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KUHLMANN Jr., Moysés Educação Infantil e Currículo. IN: FARIA, Ana Lúcia e PALHARES, Marina (orgs).

Educação Infantil pós-LDB. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. p. 99-112.

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Capítulo Três

Educação Infantil e Currículo

Moysés Kuhlmann Jr [nota 1]

Muito se fala sobre a ausência de debate acadêmico nos vários ramos das ciências
humanas em nosso país. Pouco se debate. Na área educacional, esta situação e um
fermento para a proliferação dos modismos e frases feitas. Por vezes, impressões
genéricas ou caracterizações formuladas no âmbito de condições específicas - de uma área
de conhecimento ou de conjunturas particulares - tornam-se conceitos e categorias de
analise generalizadas, repetidas e reproduzidas de forma distorcida, como numa
brincadeira de "telefone sem fio". Com isso, perdem-se os elementos que seriam capazes
de contribuir para o avanço do conhecimento e o aprimoramento da pratica,
permanecendo apenas os ruídos de uma comunicação que se presta a imobilizar e a
reproduzir aquilo que e necessário transformar.
A intenção deste artigo e debater. Sua base e a pesquisa histórica: seu foco, a
caracterização das instituições. Trata-se de uma reelaboração de parecer preparado para a
versão preliminar dos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil,
encaminhada pelo Ministério da Educação a vários especialistas, para avaliação.

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A proposta de referenciais foi modificada a partir dos pareceres, mas sem um processo
mais amplo de discussão. No momenta desta reelaboração. ainda se desconhece a versão
definitiva, o que não impede de trazer alguns elementos substantivos que envolvem a
discussão da organização curricular para as instituições de educação da criança pequena.
Sabe-se que, agora; o documento estará denominado no singular - referencial -
apresentando-se como uma das perspectivas possíveis de se pensar a educação infantil.
Mas O Referencial Curricular Nacional terá um grande impacto. A ampia distribuição de
centenas ,de milhares de exemplares as pessoas que trabalham com esse nível
educacional, mostra O poder econômico do Ministério da Educação e seus interesses
políticos, muito mais voltados para futuros resultados eleitorais do que preocupados com
a triste realidade das nossas crianças e instituições. Com isso, a expressão no singular -
referencial- significa. de fato,a concretização de uma proposta que se torna hegemônica,
como se fosse a única.
Colocam-se em questão, aqui, os princípios orientadores da organização curricular para a
educação infantil.. com a preocupação de romper hegemonias que só poderiam ser im-
postas por meio de silêncios, interdições e pela difusão generalizada de um enfoque
parcial, que não reflete o conjunto das pesquisas e estudos da área.

As Instituições de Educação Infantil

Afinal, qual o lugar da educação infantil? Como caracteriza-la? Qual a sua relação com o
ensino fundamental? Essas questões tem recebido manifestações cautelosas por parte das
produções mais recentes.
Do ponto de vista da interpretação histórica, a fragilidade da corriqueira e já tradicional
polarização entre assistência e educação tem sido superada. Registram-se inúmeras
evidencias de que a distinção entre diferentes instituições não ocorre entre a creche e a
pré-escola, mas que o recorte institucional situa-se na sua destinação social. As pesquisas

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que vimos realizando ha vários anos mostram que, inequivocamente, creche e pré-escola
se constituíram historicamente como instituições educacionais [nota 2]. Algumas foram
criadas como exclusivas para os pobres. outras não. Mas, incorporar essa interpretação
não e algo simples e imediato. Alem disso. as questões sobre a caracterização das
instituições não se resolvem somente com o estudo da sua história.
A polaridade entre assistência e educação, representando o mal e o bem, como em um
conto de fadas, permite as propostas inaugurar o novo e implantar o pedagógico ou o
educacional, nos textos ... , enquanto a realidade institucional permanece intocada nas
questões que efetivamente discriminam a população pobre.
Desde o século passado tornou-se recorrente atribuir as instituições de educação infantil
a iminência de atingir a condição de educacionais - como se não houvessem sido ate
então. Muitas vezes, como forma de justificar novas propostas que, por sua vez. não
chegavam a alterar significativamente as características próprias da concepção
educacional assistencialista.
Essa dicotomia esta impregnada em várias dimensões do pensamento pedagógico.
Reproduzi-la e cômodo e simples. E o que fez a versão preliminar dos Referenciais
Curriculares para a Educação Infantil, ao considerar que parte das instituições teriam
nascido com o objetivo de "assistir as crianças de baixa renda". sendo "usadas para outros
fins" que não o de sua vocação educacional, enquanto de outra parte, as pré-escolas
seriam "declaradamente" ou "assumidamente" educacionais (v. I. pp. 7 -8).

