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Capítulo 2
Juridificação e Paradigmas de Estado

A regulação como processo de produção artificial de normas por entidades autônomas


incrustadas no Estado deve sua existência a uma concepção moderna de direito e instituições
políticas. Esse fenômeno de deslocamento de poder normativo ocorre a partir de alguns
pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-burocrático, 2) a constituição de um
sistema econômico, 3) a positivação do direito como sua produção artificial em regras formais
com hipóteses de incidência e sanções que visavam a regular comportamentos, 4) instituições
jurídicas e políticas concebidas funcionalmente para a consecução de utilidades sociais, como
por exemplo o estabelecimento da paz, do bem-estar social, da vida mais agradável possível
e 5) o estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas
finalidades sociais.
Essa produção de regras por entes autônomos emergiu de disputas sociais que levaram a
diferentes configurações de Estado e de instituições jurídicas. Não se pode esquecer que a
ênfase regulatória é um grande problema para o Estado Democrático de Direito e que seu
cenário é o do conflito de classes amortecido por diretrizes compensatórias típicas do Estado
de Bem-estar Social. Daí a importância de uma reconstrução das diferentes fases de
juridicificação e dos paradigmas do Estado a partir da Modernidade.
Com as grandes codificações do século XVIII o direito materializou-se na forma de textos.
O câmbio estrutural da sociedade remeteu a uma mudança no próprio direito, por meio da
cultura jurídica. Surgiu um sistema jurídico e seu entorno social do qual emergiram os juristas.
Com isso, iniciou-se um processo de juridicização. Essa compreensão histórica do direito e
da sociedade apareceu como noção polêmica no debate sobre o direito do trabalho na
República de Weimar, tendo Kirchheimer o utilizado para criticar a formalização jurídicas
das relações de trabalho1 que levaria à sua petrificação, com riscos para o movimento obreiro,
em razão da neutralização do conflito de classes. Seria um processo de desapropriação dos
conflitos, sua despolitização e de fluxo de normas.
Há desapropriação dos conflitos no momento em que eles são arrancados de seu contexto
com a sua desnaturação pela formalização jurídica. Ocorre, em verdade, uma alienação dos
conflitos sem exatamente a sua solução, em razão da lentidão da justiça, dos custos dos
procedimentos, da desigualdade nas chances de sucesso e também das barreiras de acesso e
compreensão da Justiça.
A despolitização, como característica da juridicização, dá-se pelo tratamento jurídico e
técnico dos conflitos que, ao mesmo tempo que protege interesses, restringe as possibilidades
políticas de ação, colocando os indivíduos numa posição colaborativa. É exemplo o direito
do trabalho, no Estado de Bem-estar Social, em que a salvaguarda interesses do classe
trabalhadoras restringiu o âmbito de ação política dos sindicatos, inserindo-os numa posição
de cooperação com as instituições jurídicas e estatais.
A juridicização também reflete um fluxo crescente de normas, especialmente no mundo
empresarial e do trabalho, como um problema típico do avultamento da dinâmica
intervencionista. Há dois movimentos na juridificação: a expansão do direito com a regulação
formal de, até então, situações sociais informalmente regradas; e a densificação que é a
depuração de regramentos sociais em conceitos e definições especializados típicos do sistema
jurídico. A miséria singular e progressiva do direito escrito e positivo contemporâneo reside
no aumento da massa de leis e normas que vão tornando o direito progressivamente
1 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 57.
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incoerente, dificultando compilações de normas e elaboração de material intelectual adequado


para o seu enfrentamento. A doutrina no seu trabalho de controle da consistência do material
normativo e decisional e de elaboração sistemática do conhecimento vai progressivamente
cedendo espaço a um positivismo jurisprudencial.
Esse processo de juridicização reflete uma cadente destruição do ambiente do mundo da
vida, por meio da poluição jurídica e de sua burocratização. O direito, como meio regulação
do Estado de
Bem-estar social e mesmo do Estado Regulador, funciona a partir de critérios de racionalidade
e formas de organização que não são apropriadas ao mundo da vida, com o seu assujeitamento
à lógica sistêmica2. É um processo já explicado de colonização do mundo da vida, com um
alto nível de generalização, em que: 1) há o desmantelamento das formas tradicionais de vida,
em que os componentes do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade), em grande
extensão, acabam diferenciados; 2) as relações de troca entre os subsistemas e o mundo da
vida passam a ser reguladas por papéis sociais específicos (empregado, consumidor, cliente,
etc.); 3) a disponibilização do trabalho e a participação política pelo voto são mobilizadas
por verdadeiras abstrações que encerram uma troca tolerada por recompensas e compensações
sistêmicas; 4) as compensações são financiadas pelo crescimentos capitalista conformando-
se padrões de bem-estar, canalizados pelos papéis sociais específicos de consumidor e cliente,
sobrepondo-se a desejos de autorrealização, no mundo do trabalho, e autodeterminação, na
esfera pública3.
Esse fenômeno é o resultado da implantação de um bem-sucedido programa de Estado de
Bem-Estar Social e sua evolução como Estado Regulador, com efeitos patológicos na
reprodução cultural, na integração social e na socialização, que acabam assimiladas por um
processo formalizador por parte do direito moderno, havendo o deslocamento da integração
social, como entendimento no âmbito da vida, para integração sistêmica, como uma
dependência de prestações materiais fornecidas pelo sistema político-burocrático e pelo
sistema econômico.
De outro lado, as jornadas de juridificação caracterizam-se por novas instituições legais
que se refletem na formação da consciência jurídica cotidiana. A primeira jornada marcou-se
por ser garantidora de liberdades ao estender o direito civil burguês e a dominação burocrática
exercidos legalmente, significando ao menos emancipação em relação ao poder e a relações
de dependência prémodernos. As três subsequentes jornadas de juridificação garantiram um
incremento de liberdade, ao procurar domar a dinâmica política e econômica, marcadas pelos
meios poder e dinheiro. As jornadas seguintes ao Antigo Regime construíram sobretudo
discursos de emancipação, com a constitucionalização e a democratização da dominação
burocrática, inicialmente absolutista. As instituições jurídicas que solidificaram a soberania
passaram a ter sentido inequivocamente4 garantidor de liberdades. Nesse cenário, “sempre
que o direito formal burguês faz prevalecer as pretensões do mundo da vida em face da
dominação burocrática perde a ambivalência inerente a uma realização de liberdades
conseguida ao preço de efeitos laterais destrutivos” 5.São, assim, quatro jornadas de
juridificação: 1) o Estado Burguês Absolutista; 2) o Estado de Direito acompanhado do
Estado Liberal; 3) o Estado Social no seu desdobramento em Estado de Bem-estar Social; e
4) o Estado Democrático de Direito acompanhado do Estado Regulador.
Essa descrição do processo de juridicização tem um caráter predominantemente descritivo
e crítico, sendo necessário complementá-lo com a concepção de paradigma jurídico, que
fornece elementos para um diagnóstico da situação social, como um mapa orientador da ação.

2 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 51.


3 HABERMAS, Jürgen. Law as Medium and Law as Institution. In: TEUBNER, Gunther. Dilemmas of Law in the
Welfare State. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1988, p. 203.
4 Idem. Ibidem, p. 510.

5 Idem. Ibidem, p. 508.


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Aclaram, ainda, o horizonte de um projeto de realização dos sistemas de direito como abertura
de perspectivas interpretativas, revelando as restrições e âmbitos de concretização dos direitos
fundamentais, a serem interpretados, desenvolvidos e configurados, por se apresentarem
como “princípios não saturados”.6 Os paradigmas encerram, assim, possibilidades descritivas
e prescritivas.
A interpretação do direito procura, por meio dos paradigmas, responder a desafios sociais
delimitados no tempo e no espaço. São ideais sociais, modelos e visões sociais com descrição
e valoração de fatos sociais e também funcionamento dos sistemas sociais. Não são
propriamente os acontecimentos sociais, mas as representações que os tribunais fazem desses
acontecimentos sociais. O paradigma contém uma proposta de explicação e justificação das
referências assumidas pelos juristas na sua compreensão da sociedade.
Dentro de um paradigma busca-se um processo de racionalização com as seguintes
dimensões: 1) sistematização interna do material jurídico (racionalidade interna); 2)
organização das pretensões de validade e justificação normativa (racionalidade normativo); e
3) contribuição para a manutenção da sociedade complexa ( racionalidade sistêmica ).
Um novo paradigma pode resultar do aclaramento, em termos de ciências jurídicas
sociais, assentadas em convicções comuns, que os juízes têm dos processos sociais, os
padrões de expectativas e os mecanismos de integração social. São teorias dispositivas,
estabelecendo o que se entente por e como se interpreta a lei e em que direção o direito
legislado deve ser complementado e modificado, apresentando-se como responsáveis pelo
futuro da existência social.
Os paradigmas reduzem a complexidade da tarefa de decidir um caso particular por
consistirem em sistemas coerentes e racionalmente ordenados. Não são apenas uma
autocompreensão, mas também uma justificação por parte dos tribunais no seu trato com os
seus clientes. No entanto, os paradigmas não dizem respeito apenas a experts, mas também
ao conjunto da sociedade. Embora estejam os primeiros em posição privilegiada na
compreensão paradigmática, eles não podem impor a sua visão. É que, a par do direito
desenvolvido por jurista, os direitos fundamentais formam-se como uma instituição social
que denuncia injustiças padecidas com as violações da dignidade da pessoa humana.
Sobre o assunto da juridificação e dos paradigmas de direito e Estado, é necessário fazer
uma última advertência. A temática envolve sobretudo uma perspectiva eurocêntrica, em que
predominam países de capitalismo avançado. O seu estudo, no entanto, é válido para o cenário
brasileiro, eis que se trata de formas de ordenação social, com uma tecnologia subjacente, que
foi absorvida pelas instituições nacionais.
A questão é que a análise e aplicação desses modelos não pode ocorrer de forma ingênua,
desconsiderando o contexto brasileiro, como país que se insere tardiamente no capitalismo.
Antes da década de 30 do século XX, com a emergência do Estado Novo, a economia
brasileira era baseada em monoculturas, com os sucessivos ciclos econômicos dos quais o
último da maior importância foi o do café. Outra coisa que não pode ser esquecida é que,
durante, o século XIX, a produção nacional era escravagista. Com isso, fica muito claro que
o Brasil não experienciou o Estado Liberal.
No mesmo sentido, a industrialização brasileira deu-se em período posterior e foi
capitaneada pelo Estado, sem a prévia acumulação de capital nas mãos da iniciativa privada
como ocorrera na Europa. Isso fez com que a complexificação da sociedade brasileira
ocorresse apenas com o advento de um Estado Social, eminentemente coorporativo. De igual
modo, as políticas de bem-estar social, ampliadas pela Constituição Federal de 1988, ocorrem
num contexto de acanhada formação de capital, em comparação com os países de capitalismo
avançado, o que obviamente limita as possibilidades compensatórias e redistributivas, ínsitas
a um Estado de Bem-estar Social.

6 JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 523.


4

O caso brasileiro é de modernidade periférica, “em que os sistemas jurídico e político são
bloqueados generalizadamente na sua autoprodução consistente por injunções heterônomas
de outros códigos e critérios sistêmicos, assim como particularismos difusos que persistem na
ausência de uma esfera pública pluralista.”7 Há, em tais casos, um processo que nas teorias
funcionalistas é conhecido como “corrupção sistêmica”, em que o princípio da diferenciação
funcional, que pressupõe a autopoiese, a autonomia, dos sistemas é atingida, de modo que
questões econômicas e políticas acabam decididas por critérios ilegítimos oriundos de
particularismos corporativistas8, e não exatamente por um funcionamento autopoiético do
sistema econômico e político-burocrático.
Essas observações perfunctórias são feitas como mera advertência, para evitar a aplicação
irrefletida dos modelos descritos neste capítulo. Como dito, eles são modelos internalizados
em boa parte pela instituições nacionais, mas o contexto brasileiro é significativamente
diferente.

