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Gastroenterite Aguda
artigo de revisão 85
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2010, vol XIX, n.º 2
Os parasitas causam menos fre- almente terminam em poucas horas AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA
quentemente diarreia aguda em crian- após hidratação adequada, e no má- A história clínica bem elaborada e o
ças saudáveis, com maior frequência de ximo em 48 horas. exame físico cuidado são fundamentais.
Giardia intestinal, Criptosporidium e En- Alguns sintomas podem ser prediti- A história clínica fornece informação de-
tamoeba histolytica(2,5,6). vos da etiologia. A febre elevada (>40ºC) terminante para a orientação diagnóstica
Os vários estudos demonstram que é comum na infecção por Shigella. A pre- e terapêutica. Os dados importantes a
a etiologia vírica tem o pico de incidência sença de sangue nas fezes é habitual- colher são enumerados na Tabela 3.
entre Janeiro a Março, e no nosso país a mente preditiva de etiologia bacteriana. No exame físico da criança com
Salmonella pode ser responsável por um O envolvimento do SNC é maior com GEA, é particularmente importante ava-
pico em Julho e Agosto(2,5). os agentes bacterianos, particularmente liar o grau de desidratação; a forma mais
Shigella e Salmonella. A associação de exacta é através da percentagem de per-
FISIOPATOLOGIA sintomas respiratórios com as infecções da ponderal.
Os vários agentes infecciosos pro- víricas está provavelmente relacionada Todas as crianças devem ser exa-
vocam lesão intestinal através de varia- com a época sazonal(2). minadas despidas, pesadas e deve ser
dos mecanismos que estão mencionados Manifestações subsequentes de- calculado o grau de desidratação, que
na Tabela 2. pendem do grau de grau de desidrata- pode ser dividido em 3 grupos: sem de-
ção. Raramente podem ocorrer com- sidratação ( < 3% de perda ponderal),
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS plicações como invaginação intestinal, leve a moderada (3 a 8 % de perda pon-
A doença manifesta-se por diar- choque tóxico ou hipovolémico com deral) e severa (> 9 % perda ponderal).
reia líquida, por vezes com sangue, insuficiência pré-renal na desidrata- A Tabela 4 enumera os sinais físicos que
após período de incubação de 1 a ção severa, convulsões resultantes permitem calcular a gravidade da desi-
7 dias. Os vómitos e a febre podem de alterações electrolíticas ou de hi- dratação.
estar ausentes, suceder ou preceder poglicemia, ou ainda mais raramente O tempo de reperfusão capilar, a
a diarreia; quando presentes, habitu- encefalite. prega cutânea e o padrão respiratório
Tabela 2
Mecanismos de lesão
Agentes infecciosos Mecanismo fisiopatológico
intestinal
Shigella
Invasão e lesão da Yersinia enterocolítica
9 Invasão da mucosa intestinal com ulceração e sangue
mucosa Campylobacter jejuni
Estirpes invasoras de E. coli (EPEC)
9 Libertação enterotoxina
Secreção activa de Vibrio cholerae Fixação em receptores específicos dos enterócitos
água e sódio Estirpes enterotóxicas de E. coli (ETEC) Activação de mediadores intracelulares (AMPc, GMPc, Ca++)
Secreção intestinal activa de Cl-, Na+ e H2O
9 Invasão e destruição dos enterócitos maduros das vilosidades, sendo
substituídos por enterócitos imaturos, com ↓ capacidade de absorção e ↓
Rotavírus
actividade enzimática (dissacaridases)
Lesões parciais da 9 Infecção não é contínua (intervalos de mucosa normal)
mucosa
Giardia lamblia
E. coli enteropatogénica 9 Adesão à mucosa → lesão das microvilosidadades
(EPEC-aderentes)
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anormal constituem os sinais mais fide- ticulares (Tabela 5), a procura de agente
Tabela 3 dignos na avaliação da desidratação(2). causal por exame cultural, demonstração
O tempo de reperfusão capilar do antigénio ou toxina, ou por detecção
Dados importantes a obter da história
é avaliado num dedo da mão do doen- de DNA pode ser importante e, como tal,
clínica de uma criança com diarreia
te ao nível do coração, em temperatura recomendada.