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O que diferencia as instituições não são as origens nem a ausência de propósitos


educativos, mas o publico e a faixa etária atendida. E a origem social e não a institucional
que inspirou objetivos educacionais diversos. Mas a creche, para os bebes, embora vista
como apenas para as classes populares, também era apresentada em textos educacionais
do século XIX, como o primeiro degrau da educação [nota 3].
Já há algum tempo vimos ponderando como, no processo histórico de constituição das
instituições pré-escolares destinadas a infância pobre, o assistencialismo, ele mesmo. foi
configurado como uma proposta educacional específica para esse setor social, dirigida para a
submissão não só das famílias, mas também das crianças das classes populares. Ou seja.
a educação não seria necessariamente sinônimo de emancipação, o fato dessas
instituições carregarem em suas estruturas a destinação a uma parcela social, a pobreza,
já representa uma concepção educacional. A pedagogia das instituições educacionais para
os pobres e uma pedagogia da submissão. uma educação assistencialista marcada pela
arrogância que humilha para depois oferecer o atendimento como dádiva, como favor aos
poucos selecionados para o receber.
A mistura, a confusão entre caracterizar diferenças institucionais e diferenças de
concepções educacionais não e um privilégio da versão preliminar do Referencial, fazendo-
se presente em varias publicações. Como dissemos acima, a prudência ao lidar com essas
questões e algo recente e ainda pouco incorporada em nossos procedimentos analíticos.
Pode-se identificar, mesmo, como um terreno em que se esta tateando para encontrar
caracterizações sensatas e coerentes.
Mas, o que e ser educacional? Se as instituições de educação infantil são educacionais, isso
não implicaria um entendimento restrito do termo, como fazem supor certas
interpretações das mudanças ocorridas recentemente na legislação
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de nosso país. A vinculação de creches e pré-escolas ao nosso sistema educacional


representa uma conquista do ponto de vista da superação de uma situação administrativa
que mantinha um segmento de instituições educacionais especifico para os pobres.
segregado do ensino regular. com todo o peso dos preconceitos relacionados a isso.
Mas as duas modalidades em que a Constituição Federal e a LDB dividem esse nível da
educação básica - creche e pré-escola - não coincidem com a realidade institucional de
nosso pais. Nos, textos legais, a intenção da letra e distinguir as faixas etárias atendidas,
creche para as crianças de zero a três anos, pré-escola para as de quatro a seis. Essa
intenção atendeu a demanda dos pesquisadores da educação infantil, que argumentavam
ser necessário retirar da instituição creche o estigma de destinação exclusiva aos pobres.
assim como delimitar aspectos relativos a educação. das crianças pequenas.
Na realidade, encontramos uma diversidade muito maior, marcada pelas desigualdades,
ate mesmo na denominação institucional. Ha. por exemplo. creches para crianças de zero a
seis anos, na maioria das vezes referindo-se a um atendimento em período integral, na
acepção que a lei pretende superar. Para as crianças pequenas de classe media, atribuem-
se outros nomes que não creche, com exceção de algumas localidades, como o Rio de
Janeiro. Se os limites administrativos foram superados, as diferenças sociais permanecem e
se refletem também no interior do sistema educacional.
A solução dessas desigualdades não ocorre nem com a passagem de creches e pré-escolas
da esfera administrativa assistencial para a educacional, nem com a definição de um
referencial curricular nacional que sugira ser possível promove-la a partir do acesso de
todos ao conhecimento historicamente acumulado. Neste ultimo caso, fantasia-se que o
conhecimento seria algo passível de ser oferecido como produtos em prateleiras de
supermercados. disponível a todos. Mas, se boa parte da população brasileira não tem nem
o acesso aos bens de necessidade básica, o que dizer da cultura. cuja produção,

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apropriação e fruição e muito mais complexa do que uma simples relação de aquisição e
consumo?

