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Jacques Rancière
Tradução
A ngela Leite Lopes
Jg j MéDiaTHèque
J 4 * MaisondeFránce
5 £ 0 - 0 >
P-A a J
ed i t or al 3 4
ED ITO RA 34
Distribu ição p ela Cód ice Com ércio Distribu ição e Casa Ed itorial Ltd a.
R. Simões Pinto, 120 CEP 04356-100 Tel. (011) 240-8033 São Pau lo - SP
Títu lo original:
La mésentente
Cap a, p rojeto gráfico e ed itoração eletrônica:
Bracher & M alta Produção Gráfica
Revisão técn ica:
Renato ]anine Ribeiro
Revisão:
Geraldo Gerson de Souza
I a Ed ição - 1996
ISBN 85-7326-026-2
96-0595 CD D - 1(44)
O DESEN TEN DIMEN TO
Política e Filosofia
O DESEN TEN DIM EN TO
Política e Filosofia
Prefácio 9
7tOÀ,lTlKr| V."
Aristóteles, Política, 1282 b 21
11
C) Desentend imento
desses lu gares. Dir-se-á que ju stam ente a p olítica p u rificad a reen-
controu os lugares ad equ ad os à d eliberação e à d ecisão sobre o bem
com u m , as assem bléias onde se d iscute e se legisla, as esferas do Es-
tad o onde se tom am d ecisões, as ju risd ições supremas que averiguam
a conform id ad e das d eliberações e das d ecisões às leis fu nd ad oras da
com u nid ad e. A d esgraça é qu e, nesses p róp rios lu gares, se p rop aga a
op inião d esencantad a de que há p ou co a d eliberar e de que as d eci-
sões se impõem p or si m esm as, sendo o trabalh o p róp rio da p olítica
apenas o de ad ap tação p ontu al às exigências do m ercad o mund ial e
de uma d istribu ição eqü itativa dos lucros e dos cu stos dessa ad ap ta-
ção. A restau ração da filosofia p olítica m anifesta-se, assim , ao mes-
m o tem po que o au sentar-se da p olítica p or p arte de seus represen-
tantes au torizad os.
Essa singular concord ância exige uma volta à questão da evidência
prim eira da filosofia p olítica. O fato de (quase) sempre ter havid o po-
lítica na filosofia não p rova, de m od o algum , que a filosofia p olítica é
um ram o natu ral da árvore-filosofia. Em Descartes, com certeza, a
p olítica não é citad a entre os ram os da árvore; a med icina e a m oral
cobrem ap arentem ente tod o o cam p o em que ou tras filosofias a en-
contravam . E o prim eiro da nossa trad ição a encontrá-la, Platão, fê-
lo apenas sob a form a da excep cionalid ad e rad ical. Sócrates não é um
filósofo que pensa sobre a p olítica de Atenas. É o ú nico ateniense que
"faz as coisas da p olítica"1 , que faz a p olítica de verdade que se op õe
a tu d o o que se faz em Atenas sob o nom e de p olítica. O en con tro
p rim eiro da p olítica e da filosofia é o de uma alternativa: ou a p olíti-
ca dos p olíticos ou a dos filósofos.
A brutalid ad e da d isjunção p latônica esclarece, então, aqu ilo que
a am bígu a relação entre a segu rança de nossa filosofia p olítica e a
d iscrição de nossa p olítica d eixa entrever. N ão há prova alguma de
que a filosofia p olítica seja uma divisão natu ral da filosofia, que acom -
p anha a p olítica de sua reflexão, mesmo que crítica. N ão há p rova,
antes de mais nad a, da figu ração de uma filosofia que vem d uplicar
com sua reflexão, ou fund ar com sua legislação, tod a grand e form a
do agir hu m ano, científica, artística, p olítica ou ou tra. A filosofia não
tem divisões que proviriam do seu próprio conceito ou dos cam p os so-
bre os quais ela ap lica sua reflexão ou sua legislação. Ela tem objetos
10 Jacqu es Rancière
singu lares, nós de p ensam ento nascid os de certo encontro com a p olí-
tica, a arte, a ciência ou alguma ou tra ativid ad e do p ensam ento, sob
o signo de um p arad oxo, de um con flito, de uma ap oria esp ecíficos.