Idade, Peso anterior ambiente agradável. A pressão deve ser Em caso de infecção nosocomial
gradualmente aumentada, na superfície em doentes hospitalizados, isto é, início
Número de dias de diarreia
palmar da falange distal e depois alivia- de diarreia há mais de 3 dias após ad-
Número de dejecções nas últimas 24 horas da de imediato. O tempo normal é inferior missão, deve ser pesquisado Rotavírus
1,5 – 2 segundos. e/ou toxina de Clostridium difficile. O iso-
Consistência das fezes
A prega cutânea é avaliada na pa- lamento de agente bacteriano é raro, e o
Presença de sangue rede abdominal lateral ao nível do umbi- exame cultural de fezes não deve fazer
go. A prega que se forma pela pressão do parte da avaliação inicial de um doente
Número de episódios vómitos
polegar e indicador normalmente retorna com diarreia nosocomial.
Febre, quantificar ao normal de imediato após ser libertada. As análises de sangue não são ha-
A hipernatremia e o excesso de gordura bitualmente necessárias em casos de
Micções (N / <normal) (número de fraldas)
subcutânea podem dar sinais falsos ne- desidratação leve a moderada, uma vez
Quantidade de líquidos ingeridos gativos de desidratação, a desnutrição que os resultados não influenciam o tra-
pode transmitir um sinal falso positivo. tamento. A etiologia vírica ou bacteriana
Ingestão alimentar
não se esclare com parâmetros como a
Aleitamento materno Na diarreia severa, quando há com- PCR e a velocidade de sedimentação.
plicações ou dúvidas sobre o diagnóstico, Estão indicadas para crianças com de-
Medicação já efectuada (SRO / antipiréticos
/ outros) deverão realizar-se outras investigações sidratação severa ou se necessitam de
de acordo com o quadro clínico. rehidratação endovenosa e devem incluir
Viagem nas últimas 2 semanas O exame microbiológico de fezes o hemograma completo, equilíbrio ácido-
Contacto com outros casos (domicílio / não deve realizar-se por rotina. A de- -base, electrólitos, ureia e creatinina(2).
creche / escola) monstração do agente, vírus ou bactéria A identificação de leucócitos nas
responsável pela GEA, não é relevante fezes em exame a fresco com coloração
Patologia pré-existente para a decisão terapêutica para o doente por azul de metileno pode sugerir etiolo-
individual. No entanto em situações par- gia bacteriana invasiva da mucosa embo-
Tabela 4
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Tabela 5 dadas como tratamento da GEA na Euro- A mortalidade foi rara, mas ocorreu em
pa. A solução hipertónica (Na+ 90 mmol/L) 6 crianças com terapia endovenosa e 2
Exame cultural das fezes, quando pedir:
foi inicialmente recomendada, mas vários crianças com rehidratação oral. Apenas
Evolução severa, com perda ponderal trabalhos demonstraram de forma con- em 1 de cada 25 crianças que iniciaram
estimada> 9% sistente que menores concentrações de rehidratação oral foi necessário mudar
sódio e glicose aumentam a absorção de para terapia endovenosa(10).
Diarreia com sangue
água podendo ser mais eficazes que as Não é recomendado o uso de SRO
Viagem recente para países de risco (África, soluções com osmolaridade mais eleva- com outros substractos por falta de evi-
Ásia, América do Sul) da, e ao mesmo tempo reduziam o ris- dência científica conclusiva(2,8).
Imunodeficiência congénita ou adquirida ou co potencial de induzirem hipernatrémia O internamento na GEA deve ser
terapia imuno-supressora por perda aumentada de água(2,7,8). Uma limitado de forma a prevenir a infecção
revisão sistemática de Hahn incluiu 15 nosocomial, garantindo-se um tratamen-
Suspeita de colite por Clostridium difficile ou ensaios controlados randomizados em to seguro e eficaz.