Função da Educação Infantil

Na versão preliminar dos Referenciais Curriculares para a educa~ao infantil. as propostas


para as crianças menores subordinam-se ao que e pensado para as maiores, seguindo um
atrelamento ao ensino fundamental. Para ser educacional, o modelo por excelência seria
aquele. Daí a compartimentação e o contorcionismo para encaixar as especificidades da
educação da criança na faixa etária dos zero aos seis anos. dai o recurso a expressões
como "categorias curriculares flexíveis" categoria delimita, enquanto flexibilidade retira
limites -, uma forma de recusar e tomar a repor conteúdos disciplinares. de modo truncado
e desordenado.
A Pedagogia, campo de conhecimento para se alicerçar uma orientação curricular. cede
lugar a um psicologismo simplista. de cunho cognitivista, a partir do qual se subordina a
uma estrutura educacional de outra ordem, que e a do ensino fundamental.
As concepções educacionais na pré-escola, segundo a proposta, se dividiriam em duas
grandes correntes, uma voltada para o desenvolvimento infantil, outra para o
desenvolvimento de aprendizagens específicas, privilegiando-se ora uma, ora outra. O que
se observa ao longo do texto é que, para tentar sair dessa oscilação. justapõe-se uma
corrente à outra, multiplicando-se equívocos. .
As tendências recentes nas pesquisas relativas à infância, sua história e educação tem
enfatizado a perspectiva de se aproximar do ponto de vista da criança, quando falamos
dela. quando propomos algo para ela. Alem disso. ao procurar levar em conta essa fase da
vida, caracterizando-a como realidade distinta do adulto, não podemos nos esquecer de
que continuamos adultos pesquisando e escrevendo sobre elas. Por um lado, a infância e
um outro mundo, do qual nos produzimos uma imagem mítica. Por outro lado, não há
outro

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mundo, a interação e o terreno em que a criança se desenvolve. As crianças participam


das relações sociais, e este não é exclusivamente um processo psicológico, mas social,
cultural, histórico. As crianças buscam essa participação, apropriam-se de valores e
comportamentos próprios de seu tempo e lugar. porque as relações sociais são parte
integrante de suas vidas, de seu desenvolvimento.
Se na nova lei educacional, a educação básica envolve a educação infantil. o ensino
fundamental e o ensino médio, apenas o ensino fundamental é obrigatório destinado a
todas as crianças brasileiras. a partir dos sete anos de idade. A educação infantil é de outra
ordem, pois não se destina a todos. Assim, seria um equivoco engessá-la nos moldes do
ensino fundamental. que lhe sucede, em uma perspectiva preparatória, propedêutica.
Se a criança vem ao mundo e se desenvolve em interação com a realidade social,
cultural e natural, e possível pensar uma proposta educacional que lhe permita conhecer
esse mundo, a partir do profundo respeito por ela. Ainda não e o momento de
sistematizar o mundo para apresentá-lo a criança: trata-se de vivê-lo, de proporcionar-
lhe experiências ricas e diversificadas.
Quão distante do bebê que vai entrar na creche esta a aquisição de conceitos científicos
Por que não adotar uma postura de simplicidade no trato com ela - O "simplesmente
complexo",como diz o titulo de um vídeo italiano sobre esse trabalho pedagógico? Não
apenas na Itália, mas tambem as creches francesas pretendem trabalhar em estreita
colaboração com as famílias, oferecer a criança um local seguro e estimulante que lhe
permita a plena manifestação de seu potencial físico, afetivo e intelectual, a aprendizagem
de sua autonomia e de sua socialização, alem de facilitar a sua integração a escola
maternal [nota 4]. Ate mesmo aquele país, citado as vezes como