2.1 . O Estado Burguês Absolutista

Como já ressaltado, nas sociedades europeias, após o advento da modernidade, o exercício


da Soberania, como adensamento do poder político, redundou em sua centralização e em
aumento de sua abrangência. Foi o contexto da irrupção da razão de Estado9, como uma arte
para afirmação da potência do poder do soberano sobre o seu território e população. O meio,
para isso, era a polícia10, como um minucioso controle da vida e do específico, caracterizando
um regime de poder, chamado por Foucault de omnes et singulatim11, como um controle de
todos e de cada um.
No Estado de polícia, os fins justificam os meios. Há o culto da força, como expressão da
consolidação da Soberania e como forma de expressão da razão de Estado. É coerente com
esse paradigma o exercício do poder de polícia como restrições e medidas, consistente em
regramentos minudentes, que se impõem ao cidadão para realizar os desígnios considerados
necessários pela autoridade. Apresenta-se aí um domínio por parte da estrutura político-
burocrática que se forma durante esse período, como manifestação da potência do Soberano.
O poder no Ocidente passa a ser um poder de gerir, de incitar de reforçar, de controlar e
de vigiar, de melhorar e organizar e de produzir. Supera-se o mero poder de impedir,
proscrever, destruir, de dizer o não, e. É o governo e o controle da vida, com o poder de fazer
viver e deixar morrer.
Do ponto de vista econômico, o mercantilismo não era uma doutrina, mas uma arte de
gestão da produção e de canais comerciais para que os Estados pudessem enriquecer pela
acumulação de metais e moeda, fortalecer-se pelo crescimento da população e robustecer-se
militarmente, diante de outros Estado, por estarem em concorrência permanente com outras
nações. Era uma materialização econômica da razão de Estado com o incremento nacional de
riquezas, a partir do exercício da polícia, no âmbito interno, e da tentativa de avolumar o
poder da soberania pelo controle do comércio, pela centralização dos exército e pelo exercício
da diplomacia, no âmbito externo.

7NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 239.
8 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 240/241.
9 FOUCAULT, Michel. Securité, territoire, population. Paris: Gallimard-Seuil, 2006 , pp. 261 e seg.
10 Idem. Ibidem, pp. 319 e seg.
11 FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: por uma crítica da razão política. Trad. Heloísa Jahn. In:
“https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/11/foucault-omnes-et-singulatim.pdf”\* mergeformat, acesso em
27/02/2017.
5

Nesse contexto, o despotismo ilustrado trouxe um projeto de redução do pluralismo pelo


reforço do poder real com a valorização da lei como ato de vontade do monarca. O volume
de produção legislativa aumentou e se afirmou a precedência da lei sobre as outras fontes do
direito. O próprio estilo legislativo refletiu isso com o uso de fórmulas retóricas com o intuito
de reforçar o poder central.
O Antigo Regime legou uma sociedade dualista do ponto de vista dos controles jurídico-
políticos. Uma parcela da sociedade, claramente minoritária, vivia à sombra do direito escrito
oficial, que foi aos poucos se deslocando do direito judicial-doutrinário para a lei. Uma outra
parte, francamente majoritária, mantinha com este último direito um contato frouxo,
regrando-se basicamente por práticas e tradições.
A esse dualismo jurídico correspondia também um dualismo político. O universo político
liberal situava-se nos estratos urbanos e alfabetizados que viviam sob os ditames do direito
oficial. A vontade geral da teoria política liberal estava circunscrita a esse âmbito. Por isso, a
lei escrita só produzia sentido nesse setor liberal, até mesmo porque os analfabetos estavam
excluídos pela disciplina do voto. O apoio da sociedade liberal exclusivamente na lei criava
um curto-circuito com os iletrados e as comunidades tradicionais, mas ao mesmo tempo
confirmava um modelo de organização política burguesa. Abandonava-se a maioria que
estava na periferia social, deixando o seu controle para o “caciquismo” político.12 Em que
pesem os ideais universalistas e democráticos, o Estado de configurações liberais e o primado
da lei diziam respeito apenas a uma minoria de “assimilados”.
A evolução da razão de estado vinculava-se a uma tentativa de monopolizar a coerção,
constituindo-se o Estado a única forma de dominação legal e burocrática, fazendo a lei o papel
viabilizador de uma dominação organizada, em parâmetros de universalidade, positividade e
formalidade.
Isso não impediu que se falasse num processo de juridicização (Verrechtlichung) que se
referia a uma tendência ao aumento do direito escrito a partir da Modernidade. Assuntos que
eram regulados informalmente pela tradição e pelos costumes foram assimilados pelo direito
escrito que se adensou, desmembrando progressivamente matérias jurídicas globais em
particulares. O Estado Absolutista que se desenvolveu na Europa Ocidental foi uma primeira
etapa desse fenômeno13.
O Estado Absolutista constituiu uma ordem dentro da qual se efetuou a transição da
sociedade estamental para a sociedade capitalista. O comércio e as relações mercantis
receberam um regramento de direito privado que permitia sua organização em corporações e
pessoas jurídicas que estabeleciam entre si contratos e transmitiam livremente suas
propriedades. Para isso, absorvia-se o conceito moderno de lei, já com características de
positividade, universalidade e formalidade.
No plano do direito público se estabeleceu uma única fonte de dominação juridicamente
legítima, reservando-se ao Soberano o monopólio da violência. O poder do monarca
desvinculou-se de conteúdos concretos, passando a ser definido instrumentalmente com os
meios do exercício de uma organização da dominação burocrática.
Emergiram visivelmente, nesse período, a sociedade civil e formas de atuar sistêmicas
como a da economia e a do Estado, restando ao indivíduo uma esfera de autodeterminação
definida informe e negativamente, no modelo hobbesiano, como a não abrangida pelo Estado.
O mundo da vida sediou a emancipação do indivíduo pelo direito civil e a dominação
burocrática, tendo sua essência nos vínculos coorporativos feudais, no direito concernente às
pessoas, profissão, trocas e terras. O que ficou assegurado foi uma esfera privada,
caracterizada por um mínimo de paz que permitia a sobrevivência física e por uma

12 HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e


litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 14., p. 18.
13 HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel

Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 505.


6

competição, segundo leis de mercado, pelos escassos recursos materiais para a satisfação das
necessidades, estando franqueado à economia extrair o trabalho dos indivíduos e ao Estado
garantida a obediência dos súditos.
A construção do Estado de inspiração hobbesiana inaugura o necessário nível de
abstração, por meio de um sistema legal, para a institucionalização do dinheiro e do poder.
Sem o substrato do mundo da vida, o Estado Absolutista não teria encontrado uma base de
legitimação, nem poderia ter funcionado. O mundo da vida que estava inicialmente à
disposição do mercado e do poder absolutista passa aos poucos a fazer suas demandas. Depois
disso, tanto o poder como o mercado passaram a estar ancorados no mundo da vida,
estruturalmente diferenciado14, que passa a ser a única fonte de legitimação.
No Estado Absolutista, tudo o que não estava regulado pelo Poder Político com as formas
jurídicas encontrava-se disforme15, entregue a um âmbito de autodeterminação ou às coerções
oriundas das comunidades tradicionais que mantinham seus espaços de dominação.
A primeira jornada de juridicização, no Estado Absolutista, quando se formou a sociedade
civil, mostrou-se dominada pelas ambivalências expostas por Marx sobre o trabalho livre. Ao
mesmo tempo que se emancipavam os trabalhadores assalariados, conferindo-lhes liberdade
de movimento e voluntariedade para aderir ao emprego e às organizações, ocorria a
proletarização dessa forma de vida, que não foi objeto de regulação jurídica.
Nesse primeiro momento de organização do Estado, o conjunto dos seus poderes tinha
raízes na pessoa do Rei, que centralizava as funções que posteriormente seriam decompostas
em judicial, executiva e legislativa16. No exercício dessa última atividade, cabia ao soberano,
pela edição de leis, limitar direitos em prol de um bem maior, como por exemplo a paz, no
caso da obra de Hobbes. Todavia, o aparecimento da figura do Soberano significou a
centralização de poderes, assim como de uma legitimação do poder real que não estava na sua
burocracia ou na técnica, mas apenas na proeminência de uma vontade que se sobrepunha às
demais, evitando conflitos17. O Estado Absolutista consolidou seu poder com a expansão do
direito escrito.
Dessa forma, essa primeira jornada de juridificação deu-se em torno da razão de Estado,
como adensamento da potência do Soberano, utilizando-se como instrumento do poder de
polícia, entendido como um domínio de todos e cada um, em que sobressaia uma regulação
minuciosa da vida dos súditos. No direito público, reservou-se ao Rei o monopólio da coerção,
com a dominação legal e burocrática. No direito privado, garantiu-se um mínimo de paz que
permitia a competição e a extração do trabalho dos indivíduos. Esse contexto permitiu o
surgimento de uma sociedade com formas sistêmicas de atuar como a economia e o Estado.

2.2 . O Estado Liberal e o Estado de Direito

Tanto o Estado Liberal como o Estado de Direito emergiram do movimento que levou às
Revoluções Liberais dos séculos XVII e XVIII, como esgotamento do modelo absolutista de
sociedade. Em ambos, houve um movimento de controle e domesticação da estrutura político-
burocrática organizada nos moldes do Antigo Regime. Do mesmo modo, ambos são
fenômenos contemporâneos e simbióticos. Todavia, a separação analítica de seu estudo
permite entender duas ênfases de ordenação de sociedade: a político-econômica, constituindo
o modelo de Estado Liberal e a jurídico-política, constituindo o Estado de Direito.

14 HABERMAS, Jürgen Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 206.
15HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 507.
16 MONCADA, Luís S. Cabral. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002 , p. 31.
17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 197.
7

O Estado Liberal trouxe uma contenção interna do poder e do governo, levando em conta
que, pela ideologia, o governo deveria ser frugal para moldar-se a ao mercado, regido por leis
quase-naturais. Às autoridades cabia um governo competente e parcimonioso para adequar-
se à economia, como instância de veridição. Outro aspecto é que o mercado constitui um
mecanismo liberal de distribuição de bens, baseado na busca racional e egoística da satisfação
do autointeresse, levando a uma integração sistêmica da sociedade pelo dinheiro como meio
que se configurou paradoxal e instável.
Já o Estado de Direito configura uma contenção do poder pelo direito formalizado, em
termos de leis positivadas, como veículo da vontade do Estado, e também nos moldes de
direitos subjetivos, oponíveis inclusive ao Estado, como invólucro de interesses
autodeterminados pela cidadania burguesa. Não se tratava apenas de instituições jurídicas
adequadas a uma economia capitalista, mas sobretudo constituidoras de um estatuto de
proteção ao cidadão, como espaço para a livre constituição da personalidade. A proteção de
direitos como a liberdade, a propriedade e a igualdade formal constituiu um âmbito de
integração social legítima, com a constituição de âmbitos de exercício autônomo de
entendimentos.

2.2.1. O Estado Liberal

O Estado Liberal situou-se numa confluência da filosofia política do jusnaturalismo, em


que se destacavam a sociedade civil, o contrato social e a sacralidade da propriedade e da
economia política no século XVIII. Ele inscreveu-se num cenário de forma jurídica em que
se objetivava impedir medidas particulares e individuais, típicas do poder de política do
absolutismo, para constituir um ambiente favorável para uma economia governada, mas
autônoma. Nesse contexto, o Estado de Direito foi muito mais uma questão de técnica
governamental do que exatamente de legitimação política.
Foi o resultado da transformação sociedade feudal da primeva modernidade na sociedade
de mercado capitalista. A evolução do sistema capitalista acompanhou-se de um
desenvolvimento social em que acentuou-se a diferenciação entre os sistemas sociais,
especialmente a economia e o sistema político-burocrático. Foi após revoluções liberais como
a Revolução Gloriosa na Inglaterra e a Francesa que essa autonomização entre o sistema
jurídico, o sistema político-burocrático e o sistema econômico tornou-se mais perceptível.
Para que essa separação ocorresse, uma nova razão interna apresentou-se como estratégia
de governo. O mercado passou a ser uma instância de veridição, com leis quase-naturais, que
deveriam ser respeitadas inclusive pelo Estado. O governo pautava-se por cálculos racionais
de utilidade, medindo as oportunidades de agir e não agir. O governo tornou-se frugal,
contendo-se, para ser adequado à dinâmica da economia. Essa limitação governamental não
era fruto tão somente de limites externos, impostos pelo sistema jurídico, em termos de Estado
de Direito, mas sim interna à racionalidade de governo que deveria ser adequada aos
imperativos de uma economia autonomizada e, portanto, com leis próprias.
Nesse ambiente, ocorria um contínuo questionamento da norma e da intervenção. O
Estado Liberal põe a questão “por que legislar?”, já que a economia tem suas próprias leis
quase-naturais. Por isso, uma constante crítica que se desdobra em: “quem tem autoridade
para normatizar?”; “em que condições isso é adequado?”. Respostas que passam a ser dadas
em termos técnicos, sejam jurídicos, econômicos ou de outra ordem de expertise. Era uma
nova relação entre governo e saber. O governo devia manejar fatos (registros numéricos,
teorias, diagramas, reforma sanitária, currículo escolar etc.) e técnicas (partidas dobradas na
contabilidade). Especialistas passaram a falar em nome da sociedade (sociólogos, estatísticos,
epidemiologistas, cientistas sociais, etc.). Ganharam importância aparatos para gerir,
produzir, circular, acumular, autorizar e realizar verdade: academia, institutos de pesquisa e
8