S. hemolítico-urémico 2397 crianças menores de 5 anos, com As crianças que se apresentam de-
Diarreia persistente (mais de 2 semanas) diarreia aguda, tratados com SRO de sidratadas e/ou tiveram mais de 8 episó-
osmolaridade reduzida ou hipotónica vs dios de diarreia e/ou mais de 4 episódios
Surtos epidémicos SRO hipertónica; esta revisão demons- de vómitos nas últimas 24 horas ou com
Quando infecção intestinal tem de ser trou que as crianças tratadas com SRO menos de 6 meses de idade, têm risco
excluída para confirmar outras etiologias de osmolaridade reduzida ou hipotónica elevado de complicações pelo que de-
como a Doença Inflamatória Intestinal. tiveram menor necessidade de rehidrata- vem ficar em vigilância, e só poderão ter
ção endovenosa, excreção fecal e risco alta quando a ingestão de fluidos e ali-
de vómitos, quando comparados com mentar é satisfatória.
crianças tratadas com SRO hipertónica e
ra tenha alguma significativa margem de sem risco significativo de hiponatrémia(9). Recomendações dietéticas
erro. Contudo, não existe nenhum marca- Assim, a SRO hipertónica não é actual- A alimentação deve ser mantida e
dor nas fezes seguramente preditivo de mente recomendada em crianças. Os não se recomendam pausas alimenta-
infecção bacteriana(2). refrigerantes e Colas contêm muito ele- res superiores a 4 horas. Devem manter
vada concentração de açúcar (> 110 g/L), a dieta habitual, não se justificando a
TRATAMENTO concentrações mínimas de sódio ou de mudança para dietas especiais, nomea-
O tratamento essencial da GEA con- potássio e possuem osmolaridade dema- damente com baixo teor de lactose e/ou
siste na reposição de fluidos e electrólitos siado elevada (> 780 mOsm/L) pelo que gorduras ou hidrolisados proteicos(2,8).
e na manutenção da alimentação entérica estão fortemente contra-indicados.
para prevenir o catabolismo e promover a Na desidratação leve a moderada Tratamento farmacológico
regeneração dos enterócitos. (3 a 5% de perda ponderal) a quantidade Na maior parte das diarreias infec-
de líquidos a ser ministrada é de 30 a 50 ciosas, o tratamento com fármacos não
Rehidratar ml/Kg de peso corporal; na desidratação está indicado. Revêem-se brevemente os
A rehidratação oral deve ser a pri- moderada (> 5 a 8%), a quantidade é de principais produtos descritos para a GEA.
meira linha no tratamento de crianças 60 a 80 ml/Kg, durante um período de 3
com GEA. a 4 horas. Anti-eméticos
A Solução de Rehidratação Oral Quando a rehidratação oral não é Não devem ser usados por rotina
(SRO) foi desenvolvida depois da desco- possível, a rehidratação enteral por son- em crianças com GEA e vómitos, pela
berta do mecanismo de co-transporte de da nasogástrica é tão eficaz e mais cor- elevada percentagem de efeitos cola-
sódio e glicose nos enterócitos. A água recta do que a rehidratação endovenosa. terais, no entanto podem ser úteis em
segue passivamente o influxo de sódio e Está associada a menos efeitos adversos crianças com vómitos severos(2,8). A
glicose. Ficou demonstrado que as bac- e internamentos mais curtos. metoclopramida está frequentemente
térias enterotoxinogénicas como o Vibrio Uma revisão da Cochrane, envol- associada a síndrome extra-piramidal,
cholerae e as estirpes enterotóxicas de vendo 1811 crianças com GEA, mostrou particularmente nos casos de sobredo-
E. coli mantêm intactas a morfologia da não existir diferença significativa entre a sagem, já que as crianças podem vo-
mucosa intestinal e as suas funções ab- terapia oral e endovenosa no que res- mitar o medicamento e levar os pais a
sortivas e, apesar da lesão dos enteró- peita ao risco de hipo ou hipernatremia repetir a dose!
citos pelo Rotavírus a SRO também se e ganho ponderal. A diarreia terminou em
mostra eficaz(7). média cerca de 6 horas mais cedo nos Anti-peristálticos
As SRO de osmolaridade reduzida doentes tratados com rehidratação oral, e A loperamida é um agonista dos
(conteúdo em sódio de 75 mmol/L) ou o tempo de internamento foi significativa- receptores opióides provocando re-
hipotónica (Na+ 60 mmol/L) são recomen- mente mais curto, em média de 1.2 dias. dução da motilidade intestinal. Está
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