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altamente marcado pela pedagogia tradicional, encontra-se a sensatez de tratar com a


máxima atenção o acolhimento dos pequenos em um ambiente institucional, valorizando e
não secundarizando os aspectos relativos aos cuidados.
Por que não pensar em orientações curriculares que se pautem por essa simplicidade, no
lugar de formular uma complexidade simplista com a justaposição de temas e o emprego
de jargões como, por exemplo a expressão construtivismo?
Na versão preliminar do Referencial, nota-se o uso indiscriminado e fetichizado de
algumas expressões, especialmente do verbo construir. A criança construiria conhecimento,
pensamento, representações, capacidades - "tais como a imitação, a representação e a
linguagem" -, comportamentos, estruturas de pensamento (pp.12-3 e 19 do v.I). Tudo se
torna atividade construtiva, Como afirmamos em mesaredonda na SBPC, em 1995: o
construtivismo é "a nova palavra mágica dos meios educacionais, utilizada para explicar
tudo sem que de fato se diga nada".
Na publicação da COEDI, Propostas pedagógicas e Currículo em Educação Infantil, de 1996, que
examinou propostas de diversos Estados e municípios do país, uma das questões analisadas
e a do uso do construtivismo como a referência utilizada com maior freqüência: “É como se
fosse uma palavra mágica que resolveria todas as questões pedagógicas ou uma chave
valiosa que abriria as portas da credibilidade de qualquer projeto", o texto destaca as
influencias do mercado educacional nesse uso indiscriminado, assim como a confusão de
perspectivas evidenciada na justaposição dos enfoques teóricos de Piaget, Wallon e
Vygostky,e conclui: "não e a adoção de um modismo teórico. tal como vem sendo feito com
o construtivismo, que irá solucionar os problemas das relações ensino-aprendizagem na
educação infantil [nota 5].
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Ao querer derivar da Psicologia cognitivista as relações da instituição educacional com a


criança e a transmissão e produção do conhecimento, a proposta de Referencial se contorce
para recuperar a ciência, a arte, a sociedade, o cuidado, as famílias, a(s) cultura(s), a
história, etc.
Conhecer, crescer, viver, transforma-se num processo frio e burocrático, controlado pelo
adulto. A palavra prazer surge apenas na p.65 do documento introdutório. como que num
momento de distração da vigilante proposta que não admite deixar para a criança sequer a
possibilidade de períodos ociosos na instituição (v. I , p.3 I). Numa caricatura de
metodologia científica, o pensamento da criança e reduzido a um incessante formular de
"hipóteses", outra palavra reproduzida à exaustão por todo o Referencial.
Conhecer o mundo seria ascender a uma realidade platônica, alcançando o mundo dos
conceitos científicos: estes seriam os conhecimentos significativos a adquirir, distantes do
mundo das sombras da subjetividade e da fantasia (veja-se, especialmente. o v.I, pp. 16-
9, e o v.3, pp. 37-43).
Na versão preliminar dos Referenciais, para ser educacional. a programação
necessariamente precisaria se vincular ao desenvolvimento cognitivo de uma criança
abstrata - sem família e sem pertencimento cultural - e em seguida, adotar conteúdos
disciplinares da escola fundamental. Trata-se envergonhadamente da relação com a
família, do cuidado. ate mesmo da brincadeira: seriam aspectos inevitáveis, exteriores a
dimensão pedagógica (vol, p.23), secundários, menores, validos apenas quando tomados
como meios para a nobre tarefa de promover o “desenvolvimento” e a "aprendizagem".
"em direção aos conceitos científicos· (v.3. p.43).
Uma caracterização da educação infantil ha pouco adotada em nossa área e a que atribui a
essas instituições o papel de educar e cuidar, inspirada na expressão inglesa educare. O
risco que se corria com ela e aquele em que caiu a proposta de Referencial: a segmentação
dessas duas dimensões. Se o cuidado deve ,ser observado nos mais diferentes níveis
educacionais, trata-se de um elemento fundamental na educação