burocracia para tornar dóceis os indomados domínios sobre os quais o governo deve se
exercitar18.
O governo econômico assumiu dois sentidos: um governo impulsionado por preceitos de
política econômica e um governo que economizava os seus custos por meio de um exercício
menor da força e da autoridade. Com isso, ao governo não mais bastava ser justo,
constitucional ou legítimo. Era necessário que fosse hábil e adequado, sendo capaz de
movimentar-se de acordo com fronteiras delimitadas por verdades construídas a partir do
funcionamento do mercado, especialmente a teoria dos preços. A insatisfação com o governo
passou a estar vinculada aos resultados que esse modo frugal de orientar a economia permite
que ela atinja. Era uma avaliação em termos de êxito nas condições para propiciar riqueza; o
governo pode sempre ser melhor.
Como correlativo de economia de governo, houve uma transferência de poderes para a
microesfera próxima em que se situa o empregador que passou a ter também instrumentos
jurídicos para exercer controle sobre seus empregados, além do uso da disciplina para
dominá-los.19 O poder de inspeção e vigia deslocou-se do governo, como outrora no Antigo
Regime, para o patrão.
Era preciso da escola, além do asilo, da prisão e da família organizada, para formar
indivíduos que possam se autogovernar e cuidar de si próprios. Havia uma proliferação de
normatividades. Esse era o momento das disciplinas que especificam os indivíduos em relação
a certas normas civilizatórias. Houve uma forte e dolorosa migração das formas sociais de
veridição que antes eram do direito e da teologia para novas disciplinas que formaram novas
condições disciplinares para essa nova forma de governar.
A decisão econômica ficou reservada principalmente aos agentes privados. Fixou-se com
isso a delimitação entre a atividade política e a econômica. A sociedade econômica que estava
circunscrita à atuação espontânea dos mecanismo de mercado e institucionalizada em termos
de direito privado deveria estar separada do Estado.
Houve, então, uma nova especificação dos sujeitos a serem governados. Eram indivíduos
ativos em conformar a sua própria conduta, devendo ser respeitados a liberdade, a autonomia
e os direitos dos indivíduos. A arte de governar liberal era gestora de liberdade, produzindo-
a e consumindo-a dentro de um processo econômico em que se afirma o novo sujeito de
interesses, o homo oeconomicus, movimentando-se no espaço do mercado.
Assim, em espaços juridicamente definidos, apresentou-se o sujeito de interesses, que
exercia suas escolhas e preferências que eram irredutíveis e não transferíveis, em face da
fixação de um espaço de não intromissão garantido pelo Estado. O mercado era o âmbito em
que esses interesses encontravam-se. Exemplificativamente, na filosofia de Bentham, a
economia seria uma natural harmonização dos interesses, ao passo que o direito faria o mesmo
de forma artificial. Era uma dissociação de racionalidades.20
A intervenção do Estado deu-se justamente para que esse sujeito de interesses que
ocupava boa parte do espaço da cidadania burguesa pudesse afirmar-se e exercer suas
escolhas. O Estado tornouse uma instância de cálculo de risco e segurança para que, nos
âmbitos delimitados de liberdade, interesses fossem protegidos e realizados. É o que se
denomina intervencionismo negativo que delimita um mercado supostamente autorregulável.
A integração social girava em torno das relações de trocas. Era eminentemente uma
integração sistêmica, baseada na distribuição de recursos pelo mercado e mediada pelo meio
dinheiro, num processo social de produção de desigualdade, já que centrado no capital e sua
acumulação. A assimetria constitutiva do capitalismo que se baseava numa relação entre

18 BARRY, Andrew, OSBORNE, Thomas & ROSE, Nikolas. Foucault and Political Reason – liberalism, neo-
liberalism and rationalities of governement. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p. 44 e seg.
19Idem. Ibidem, p. 22.
20GORDON, Colin. Governamental Racionality: an Introduction. In: GRAHAM, Burchell & GORDON, Collin. The
Foucault Efect: studies in governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 22.
9

capitalistas proprietários e trabalhadores subordinados acentuou o caráter paradoxal desse


integração social, que era fundada numa relação de exclusão no que se refere à propriedade.
A solidariedade era exercida, assim, dentro desse ambiente paradoxal, já que exsurgia de
um âmbito em que se protegia o egoísmo. O indivíduo era responsável por tudo que lhe
acontece. A pobreza não confere direitos: ele confere deveres21. As atividades de assistência
e previdência social desenvolveram-se no âmbito privado e dentro de uma mentalidade pouco
favorável, pois os desvalidos seriam os responsáveis pela sua condição.
Mesmo quando o Estado Liberal abriu-se para fins coletivos, como a tributação e a política
militar, essas ações inseriram-se num contexto de intervenção do Estado e de dispêndio de
recursos públicos para a proteção de proteção de interesses privados, mediante a realização
de liberdades.22 O mesmo se deu no que diz respeito à criação de infraestrutura.
Dessa maneira, foi marca distintiva do Estado Liberal um governo frugal, autolimitado
pela necessidade de adequação a um mercado, como instância de veridição, regido por leis
quase-naturais, o que resultou numa separação entre política e economia e também numa
dependência do saber de especialistas. No seu centro, estava o sujeito de interesses, homo
oeconomicus, calculador egoístico do autointeresse. A decisão econômica era, portanto, dos
agentes privados, havendo uma integração sistêmica paradoxal por meio de uma economia
baseada no egoísmo.

2.2.2. O Estado de Direito

Esse paradigma foi resultado do amadurecimento das preocupações libertárias no


jusnaturalismo moderno e no iluminismo que levaram às revoluções liberais, mas a
literalidade das Declarações de direitos, especialmente a Declaração dos direitos do homem
e do cidadão, de 26 de agosto de 1789, não comportava a expressão. O Estado de Direito
encontrou sua melhor expressão no constitucionalismo alemão do século XIX. Foi aí que se
desenvolveu o conceito de Rechtsstaat, traduzido como État de Droit, Law State, Stato de
Derecho23, entendendo-se que o Estado deveria assegurar por via do direito, tanto as formas
como os limites de sua atuação, assim como a livre esfera dos cidadãos.
O Estado de Direito é uma limitação externa da Soberania, remetendo a ideia de
dominação à lei e a proteção dos direito por um Judiciário independente. Ao passo que, no
Antigo Regime, um elemento central era a razão de Estado, como expressão da potência do
Soberana, o Estado de Direito voltou-se para a proteção dos interesses do cidadão24, inclusive
contra as autoridades e suas eventuais arbitrariedades.
Foi uma segunda expansão de juridificação em que ocorreu a limitação constitucional do
Poder Executivo, que até então encontrava-se limitado apenas pela lei e pelo exercício
burocrático do poder. Os indivíduos privados passavam a desfrutar de direitos públicos
subjetivos, acionáveis judicialmente, contra o soberano. A proteção judiciária da liberdade,
da propriedade e da segurança, enfim do estatuto jurídico, estava no cerne do Estado de
Direito.
Direitos como vida, liberdade e propriedade não eram mais apenas efeitos colaterais de
um mercado institucionalizado pelo direito privado, mas também “normas constitucionais
moralmente justificadas”25, com reflexos por toda a estrutura de dominação. A uma ordem
burguesa de direito civil agregou-se um aparato de controle de poder com base no princípio

21 EWALD, François. L’Etat Providence. Paris: Grasset, 1986, p. 66.


22JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 513
23GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
312.
24 Idem. Ibidem, p. 313.
25 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 207
10

da legalidade que formou o cerne do Estado de Direito, limitando especialmente a


Administração.
A ideia de liberdade burguesa estava no fundamento da Constituição. A liberdade pessoal,
a propriedade privada, a liberdade contratual e a liberdade de comércio eram esferas da
sociedade. Eram zonas de neutralidade, constituindo reservas de intervenção do Estado, para
permitir aos indivíduos o exercício de sua autonomia e de seu poder de autodeterminação.
Nesse âmbito, o Estado, como mero servidor da sociedade, estritamente controlado, submetia-
se a um “sistema acabado de normas jurídicas ou simplesmente identificado com esse sistema
de normas, não sendo mais que norma e processo. Isso, de resto, estava de acordo com ‘aquela
contenção de finalidades’ que corresponde ao ideário liberal.”26
A autoridade deveria agir sob a legalidade estrita, não podendo fazê-lo contra, praeter,
nem ultra legem. A ordem jurídica privada era coordenada de tal forma que a dominação se
consubstanciasse em domínio da lei, encadeada hierarquicamente tendo em seu ápice nas leis
constitucionais que erigiam uma cadeia de subordinação em que as leis ordinárias
sobrepunham-se a atos administrativos normativos, ordenados segundo a gradação da
autoridade que os editara. Era a organização racional e sistemática de um direito impessoal,
em que as normas, especialmente as legais, deveriam ser positivadas, gerais, abstratas,
prospectivas, conhecidas, certas e aplicadas de maneira equânime27.
O direito formal do Estado de Direito foi propício ao desenvolvimento do capitalismo em
face de “seu relativo grau de calculabilidade”28 e de “sua capacidade de desenvolver provisões
substantivas – principalmente relacionadas à liberdade de contratar – necessárias ao
funcionamento do sistema de mercados”29. A concepção de direito como ordenamento formal
possibilitava o cálculo de custos e benefícios para o exercício da atividade econômica, ao
tornar o exercício do poder abstratamente previsível e, portanto, planejável financeiramente.
De outro lado, o contrato concebido como acordo de vontades deixava para o exercício da
liberdade a determinação de seu conteúdo e substância, fornecendo um invólucro jurídico
para as relações voluntárias de trocas30.
A instauração de uma sociedade entre cidadãos-burgueses idealmente concebidos como
livres e iguais, deu-se a partir da distinção entre direito privado e público. No âmbito privado,
as relações, baseadas na igualdade, seriam horizontais, dentro de um âmbito de
indeterminação, em que a ausência de proibição redundaria em permissão. Ao direito público
reservavam-se as relações de autoridade que, como garantia de liberdade, estariam
subordinadas à lei, de modo que só seria possível qualquer intervenção, se autorizada legal e
expressamente. Apenas com a Constituição de Weimar, no século XX, caiu a autarquia do
direito privado dentro do direito constitucional, não sendo mais possível opor o direito
privado, como reino da liberdade, ao direito público, como âmbito da coerção. Foi o fim da
primazia material do direito privado sobre o direito constitucional.
Nessa ordem de ideias, o direito privado baseava-se na premissa de separação entre Estado
e sociedade, com a sua elaboração dogmática, densificando a propriedade e liberdade em
espaços abstratos para escolha e decisões do cidadão burguês, como liberdade negativa,
dentro de uma sociedade despolitizada e centrada na economia. Já o direito público
circunscrevia-se à esfera do Estado autocrático31, objetivando frear uma Administração
submetida à reserva de intervenção, com a proteção dos direitos individuais, garantidores do

26 VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei. Porto, 1996, p. 124.


27 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo, Saraiva, 2014,
p. 241.
28TRUBEK, David M. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo. In: Revista Direito FGV, v.3, nº 1, jan-jun,
2007, p. 168 em “http://direitosp.fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/rdgv_05_pp151-186.pdf”, acesso em 27/03/2017.
29 Idem. Ibidem.
30 Sobre o assunto WEBER, Max. Economia e sociedade. v. 1. Brasília: Ed. UnB, pp.226/7.
31 JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 478.
11

status positivo dos cidadãos. Era um Executivo submetido ao império da lei e da sua
proeminência em face de quaisquer outros atos normativos expedidos pela Administração.
No Estado de Direito, o ordenamento jurídico passou a apresentar elementos que tornaram
visíveis a proteção do cidadão, no âmbito do mundo da vida, que tornou-se uma fonte de
legitimação estruturada. Consolidou-se o status de sujeito jurídico, constituído por uma
totalidade de direitos de ação autônoma, em que estava subjacente um conteúdo ético,
vinculado à autonomia, à autorresponsabilidade e ao livre desenvolvimento da personalidade,
possibilitando a construção da própria biografia individual.
Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma matéria
informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder administrativo-
burocrático, o ordenamento do Estado de Direito se enriqueceu para regular também a
sociedade civil, e o mundo da vida passou a ser objeto de reconhecimento e proteção 32. Nas
palavras de Habermas, nesse paradigma o Estado Moderno adquire uma legitimidade por
direito próprio, adquire legitimações baseadas no mundo da vida33.
A racionalidade formal do direito manifestara-se numa interação entre mercado
desenvolvido, um sistema formal de direito privado, um Estado fiscal e uma administração
burocrática. Era um cenário de separação do direito e da política, profissionalização jurídica,
estrita orientação pela regra, universalismo, precisão, e argumentação artificial, acompanhada
por um conceito de justiça procedimental.34
O direito formal, autonomizado em face dos outros sistemas, afastou-se de questões
morais e de verdade, consideradas metajurídicas, orientando-se estritamente pela regra, como
programas condicionais, com uma estrutura, “se..., então,...”. Juristas profissionais passam a
referir-se a estruturas normativas universalistas, tendente a formar procedimentos a partir de
uma sublimação lógica e do rigor dedutivo. Estruturam-se, dessa forma, argumentações
baseadas em construções artificiais desenvolvidas no âmbito da ciência e da técnica jurídica
e aplicadas por procedimentos. É assim que ocorre a “completude e clausura sistemáticos de
um âmbito jurídico autônomo e fechado”35.
Esse direito formal definia-se a partir da seguinte conformação de suas dimensões: 1) a
racionalidade interna está nas estruturas conceituais do direito, com um direito analítico, com
rigor dedutivo e com orientação unívoca aos fatos; 2) a racionalidade normativa expressa-se
na delimitação da esfera para a persecução do interesse privado, como eixo dos direitos
subjetivos, em que aparece em primeira dimensão a figura universal do sujeito de direitos,
protegido pelo Judiciário, inclusive em face do Estado; 3) a racionalidade sistêmica, como
problema de controle da sociedade, responde aos imperativos de uma sociedade de mercado
que favorece a exploração, a mobilização e a alocação dos recursos naturais e da força de
trabalho, conformando uma economia, como sistema social diferenciado e autônomo36.
De tal modo, o Estado de Direito constituiu um paradigma jurídico em que o status de
cidadão estava protegido constitucionalmente por direitos individuais formais, especialmente
a propriedade e a liberdade de contratar, como âmbitos de autodeterminação. As relações de
autoridade estavam limitadas pela lei e pelo acesso irrestrito a um Judiciário independente. O
direito privado assentava-se na separação entre Estado e sociedade, protegendo o cidadão
proprietário, numa sociedade centrada na economia. Esse era um ambiente favorável à
calculabilidade necessária ao desenvolvimento do capitalismo.

