
Dentro de um paradigma busca-se um processo de racionalização com as seguintes
dimensões: 1) sistematização interna do material jurídico (racionalidade interna); 2)
organização das pretensões de validade e justificação normativa (racionalidade normativo); e
3) contribuição para a manutenção da sociedade complexa ( racionalidade sistêmica ).
Um novo paradigma pode resultar do aclaramento, em termos de ciências jurídicas
sociais, assentadas em convicções comuns, que os juízes têm dos processos sociais, os
padrões de expectativas e os mecanismos de integração social. São teorias dispositivas,
estabelecendo o que se entente por e como se interpreta a lei e em que direção o direito
legislado deve ser complementado e modificado, apresentando-se como responsáveis pelo
futuro da existência social.
Os paradigmas reduzem a complexidade da tarefa de decidir um caso particular por
consistirem em sistemas coerentes e racionalmente ordenados. Não são apenas uma
autocompreensão, mas também uma justificação por parte dos tribunais no seu trato com os
seus clientes. No entanto, os paradigmas não dizem respeito apenas a experts, mas também
ao conjunto da sociedade. Embora estejam os primeiros em posição privilegiada na
compreensão paradigmática, eles não podem impor a sua visão. É que, a par do direito
desenvolvido por jurista, os direitos fundamentais formam-se como uma instituição social
que denuncia injustiças padecidas com as violações da dignidade da pessoa humana.
Sobre o assunto da juridificação e dos paradigmas de direito e Estado, é necessário fazer
uma última advertência. A temática envolve sobretudo uma perspectiva eurocêntrica, em que
predominam países de capitalismo avançado. O seu estudo, no entanto, é válido para o cenário
brasileiro, eis que se trata de formas de ordenação social, com uma tecnologia subjacente, que
foi absorvida pelas instituições nacionais.
A questão é que a análise e aplicação desses modelos não pode ocorrer de forma ingênua,
desconsiderando o contexto brasileiro, como país que se insere tardiamente no capitalismo.
Antes da década de 30 do século XX, com a emergência do Estado Novo, a economia
brasileira era baseada em monoculturas, com os sucessivos ciclos econômicos dos quais o
último da maior importância foi o do café. Outra coisa que não pode ser esquecida é que,
durante, o século XIX, a produção nacional era escravagista. Com isso, fica muito claro que
o Brasil não experienciou o Estado Liberal.
No mesmo sentido, a industrialização brasileira deu-se em período posterior e foi
capitaneada pelo Estado, sem a prévia acumulação de capital nas mãos da iniciativa privada
como ocorrera na Europa. Isso fez com que a complexificação da sociedade brasileira
ocorresse apenas com o advento de um Estado Social, eminentemente coorporativo. De igual
modo, as políticas de bem-estar social, ampliadas pela Constituição Federal de 1988, ocorrem
num contexto de acanhada formação de capital, em comparação com os países de capitalismo
avançado, o que obviamente limita as possibilidades compensatórias e redistributivas, ínsitas
a um Estado de Bem-estar Social.
O caso brasileiro é de modernidade periférica, “em que os sistemas jurídico e político são
bloqueados generalizadamente na sua autoprodução consistente por injunções heterônomas
de outros códigos e critérios sistêmicos, assim como particularismos difusos que persistem na
ausência de uma esfera pública pluralista.”7 Há, em tais casos, um processo que nas teorias
funcionalistas é conhecido como “corrupção sistêmica”, em que o princípio da diferenciação
funcional, que pressupõe a autopoiese, a autonomia, dos sistemas é atingida, de modo que
questões econômicas e políticas acabam decididas por critérios ilegítimos oriundos de
particularismos corporativistas8, e não exatamente por um funcionamento autopoiético do
sistema econômico e político-burocrático.
Essas observações perfunctórias são feitas como mera advertência, para evitar a aplicação
irrefletida dos modelos descritos neste capítulo. Como dito, eles são modelos internalizados
em boa parte pela instituições nacionais, mas o contexto brasileiro é significativamente
diferente.
7NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 239.
8 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 240/241.