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da criança pequena. A tradução da palavra inglesa precisaria manter a unidade dos termos,
utilizando-se elos de ligação entre eles: educar-e-cuidar.
A caracterização da instituição de educação infantil como lugar de cuidado-e-educação,
adquire sentido quando segue a perspectiva de tomar a criança como ponto de partida para
a formulação das propostas pedagógicas. Adotar essa caracterização como se fosse um dos
jargões do modismo pedagógico, esvazia seu sentido e repõe justamente o oposto do que
se pretende. A expressão tem o objetivo de trazer a tona o núcleo do trabalho pedagógico
conseqüente com a criança pequena. Educá-la e algo,integrado ao cuidá-la.
A polarização entre assistencial e educacional opõe a função de guarda e proteção a
função educativa, como se ambas fossem incompatíveis, Lima excluindo a outra.
Entretanto, a observação das instituições escolares evidencia que elas tem como elemento
intrínseco ao seu funcionamento o desempenho da função de guardar as crianças que as
freqüentam.
Preocupar-se em assistir, preocupar-se com o cuidado, com a guarda da criança não seria
"desviar-se" da oportunidade de “proporcionar uma educação de qualidade", como faz
supor o documento (v. I , p.7): não precisamos nos envergonhar dessas dimensões do
trabalho pedagógico. As instituições educacionais, especialmente aquelas para a pequena
infância. se apresentam a sociedade e as famílias de qualquer classe social, como
responsáveis pelas crianças no período em que as atendem. Qualquer mãe que procure
uma creche ou pré-escola para educar o seu filho, tambem ira buscar se assegurar de que
la ele estará guardado e protegido.
Houve momentos na história da escolarização - quando se mandavam os filhos para os
internatos - em que esse cuidado era exclusivo da instituição. Philippe Ariès analisa que o
processo de escolarização ocorreu justamente quando a educação deixou de acontecer por
meio da aprendizagem, no convívio direto com a vida dos adultos; quando se atribuiu a
uma instituição o atendimento educacional das crianças, correspondendo a preocupação de
isolar a juventude do

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mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva, a um desejo de treiná-la
para melhor resistir as tentações dos adultos"[nota 6].
Outra formulação que se tem adotado em alguns trabalhos sobre as instituições de
educação infantil e a que as denomina de instituições educacionais não-escolares, ou extra-
escolares, o seu grande valor e demarcar esta área em relação a chamada tendência de
escolarização das creches e pré-escolas. A proposta de Referencial menciona isso, alertando
para a imagem negativa da escola, associada ao chamado ensino tradicional e a praticas
negativas para a criança.
Certamente, creche e pré-escola sac instituições não-escolares ou extra-escolares, se
entendermos por escola o ensino fundamental. Mas essa caracterização tambem precisaria
ser adotada com muita cautela. Primeiramente, porque admite; tacitamente, que a
educação escolar no ensino fundamental possa ser prejudicial a criança. demonstrando
interesse e preocupação apenas com relação aos menores de sete anos.
Em segundo lugar porque confunde a educação infantil com instituições educacionais de
outra natureza. Ha quem tenha afirmado, para se contrapor a formulação genérica de
instituição educacional para a creche e a pré-escola, que a família tambem o é. Ora, estamos
querendo delimitar uma instituição educacional coletiva, distinta da familiar.
Mas uma expressão como instituição de educação-e-cuidado coletiva não-escolar demonstra que
e necessário retomarmos o caminho, sob o risco de chegarmos a frases intermináveis que
não resolveriam problemas como o da compartimentação das propostas pedagógicas para
essa criança que necessita de uma educação integral. Par que não considerar que elas sac
um tipo de instituição escolar?
Ou seja, uma instituição escolar seria justamente aquela que tem por característica reunir
um coletivo de determinada faixa etária, ou com um interesse especifico, para prestar um