32 Idem. Ibidem, p. 509.


33 Idem. Ibidem.
34 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 30.
35 Idem. Ibidem, p. 30.
36 Idem. Ibidem, p. 14.
12

2.3 . O Estado Social e o Estado de Bem-estar Social

O Estado Social desenvolveu-se no início do século XX, representando um novo


movimento de juridicização, para pôr freios ao sistema econômico37, adequando-o a
demandas sociais formuladas no âmbito do mundo da vida. Problemas que surgiram no
âmbito das vivências privadas, como nas relações de trabalho, deslocaram-se para a esfera
pública, atingindo a formação coletiva das vontades pelos partidos políticos, para formar
hipotecas de legitimação.
Na origem do Estado de Bem-estar Social, estava o Estado Social, que se caracterizava
por medidas de previsão social tomadas para controlar as consequências deletérias da
industrialização. O Estado Social valia-se para o seu desiderato principalmente de estratégias
coorporativas.
O Estado de Bem-estar Social, que tem o seu melhor modelo nos Estados europeus pós-
Segunda Guerra Mundial, com o plano Marshall de reconstrução europeia, não reagiu apenas
às consequências da industrialização, abrangendo outras esferas de vivência, e utilizando-se
principalmente de estratégias compensatórias que se sobrepunham às coorporativas do Estado
Social. É que, numa sociedade complexa, o condicionamento social da ação e do destino
humano levou a uma gestão da sociedade em que os infortúnios dos indivíduos consideravam-
se imerecidos e atribuíveis a esferas de intervenção sistêmica, tais como o Estado e grandes
empresas, aos quais impunham-se deveres compensatórios dos padecimentos e debilidades
individuais38.
O Estado de Bem-Estar Social impulsionou a linha de juridificação garantidora das
liberdades. Ele tematizou o sistema econômico de uma forma semelhante a que os dois
paradigmas precedentes cuidaram do sistema político-burocrático. A dinâmica do processo
de acumulação reconciliou-se com estruturas racionalizadas do mundo da vida. Houve a
constitucionalização de relações privadas, sob uma perspectiva social, que significou, em
verdade, institucionalização de mecanismos compensatórios e críticos das relações
econômicas situadas no direito privado, com garantia de direitos como salário mínimo,
jornadas de trabalho reguladas, restrições à demissão etc. É a limitação de poderes irrestritos
que antes eram exercidos pelos proprietários capitalistas, com a juridicização das relações
industriais e do trabalho.
No contexto do Estado de Direito, a liberdade de fazer ou omitir-se, como expressão da
vontade, estava garantida suficientemente com os direitos relativos às pessoas, a proteção
contra ilícitos, a liberdade de contratar, o direito de propriedade e a instituição do matrimônio.
Essa situação mudou radicalmente com outros ramos do direito, como o direito do trabalho,
o direito previdenciário e o direito econômico.
Nesse último cenário, o próprio direito privado passou a estar além da autodeterminação
formal individual, servindo à realização da justiça social, em face da insuficiência da
igualdade formal e da necessidade de promoção da igualdade material, operacionalizada pela
construção de papéis sociais reveladores de relações sociais assimétricas, como, por exemplo,
o de empregado e empregador, o de fornecedor de produtos e serviços e o de consumidor,
evidenciando situações em que o indivíduo diante de empresas e de grandes organizações
sociais estaria confrontado pelo poder econômico e o poder político-burocrático, como
imposições concretas de heterodeterminação.
O Estado Liberal e o Estado de Bem-estar Social compartilham uma imagem produtivista
de sociedade assentada numa economia capitalista industrial. Na perspectiva liberal, a
economia satisfaria a expectativa de justiça social por meio da persecução privada e autônoma

37 Ideia semelhante está em Vital Moreira (MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra: Centelho,
1978, p. 119): A ideia subjacente à concepção do estado social é, sem dúvida, a de que este se propõe fazer valer
perante o econômico valores próprios do político e do jurídico (justiça, igualdade, paz social).
38 LUHMANN, Niklas. Teoria política em el Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31.
13

dos interesses individuais. No Estado de Bem-estar Social, a economia domada pela política
levaria a uma justa repartição com a entrega compensatória de bens de consumo. Era um
reposicionamento da sociedade que buscou ultrapassar a centralidade do mercado como
ordem de distribuição espontânea de bens para uma nova organização intencional de
sociedade com base em critérios políticos de equalização de assimetrias determinadas por
papéis sociais. Em ambos os paradigmas, a questão central é a de satisfação de interesses, seja
pela sua busca egoística, seja pela sua entrega compensatória.
Na emergência do Estado Social, o discurso jurídico voltou-se para a fixação de salários
e condições de emprego, que estavam na base de uma política reformista que visava à
pacificação do conflito de classes. Com isso, o elemento nuclear foi uma legislação trabalhista
e social em que se cuidou de cobrir os riscos básicos da existência dos assalariados, inclusive
com compensações das desvantagens de posições hipossuficientes no mercado, como
consumidores, inquilinos, segurados etc. As sequelas dos conflitos de classe acabaram por se
converter no tema das democracias de massas. A adesão da população ao sistema político
ficou sujeita a “ofertas de legitimação sujeitas a falsificação” 39, consistentes especialmente
em intervenções e prestações compensatórias.
Com a evolução do Estado Social para o Estado de Bem-estar Social, a política social
selecionou situações de debilidades extremas para absorvê-las, deixando intactas as relações
de propriedade, receitas e dependência. Regulações e prestações estatais dirigiam-se para a
consecução de um equilíbrio social por meio de compensações40, mas também para a correção
de externalidades coletivamente sensíveis, como meio ambiente, cidades, políticas sanitárias
etc.
A extensão do Estado de Bem-estar Social ocorreu sob incômodos limites em que os
tributos públicos destinados a tarefas de política social estavam restritos a condicionamentos
ligados funcionamento do mercado e ao seu crescimento. Os tipos de políticas redistributivas
deveriam, ainda, adequar-se à forma de uma economia baseada na acumulação de capital.
Além do estreitamento vinculado aos problemas sociais, ao Estado se impunha a tarefa de
absorver os efeitos disfuncionais do mercado. De outro modo, estaria rompido o equilíbrio de
classes ao se pôr em risco os grupos sociais privilegiados. Em suma, tributos, tipo de
prestações e a organização da seguridade social tinham de se adaptar ao funcionamento
sistêmico da economia e mesmo da política. O processo de acumulação de capital deveria
ficar intocado pelas intervenções do Estado que, além do mais, assumia a função de coordenar
os riscos e as disfuncionalidades da economia capitalista. Nos países ocidentais, isso
constituiu o cerne do reformismo keynesiano.
O ponto central do conflito de classes que se institucionalizou a partir da capacidade de
disposição privada dos meios de produção de riqueza social deslocou-se exclusivamente para
o sistema econômico, perdendo seu sentido nas relações de vivência social do cotidiano,
quando da solidificação das relações capitalistas. A estrutura de classes desvinculou-se de seu
sentido histórico, esmaecendo-se a tensão entre capital e trabalho.

39JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 491


40 É interessante assinalar que, para Luhmann, é no caminho da compensação para a sua reflexividade que se dá a
passagem do Estado Social para o Estado de Bem-Estar Social (LUHMANN, Niklas. Teoria política em El Estado de
Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31): Em certo modo parece então como se tudo o que afeta ao
indivíduo estivesse condicionado socialmente e, em tanto que destino imerecido, devesse ser compensado, inclusive
aquilo que se deve à sua própria ação. [...]
Se é possível falar de uma ‘lógica do Estado de Bem-Estar’, esta pode ser compreendida mediante o princípio da
compensação. Trata-se da compensação daquelas desvantagens que recaem sobre cada qual como consequência de um
determinado sistema de vida. A experiência nos ensina, no entanto, que o conceito de compensação tende a se
universalizar, já que, como se formulam os problemas, todas as diferenças podem ser compensadas e, ainda assim,
sempre ficam diferenças ou aparecem novas carências que, por sua vez, exigem ser compensadas. Quando tudo deve
ser compensado, haverá de ser também o mesmo compensar. O conceito e o processo de compensação tornam-se
reflexivos.
14

O desnivelamento na distribuição de compensações sociais remetia a uma estrutura de


privilégios que não mais derivava diretamente da estrutura de classes. De forma alguma, as
desigualdades sociais esmaeceram no capitalismo avançado. Ganharam outra conformação
pela distribuição de compensações do Estado e pela formação de novos grupos marginais,
como imigrantes e jovens não inseridos no sistema econômico que não provinham
diretamente dos conflitos de classe, que se encontravam amortizados e circunscritos de forma
privada no sistema econômico.
A democracia de massas, com o Estado de Bem-estar Social, freou o antagonismo de
classes, circunscrito ao sistema econômico, sob a condição de que o crescimento capitalista
garantido pelo Estado se mantivesse. Era só assim que se podia efetivar a massa de
compensações aos consumidores e, especialmente, aos clientes da burocracia, amortecendo
os efeitos perversos do trabalho alienado e da codecisão pauperizada.
Surgiu também uma outra coisificação não especificamente oriunda da estrutura de
classes. O Estado de Bem-estar Social cristalizou papéis sociais como o de trabalhador,
consumidor, cliente das burocracias públicas e de cidadão. O marxismo se concentrara na
troca da força de trabalho por salário, esquadrinhando a coisificação apenas no mundo do
trabalho41 pela alienação das classes trabalhadoras. Esse tipo de alienação, com o desenrolar
do Estado Bem-estar Social, ficou em segundo plano.
Os efeitos mais incômodos da relação de trabalho desapareciam com sua humanização ou
mesmo com compensações, retirando-lhe o caráter explosivo e colocando um novo equilíbrio
entre o papel de trabalhador e consumidor. Na configuração dos papéis de cidadão
universalizado e neutralizado e no inflado papel de cliente se situava um dos grandes
problemas desse paradigma do Estado de Bem-estar Social.
As normas que circunscreveram o conflito de classes tiveram caráter garantidor de
liberdades, moldando-o por meio de estratégias compensatórias. Todavia, isso não se aplica
de forma unívoca às regulações de Estado de Bem-Estar Social. Os efeitos negativos da
juridificação no Estado de Bem-estar Social não se apresentaram apenas colaterais, como os
do Estados Liberal, em que a liberdade significou para os trabalhadores proletarização. Foi a
própria estrutura de juridificação que ameaçou a liberdade dos beneficiários com a
implementação burocrática e redenção monetária das fruições sociais com a estrita
especificação de pressupostos em forma de tipicidade legal, encerrando em juízos
condicionais, situações de vida que são alheias a essa lógica, como por exemplo relações
familiares e pedagógicas, que acabaram transformadas em relações sociais de dependência
para com o Estado.
Quanto mais densa apresentava-se a rede de garantias formada pelo Estado Social, para
absorver os efeitos deletérios de um processo de produção baseado no trabalho assalariado,
mais dubiedades de outra ordem apareciam. Os próprios meios garantidores de liberdade a
colocavam também em risco. Esse fenômeno pôs em destaque os limites da juridicização e
da burocratização como meios para implantar as políticas do Estado de Bem-estar Social42.
A assunção, por discursos jurídicos e burocráticos, dos riscos da existência, teve como
preço a intervenção na esfera de vivência dos indivíduos. Em casos como o da percepção de
benefícios de assistência e previdência social, o cotidiano dos implicados passou a ter sua
casuística violentada, levando a uma distribuição de bens regulada pela estrutura “se-então
do direito condicional, a qual resulta ‘estranha’ às relações cotidianas, às causas sociais do
caso a ser protegido e às dependências e necessidades que o caracterizam”43.
O caso passou a ser tratado na perspectiva de tipificações que se amoldam ao seu
tratamento burocrático. O direito do afetado era analisado a partir de critérios de mensuração

41HABERMAS (Op. cit., p. 493).


HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez
42

Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 496.


43 Idem. Ibidem, p. 512
15

administrativa que resultavam em regras de caráter jurídico. A situação que merecia regulação
e estava inserida numa biografia e numa forma concreta de vida viu-se submetida a uma
violenta abstração, não só por imperativos jurídicos, mas também burocráticos, para poder
ser administrativamente tratada.
As burocracias encarregadas de atuar na distribuição de bens e serviços têm de proceder
a partir de procedimentos legais próprios de uma dominação burocrática, valendo-se de
discursos jurídicos de compensação/indenização de prejuízos e desvantagens 44. Assim, na
medida em que o Estado vai além da pacificação do conflito de classes e atua sobre âmbitos
privados, estendendo uma rede de assistência clientelista, mais fortemente apresentam-se os
efeitos de uma juridicização que simultaneamente burocratiza e monetariza. Essa é a essência
da regulação. Era um dilema que se apresentava. As garantias do Estado de Bem-estar Social
deveriam dirigir-se à integração social, mas desintegram formas de vida pelo seu contato com
o dinheiro e o poder, como podem ser exemplo as relações de família e as educacionais.
Tratou-se de um processo acondicionamento burocrático da vida social, em que situações
da vida cotidiana e concreta tem de ser violentadas para que sejam administrativamente
manipuladas, em que as necessidades sociais acabam formatadas em meios compensatórios.
Isso exigiu uma administração centralizada e computadorizada dos clientes usuários estatal
por grandes e distantes organizações. Mesmo, nas estreitas situações, em que pode haver
amparo de técnicos de serviço social, o que se tem é uma terapeutocracia45.
Ocorreu a burocratização e a monetarização de vivências sociais inscritas no mundo da
vida. Ao mesmo tempo que as garantias do Estado de Bem-Estar Social procuravam a
integração social por meio de compensações, dissolveram-se modos de vida com sua
burocratização e monetarização, desintegrando-os. Processo que foi acompanhado pela
substituição do consenso por uma intervenção estatal que submeteu modos de vida à
artificialização produzida por um poder que se expressava, e ainda se expressa, em burocracia
e dinheiro. A crise do Estado de Bem-Estar Social foi uma crise de integração46, em que se
substituíram consensos e entendimentos, por uma agregação social baseada nos meios
deslinguisticizados do dinheiro e do poder.
Dentro desse contexto de prestação de direitos sociais pelo Estado, até mesmo os direitos
de participação política e democrática se viam esvaziados. A organização das liberdades
cidadãs acabou atingida por fenômenos como “segmentação do papel de eleitos, pelas lutas
nas elites partidárias, pela estrutura vertical dos processos de formação da opinião pública
dentro de partidos providos de uma crosta burocrática, pela autonomização das corporações
partidárias, pelo poder incrustado nos meios de comunicação”47. A perda de liberdade que se
experimentou não se devia principalmente às formas jurídicas, porém ao modo burocrático
pelos quais esses direitos eram fruídos. Nessa linha, ao direito de voto universal e às
liberdades de associação, imprensa e opinião, só se podia atribuir um caráter unívoco de
garantia de liberdade, em nada lhe obstaculizando as formas jurídicas.
O Estado de Bem-estar trouxe embaraços para o âmbito da autonomia privada,
viabilizadora da configuração de uma vida individual própria. O trabalho e a vida acabaram
sequestrados por novas formas de dominação de uma burocracia racionalizada em termos de
disciplina hierarquizada e de expertise. Isso desafiou a tripartição de poderes ao encerrar
questões de vivências privadas no âmbito de tratamento administrativo, colocando em
segundo plano acordos gerais produzidos pela representação democrática no âmbito do
legislativo.

44 Idem. Ibidem, p. 513.


45 HABERMAS, Jürgen Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 210.
46 HABERMAS, Jürgen. Law as Medium and Law as Institution. In: TEUBNER, Gunther. Dilemas of Law in the
Welfare State. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1988, p. 211.
47 Idem. Ibidem, p. 515.
16

No Estado de Bem-estar Social, houve uma rematerialização do direito com uma


particularização que implicou uma extensão do controle legislativo e judicial dos conteúdos
contratuais e inserção de preocupações redistributivas no âmbito do direito de propriedade.
Surgiu uma crítica reformista ao direito formal burguês e sua referência a uma sociedade
econômica institucionalizada pelo direito privado, primordialmente a partir da propriedade e
da liberdade de contratar. A autonomia dos indivíduos era percebida, no Estado Liberal, no
exercício da busca, dentro do mercado, do seu bem-estar e da realização de seu autointeresse
por meio das condutas racionais. A expectativa era a de que, por meio da garantia de um status
jurídico negativo, seria estabelecida a justiça social.48No entanto, essa premissa dependia da
suposição de que existiram condições não discriminatórias para o efetivo exercício das
liberdades. Ocorre que, para a garantia efetiva do direito geral a iguais liberdades positivas,
não era suficiente o status negativo de sujeito jurídico, havendo a necessidade de se introduzir
uma nova categoria de direitos fundamentais cuja finalidade era a de propiciar uma
distribuição mais justa da riqueza socialmente produzida. Apareceu uma materialização do
direito derivada da consideração de que a liberdade de fazer ou omitir algo não tinha valor
sem a possibilidade efetiva de fazer valer escolhas dentro daquilo que permitido.
As mutações no direito de propriedade e a liberdade contratual foram exemplos
ilustrativos. A garantia de proveito material, outrora restrita a um direito de propriedade
consistente na fruição patrimonial de coisas, deslocou-se para outros âmbitos de proveitos,
como os previdenciários e securitários. De outro lado, o gozo individual protegido pelo direito
de propriedade viu-se comprimido por uma heterodeterminação, consistente em cogestões,
expropriações, intervenções e deveres de redistribuição em proveito de terceiros.
As mudanças no direito dos contratos também foram muitas, diminuindo a possibilidade
de cálculo do proveito econômico, em favor do reequilíbrio de posições assimétricas, como a
contratação forçada, os erros, a vulneração positiva do contrato, o direito à informação, a
proteção da confiança, o controle dos conteúdos contratuais e diversos outros expedientes que
visavam a uma relação de heterodeterminação das relações contratuais.
De outro lado, a sustentação política do sistema econômico por medidas intensamente
interventoras teve como efeito um contínuo aumento de sua complexidade, que se
acompanhou de uma expansão e densificação interna dos campos de ação formalmente
organizados. Isso explica “os processos de concentração nos mercados de bens, capitais e
trabalho, a centralização das empresas e institutos, e também uma boa parte do crescente
número de funções que nascem para o Estado e a expansão da atividade estatal” 49. Era o
alargamento de um complexo burocrático-monetário.
No Estado de Bem-estar Social, o direito, como meio, foi impulsionado por dois
movimentos contraditórios: de um lado, a sua configuração como um direito autônomo,
positivado, altamente formalizado e profissional; e de outro, por exigências específicas do
sistemas econômico e político-burocrático, a configuração de adequação material aos
imperativos dessas duas realidades. Era um movimento contraditório de autonomia e de
dependência, em que ao mesmo tempo que o direito aumentou a sua consistência foi obrigado
a adequar-se às determinações instrumentalizadoras do poder e do dinheiro. Todavia, as
condições de constituição do direito e do poder político acabaram vulneradas quando a
política banalizou o uso do direito para os seus fins, dissolvendo a função, a identidade e a
consistência próprias ao direito.
Aí destaca-se a emergência de um direito material legitimado por uma regulação direta
voltada para resultados, em que se destaca a soberania da finalidade, irrompendo uma crise
do direito formal. É a predominância de uma orientação, marcada por padrões abertos e
diretivas direcionadas a êxitos.

48 JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 483.


49 Idem. Ibidem, p. 496.
17

A materialização do direito vincula-se à juridicização crescente de esferas anteriormente


informais, associada ao crescimento do Estado de Bem-estar Social com a intervenção do
Estado nas estruturas de mercado organizado, com a seguinte conformação: 1) a racionalidade
interna marcou-se pela finalização, em que padrões imprecisos, gerais e abertos
sobrepuseram-se a aplicação do direito orientada por regras. No lugar de valer-se de
programas condicionais, em que se destacava a estrutura “se, então”, em que se vinculava a
descrição abstrata de um fato a uma sanção, os especialistas do direito passaram a valer-se de
programas finalísticos, direcionados a resultados, com uma ordenação instrumental de meios
a fins, 2) a racionalidade normativa deslocava-se da delimitação da esfera privada para a
direção, passando o direito a reger comportamentos em vista de resultados a serem atingidos,
desaparecendo a figura universal do sujeito de direitos que é substituída por diversos papéis
sociais, como o de trabalhador, consumidor, pobre etc.; 3) a racionalidade sistêmica
apresentou-se na ordenação das figuras doutrinárias e dos procedimentos como meios de
intervenção do Estado de Bem-estar Social, havendo a instrumentalização do direito pela
política, que objetivava corrigir as insuficiências do mercado e implementar medidas de
compensação social50.
O direito apresentou-se como um meio, instrumento, para que a política conduzisse o
processo social, definindo objetivos, escolhendo os meios normativos e ordenando condutas
concretas, de acordo com programas finalísticos. No Estado de Bem-estar Social, imperava a
preocupação com justiça distributiva, em torno do problema da partição de utilidades fruíveis
socialmente produzidas, encerrando-se a questão da liberdade dentro de um tratamento do
tipo assistencial51 e reduzindo-a ao distanciá-la de preocupações mais amplas vinculadas à
emancipação e à dignidade da pessoa humana. Os direitos, que são fundamentalmente
relações jurídicas, acabavam reduzidos ao âmbito do ter. A participação cidadã resumia-se a
cada um receber a sua parte.
Como se vê, o Estado Social, de natureza coorporativa, na tentativa de domar os efeitos
disfuncionais da economia capitalista, evoluiu para o modelo de Estado de Bem-estar, em que
sobressai a estratégia compensatória das situações de debilidade social. No entanto, é
importante ressaltar que, nesses paradigmas de Estado, manteve-se a natureza produtivista do
modelo econômico, assentado na propriedade e na liberdade de contratar. Para tanto, optou-
se por uma configuração interventiva de Estado com implementação burocrática e redenção
monetária de utilidades sociais, formando uma cidadania clientelizada.

2.4. O Estado Democrático de Direito e o Estado Regulador

De forma semelhante à relação Estado Liberal e Estado de Direito, Estado Regulador e


Estado Democrático de Direito são feições simbióticas e contemporâneas de um mesmo
paradigma. São ênfases distintas: o Estado Regulador revela um modelo jurídico-econômico,
ao passo que o Estado Democrático de Direito remete a um modelo político-jurídico. Ambos
operam em dimensões distintas da dinâmica social.
O Estado Democrático de Direito desenvolve-se contra relações de dominação que
emergem do sistema político-burocrático e do sistema econômico, organizados de forma em
que o direito sobressai apenas como meio para reprodução sistêmica. O seu desafio central é
domar ambos os sistemas, constituindo um veículo de integração social, ao conectá-los como
canais legitimadores de entendimento que remetem ao mundo da vida e tomam forma de um
sistema de direitos de inspiração universalista, em que circulam também discursos de moral
política.

50TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 16.


51HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p.
501.
18

O ambiente em que se situa o Estado Democrático de Direito é funcionalmente


diferenciado, dando lugar a dois sistemas sociais instrumentalizadores e altamente invasivos,
o sistema econômico e o sistema político-burocrático. Por isso, é um desafio da sociedade
pluralista a manutenção da diferenciação sistêmica. As sociedades contemporâneas não
podem prescindir de uma integração sistêmica voltada para a produção e distribuição de
utilidades materiais, mas, para que os âmbitos de interação social voltados para o êxito
possam funcionar adequadamente, é indispensável um sistema jurídico que opere
reflexivamente, constituindo o Estado Regulador, em que se tenta evitar tanto a
economicização da sociedade, como a politicização da economia.