9 FOUCAULT, Michel. Securité, territoire, population. Paris: Gallimard-Seuil, 2006 , pp. 261 e seg.
10 Idem. Ibidem, pp. 319 e seg.
11 FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: por uma crítica da razão política. Trad. Heloísa Jahn. In:
“https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/11/foucault-omnes-et-singulatim.pdf”\* mergeformat, acesso em
27/02/2017.
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competição, segundo leis de mercado, pelos escassos recursos materiais para a satisfação das
necessidades, estando franqueado à economia extrair o trabalho dos indivíduos e ao Estado
garantida a obediência dos súditos.
A construção do Estado de inspiração hobbesiana inaugura o necessário nível de
abstração, por meio de um sistema legal, para a institucionalização do dinheiro e do poder.
Sem o substrato do mundo da vida, o Estado Absolutista não teria encontrado uma base de
legitimação, nem poderia ter funcionado. O mundo da vida que estava inicialmente à
disposição do mercado e do poder absolutista passa aos poucos a fazer suas demandas. Depois
disso, tanto o poder como o mercado passaram a estar ancorados no mundo da vida,
estruturalmente diferenciado14, que passa a ser a única fonte de legitimação.
No Estado Absolutista, tudo o que não estava regulado pelo Poder Político com as formas
jurídicas encontrava-se disforme15, entregue a um âmbito de autodeterminação ou às coerções
oriundas das comunidades tradicionais que mantinham seus espaços de dominação.
A primeira jornada de juridicização, no Estado Absolutista, quando se formou a sociedade
civil, mostrou-se dominada pelas ambivalências expostas por Marx sobre o trabalho livre. Ao
mesmo tempo que se emancipavam os trabalhadores assalariados, conferindo-lhes liberdade
de movimento e voluntariedade para aderir ao emprego e às organizações, ocorria a
proletarização dessa forma de vida, que não foi objeto de regulação jurídica.
Nesse primeiro momento de organização do Estado, o conjunto dos seus poderes tinha
raízes na pessoa do Rei, que centralizava as funções que posteriormente seriam decompostas
em judicial, executiva e legislativa16. No exercício dessa última atividade, cabia ao soberano,
pela edição de leis, limitar direitos em prol de um bem maior, como por exemplo a paz, no
caso da obra de Hobbes. Todavia, o aparecimento da figura do Soberano significou a
centralização de poderes, assim como de uma legitimação do poder real que não estava na sua
burocracia ou na técnica, mas apenas na proeminência de uma vontade que se sobrepunha às
demais, evitando conflitos17. O Estado Absolutista consolidou seu poder com a expansão do
direito escrito.
Dessa forma, essa primeira jornada de juridificação deu-se em torno da razão de Estado,
como adensamento da potência do Soberano, utilizando-se como instrumento do poder de
polícia, entendido como um domínio de todos e cada um, em que sobressaia uma regulação
minuciosa da vida dos súditos. No direito público, reservou-se ao Rei o monopólio da coerção,
com a dominação legal e burocrática. No direito privado, garantiu-se um mínimo de paz que
permitia a competição e a extração do trabalho dos indivíduos. Esse contexto permitiu o
surgimento de uma sociedade com formas sistêmicas de atuar como a economia e o Estado.
Tanto o Estado Liberal como o Estado de Direito emergiram do movimento que levou às
Revoluções Liberais dos séculos XVII e XVIII, como esgotamento do modelo absolutista de
sociedade. Em ambos, houve um movimento de controle e domesticação da estrutura político-
burocrática organizada nos moldes do Antigo Regime. Do mesmo modo, ambos são
fenômenos contemporâneos e simbióticos. Todavia, a separação analítica de seu estudo
permite entender duas ênfases de ordenação de sociedade: a político-econômica, constituindo
o modelo de Estado Liberal e a jurídico-política, constituindo o Estado de Direito.
14 HABERMAS, Jürgen Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 206.
15HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 507.
16 MONCADA, Luís S. Cabral. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002 , p. 31.
17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 197.