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determinado tipo de educação. Quando se toma uma definição mais estreita da instituição
escolar, deixa-se de lado importantes aspectos do fenômeno educacional. E o que ocorre
tambem em certos estudos sobre a educação popular, que a identificam exclusivamente
com os objetivos do ensino primario, deixando de lado um amplo espectro ligado ao ensino
profissional, aos institutos disciplinares, a um conjunto de instituições educacionais que, na
história, muitas vezes vincularam-se as entidades assistenciais, como no caso da educação
infantil.
O adjetivo escolar não definiria de antemão um modelo de organização pedagógica para a
instituição. Definiria a natureza da mesma - educacional -, no interior da qual se
encontrariam estruturas e objetivos de ordens diversas: a creche, a pré-escola, a escola de
ensino fundamental, a escola técnica (de processamento de dados, de analises
laboratoriais, de construção civil e outras), etc.
Aqui seria o caso de acrescentar um pouco de pimenta ao tempero, de modo a aquecer a
discussão na área. Por um lado, todos os aspectos analisados ate aqui mostram, a
necessidade de se compreender uma especificidade da educação infantil, como,de outra
ordem que a do ensino fundamental. as objetivos da educação infantil, desse modo,
necessitariam envolver as suas duas modalidades, creche e pré-escola entendidas aqui no
sentido estrito da letra da lei, como divididas por faixa etária -, ou seja, com objetivos sem
distinção para essas faixas etárias. Mas, por outro lado, não se poderia deixar de
contemplar objetivos mais específicos, tanto aos bebes e as crianças menores, quanta aos
que se encontram na fase final da educação infantil.
É claro que não se trata de estabelecer limites etários definidos, como se a educação
infantil pudesse adquirir um carater seriado: isto seria um contra-senso em relação a
vários aspectos psicológicos, pedagógicos e políticos, e é um problema que a legislação
não conseguiu resolver. Se a especificidade da educação infantil mostra o quanta não faz
sentido tratar o pedag6gico como algo purificado da contaminação da família, da guarda e
do cuidado da criança pequena, não poderíamos,

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para sermos conseqüentes, nos envergonhar tambem do caráter escolar da educação


infantil. Se estas instituições são educacionais e apenas foram integradas ao sistema
educacional do pais após muitas lutas. das quais participaram a grande maioria das
pessoas que pesquisam e trabalham nessa área, não cabe agora caracteriza-las
exclusivamente em distinção aos níveis subseqüentes da educação básica.
Este seria um dos méritos da proposta do Referencial: considerar a articulação com o
ensino fundamental, caso não houvesse se perdido no momento em que fez dessa
articulação uma subordinação. Entretanto, ha que se ter em mente que não ha como
pensar a educação infantil abstratamente, descolada da sociedade, da história, da cultura:
e a realidade que faz sentido projetarmos os nossos sonhos.
A insistência em demarcar a educação infantil em relação ao ensino fundamental em
termos de oposição seria um comportamento de avestruz diante da realidade nacional,
como que representando a vontade de fazer uma reserva de domínio, em uma atitude
descomprometida com o aluno que ingressa no ensino fundamental; mas que não deixa de
ser criança por isso.
Ha mais de um século, o Congresso Internacional de Ensino, reunido em Bruxelas, no ano
de 1880, discutia a oportunidade de se introduzir elementos da metodologia froebeliana na
escola primaria, refletindo como as questões que envolvem a educação da criança pequena
tambem podem se dirigir aos níveis subseqüentes, Seria um retrocesso, hoje, querer virar
as costas ao fato de que, ao concluir a educação infantil, essa criança ira ingressar no
ensino fundamental. E a este nível de ensino que tantos pais, nos dias de hoje, mesmo que
os consideremos equivocados, querem matricular seus filhos ainda na idade dos seis anos,
Se nos preocupamos com o bem-estar da criança na educação infantil, se não queremos
que ela sofra com praticas compartimentadoras, teríamos tambem que nos preocupar com
o ensino fundamental, que atingiria a todas as crianças de sete anos de nos so pais, caso o
governo cumprisse com o seu dever constitucional. Mesmo que não nos ocupemos