2.4.1. O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito ganhou sua primeira formatação com a Revolução


Francesa e ocupou a teoria do Estado desde pensadores como Rousseau e Kant até os dias de
hoje. Além das garantias típicas do Estado de Direito, com essa nova etapa de juridicização
assegurou-se a participação política como formatação da liberdade almejada pelos
jusnaturalistas modernos.
As leis só se consideravam válidas quando editadas por via da participação democrática,
especialmente por intermédio do Parlamento. Presumia-se que expressavam a vontade geral
e, portanto, todos os afetados poderiam hipoteticamente assentir aos seus comandos. A
discussão pública era outra fonte de legitimação das normas jurídicas. A atividade normativa
de caráter inovador deslocou-se para o Poder Legislativo.
A democracia não era apenas o governo do povo, mas o seu governo por canais
predeterminados e segundo procedimentos predefinidos pelas formas do direito52 com o
surgimento de uma esfera pública de debates com forte influência sobre os órgãos legislativos.
Os discursos jurídicos implantaram-se na forma de voto universal e igual e com liberdades de
associação e criação de partidos políticos.
Nesse contexto, não só a divisão funcional de poderes sobressaiu como garantia unívoca
de liberdade, mas também direitos de participação política, caracterizados pelo sufrágio
universal e liberdades como a de associação ganharam relevo. A divisão de poderes estendeu-
se para o estabelecimento da repartição funcional da atividade legislativa, da executiva e da
administração da justiça, já que, sob a perspectiva do Estado de Direito, o problema se
colocava principalmente na repartição de poderes entre o Executivo e a Justiça. 53
A tripartição clássica de poderes reservou precipuamente ao Legislativo a “discussão e o
acordo sobre programas gerais”190. Ao Judiciário, por meio de processos específicos, civil e
penal, foi conferida a função de decidir conflitos estabilizando expectativas de
comportamentos com a validação e a determinação do direito para o caso concreto. Por
último, ao Executivo coube a execução do conteúdo teleológico do direito vigente por uma
forma pragmática, estratégica e instrumental de realizar, de forma eficaz, os fins coletivos
expressos pela lei, o que lhe impôs uma forma hierarquizada, burocratizada e inquisitorial de
atuar54.
No entanto, mesmo no Estado de Direito, com a separação entre Executivo e Judiciário,
a divisão de poderes já apresentava um aspecto positivo além do mero controle do arbítrio,
que era a especialização funcional, potencializadora da efetividade dos poderes, aumentando
sua autoridade. “Ao menos na origem, o Judiciário independente não foi criado para limitar

52 HOLMES, Stephen. Vincoli constituzioli e paradosso della democrazia. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alii. Il
future della costituzione. Turim: Einaudi, 1996, p. 201.
53 HABERMAS (Op. cit., p. 509) 190 Idem. Ibidem, p. 255.

54 Idem. Ibidem. pp. 255-6.


19

o poder, mas, ao contrário, para aumentar a capacidade do governo de desenvolver suas


funções”55.
A democracia ganhou com a divisão de poderes, eis que cada um deles tem uma forma
distinta de recrutar seus integrantes, o que amplia a variedade e a sensibilidade do Estado
como um todo, atribuindo-se outro significado ao equilíbrio entre eles. Não se tratava de um
balanceamento estático, mas de mútua interferência dinâmica como reflexo dos estímulos
sociais e democráticos.
A distribuição dos poderes possibilitou ao cidadão ter a noção de que o direito e suas leis
eram válidos para todos. A dispersão do processo de decisão levou a que nenhum dos poderes
por si só pudesse determiná-las. A tripartição de poderes significou deliberação e
compartilhamento institucional de decisões.
Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma matéria
informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder administrativo-
burocrático, o ordenamento do Estado Democrático de Direito enriqueceu-se para regular
também a sociedade civil e o mundo da vida, para ser objeto de reconhecimento e proteção56.
Por intermédio do direito criaram-se instituições e procedimentos para que a comunicação
fluísse entre o cidadão e os sistemas político-burocrático e econômico. Nas palavras de
Habermas, nesse paradigma, “o Estado Moderno adquire uma legitimidade por direito
próprio:’ adquire legitimações baseadas no mundo da vida”57.
Passo a passo o Estado Democrático de Direito desenvolveu-se contra as relações de
dominação e dependência que emergiram com o aparato burocrático e a empresa capitalista,
organizados no âmbito do Estado e da economia, encartados num arranjo em que o direito
sobressaia apenas como meio. No Estado Democrático de Direito, o direito apresenta-se como
instituição que veicula e carece de legitimação. O mundo da vida afirma-se contra estruturas
abstratas de dominação que violentam vivências concretas. Com isso, há um ancoramento
definitivo do poder num mundo da vida racionalizado e organizado em parâmetros de
instituições jurídicas moralmente válidas.
Como tentativa de superação das aporias do Estado de Bem-estar Social, o Estado
Democrático de Direito parte de algumas premissas: 1) a de que está fechado o caminho,
proposto pelo neoliberalismo, de volta à sociedade civil e seu direito meramente formal, 2) o
redescobrimento do indivíduo, a partir da afirmação da dignidade da pessoa humana, que está
colocado em risco por um tipo de juridicização instrumentalizadora proposta pelo Estado de
Bem-estar Social, 3) o projeto de Estado de Bem-estar Social não pode ser interrompido,
devendo, em verdade, prosseguir num plano superior de reflexão58. A linha mestra é a de
domesticar o sistema econômico capitalista com a sua reestruturação social e ecológica por
uma via que concomitantemente freie e “adestre” o sistema político-burocrático com
parâmetros de efetividade e eficácia, com formas moderadoras de regulação e com controles
indiretos. Outro ponto importante é a reconexão do Estado e do direito com formas
linguísticas de entendimento, como meio de legitimação.
As restrições a que a política fica submetida pelo direito são do tipo estrutural, e não
quantitativo, como supõe o neoliberalismo, que se preocupa com a redução da intervenção do
Estado. Nesse sentido, o incremento da quantidade de políticas compensatórias não só leva a
uma sobrecarga do direito como meio, mas também vulnera procedimentos de sua produção
legítima. Os direitos compensatórios típicos de Estado de Bem-estar Social só podem
possibilitar aos interessados configurar suas vidas no marco da autonomia privada, ao mesmo
passo que possibilitem a autodeterminação cidadã.

55HOLMES (Op. cit., p. 198).


HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez
56

Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 509.


57 Idem. Ibidem.
58 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 492.
20

O processo capitaneado por um sistema político-burocrático hipertrofiado vulnera o


procedimento democrático da configuração autônoma do sistema de direitos59. Os critérios de
legitimação da regulação jurídica acabam substituídos por critérios de efetividade do poder
político. É aí que reside o perigo da inflação das tarefas estatais. No contexto de um sistema
administrativo autonomizado, o direito degrada-se, tornando-se apenas um meio a mais para
resolver problemas de integração funcional de uma sociedade constituída em termos de
sistemas invasivos e instrumentalizadores, como a economia e poder político-burocrático.
Considerar a legitimação, nos termos de Estado de Bem-estar Social, como decorrência
da efetividade de regulação do mercado e controle de redistribuição de riqueza, leva a
enganosa ideia que o direito é algo que está à disposição de um poder político que constrói
uma ordem arbitrária de preferências valorativas, desvinculada de um critério prévio de
legitimação. É um processo de desenraizamento da produção legítima do direito, que, em
verdade, depende de discussões validatórias em foros públicos, em que se apresentem
experiências individuais e biográficas de injustiças, repressões e falta de respeito. Esse
descasamento legitimatório do Estado de Bem-estar Social abre espaço para uma
Administração que se autoprograma num exercício de poder alheio à sociedade, em que, tanto
a política como a burocracia tendem a se autonomizar de forma ilegítima e invasiva, em
relação a outros sistemas sociais.
As instituições legais não podem ser legitimadas formalmente apenas por critérios
positivos e procedimentais. É preciso uma legitimação de conteúdo em termos de uma moral
universalista. Questões socialmente sensíveis, como aborto, afirmação de minorias,
sexualidade, etc. não podem ser objeto de normatização jurídica desvinculada de contextos
de ordenação moral da sociedade. O direito, como instituição, deve estar além de um conjunto
de regras. No Estado Democrático de Direito, há uma reordenação das instituições jurídicas,
que passam a ser concebidas como um sistema de regras que apoia-se, justifica-se e respeita
uma constelação de princípios e, ao mesmo tempo, favorece uma série de diretrizes políticas,
como ordenação legítima de preferências.
É assim que o direito configura-se como instituição social componente do mundo da vida.
Na perspectiva de meio, o direito pode ser mais ou menos funcional na articulação dos
sistemas do poder político-burocrático e sistema econômico. “As áreas tecnicizadas e
amoralizadas do direito que crescem dentro do ambiente dos sistemas econômico e político-
burocrático devem ser avaliados de acordo com imperativos funcionais e com normas de
maior estatura.”60 No entanto, o jogo entre garantia e retirada de liberdade não pode ser
encerrado no âmbito do direito como meio e instituição, já que as questões que cercam a
liberdade só têm sentido pleno no horizonte do mundo da vida, remetendo a uma formação
de vontade ancorada numa moral universalista que envolva vivências de pessoas integrais
dotadas de uma história individualizada.
Uma dicotomia de legitimação do direito como meio, em que os critérios
procedimentais/formais parecem ser suficientes, e o direito como instituição, em que há
necessidade de justificação de caráter ético/moral, mostra-se duvidoso em face do
intervencionismo estatal61. Temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos por
intermédio de um direito formal, o que pode redundar em coisificação dos possíveis
beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da burocracia. A
economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada vez mais
complexos, e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente em componentes
do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade, afetando sua reprodução e
colonizando-os. Esse fenômeno apresenta-se não só em temas como proteção ao meio
ambiente, ao controle do risco nuclear, na proteção da intimidade etc., mas também quando

59 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 514.
60 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez
Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 213.
61 Idem. Ibidem, 516.
21

se impõem regulações ao tempo livre, à cultura, às férias, ao turismo, à família etc. Aí,
enxerga-se a interferência sistêmica e sua juridicização por um processo potencialmente
deletério em que simplesmente as formas jurídicas não podem legitimar a regulação que se
avoluma.
Os princípios da participação política e das compensações sociais são instituições sociais
constitucionalmente ancoradas, a serem preservadas no âmbito do Estado Democrático de
Direito. O direito como meio do Estado de Bem-estar Social é talhado para locais de ação
previamente organizados em termos de direito formal e que podem ser mantidos apenas por
meio desse mecanismo, como é exemplo a burocracia. A questão é que o direito como meio
Estado de Bem-estar Social estende-se para âmbitos informalmente organizados do mundo
da vida, colonizando-o e desfigurando esferas de vivências indiferenciadas e únicas, como,
por exemplo, a família. Em termos de Estado Democrático de Direito, o direito como meio
fica à disposição da política, mas simultaneamente como instituição estabelece condições
procedimentais e de conteúdo sob as quais é possível a sua disposição.
O Estado Democrático de Direito instaura uma tensão entre direitos oriundos do Estado
Liberal e os gestados no paradigma de bem-estar social. É que o direito formal privado realiza
liberdades de forma unívoca canalizando demandas do mundo da vida contra a dominação
burocrática. De outro lado, as prestações compensatórias são necessárias para a realização
material da autonomia material como reequilíbrio das relações assimétricas constitutivas do
capitalismo, em que se opõem capitalistas proprietários a trabalhadores subordinados em
relações de emprego.
Noutra direção, o Estado de Direito também erra ao reduzir a justiça a uma igual
distribuição de direitos, como se estes fossem bens repartíveis. O Estado de Bem-estar Social,
por sua vez, amesquinha a cidadania ao configurá-la numa clientelização hipertrofiada. Um
sistema de direitos constituído por cidadãos emancipados que se considerem como iguais em
respeito e consideração, com a edificação reflexiva de âmbitos privados e públicos de
autonomia, é o que permite a superação das insuficiências dos dois paradigmas anteriores.
O Estado de Bem-estar Social orienta-se predominantemente por critérios de justiça
redistributiva, em torno do problema da partição de utilidades fruíveis socialmente
produzidas. No Estado Democrático de Direito, essas compensações sociais são o resultado
de um direito que tem como objetivo garantir a liberdade e a integridade de cada um, num
recíproco reconhecimento entre os cidadãos informados e esclarecidos.
No modelo de sociedade liberal, o mercado constitui uma quase-natureza, resultado de
forças espontâneas que fogem ao controle dos atores individuais. No Estado de Bem-estar
Social, desaparece esse caráter quase-natural, sobressaindo-se o Estado controlador,
regulador, e socialmente configurador, de modo que tão logo as variáveis sistêmicas comecem
a oscilar além de um certo grau de compatibilidade social, o Estado as atribui como situações
de crises, considerando-as um déficit de controle e de regulação.
Do Estado Liberal para o Estado de Bem-estar Social, passa-se de um nível de descrição
da ação para um nível de descrição ligado a sistema. Desloca-se de um ponto de referência
posicionado no ator individual, dentro de um entorno natural, em que se exerce a liberdade
de ação, como responsabilidade por consequências de suas decisões, para outro em que
afloram “contextos de um sistema, estatisticamente descritos, sob os quais decisões
duplamente contingentes das partes envolvidas, junto com suas consequências, são
consideradas variáveis dependentes.”62 No Estado Liberal, verifica-se o único, o individual,
o pessoal, o concreto, o anedótico, o ocasional, o aleatório, a conduta isolada, imprevisível, o
esperar e o ver, dentro de um certo fatalismo. Em contraste, o Estado de Bem-estar Social, é
o campo em que está o estatístico, a categoria, o impessoal, o generalizado, a depuração de
detalhes, o recorrente, o sistêmico, como parte de uma atividade, manejável, controlável, em
que impera a planificação mediante seguros e regulação.
62 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 488.
22