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O Estado Liberal trouxe uma contenção interna do poder e do governo, levando em conta
que, pela ideologia, o governo deveria ser frugal para moldar-se a ao mercado, regido por leis
quase-naturais. Às autoridades cabia um governo competente e parcimonioso para adequar-
se à economia, como instância de veridição. Outro aspecto é que o mercado constitui um
mecanismo liberal de distribuição de bens, baseado na busca racional e egoística da satisfação
do autointeresse, levando a uma integração sistêmica da sociedade pelo dinheiro como meio
que se configurou paradoxal e instável.
Já o Estado de Direito configura uma contenção do poder pelo direito formalizado, em
termos de leis positivadas, como veículo da vontade do Estado, e também nos moldes de
direitos subjetivos, oponíveis inclusive ao Estado, como invólucro de interesses
autodeterminados pela cidadania burguesa. Não se tratava apenas de instituições jurídicas
adequadas a uma economia capitalista, mas sobretudo constituidoras de um estatuto de
proteção ao cidadão, como espaço para a livre constituição da personalidade. A proteção de
direitos como a liberdade, a propriedade e a igualdade formal constituiu um âmbito de
integração social legítima, com a constituição de âmbitos de exercício autônomo de
entendimentos.
burocracia para tornar dóceis os indomados domínios sobre os quais o governo deve se
exercitar18.
O governo econômico assumiu dois sentidos: um governo impulsionado por preceitos de
política econômica e um governo que economizava os seus custos por meio de um exercício
menor da força e da autoridade. Com isso, ao governo não mais bastava ser justo,
constitucional ou legítimo. Era necessário que fosse hábil e adequado, sendo capaz de
movimentar-se de acordo com fronteiras delimitadas por verdades construídas a partir do
funcionamento do mercado, especialmente a teoria dos preços. A insatisfação com o governo
passou a estar vinculada aos resultados que esse modo frugal de orientar a economia permite
que ela atinja. Era uma avaliação em termos de êxito nas condições para propiciar riqueza; o
governo pode sempre ser melhor.
Como correlativo de economia de governo, houve uma transferência de poderes para a
microesfera próxima em que se situa o empregador que passou a ter também instrumentos
jurídicos para exercer controle sobre seus empregados, além do uso da disciplina para
dominá-los.19 O poder de inspeção e vigia deslocou-se do governo, como outrora no Antigo
Regime, para o patrão.
Era preciso da escola, além do asilo, da prisão e da família organizada, para formar
indivíduos que possam se autogovernar e cuidar de si próprios. Havia uma proliferação de
normatividades. Esse era o momento das disciplinas que especificam os indivíduos em relação
a certas normas civilizatórias. Houve uma forte e dolorosa migração das formas sociais de
veridição que antes eram do direito e da teologia para novas disciplinas que formaram novas
condições disciplinares para essa nova forma de governar.
A decisão econômica ficou reservada principalmente aos agentes privados. Fixou-se com
isso a delimitação entre a atividade política e a econômica. A sociedade econômica que estava
circunscrita à atuação espontânea dos mecanismo de mercado e institucionalizada em termos
de direito privado deveria estar separada do Estado.
Houve, então, uma nova especificação dos sujeitos a serem governados. Eram indivíduos
ativos em conformar a sua própria conduta, devendo ser respeitados a liberdade, a autonomia
e os direitos dos indivíduos. A arte de governar liberal era gestora de liberdade, produzindo-
a e consumindo-a dentro de um processo econômico em que se afirma o novo sujeito de
interesses, o homo oeconomicus, movimentando-se no espaço do mercado.
Assim, em espaços juridicamente definidos, apresentou-se o sujeito de interesses, que
exercia suas escolhas e preferências que eram irredutíveis e não transferíveis, em face da
fixação de um espaço de não intromissão garantido pelo Estado. O mercado era o âmbito em
que esses interesses encontravam-se. Exemplificativamente, na filosofia de Bentham, a
economia seria uma natural harmonização dos interesses, ao passo que o direito faria o mesmo
de forma artificial. Era uma dissociação de racionalidades.20
A intervenção do Estado deu-se justamente para que esse sujeito de interesses que
ocupava boa parte do espaço da cidadania burguesa pudesse afirmar-se e exercer suas
escolhas. O Estado tornouse uma instância de cálculo de risco e segurança para que, nos
âmbitos delimitados de liberdade, interesses fossem protegidos e realizados. É o que se
denomina intervencionismo negativo que delimita um mercado supostamente autorregulável.