Aristóteles nos ind ica isso numa frase que é um dos prim eiros encon-
tros entre o su bstantivo "filosofia" e o ad jetivo "p olítica": "D o que
há igualdad e e do que há d esiguald ad e, a coisa leva à ap oria e à filo-
sofia p olítica"2 . A filosofia torna-se "p olítica" qu and o acolhe a ap oria
ou o em baraço p róp rio da p olítica. A p olítica — voltarem os a isso —
é a atividade que tem p or p rincíp io a iguald ad e, e o princípio da igual-
dade transform a-se em rep artição das parcelas51* de com u nid ad e ao
m od o do em baraço: de quais coisas há e não há iguald ad e entre qu ais
e qu ais? O que são essas "q u a is", quem são esses "q u a is"? De qu e
m od o a iguald ade consiste em iguald ade e d esiguald ad e? Tal é o em-
baraço p róp rio da p olítica, pelo qu al a p olítica se torna um em baraço
p ara a filosofia, um objeto da filosofia. N ão se deve entender com isso
a visão p ied osa, segundo a qual a filosofia vem socorrer o p raticante
da p olítica, da ciência ou da arte, exp licand o-lhe a razão de seu em-
baraço ao lhe divulgar o p rincíp io de sua p rática. A filosofia não so-
corre ninguém e ninguém lhe pede socorro, mesmo que as regras de
conveniência da d emand a social tenham institu íd o o hábito de p olíti-
cos, ju ristas, m éd icos ou qu alqu er ou tra corp oração, quand o esta se
reúne p ara p ensar, convid arem o filósofo com o esp ecialista da refle-
xão em geral. Para que o convite prod uza algum efeito de pensam en-
to, é preciso que o encontro ache seu p onto de d esentend im ento.
Por d esentend im ento entend erem os um tip o d eterm inad o de si-
tu ação de p alavra: aqu ela em que um dos interlocu tores ao m esm o
tem p o entende e não entend e o que diz o ou tro. O d esentend imento
não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz p reto. E
o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas
não entend e a mesma coisa, ou não entend e de m od o nenhum que o
ou tro diz a mesma coisa com o nom e de brancu ra. O caráter genéri-
co da fórm u la exige evid entemente algumas p recisões e obriga a fa-
C) Desentend imento 11
zer algumas d istinções. O d esentend im ento não é de m od o nenhum
o d esconhecim ento. O conceito de d esconhecim ento pressupõe que
um ou ou tro dos interlocu tores ou os dois — pelo efeito de uma sim-
ples ignorância, de uma d issim u lação concertad a ou de uma ilu são
constitu tiva — não sabem o que um diz ou o que diz o ou tro. N ão é
tam p ou co o m al-entend id o prod uzid o pela im p recisão das p alavras.
Uma velha sabed oria que é hoje p articu larm ente ap reciad a d ep lora
que as pessoas se entendam mal porque as palavras trocad as são equí-
vocas. E exige qu e, pelo menos qu and o estão em jogo a verd ad e, o
bem e a ju stiça, tod os tentem atribu ir a cad a p alavra um sentid o bem
d efinid o que a separe das ou tras, d esistind o-se das palavras que não
designam nenhum a propried ad e d efinid a ou d aqu elas que não con-
seguem fugir de uma confu são hom oním ica. Ocorre que essa sabed o-
ria assuma o nom e de filosofia e dite essa regra de econom ia lingüís-
tica p ara o exercício privilegiad o da filosofia. Acontece-lhe ao con-
trário que d enuncie a filosofia com o a p róp ria forneced ora das p ala-
vras vazias e dos hom ônim os irred utíveis e p rop onha que cad a ativi-
dade hu m ana enfim se entend a, d epurand o seu léxico e seus concei-
tos de tod as as usurpações da filosofia.