O Estado Democrático de Direito instaura uma transição reflexiva entre esses dois pontos
de referência, como forma de construção de uma autonomia bipartida como privada e pública.
“O substrato para realização do direito não é constituído, nem pelas forças de uma sociedade
de mercado que opere de forma espontânea, nem tampouco pelas medidas de um Estado
Social que opere de forma intencional”63, mas sim por vias de entendimentos linguisticamente
mediados e por influxos de tipo publicístico e democráticos que originam-se da sociedade
civil e do espaço público-político, em que se situam pessoas na sua dimensão privada com a
constituição autônoma de uma configuração única de vida.
A construção do sistema de direitos supera o direito formal e material, adotando o direito
reflexivo que visa a assegurar em última instância o exercício bipartido da autonomia, privada
e pública, passando todos os atos jurídicos a serem concebidos como um aporte da
configuração dos direitos fundamentais. No Estado Democrático de Direito, estão em
concorrência modelos oriundos do Estado Liberal com os originados no âmbito do Estado de
Bem-estar Social, a formarem uma ordem transitiva e complementar de prioridades numa
construção interpretativa articulada a partir do caso concreto.
O papel social que sobressai no Estado Democrático de Direito é o do cidadão, dotado de
autonomia privada e pública, que toma parte do discurso político para expressar os seus
interesses violados cooperando para construir critérios de decisão iguais para casos iguais e
desiguais para casos desiguais. Para escapar do paternalismo do Estado de Bem-estar Social,
é necessária a construção de uma cidadania esclarecida e informada que permita capacidade
e competência de mobilizar o direito com seus instrumentos de ação e defesa procedimentais,
traduzindo os seus problemas cotidianos, situados no mundo da vida, em construções jurídicas
em nível maior de abstração. A coletivização do direito, por associações e instituições com
capacidade de substituição processual, são um caminho para implicação do indivíduo por
meio de uma participação política com a representação de seus interesses individuais na
formação dos interesses coletivos.
Não foi por acaso que a dignidade da pessoa humana foi expressamente consagrada na
Carta Fundamental de Bonn, logo depois da superação do nazismo, assim como não foi
acidental a sua adoção na Constituição Brasileira após um período de governo autoritário64.
O sentido de tal positivação é afastar qualquer concepção relativista ou reducionista da
condição humana, oriundo de ordens sociais que busquem sobrepor-se aos indivíduos, como
sujeitos de direitos e fins em si mesmos. Todos os países que afirmaram a dignidade da pessoa
humana são Estados Democráticos de Direitos, garantidores de um núcleo indisponível e
incindível de direitos à pessoa humana.
A autonomia que, em Kant, tem um papel chave na dignidade da pessoa humana está no
cerne da definição de sujeito de direito. Em outras palavras, a qualidade da pessoa humana
como ser racional, que reconhece e participa da elaboração de regras em livre manifestação
de vontade, indica as características essenciais desse papel social singularmente protegido.
Daí que ter personalidade signifique participar da condução política de sua organização social,
bem como fixar-se uma esfera para escolhas privadas no exercício da autonomia. Aliás, esses
dois âmbitos da autonomia se afirmam numa mútua dependência entrecruzada, em que a
participação política é a garantia das liberdades individuais e em que estas liberdades
individuais de pessoas iguais em dignidade legitimam o Poder Político.
Se há algo inquestionável num Estado Democrático de Direito, é que a ordem social se
organiza a partir de indivíduos, dotados de dignidade e, por isso, tratados com igual respeito

63 Idem. Ibidem, p. 528.


64 POPPER, K. R.. La Sociedad Abierta y sus Enemigos. Trad. Eduardo Loedel e Amparo Gómez Rodríguez. Barcelona:
Paidós Básica, 2000, p. 692, mostra a incompatibilidade do totalitarismo com a dignidade da pessoa humana no seguinte
trecho: É por isso que a nossa civilização ocidental é essencialmente pluralista e, também por isso que fins socialmente
monolíticos significariam a morte da liberdade; da liberdade de pensamento, da livre busca da verdade, e, com ela,
da racionalidade e da dignidade do homem.
23

e consideração65. Em tal contexto, para proteger o indivíduo autônomo contra relativizações,


inclusive coletivistas, o Estado garante um núcleo indisponível e inviolável de direitos. É por
isso que Dworkin diz que direitos são trunfos nas mãos dos indivíduos66, sendo os objetivos
sociais legítimos apenas quando e na medida em que se respeitem os direitos dos indivíduos.
Não se pode, porém, esquecer que a autonomia, como ideia central na dignidade da pessoa
humana, exerce-se em sociedade. Por isso, a necessidade de um reino de fins em que todas as
autonomias se conectem por edição individual de leis universalmente e reciprocamente
válidas, de modo que cada um não persegue apenas os seus fins, mas ao de todos os outros,
tratando-os como pessoas67. Só há verdadeira autonomia e, portanto, respeito da dignidade
humana quando a ação individual leva em consideração todos os outros como fins em si
mesmos. Do contrário, os outros estarão sendo coisificados e haveria um uso indevido da
autonomia em descompasso com a responsabilidade que lhe é inerente.
Nessa linha, é certo que a sociedade é composta de uma pluralidade de indivíduos, todos
dotados de dignidade e merecedores de igual respeito, o que redunda na coordenação de
autonomias com a construção de esferas coletivas e transindividuais. Efetivamente, a
dignidade da pessoa humana pode proteger sujeitos não determinados e gerações futuras.
Todavia, a igualdade de respeito e consideração impõe que o indivíduo não seja dissolvido
em esferas de valores coletivos. Em outras palavras, direitos coletivos e transindiduais devem
ser colocados num mesmo plano de discussão que a dignidade da pessoa humana individual,
sem ordem de precedência prévia. A sociedade justa encerra promessa emancipatória, em
realização da dignidade da pessoa humana. “Injustiça é a coartação da liberdade e vulneração
da dignidade”206, que se manifesta na opressão e dominação em que se nega o exercício da
autonomia pública e privada, como pressupostos institucionais para o exercício das
capacidades individuais e de cooperação.
Assim, para o Estado Democrático de Direito, apresenta-se um duplo desafio: a
domesticação da economia capitalista, em que se mantêm compensações típicas de Estado de
Bem-estar Social, e a legitimação do direito e da política, a partir de um sistema de direitos,
fundado na dignidade da pessoa humana e que apontam para uma constelação de princípios,
como juízos de moral política. Para tanto, a cidadania encontra-se bipartida, na sua
configuração como autonomia privada e autonomia pública, bem como os direitos
fundamentais são compreendidos numa tensão que remete a uma concorrência entre
princípios oriundos do Estado Liberal de Direito com princípios de Estado de Bem-estar
Social.

veres, para enunciá-los sumariamente, são promover a própria perfeição moral e natural e a felicidade alheia.
Adicionalmente, cada qual tem o dever de respeitar os direitos de justiça, pois também isso é meritório e uma obrigação
(não um dever) de virtude, conforme o explica Kant.”
206 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 503.
2.4.2. O Estado Regulador

65DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
209.
66 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999 , p. 37.
67 RAWLS, em. Leciones sobre la Historia de la Filosofía Moral. Trad. Andrés de Francisco. Barcelona: Ediciones
Paidós Ibérica, 1997, p. 227, elabora melhor o significa de reino (domínio) de fins em Kant:“pelo que quer dizer Kant
com um todo de fins em enlace sistemático, também deveríamos ter em conta o seguinte parágrafo... Desse modo, como
disse nele, o enlace sistemático característico de um domínio [reino] dos fins surge quando todas as pessoas razoáveis
e racionais se tratam a si mesmas e as demais como pessoas e, portanto, como fins em si mesmas. Pela segunda
formulação, isso significa que cada qual não só persegue seus fins (permissíveis) pessoais dentro dos limites dos
deveres de justiça (os direitos dos homens) mas também dá um valor significativo e apropriado aos fins obrigatórios
ordenados pelos deveres da virtude. Esses de
24

Os programas condicionais, típicos de Estado de Direito e finalístico, típicos de Estado


de Bem-estar, deixaram de ser suficientes num cenário em que se avolumam normas
procedimentais e de organização que se destinam a regular matérias complexas em âmbitos
funcionais, com lógica interna própria. De outro lado, a inserção do direito num âmbito de
racionalidade material, ou seja, finalística, no âmbito do Estado de Bem-estar Social,
instrumentaliza-o e subordina-o a critérios que lhe são estranhos, especialmente os políticos,
desfigurando a racionalidade jurídica e gerando uma crise de regulação. Algo semelhante
ocorre com a economia e outros sistemas sociais que também pela sua crescente
complexidade têm dificuldades de desenvolver uma capacidade normativa de controle e
regulação interna68, que não pode ser adequadamente efetivada dentro de um contexto
dirigista e intervencionista de racionalidade material, que, em verdade, cria interferências para
um funcionamento autônomo de tais sistemas.
A partir dessa problematização, o modelo ingênuo do Estado de Bem-estar Social a quem
atribui-se um largo espaço de ação para imposição dirigista de sua vontade sobre a sociedade
deve ser substituído por um mais realista que o concebe como um sistema entre outros que,
dentro de um espaço de ação mais restrito, limita-se a impulsos controladores indiretos. É
impossível que um “sistema regulativo central gere um conjunto unitário de respostas dotadas
de racionalidade e coerência relativamente ao conjunto cada vez mais complexo e crescente
de demandas ou exigências oriundas do ou constituídas no sistema social.”69
Por sua vez, Estado Democrático de Direito é uma institucionalização que flui por meio
de um direito legítimo, garantindo a autonomia privada, articulando-se com procedimentos e
condições comunicativas na configuração discursiva da vontade política, como exercício da
autonomia política a validar a produção de normas. Ele instaura um modelo plural e reflexivo
de sociedade, em que a política institucionalizada como Estado de Direito é um entre vários
sistemas sociais.
Todavia, ainda mantém-se uma sociedade de capitalismo combinada com preocupação
políticas de bem-estar, em que subsistem formas de dominação, como o controle burocrático
racionalizado, “submetendo pessoas nas suas múltiplas áreas de existência à disciplina da
autoridade e dos experts.”70 A evolução do sistema capitalista acompanha-se de um
desenvolvimento social em que aflora a diferenciação entre os sistemas sociais, especialmente
a economia e o sistema político-burocrático. As divergências entre esses sistemas sociais
agudizam-se dentro dessa dinâmica, gerando crises inevitáveis.
A propósito das crises de legitimação do capitalismo organizado, Habermas considera que
elas não são de fato resolvidas, havendo tão somente o deslocamento de um sistema para o
outro, de modo que o Estado intervencionista intercepta crises econômicas primárias,
absorvendo-as no sistema político, em que surgem novos fenômenos71. Os imperativos
contraditórios da gestão econômica pelo Estado ultrapassam rapidamente as capacidades de
intervenção do Estado, levando a uma crise de racionalidade que compromete a integração
sistêmica e coloca em xeque a integração social.
A complexidade das pressões socioeconômicas faz com que os mecanismos jurídicos e
políticos não sejam suficientes para satisfazer uma racionalidade material e de resultados.
Nesse contexto, o mercado acaba por perder a sua legitimação natural como mecanismo de
repartição, por causa do processo de concentração econômica e do intervencionismo. O
sistema político toma decisões conscientes de repartição de bens, procurando legitimar-se
pela lealdade das massas, porém num cenário de difícil gestão econômica, em que se

68 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 38.


69 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2 ª ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001, p. XXIV.
70 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 503.