A integração social girava em torno das relações de trocas. Era eminentemente uma
integração sistêmica, baseada na distribuição de recursos pelo mercado e mediada pelo meio
dinheiro, num processo social de produção de desigualdade, já que centrado no capital e sua
acumulação. A assimetria constitutiva do capitalismo que se baseava numa relação entre
18 BARRY, Andrew, OSBORNE, Thomas & ROSE, Nikolas. Foucault and Political Reason – liberalism, neo-
liberalism and rationalities of governement. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p. 44 e seg.
19Idem. Ibidem, p. 22.
20GORDON, Colin. Governamental Racionality: an Introduction. In: GRAHAM, Burchell & GORDON, Collin. The
Foucault Efect: studies in governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 22.
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status positivo dos cidadãos. Era um Executivo submetido ao império da lei e da sua
proeminência em face de quaisquer outros atos normativos expedidos pela Administração.
No Estado de Direito, o ordenamento jurídico passou a apresentar elementos que tornaram
visíveis a proteção do cidadão, no âmbito do mundo da vida, que tornou-se uma fonte de
legitimação estruturada. Consolidou-se o status de sujeito jurídico, constituído por uma
totalidade de direitos de ação autônoma, em que estava subjacente um conteúdo ético,
vinculado à autonomia, à autorresponsabilidade e ao livre desenvolvimento da personalidade,
possibilitando a construção da própria biografia individual.
Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma matéria
informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder administrativo-
burocrático, o ordenamento do Estado de Direito se enriqueceu para regular também a
sociedade civil, e o mundo da vida passou a ser objeto de reconhecimento e proteção 32. Nas
palavras de Habermas, nesse paradigma o Estado Moderno adquire uma legitimidade por
direito próprio, adquire legitimações baseadas no mundo da vida33.
A racionalidade formal do direito manifestara-se numa interação entre mercado
desenvolvido, um sistema formal de direito privado, um Estado fiscal e uma administração
burocrática. Era um cenário de separação do direito e da política, profissionalização jurídica,
estrita orientação pela regra, universalismo, precisão, e argumentação artificial, acompanhada
por um conceito de justiça procedimental.34
O direito formal, autonomizado em face dos outros sistemas, afastou-se de questões
morais e de verdade, consideradas metajurídicas, orientando-se estritamente pela regra, como
programas condicionais, com uma estrutura, “se..., então,...”. Juristas profissionais passam a
referir-se a estruturas normativas universalistas, tendente a formar procedimentos a partir de
uma sublimação lógica e do rigor dedutivo. Estruturam-se, dessa forma, argumentações
baseadas em construções artificiais desenvolvidas no âmbito da ciência e da técnica jurídica
e aplicadas por procedimentos. É assim que ocorre a “completude e clausura sistemáticos de
um âmbito jurídico autônomo e fechado”35.
Esse direito formal definia-se a partir da seguinte conformação de suas dimensões: 1) a
racionalidade interna está nas estruturas conceituais do direito, com um direito analítico, com
rigor dedutivo e com orientação unívoca aos fatos; 2) a racionalidade normativa expressa-se
na delimitação da esfera para a persecução do interesse privado, como eixo dos direitos
subjetivos, em que aparece em primeira dimensão a figura universal do sujeito de direitos,
protegido pelo Judiciário, inclusive em face do Estado; 3) a racionalidade sistêmica, como
problema de controle da sociedade, responde aos imperativos de uma sociedade de mercado
que favorece a exploração, a mobilização e a alocação dos recursos naturais e da força de
trabalho, conformando uma economia, como sistema social diferenciado e autônomo36.
De tal modo, o Estado de Direito constituiu um paradigma jurídico em que o status de
cidadão estava protegido constitucionalmente por direitos individuais formais, especialmente
a propriedade e a liberdade de contratar, como âmbitos de autodeterminação. As relações de
autoridade estavam limitadas pela lei e pelo acesso irrestrito a um Judiciário independente. O
direito privado assentava-se na separação entre Estado e sociedade, protegendo o cidadão
proprietário, numa sociedade centrada na economia. Esse era um ambiente favorável à
calculabilidade necessária ao desenvolvimento do capitalismo.