Tan to o argu m ento do d esconhecim ento qu anto o do m al-en-
tend id o requerem assim duas med icinas da linguagem , que consistem
em ensinar o que quer dizer falar. Vêem -se facilm ente seus lim ites. A
p rim eira deve p ressu p or constantem ente esse d esconhecim ento do
qu al ela é o avesso, o saber reservad o. A segunda ap lica em d em asia-
dos cam p os seu interd ito de racionalid ad e. Inú m eras situ ações de pa-
lavra em que atu a a razão podem ser pensad as d entro de uma estru -
tu ra específica de d esentend imento que não é nem de d esconhecim en-
to a pedir um saber su p lem entar, nem de m al-entend id o a solicitar
uma rarefação das p alavras. Os casos de d esentend im ento são aqu e-
les em que a d isputa sobre o que quer dizer falar constitu i a p róp ria
racionalid ad e da situ ação de p alavra. Os interlocu tores então enten-
dem e não entend em aí a mesma coisa nas mesmas p alavras. H á to-
das as espécies de razão p ara que um X entend a e não entend a ao
mesmo tem p o um Y: p orqu e, em bora entend a claram ente o que o
ou tro diz, ele não vê o objeto do qu al o ou tro lhe fala; ou então p or-
que ele entend e e deve entend er, vê e quer fazer ver um objeto d ife-
rente sob a mesma p alavra, uma razão d iferente no mesmo argu m en-
to. Assim, na República, a "filosofia p olítica" com eça sua existência
pelo longo p rotocolo do d esentend im ento acerca de um argu m ento
12 Jacqu es Rancière
sobre o qual tod os concord am : que a ju stiça consiste em dar a cad a
um o que lhe é d evid o. Seria côm od o sem dúvida qu e, para dizer o
que entend e p or ju stiça, o filósofo dispusesse de palavras totalm ente
d iferentes das do p oeta, do negociante, do orad or e do p olítico. Coi-
sa que a divindade ap arentem ente não p rovid enciou e que o ap recia-
d or das linguagens p róp rias só consegu iria suprir a preço de não ser
entend id o de m od o algum. Ali ond e a filosofia encontra a p oesia, a
p olítica e a sabed oria dos negociantes honestos, p recisa tom ar as p a-
lavras dos ou tros p ara dizer que diz uma coisa totalm ente d iferente.
É nisso que há d esentend im ento e não apenas m al-entend id o, d ecor-
rend o este de uma simples exp licação do que diz a frase do ou tro e
que o ou tro não sabe.
Eqü ivale a dizer tam bém que o d esentend im ento não diz respei-
to apenas às p alavras. Incid e geralm ente sobre a p róp ria situ ação dos
que falam . N isso, o d esentend im ento se distingue do que Jean -Fran -
çois Lyotard conceitu ou sob o nom e de d iferend o (différend)^. O de-
sentend im ento não diz respeito à qu estão da heterogeneid ad e dos re-
gimes de frases e da presença ou au sência de uma regra p ara ju lgar
gêneros de d iscursos heterogêneos. Diz respeito m enos à argu m enta-
ção que ao argu m entável, à p resença ou au sência de um objeto co-
mum entre um X e um Y. Diz resp eito à ap resentação sensível desse
com u m , à p róp ria qualid ad e dos interlocu tores em ap resentá-lo. A si-
tu ação extrem a de d esentend im ento é aqu ela em que X não vê o ob-
jeto com u m que Y lhe ap resenta p orqu e não entend e que os sons
em itid os p or Y com p õem p alavras e agenciam entos de palavras se-
m elhantes aos seus. Com o verem os, essa situ ação extrem a diz respei-
to, essencialm ente, à p olítica. Ali ond e a filosofia encontra ao mes-
m o tem p o a p olítica e a p oesia, o d esentend im ento se refere ao que é
ser um ser que se serve da p alavra p ara d iscu tir. As estru tu ras de de-
sentend im ento são aqu elas em que a d iscussão de um argu m ento re-
mete ao litígio acerca do objeto da d iscussão e sobre a cond ição d a-
queles que o constitu em com o objeto.