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dessa área, profissionais que somos vinculados ao nível anterior, essa solidariedade
expressaria a coerência de nossos princípios educacionais.
Se o bebê está distante dos conceitos científicos, como dissemos acima, tambem a criança
de cinco ou seis anos esta distante do que foi quando bebê. Ela sabe que ira para a escola.
A sua adaptação a escola tambem e um processo que precisaria ser tratado com atenção. A
sua aproximação com os conteúdos que ira estudar na escola de ensino fundamental
tambem e algo que será demandado por ela, o dado histórico e sociológico de uma
tendência a universalização do atendimento educacional as crianças de seis anos, por
demanda da própria sociedade, precisa ser considerado.
É claro que a educação infantil não pode deixar de lado a preocupação com uma articulação
com o ensino fundamental, especialmente para as crianças mais velhas que logo mais
estarão na escola e que se interessam por aprender a ler, escrever e contar. Isso poderia
ser resolvido muito mais facilmente se houvesse clareza quanta ao caráter da educação
infantil, se a criança fosse tomada como ponto de partida e não um ensino fundamental pré-
existente.
Desse modo, embora discordando da forma como se fez a divisão por faixa etária nas
sugestões da proposta de Referencial, entendemos que de algum modo essa diferença
precisaria ser contemplada, tanto para garantir as crianças menores a atenção merecida, o
seu não esquecimento em virtude da sua condição de minoritários entre os matriculados,
quanto para garantir as crianças maiores um trabalho educacional que respeite o seu
iminente ingresso no ensino fundamental.
Essas reflexões mostram como e insuficiente atribuir um nome ou expressão para
caracterizar a instituição e dai extrair todas as conseqüências pedagógicas a se desenvolver
em seu interior. Essa ilusão e o alimento dos modismos que se sucedem na área
educacional, lucrativos para o mercado, mas nocivos para as crianças e profissionais
envolvidos com a sua educação.

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Vimos que a instituição pode ser educacional e adotar praticas e cuidados que ocorrem no
interior da família, sem precisar escorar-se em uma divisão disciplinar que compartimenta a
criança. A instituição pode ser escolar e compreender que para uma criança pequena. a
vida é algo que se experimenta por inteiro, sem divisões em âmbitos hierarquizados. Que
para ela a ampliação do seu universo cultural, o conhecimento do mundo, ocorre na
constituição de sua identidade e autonomia, no interior do seu desenvolvimento pessoal e
social, diferentemente da segmentação proposta (v. I, pp.52-3).
Quando se indica a necessidade de tomar a criança como ponto de partida, quer-se
enfatizar a importância da formatação profissional de quem ira educar essa criança nas
instituições de educação infantil. Não e a criança que precisaria dominar conteúdos
disciplinares, mas as pessoas que a educam.
Certamente, no interior de uma proposta que parta da criança pequena e das suas
necessidades para pensar as praticas da instituição, varias das idéias contidas no
documento poderiam ser reaproveitadas. Mas, tomar a criança como ponto de partida exigi
ria compreender que para ela, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o desprazer, a
fantasia, o brincar e o movimento, a poesia, as ciências, as artes plásticas e dramáticas, a
linguagem, a musica e a matemática, Que para ela, a brincadeira e uma forma de
linguagem (v.2, p.7), assim como a linguagem e uma forma de brincadeira.

Notas

[nota 1 – pagina 51] Fundação Carlos Chagas


[nota 2 – pagina 53] LUC, J.-N. (Org.). La petite enfance à l’école. XIX-XX siécles.
Paris: INRP / Economica, 1982: ROLLET-ECHALlER, C. La politique a l’égard de la petite enfance sous la
llle Republique. Paris: INED/IPUF 199o; ALLEN, A. T. "Let us live with our children”: kindergarten
movements in Germny and United States. 184o-1914 History of Education Quaterly. v. 28. № 1, pp.23-48.
spring 1988. KUHLMANN JR., M. Infância e educação infantil : uma abordagem histórica. Porto Alegre :
Mediação, 1998.
[nota 3 – pagina 54] BUISSON, F. Didionnaire de pédagogie et d'instrudion primaire.
Paris: Hachette, 1887.
[nota 4 – pagina 57] WAGNER. A, TARKIEL. J. Nosenfants sont-ils heureux à la crèche?
Paris: Albin Michel, 1994; VIGNOLLES, B. Vive la crèche: un atout en plus pour éclore et grandir.
Paris : Nathan. 1991, p.44.
[nota 5 – pagina 58] BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Coordenação Geral de Educação Infantil. Brasilia: MEC/SEF/DPEF/COEDI, 1996,
pp.41-2.
[nota 6 – pagina 61] ARlÉS, p. História social da criança e da família. segunda Ed. , Rio de
Janeiro: Zahar" 1981, PP.231-2.

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