37 Ideia semelhante está em Vital Moreira (MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra: Centelho,
1978, p. 119): A ideia subjacente à concepção do estado social é, sem dúvida, a de que este se propõe fazer valer
perante o econômico valores próprios do político e do jurídico (justiça, igualdade, paz social).
38 LUHMANN, Niklas. Teoria política em el Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31.
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dos interesses individuais. No Estado de Bem-estar Social, a economia domada pela política
levaria a uma justa repartição com a entrega compensatória de bens de consumo. Era um
reposicionamento da sociedade que buscou ultrapassar a centralidade do mercado como
ordem de distribuição espontânea de bens para uma nova organização intencional de
sociedade com base em critérios políticos de equalização de assimetrias determinadas por
papéis sociais. Em ambos os paradigmas, a questão central é a de satisfação de interesses, seja
pela sua busca egoística, seja pela sua entrega compensatória.
Na emergência do Estado Social, o discurso jurídico voltou-se para a fixação de salários
e condições de emprego, que estavam na base de uma política reformista que visava à
pacificação do conflito de classes. Com isso, o elemento nuclear foi uma legislação trabalhista
e social em que se cuidou de cobrir os riscos básicos da existência dos assalariados, inclusive
com compensações das desvantagens de posições hipossuficientes no mercado, como
consumidores, inquilinos, segurados etc. As sequelas dos conflitos de classe acabaram por se
converter no tema das democracias de massas. A adesão da população ao sistema político
ficou sujeita a “ofertas de legitimação sujeitas a falsificação” 39, consistentes especialmente
em intervenções e prestações compensatórias.
Com a evolução do Estado Social para o Estado de Bem-estar Social, a política social
selecionou situações de debilidades extremas para absorvê-las, deixando intactas as relações
de propriedade, receitas e dependência. Regulações e prestações estatais dirigiam-se para a
consecução de um equilíbrio social por meio de compensações40, mas também para a correção
de externalidades coletivamente sensíveis, como meio ambiente, cidades, políticas sanitárias
etc.
A extensão do Estado de Bem-estar Social ocorreu sob incômodos limites em que os
tributos públicos destinados a tarefas de política social estavam restritos a condicionamentos
ligados funcionamento do mercado e ao seu crescimento. Os tipos de políticas redistributivas
deveriam, ainda, adequar-se à forma de uma economia baseada na acumulação de capital.
Além do estreitamento vinculado aos problemas sociais, ao Estado se impunha a tarefa de
absorver os efeitos disfuncionais do mercado. De outro modo, estaria rompido o equilíbrio de
classes ao se pôr em risco os grupos sociais privilegiados. Em suma, tributos, tipo de
prestações e a organização da seguridade social tinham de se adaptar ao funcionamento
sistêmico da economia e mesmo da política. O processo de acumulação de capital deveria
ficar intocado pelas intervenções do Estado que, além do mais, assumia a função de coordenar
os riscos e as disfuncionalidades da economia capitalista. Nos países ocidentais, isso
constituiu o cerne do reformismo keynesiano.
O ponto central do conflito de classes que se institucionalizou a partir da capacidade de
disposição privada dos meios de produção de riqueza social deslocou-se exclusivamente para
o sistema econômico, perdendo seu sentido nas relações de vivência social do cotidiano,
quando da solidificação das relações capitalistas. A estrutura de classes desvinculou-se de seu
sentido histórico, esmaecendo-se a tensão entre capital e trabalho.
administrativa que resultavam em regras de caráter jurídico. A situação que merecia regulação
e estava inserida numa biografia e numa forma concreta de vida viu-se submetida a uma
violenta abstração, não só por imperativos jurídicos, mas também burocráticos, para poder
ser administrativamente tratada.