As páginas que se seguem tentarão p ortanto d efinir alguns re-
ferenciais p ara um entend im ento do d esentend imento segundo o qu al
a ap oria da p olítica é acolhid a a títu lo de objeto filosófico. N ela ten-
tarem os p rovar a seguinte hip ótese: o que se cham a de "filosofia p o-
C) Desentend imento 11
lítica" pod eria m u ito bem ser o conju nto das op erações de pensamen-
to pelas qu ais a filosofia tenta acabar com a p olítica, suprimir um es-
când alo de p ensam ento ad equ ad o ao exercício da p olítica. Esse es-
când alo teórico, por sua vez, é apenas a racionalid ad e do d esenten-
d im ento. O que torna a p olítica um objeto escand aloso é que a polí-
tica é a ativid ad e que tem p or racionalid ad e p róp ria a racionalid ad e
do d esentend imento. O desentendimento da p olítica pela filosofia tem
então p or p rincíp io a red u ção mesma da racionalid ad e do d esenten-
d im ento. Essa op eração pela qual a filosofia exp u lsa de si mesma o
d esentend imento id entifica-se então natu ralm ente ao p rojeto de fazer
"realm en te" p olítica, de realizar a essência verd ad eira d aquilo de que
fala a p olítica. A filosofia não se torna "p olítica" porqu e a p olítica
seria algo im p ortante que p recisaria de sua intervenção. Ela se torna
tal porqu e regular a situ ação de racionalid ad e da p olítica é uma con-
d ição para d efinir o que é p róp rio à filosofia.
A ord em dessa obra está assim d eterm inad a. Partirá das linhas
supostam ente fu nd ad oras em que Aristóteles define o logos p róp rio
da p olítica. Tentarem os colocar em evid ência, na d eterm inação do
anim al lógico-p olítico, o p onto em que o logos se divide, d eixand o
ap arecer esse próprio da p olítica que a filosofia rejeita com Platão e
de que tenta com Aristóteles ap rop riar-se. É a p artir, p ois, d o texto
de Aristóteles e do que ele ind ica aquém de si mesmo que p rocu rare-
mos respond er à pergunta: O que há de esp ecífico p ara ser pensad o
sob o nome de p olítica? Pensar essa especificid ad e im p licará separá-
la d aquilo que com um ente se coloca sob esse nom e e para o qual pro-
p onho reservar o nome de "p olícia ". A p artir dessa d istinção, tenta-
remos d efinir prim eiram ente a lógica do d esentend im ento d istintiva
da racionalid ad e p olítica, em seguida o p rincíp io e as grandes form as
da "filosofia p olítica" com preend id a no sentid o de recu p eração es-
pecífica da d istinção. Tentarem os então pensar o efeito reflexo da "fi-
losofia p olítica" no cam p o da p rática p olítica. Serão deduzidos a par-
tir d aí alguns referenciais de p ensam ento p rop ostos p ara d istinguir o
que se pode entend er pelo nom e de d em ocracia e sua d iferença das
p ráticas e legitim ações do sistema consensu al, p ara ap reciar o que se
p ratica e se diz sob o nome de fim da p olítica ou de seu retorn o, o
que se exalta sob o nome de humanid ad e sem fronteiras e se d ep lora
sob o nome de reino do d esu m ano.
O au tor deve d eclarar aqu i uma dupla d ívid a: p rim eiram ente
p ara com aqueles qu e, convid and o-o generosam ente para falar sobre
C) Desentend im ento 11
O CO M EÇO DA POLÍTICA
Com ecem os então pelo com eço, ou seja, pelas frases ilustres que
d efinem, no Livro I da Política de Aristóteles, o caráter eminentemente
p olítico do animal humano e assentam , ao mesmo tem p o, o fundamen-
to da p ólis.
C) Desentend imento 11
mais com o d iferença de duas m aneiras de se p articip ar do sensível: a
do prazer e do sofrim ento, com um a tod os os animais d otad os de voz;
e a do bem e do m al, p róp ria somente aos hom ens e já presente na
p ercep ção do útil e do nocivo. Fu nd a-se, p or aí, não a exclusivid ad e
da p oliticid ad e, mas uma p oliticid ad e de tip o su p erior, que se perfaz
na fam ília e na p olis.
N essa clara d em onstração, vários p ontos continu am obscu ros.