71 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 47
e seg.
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apresentam tarefas contraditórias, como corrigir as deficiências do mercado para permitir o


constante crescimento econômico, efetivar redistribuições compensatórias por meio de
direitos sociais e garantir propriedade e contratos.
Assim, a sociedade em que se apresentam as pretensões legitimatórias do Estado
Democrático de Direito é um cenário de diferenciação funcional, em que estão sistemas
altamente operativos, que funcionam numa lógica instrumental, sobressaindo a necessidade
de resultados e uma tendência permanente de crise. O direito aí não opera apenas como
instituição, mas também como meio que se confronta com sistemas altamente invasivos,
como o econômico e o poder político burocrático. Num paradigma que suceda o Estado de
Bem-estar Social, coloca-se o desafio de frear os impulsos intromissivos de uma política
interventora que desfigure a autonomia e diferenciação do sistema econômico. É dizer, o
direito, numa feição funcional, tem como desafio evitar a politização da economia, sem, no
entanto, cair no exagero oposto, em que incorreu o Estado Liberal, de economicizar a
sociedade e consequentemente a política.
É uma questão de integração social, mais especificamente sistêmica, que o direito assume
dentro de um contexto de extrema diferenciação funcional. Por meio da Constituição, a
política e o direito devem normatizar cada um dos âmbitos sociais parciais, mas respeitando
a sua autonomia.72 A manutenção da diferenciação dependerá de que cada sistema parcial
social represente o ambiente decorrente dos outros, devendo haver compatibilidade entre as
suas funções e estruturas.73 A diferenciação social requer a constante ampliação de
mecanismos integratórios entre a sociedade geral e cada um dos sistemas parciais. Isso requer
uma integração social descentralizada sem a predominância central de mecanismos político-
jurídicos, típicos de sociedades estratificadas. Assim, cada sistema funcional deve acolher em
suas estruturas reflexivas limitações correspondentes a essa integração social.
Os sistemas devem ser capazes de três operações de seleção: a função, quando o sistema
orienta-se à sociedade em geral; performance, quando ele orienta-se a outros subsistemas; e
a reflexão, quando ele se orienta a ele mesmo. É, no âmbito, da reflexão que eventuais
incompatibilidades entre a função e a performance são compensadas.
A função do direito consiste em disponibilizar à sociedade estruturas normativas
congruentes e generalizáveis. A sua performance é regular conflitos que ocorrem dentro dos
outros sistemas sociais. O direito pode contribuir significativamente por meio de uma
legitimação procedimental, fornecendo condições para a auto-organização e a autorregulação
democrática dos subsistemas por meio de normas que estimulem sistemicamente estruturas
de reflexão no seio de outros sistemas, em formas mais contidas, mais abstratas e indiretas de
controle social, intervindo de forma limitada e reflexivamente e assumindo responsabilidade
pelos resultados, sem, no entanto, produzir as utilidades de interesse público. A reflexividade
caracterizar-se-ia pelos meios técnicos que o direito servir-se-ia para esse fim, criando, no
âmbito da economia, um mercado emulado de segunda ordem por meio de estruturas
burocratizadas e estruturadas juridicamente, na forma de autoridade reguladora. O direito
responsivo realiza sua orientação reflexiva ao criar os pressupostos estruturais dos processos
de reflexão dos outros sistemas sociais.74
Ao direito, como sistema regulador abrangente de toda a sociedade, referindo-se ao
mundo da vida, ao sistema econômico e ao poder político-burocrático, cabem operações
reflexivas que abranjam não apenas a sua função e performance, mas também a de outros
sistemas, numa configuração coordenadora para preservação da integração social. É isso que
se pode chamar de Estado Regulador, em que o poder político-burocrático assume a

72TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016, p. 80.
73 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 38.
74 Idem. Ibidem, p. 43.
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configuração de um “sistema administrativo protegido diante de partidos e do público”75,


configurando um planejamento compreensivo e apresentando-se como “uma autoridade
responsável pela expansão do horizonte de possibilidades”76, em que se fundem ciência e
administração e que se vale de um direito como meio sobrecarregado por estabilizações
cognitivas e imperativos pragmáticos.
O direito como meio assume uma feição responsiva, em que: 1) não é o resultado de uma
evolução unidimensional de uma nova racionalidade finalística do Estado de Bem-estar
Social, mas de um deslocamento da racionalidade formal para a material, dirigida pelo Estado
com objetivo de êxito na distribuição de utilidade, acompanhada de uma reorientação
reflexiva; 2) que representa um impulso da dinâmica interna do sistema jurídico que se abre
a estruturas sociais externas, compatíveis com o direito responsivo, em que deve aflorar a
dimensão da sua adequação à complexidade social; 3) que, a partir da covariação da estruturas
jurídicas com as sociais, confronta-se com os problemas da reintegração dos sistemas sociais
altamente diferenciados (Luhmann) ou com a necessidade de legitimação do Estado
intervencionista na sociedade de capitalismo organizado (Habermas).77
O direito reflexivo é uma orientação menos definida que aparece com a crise do Estado
de Bem-estar Social, mas ainda remete aos conceitos intervencionistas e aos programas
compensatórios. No entanto, a responsabilidade abrangente pelos resultados concretos passa
a orientar-se por uma regulação mais abstrata, envolvendo processos reflexivos de outros
sistemas. Fala-se numa racionalidade reflexiva por ela remeter a autoidentificação do direito
como sistema, à função de apoio que o direito permite de autoidentificação dos outros
sistemas e aos mecanismos autorreferenciais de que a ordem jurídica se serve.
Na sua racionalidade interna, ele ultrapassa os programas condicionais e finalísticos,
fundando-se na constituição de um metanível de estruturas organizacionais, com redefinição
de competências de decisão e de controle, com programas procedimentais mais abstratos, para
se desvincular da administração material do direito, passando para a coordenação dos diversos
atores sociais e, portanto, para meios mais indiretos e abstratos. São mecanismos reflexivos
que não geram necessariamente o conteúdo das decisões, mas fixam as premissas
organizacionais e procedimentais para que outros sistemas cognitivamente determinem a
substância das normas jurídicas e em que afloram o objetivo de reduzir as deficiências
sistêmicas a partir de correções compensatórias. A racionalidade sistêmica é do tipo reflexivo,
orientando-se pelo problema central das sociedades altamente diferenciadas, que é a
integração dos diversos sistemas autônomos, preocupando-se com uma integração social
descentralizada. O seu papel é o de disponibilizar mecanismos de organização e
procedimentais para que os sistemas sociais possam manter uma autonomia coordenada.
O direito do Estado Regulador é compatível com estruturas intrassistêmicas de reflexão
(Luhmann): “de um lado, a reflexão dos subsistemas sociais pressupõe processos de
democratização e produzem estruturas discursivas; de outro lado, a função primária de
democratização não é o aumento da participação, nem da neutralização do poder, mas sim da
reflexão intrassistêmica sobre a identidade social”.78 O direito reflexivo tem um papel
essencial de promover procedimentos e organização de processos democráticos internos aos
subsistemas sociais. Nesse curso, a comunicação jurídica é capaz de fazer transitar interações
simples ao nível abstrato de relações estruturadas e organizadas, atingindo as camadas
reveladoras da complexidade da sociedade.
É possível que haja estruturas reflexivas operando de modo compensatório. É o caso das
cláusulas gerais, como, por exemplo, a boa-fé, que não deve necessariamente ser veículo para
estatização do contrato, a partir de uma estratégia intervencionista. Dentro de uma cláusula
75 É parte da apresentação do pensamento de Luhmann feita por Habermas em HABERMAS, Jürgen. A crise de
legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 168.
76 Idem. Ibidem.
77 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 7.
78 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 31.
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geral, estruturas contraditórias podem surgir, como, no caso da boa-fé, as advindas da


interação entre as partes do contrato, as instituições de mercado, da interferência política, da
economia e do direito. A cláusula geral tem como objetivo emular processos sociais dentro
do direito, para coordená-los e compatibilizá-los, com a formulação de deveres jurídicos
definidos pela autoridade judicial, como, por exemplo, deveres de informação e padrões
profissionais.
Pode surgir, no entanto, um déficit de legitimidade e racionalidade a exigir uma melhora
cognitiva e procedimental para a formulação de modelos de observação exteriores como
meios de comunicação e aprendizagem dentro dos círculos envolvidos, como forma de atingir
as associações, as autoridades públicas de controle e comunidade científica. Um exemplo
pode dar-se no direito societário, em que a empresa pode ser forçada a internalizar conflitos
exteriores da sociedade, para acolher interesses dos consumidores, dos trabalhadores e do
público em geral, criando estruturas reflexivas internas dentro das empresas que permitam a
criação de uma consciência organizacional para sensibilizar as pessoas jurídicas sobre os
efeitos sociais da maximização de sua racionalidade própria. É o caso dos mecanismos de
compliance.
No âmbito do Estado Regulador, os atores individuais pagam o preço de perda de sua
autonomia com uma inclusão sistêmica, submetidos ao exercício de funções de controle e
regulação, com a submissão a uma rede de dependência funcional. A cidadania é gerida como
se os indivíduos fossem meros sujeitos de interesse, maximizadores de seu bem-estar79. A
instrumentalização do direito e da cidadania para fins de regulação política embaça o sistema
de direitos, levando também a uma dissolução da clássica divisão de poderes. A lei geral e
abstrata deixa de ser pode ser o único eixo que articula a produção legislativa do direito, sua
aplicação judiciária e sua execução administrativa.
No plano da repartição de poderes, a reflexividade do direito põe como tarefa do legislador
parlamentar a tomada de decisões num metanível, tomando decisões sobre decisões,
estabelecendo atores competentes e condições legítimas para realização dos programas
legislativos. É o âmbito do surgimento do direito regulatório, em que o legislador se
desincumbe de tomar decisões em face de situações em que sua capacidade de precisão é
insuficiente.80Surge, então, um problema da legitimação, principalmente levando em conta
que a miríade de tarefas atribuídas à Administração deixam evidente a ingenuidade de uma
administração neutra, submetida aos limites da lei. As questões pragmáticas inseridas no
âmbito do Executivo inevitavelmente envolvem questões de moral política, na disputa por
bens coletivos e na eleição entre objetivos concorrentes.
Por isso, o administrador, especialmente quando edita normas, não se pode eximir dos
discursos de fundamentação e justificação, principalmente levando em conta que a regulação
caracteriza-se por um direito escrito em padrões de burocracia e técnica, com sobrecarga
cognitiva técnica e científica. Daí que a regulação ocorra especialmente no plano acelerado
da expansão do direito com baixo nível de densificação do saber jurídico. Como observa
Habermas, “quanto mais se recorre ao direito como meio de regulação social e controle
políticos e de configuração social, maior é a carga de legitimação que a gênese democrática
do direito tem de suportar.”81
A configuração reflexiva do direito leva a um trânsito entre direito formal, direito material
e direito reflexivo. Diante da insuficiência da racionalidade material e de resultados para
legitimação do Estado, faz-se necessária uma racionalidade discursiva, adensada por critérios
normativos veiculados em procedimentos de discussão e decisão, num espaço que permita a
colaboração da ciência, da política e do espaço público, em que estariam inseridos atores
como associações, sindicatos e outras entidades e pessoas da sociedade civil, colocando-se

79 É o que Foucault chama de biopolítica. Ver item 3.1 e seguintes.


80 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 525.
81 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 513.
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como característica marcante a reflexividade. O direito deixaria de desempenhar


exclusivamente o papel de meio para os objetivos do sistema político burocrático, colonizador
do mundo da vida, passando a se conformar como instituição veiculadora dessa racionalidade
discursiva e reflexiva.
Levando em conta que a reflexão jurídica contribui para a integração da sociedade ao
mediar a função e a performance do direito, é necessário saber como ela pode ocorrer com
um maior nível de densificação e com capacidade legitimatória, ao referir-se a discursos de
fundamentação e justificação. A teoria do direito vem reconhecendo modelos jurídicos que,
a partir de elementos empíricos, assumem caráteres prospectivos e operacionais, como, por
exemplo, os hard cases de Dworkin82, em que utilizando-se a distinção entre princípios e
regras, o direito, num modelo construtivista, formula teorias políticas. A partir de um contexto
de circunstância, o direito, de um ponto de vista normativo, cria uma realidade própria
aplicando o repertório de conceitos inerentes à linguagem jurídica, que leva a uma seleção em
que diversos aspectos sociais, econômicos e políticos acabam ignorados e neutralizados.
Isso coloca o direito na posição de assumir a “responsabilidade de um processo de
planificação global”83, com verdadeiras análises de política social, o que exige uma
competência cognitiva que está além do instrumental jurídico existente. Nesse contexto, o
direito deve assumir-se como apenas um sistema dentro de um complexo ambiente, passando
a se servir dos saberes das outras ciências sociais e principalmente autolimitando-se. É assim
que se deve configurar o direito do Estado Regulador para dar conta dos imperativos de
integração sistêmica em que sistemas, com o econômico e o político-burocrático, devem ser
articulados de forma reflexiva e coordenada, assim como o direito deve reorganizar e refletir
sobre si próprio, construindo autolimitações e fluxos comunicativos por canais
principiológicos que lhe deem consistência, fundamentação e permitam contrafaticamente a
existência de uma esfera individual indevassável pela economia e pelo sistema político-
burocrático.

82 TEUBNER, Gunther. Droit et rélexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 48.


83 Idem. Ibidem, p. 49.
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