As burocracias encarregadas de atuar na distribuição de bens e serviços têm de proceder
a partir de procedimentos legais próprios de uma dominação burocrática, valendo-se de
discursos jurídicos de compensação/indenização de prejuízos e desvantagens 44. Assim, na
medida em que o Estado vai além da pacificação do conflito de classes e atua sobre âmbitos
privados, estendendo uma rede de assistência clientelista, mais fortemente apresentam-se os
efeitos de uma juridicização que simultaneamente burocratiza e monetariza. Essa é a essência
da regulação. Era um dilema que se apresentava. As garantias do Estado de Bem-estar Social
deveriam dirigir-se à integração social, mas desintegram formas de vida pelo seu contato com
o dinheiro e o poder, como podem ser exemplo as relações de família e as educacionais.
Tratou-se de um processo acondicionamento burocrático da vida social, em que situações
da vida cotidiana e concreta tem de ser violentadas para que sejam administrativamente
manipuladas, em que as necessidades sociais acabam formatadas em meios compensatórios.
Isso exigiu uma administração centralizada e computadorizada dos clientes usuários estatal
por grandes e distantes organizações. Mesmo, nas estreitas situações, em que pode haver
amparo de técnicos de serviço social, o que se tem é uma terapeutocracia45.
Ocorreu a burocratização e a monetarização de vivências sociais inscritas no mundo da
vida. Ao mesmo tempo que as garantias do Estado de Bem-Estar Social procuravam a
integração social por meio de compensações, dissolveram-se modos de vida com sua
burocratização e monetarização, desintegrando-os. Processo que foi acompanhado pela
substituição do consenso por uma intervenção estatal que submeteu modos de vida à
artificialização produzida por um poder que se expressava, e ainda se expressa, em burocracia
e dinheiro. A crise do Estado de Bem-Estar Social foi uma crise de integração46, em que se
substituíram consensos e entendimentos, por uma agregação social baseada nos meios
deslinguisticizados do dinheiro e do poder.
Dentro desse contexto de prestação de direitos sociais pelo Estado, até mesmo os direitos
de participação política e democrática se viam esvaziados. A organização das liberdades
cidadãs acabou atingida por fenômenos como “segmentação do papel de eleitos, pelas lutas
nas elites partidárias, pela estrutura vertical dos processos de formação da opinião pública
dentro de partidos providos de uma crosta burocrática, pela autonomização das corporações
partidárias, pelo poder incrustado nos meios de comunicação”47. A perda de liberdade que se
experimentou não se devia principalmente às formas jurídicas, porém ao modo burocrático
pelos quais esses direitos eram fruídos. Nessa linha, ao direito de voto universal e às
liberdades de associação, imprensa e opinião, só se podia atribuir um caráter unívoco de
garantia de liberdade, em nada lhe obstaculizando as formas jurídicas.
O Estado de Bem-estar trouxe embaraços para o âmbito da autonomia privada,
viabilizadora da configuração de uma vida individual própria. O trabalho e a vida acabaram
sequestrados por novas formas de dominação de uma burocracia racionalizada em termos de
disciplina hierarquizada e de expertise. Isso desafiou a tripartição de poderes ao encerrar
questões de vivências privadas no âmbito de tratamento administrativo, colocando em
segundo plano acordos gerais produzidos pela representação democrática no âmbito do
legislativo.
52 HOLMES, Stephen. Vincoli constituzioli e paradosso della democrazia. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alii. Il
future della costituzione. Turim: Einaudi, 1996, p. 201.
53 HABERMAS (Op. cit., p. 509) 190 Idem. Ibidem, p. 255.
59 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 514.
60 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez
Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 213.
61 Idem. Ibidem, 516.
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se impõem regulações ao tempo livre, à cultura, às férias, ao turismo, à família etc. Aí,
enxerga-se a interferência sistêmica e sua juridicização por um processo potencialmente
deletério em que simplesmente as formas jurídicas não podem legitimar a regulação que se
avoluma.
Os princípios da participação política e das compensações sociais são instituições sociais
constitucionalmente ancoradas, a serem preservadas no âmbito do Estado Democrático de
Direito. O direito como meio do Estado de Bem-estar Social é talhado para locais de ação
previamente organizados em termos de direito formal e que podem ser mantidos apenas por
meio desse mecanismo, como é exemplo a burocracia. A questão é que o direito como meio
Estado de Bem-estar Social estende-se para âmbitos informalmente organizados do mundo
da vida, colonizando-o e desfigurando esferas de vivências indiferenciadas e únicas, como,
por exemplo, a família. Em termos de Estado Democrático de Direito, o direito como meio
fica à disposição da política, mas simultaneamente como instituição estabelece condições
procedimentais e de conteúdo sob as quais é possível a sua disposição.