Sem d úvid a, qu alqu er leitor de Platão com p reend e que a objetivid ad e
do bem se separa da relativid ad e do agrad ável. Mas a d ivisão de sua
aisthesis não é tão evidente assim : ond e está exatam ente a fronteira
entre a sensação desagradável de um golpe recebid o e o sentim ento da
"n ocivid ad e" sofrid a p or cau sa desse mesmo golpe? Dir-se-á que a di-
ferença está m arcad a p recisam ente pelo logos que separa a articu la-
ção d iscursiva de uma d or e a articu lação fônica de um gem id o. Ain-
da assim é p reciso que a d iferença entre d esagrad o e nocivid ad e seja
sentid a e sentid a com o com u nicável, com o d efinind o uma esfera de
com u nid ad e do bem e do m al. O ind ício que se tira da posse do órgão
— a linguagem articu lad a — é uma coisa. A m aneira com o esse ór-
gão exerce sua fu nção, com o a linguagem manifesta uma aisthesis com -
p artilhad a, é ou tra totalm ente. O raciocínio teleológico im p lica que o
telos do bem com u m seja im anente à sensação e à exp ressão com o
"n ocivid ad e" da d or infligid a p or um ou tro. Mas com o com p reend er
exatam ente a conseqü ência entre o "ú til" e o "n ociv o" assim m ani-
festad os e a ord em p rop riam ente p olítica da ju stiça? À prim eira vista,
o envergonhad o u tilitarista pod eria rep licar ao nobre p artid ário dos
"clássicos" que essa passagem do útil e do nocivo à ju stiça com u nitá-
ria não está tão d istante de sua p róp ria d ed u ção de uma u tilid ad e
comum feita da otim ização das utilidades respectivas e da red u ção das
nocivid ad es. A linha que separa a com u nid ad e do Bem d o con trato
u tilitarista p arece aqui bem d ifícil de se traçar.
Façam os entretanto uma concessão aos partidários dos "clássicos":
essa linha pode e deve ser traçad a. Só que seu traçad o passa p or alguns
desfiladeiros onde correm o risco de perder-se não só o pressuposto "u ti-
litarista" d enu nciad o p or Leo Strau ss com o tam bém aqu ele que ele
próprio com p artilha com os u tilitaristas: aquele que assimila o logos
que m anifesta o ju sto à d eliberação pela qual as particu larid ad es dos
indivíduos se encontram subsumid as sob a universalid ade do Estad o.
O problem a aqui não é enobrecer a acep ção do útil para ap roxim á-lo
da idealidade do ju sto, que é seu fim . É ver que a passagem d o primei-
12 Jacqu es Rancière
ro para o segundo só se faz p or interm éd io de seu s con trários e que é
no jogo desses con trários, na relação obscu ra do "n o civ o" e do inju s-
to, que reside o âm ago do p roblem a p olítico, do p roblem a que a polí-
11< .1 lorm u la ao p ensam ento filosófico da com u n id ad e. Entre o útil e o
| iistof a conseqü ência é com efeito contrariad a p or duas heterogenei-
ihulcs. Prim eiro, a que separa os term os falsam ente equ ilibrad os com
< »s lerm os de "ú t il" e de "n ociv o". Isso p orqu e o u so grego não estabe-
l» i c nenhuma op osição clara desse tip o entre os term os de Aristóteles,
s vmpheron e blaberon. Blaberon tem , na verd ad e, d u as acep ções: num
sentid o, é a parte de d esagrad o que cabe a um ind ivíd u o p or qu alqu er
> .i/flo que seja, catástrofe natu ral ou ação hu m ana. N u m ou tro, é a con -
sciiu cncia negativa que um ind ivíd uo recebe de seu ato ou , no mais d as
ve/es, da ação de ou trem . Blabé d esigna assim , corren tem en te, o d ano
no sentid o ju d iciário d o term o, o agravo objetivam en te d eterm inável
leito por um ind ivíd uo a ou tro. A n oção im plica p ortan to, u su alm en-
n , .1 idéia de uma relação entre duas p artes. Sympheron, em con trap ar-
i KI.I, designa essencialm ente uma relação a si m esm o, a vantagem qu e
nm indivíduo ou uma coletivid ad e obtém ou con ta obter de uma ação-
< > sympheron não im p lica pois uma relação com o ou tro. Os d ois ter-
mos s.io, assim , falsos op ostos. N o uso grego corren te, o que h abitu al-
mente se op õe ao blaberon com o d ano sofrid o é ôphelimòn, o socorro
• | ii< se recebe. N a Ética a N icômaco, o que o p róp rio Aristóteles op õe
H > blaberony com o m á ação, é aireton, a via boa de se tom ar. Mas d o
M tnpheron, da vantagem que um ind ivíd uo recebe, não se infere, d e
Ioi m.i algu m a, o d ano que ou tro sofre. Essa falsa con clu são é ap enas
i d» I rasím aco qu and o, no livro I da República, trad u z em term os d e
111« i os e perdas sua enigm ática e p olissêm ica fórm u la: a ju stiça é a van -
i.if.t in do su perior (to sympheron tou kreittonos). Digam o-lo de p as-
sagem: trad u zir, com o é costu m e, p or "interesse d o m ais forte" é en -
< < n ii se de cara na p osição em que Platão encerra Trasím aco, é p ôr
< in (u rto-circu ito tod a a d em onstração p latôn ica, a qu al joga com a
| K)lissemia da fórm u la p ara op erar uma dupla d isju n ção: não apenas o
Im r o" de um não é o "d a n o " de ou tro, com o, além d isso, a su p erio-
i uLulc exatam ente entend id a tem sempre um só ben eficiário: o "in fe-
i n m " sobre o qu al ela se exerce. N essa d em on stração, um term o d esa-
p.i i ecc, o do d ano. O que a refu tação de Trasím aco antecip a é uma p olis
sem d ano, uma polis ond e a su periorid ad e exercid a de. acord o com a
< H ilem natural produz a reciprocid ade dos serviços entre os guardas p r o-
h ioies c os artesãos p roved ores.