O Estado Democrático de Direito instaura uma tensão entre direitos oriundos do Estado
Liberal e os gestados no paradigma de bem-estar social. É que o direito formal privado realiza
liberdades de forma unívoca canalizando demandas do mundo da vida contra a dominação
burocrática. De outro lado, as prestações compensatórias são necessárias para a realização
material da autonomia material como reequilíbrio das relações assimétricas constitutivas do
capitalismo, em que se opõem capitalistas proprietários a trabalhadores subordinados em
relações de emprego.
Noutra direção, o Estado de Direito também erra ao reduzir a justiça a uma igual
distribuição de direitos, como se estes fossem bens repartíveis. O Estado de Bem-estar Social,
por sua vez, amesquinha a cidadania ao configurá-la numa clientelização hipertrofiada. Um
sistema de direitos constituído por cidadãos emancipados que se considerem como iguais em
respeito e consideração, com a edificação reflexiva de âmbitos privados e públicos de
autonomia, é o que permite a superação das insuficiências dos dois paradigmas anteriores.
O Estado de Bem-estar Social orienta-se predominantemente por critérios de justiça
redistributiva, em torno do problema da partição de utilidades fruíveis socialmente
produzidas. No Estado Democrático de Direito, essas compensações sociais são o resultado
de um direito que tem como objetivo garantir a liberdade e a integridade de cada um, num
recíproco reconhecimento entre os cidadãos informados e esclarecidos.
No modelo de sociedade liberal, o mercado constitui uma quase-natureza, resultado de
forças espontâneas que fogem ao controle dos atores individuais. No Estado de Bem-estar
Social, desaparece esse caráter quase-natural, sobressaindo-se o Estado controlador,
regulador, e socialmente configurador, de modo que tão logo as variáveis sistêmicas comecem
a oscilar além de um certo grau de compatibilidade social, o Estado as atribui como situações
de crises, considerando-as um déficit de controle e de regulação.
Do Estado Liberal para o Estado de Bem-estar Social, passa-se de um nível de descrição
da ação para um nível de descrição ligado a sistema. Desloca-se de um ponto de referência
posicionado no ator individual, dentro de um entorno natural, em que se exerce a liberdade
de ação, como responsabilidade por consequências de suas decisões, para outro em que
afloram “contextos de um sistema, estatisticamente descritos, sob os quais decisões
duplamente contingentes das partes envolvidas, junto com suas consequências, são
consideradas variáveis dependentes.”62 No Estado Liberal, verifica-se o único, o individual,
o pessoal, o concreto, o anedótico, o ocasional, o aleatório, a conduta isolada, imprevisível, o
esperar e o ver, dentro de um certo fatalismo. Em contraste, o Estado de Bem-estar Social, é
o campo em que está o estatístico, a categoria, o impessoal, o generalizado, a depuração de
detalhes, o recorrente, o sistêmico, como parte de uma atividade, manejável, controlável, em
que impera a planificação mediante seguros e regulação.
62 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 488.
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O Estado Democrático de Direito instaura uma transição reflexiva entre esses dois pontos
de referência, como forma de construção de uma autonomia bipartida como privada e pública.
“O substrato para realização do direito não é constituído, nem pelas forças de uma sociedade
de mercado que opere de forma espontânea, nem tampouco pelas medidas de um Estado
Social que opere de forma intencional”63, mas sim por vias de entendimentos linguisticamente
mediados e por influxos de tipo publicístico e democráticos que originam-se da sociedade
civil e do espaço público-político, em que se situam pessoas na sua dimensão privada com a
constituição autônoma de uma configuração única de vida.