l) I >rsrntcnd imento 19
mais com o d iferença de duas m aneiras de se p articip ar do sensível: a
do prazer e do sofrim ento, com u m a tod os os animais d otad os de voz;
e a do bem e d o m al, p róp ria som ente aos hom ens e já presente na
p ercep ção do útil e do nocivo. Fu nd a-se, p or aí, não a exclusivid ad e
da p oliticid ad e, mas uma p oliticid ad e de tip o su p erior, que se perfaz
na fam ília e na p olis.
N essa clara d em onstração, vários p ontos continu am obscu ros.
Sem d úvid a, qu alqu er leitor de Platão com preend e que a objetivid ad e
do bem se separa da relativid ad e do agrad ável. Mas a d ivisão de sua
aisthesis não é tão evidente assim : onde está exatam ente a fronteira
entre a sensação desagradável de um golpe recebid o e o sentim ento da
"n ocivid ad e" sofrid a p or cau sa desse mesmo golpe? Dir-se-á que a di-
ferença está m arcad a precisam ente pelo logos que separa a articu la-
ção discursiva de uma d or e a articu lação fônica de um gem id o. Ain-
da assim é p reciso que a d iferença entre d esagrad o e nocivid ad e seja
sentid a e sentid a com o com u nicável, com o d efinind o uma esfera de
com u nid ad e do bem e do m al. O ind ício que se tira da posse d o órgão
— a linguagem articu lad a — é uma coisa. A m aneira com o esse ór-
gão exerce sua fu nção, com o a linguagem manifesta uma aisthesis com -
p artilhad a, é ou tra totalm ente. O raciocínio teleológico im plica que o
telos do bem com u m seja im anente à sensação e à exp ressão com o
"n ocivid ad e" da d or infligid a p or um ou tro. Mas com o com preend er
exatam ente a conseqü ência entre o "ú til" e o "n ociv o" assim m ani-
festad os e a ord em p rop riam ente p olítica da ju stiça? À prim eira vista,
o envergonhad o u tilitarista pod eria rep licar ao nobre p artid ário dos
"clássicos" que essa passagem d o útil e do nocivo à ju stiça com u nitá-
ria não está tão d istante de sua p róp ria d ed u ção de uma u tilid ad e
comum feita da otim ização das utilidades respectivas e da red u ção das
nocivid ad es. A linha que separa a com u nid ad e do Bem do con trato
u tilitarista p arece aqui bem d ifícil de se traçar.
Façam os entretanto uma concessão aos partidários dos "clássicos":
essa linha pode e deve ser traçad a. Só que seu traçad o passa p or alguns
desfiladeiros onde correm o risco de perder-se não só o pressuposto "u ti-
litarista" d enu nciad o p or Leo Strau ss com o tam bém aquele que ele
p róp rio com p artilha com os u tilitaristas: aquele que assimila o logos
que m anifesta o ju sto à d eliberação pela qual as particu larid ad es dos
indivíduos se encontram subsumidas sob a universalid ade do Estad o.
O p roblem a aqui não é enobrecer a acep ção d o útil para ap roxim á-lo
da idealidad e do ju sto, que é seu fim . É ver que a passagem do primei-
C) Desentend im ento 11
Pois aí está o segundo p roblem a e a segunda heterogeneid ad e:
para Platão com o para Aristóteles, que é a esse respeito fiel a seu mestre,
o ju sto da polis é fu nd am entalm ente um estad o em que o sympheron
não tem por correlato nenhum blaberon. A boa d istribu ição das "van -
tagens" pressupõe a supressão prévia de um certo d an o*, de um certo
regime do d ano. "Q u e d ano me fizeste, que d ano te fiz?", são essas,
segundo o Teeteto, palavras de ad vogad o, p erito em transações e tri-
bunais, quer dizer, definitivamente ignorante da justiça que fundamenta
a polis. Esta só com eça ali ond e se pára de rep artir utilid ad es, de equi-
librar lucros e perdas. A ju stiça enqu anto princípio de comunidade não
existe aind a ali onde tod os se ocu p am unicam ente em impedir que os
indivíduos que vivem ju ntos se causem d anos recíp rocos e em reequi-
librar, ali ond e o cau sam , a balança dos lu cros e das perd as. Ela co-
meça som ente ali onde se trata d aquilo que os cid ad ãos possuem em
comum e ond e se cuid a da m aneira com o são repartid as as form as de
exercício e controle do exercício desse pod er com u m . De um lad o, a
ju stiça enqu anto virtude não é o simples equ ilíbrio dos interesses en-
tre os indivíduos ou a rep aração dos d anos que uns cau sam aos ou -
tros. É a escolha da p róp ria medida segundo a qual cad a parte só pega
a parcela que lhe cabe. De ou tro lad o, a ju stiça p olítica não é apenas
a ordem que m antém ju ntas as relações med id as entre os indivíduos e
os bens. Ela é a ord em que d eterm ina a d ivisão do com u m . Ora, nes-
sa ord em , a d ed ução do útil p ara o ju sto não se faz da mesma m anei-
ra que na ord em dos ind ivíd uos. Para os ind ivíd u os, aind a se pod e
resolver, simplesmente, o p roblem a da passagem entre a ord em do útil
e a do ju sto. O livro V da Ética a N icômaco d á, na verd ad e, uma so-
lução para o nosso p roblem a: a ju stiça consiste em não pegar mais do
que sua p arcela nas coisas vantajosas e menos do que sua p arcela nas
coisas d esvantajosas. Contanto que se reduza o blaberon ao "n ociv o"
e se id entifiqu e com o sympheron essas coisas "v an tajosas", é possível
d ar um sentid o preciso à passagem da ord em do útil à do ju sto: o van-
tajoso e o d esvantajoso são então a m atéria sobre a qual se exerce a
* Dano. N o original, tort. Ind ica o d ano cau sad o a alguém, com sentid o
não apenas físico m as, sobretu d o, ju ríd ico. A voir tort é estar errad o, não ter ra-
zão; faire tort a alguém é fazer-lhe m al. N uma citação de H obbes, no último capí-
tulo deste livro, é a forma com o o trad utor francês do século XVII, Samuel Sorbière,
verteu o inglês "w/rowg"; conota-se, com o se vê, das idéias de errad o, torto etc. (N .
do revisor técnico)
12 Jacqu es Rancière
virtud e da ju stiça que consiste em pegar a p arcela conveniente, a p ar-
cela méd ia de umas e de ou tras.