A construção do sistema de direitos supera o direito formal e material, adotando o direito
reflexivo que visa a assegurar em última instância o exercício bipartido da autonomia, privada
e pública, passando todos os atos jurídicos a serem concebidos como um aporte da
configuração dos direitos fundamentais. No Estado Democrático de Direito, estão em
concorrência modelos oriundos do Estado Liberal com os originados no âmbito do Estado de
Bem-estar Social, a formarem uma ordem transitiva e complementar de prioridades numa
construção interpretativa articulada a partir do caso concreto.
O papel social que sobressai no Estado Democrático de Direito é o do cidadão, dotado de
autonomia privada e pública, que toma parte do discurso político para expressar os seus
interesses violados cooperando para construir critérios de decisão iguais para casos iguais e
desiguais para casos desiguais. Para escapar do paternalismo do Estado de Bem-estar Social,
é necessária a construção de uma cidadania esclarecida e informada que permita capacidade
e competência de mobilizar o direito com seus instrumentos de ação e defesa procedimentais,
traduzindo os seus problemas cotidianos, situados no mundo da vida, em construções jurídicas
em nível maior de abstração. A coletivização do direito, por associações e instituições com
capacidade de substituição processual, são um caminho para implicação do indivíduo por
meio de uma participação política com a representação de seus interesses individuais na
formação dos interesses coletivos.
Não foi por acaso que a dignidade da pessoa humana foi expressamente consagrada na
Carta Fundamental de Bonn, logo depois da superação do nazismo, assim como não foi
acidental a sua adoção na Constituição Brasileira após um período de governo autoritário64.
O sentido de tal positivação é afastar qualquer concepção relativista ou reducionista da
condição humana, oriundo de ordens sociais que busquem sobrepor-se aos indivíduos, como
sujeitos de direitos e fins em si mesmos. Todos os países que afirmaram a dignidade da pessoa
humana são Estados Democráticos de Direitos, garantidores de um núcleo indisponível e
incindível de direitos à pessoa humana.
A autonomia que, em Kant, tem um papel chave na dignidade da pessoa humana está no
cerne da definição de sujeito de direito. Em outras palavras, a qualidade da pessoa humana
como ser racional, que reconhece e participa da elaboração de regras em livre manifestação
de vontade, indica as características essenciais desse papel social singularmente protegido.
Daí que ter personalidade signifique participar da condução política de sua organização social,
bem como fixar-se uma esfera para escolhas privadas no exercício da autonomia. Aliás, esses
dois âmbitos da autonomia se afirmam numa mútua dependência entrecruzada, em que a
participação política é a garantia das liberdades individuais e em que estas liberdades
individuais de pessoas iguais em dignidade legitimam o Poder Político.
Se há algo inquestionável num Estado Democrático de Direito, é que a ordem social se
organiza a partir de indivíduos, dotados de dignidade e, por isso, tratados com igual respeito
veres, para enunciá-los sumariamente, são promover a própria perfeição moral e natural e a felicidade alheia.
Adicionalmente, cada qual tem o dever de respeitar os direitos de justiça, pois também isso é meritório e uma obrigação
(não um dever) de virtude, conforme o explica Kant.”
206 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 503.
2.4.2. O Estado Regulador
65DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
209.
66 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999 , p. 37.
67 RAWLS, em. Leciones sobre la Historia de la Filosofía Moral. Trad. Andrés de Francisco. Barcelona: Ediciones
Paidós Ibérica, 1997, p. 227, elabora melhor o significa de reino (domínio) de fins em Kant:“pelo que quer dizer Kant
com um todo de fins em enlace sistemático, também deveríamos ter em conta o seguinte parágrafo... Desse modo, como
disse nele, o enlace sistemático característico de um domínio [reino] dos fins surge quando todas as pessoas razoáveis
e racionais se tratam a si mesmas e as demais como pessoas e, portanto, como fins em si mesmas. Pela segunda
formulação, isso significa que cada qual não só persegue seus fins (permissíveis) pessoais dentro dos limites dos
deveres de justiça (os direitos dos homens) mas também dá um valor significativo e apropriado aos fins obrigatórios
ordenados pelos deveres da virtude. Esses de
24
71 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 47
e seg.
25
72TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016, p. 80.
73 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 38.
74 Idem. Ibidem, p. 43.
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