O p roblem a, evid entem ente, é que com isso aind a não está d efi-
nid a nenhuma ord em p olítica. A p olítica com eça ju stam ente ond e se
p ára de equ ilibrar lu cros e p erd as, ond e se tenta rep artir as p arcelas
do comum, harm onizar segundo a p rop orção geom étrica as p arcelas
de com u nid ad e e os títu los p ara se obter essas p arcelas, as axiai que
d ão d ireito à com u nid ad e. Para que a com u nid ad e p olítica seja m ais
d o que um con trato entre quem troca bens ou serviços, é preciso que
a iguald ad e que nela reina seja rad icalm ente d iferente d aqu ela segun-
do a qu al as m ercad orias se trocam e os d anos se rep aram . Mas o p ar-
tid ário dos "clássicos" estaria se alegrand o ced o d emais em reconhe-
cer aí a superiorid ad e do bem com u m , cu jo telos sobre o regateio d os
interesses individuais a natu reza hu m ana traz consigo. Isso p orqu e o
fund o do p roblem a então se ap resenta: p ara os fu nd ad ores da "filo-
sofia p olítica", essa su bm issão da lógica trocad ora ao bem com u m
exp rim e-se de m aneira bem d eterm inad a: ela é su bm issão da iguald a-
de aritm ética que preside as trocas m ercantis e as penas ju d iciárias, à
iguald ad e geom étrica qu e, p ara a harm onia com u m , coloca em p ro-
p orção as p arcelas da coisa com u m possuíd as p or cad a parte da co-
munidade à p arcela que ela traz ao bem com u m . Mas essa passagem
da aritm ética vulgar à geom etria id eal im p lica, ela m esm a, um estra-
nho com p rom isso com a em p iria, uma singular con tagem * das "p ar-
tes" da com u nid ad e. Para que a p olis seja ord enad a conform e o bem ,
é p reciso que as p arcelas da com u nid ad e estejam em estrita p rop or-
ção com a axia de cad a parte da com u nid ad e: ao valor que ela traz
para a comunid ade e ao direito que esse valor lhe dá de deter uma parte
do pod er com u m . Por trás da op osição p roblem ática do sympheron
ao blaberon está a qu estão p olítica essencial. Para que exista a filoso-
fia p olítica, é p reciso que a ord em das id ealid ad es p olíticas se ligue a
uma com p osição das "p ar tes" da p ólis, a uma contagem cu jas com -
p lexid ad es escond em talvez um erro fu nd am ental, um erro que pod e-
ria ser o blaberon, o d ano constitu tivo da p róp ria p olítica. O que os
"clássicos" nos ensinam é antes de mais nad a o seguinte: a p olítica não
se ocu p a dos víncu los entre os ind ivíd uos, nem das relações entre os
indivíduos e a com u nid ad e, ela é da alçad a de uma contagem das "p ar-
* Em francês, compte, que tam bém tem o sentido de "cálcu lo", "co n t a ",
"côm p u to". (N . do revisor técnico)
C) Desentend im ento 11
tes" da com u nid ad e, contagem que é sempre uma falsa contagem , uma
dupla contagem ou um erro na contagem .
Pois vejamos essas axiai, esses títulos de comunidade, de mais per-
to. Aristóteles enumera três: a riqueza dos p ou cos (os oligoi); a virtu-
de ou a excelência (areté) que dá seu nome aos melhores (aos aristoi);
e a liberd ad e (a eleutéria) que pertence ao p ovo (demos). Concebid o
u nilateralm ente, cad a um desses títu los fornece um regime p articu lar,
am eaçad o pela sed ição dos ou tros: a oligarqu ia dos ricos, a aristocra-
cia das pessoas de bem ou a d em ocracia do p ovo. Em contrap artid a,
a com binação exata de seus títu los de comunid ad e p rop orciona o bem
com u m . Um d esequilíbrio secreto p ertu rba, no entanto, essa bela cons-
tru ção. Sem dúvida, pod e-se medir a contribu ição respectiva das com -
petências oligárqu icas e aristocráticas e do controle popu lar à busca
do bem com u m . E o livro III da Política esforça-se p or concretizar esse
cálcu lo, p or d efinir as qu antid ad es de cap acid ad e p olítica que são
detidas pela m inoria dos hom ens de "m ér ito" e pela m aioria dos ho-
mens com u ns. A m etáfora da mistura permite figurar uma comunidade
nu trid a pela som a p rop orcional das qualid ad es respectivas "d a mes-
ma m an eira", diz Aristóteles, "qu e uma com id a impura m istu rad a a
uma com id a pura torna o tod o mais p roveitoso que a pequena quan-
tid ad e in icia l"2 . O puro e o im puro podem m istu rar seus efeitos. Mas
de que m aneira podem med ir-se um ao ou tro em seu p rincíp io? O que
é na verdade o títu lo d etid o por cad a uma das partes? N a bela har-
m onia das axiai, um único títu lo se d eixa facilm ente reconhecer: a ri-
queza dos oligoi. Mas é tam bém aquele que depende apenas da arit-
m ética das trocas. O que é, em contrap artid a, a liberd ad e trazid a pe-
las pessoas do povo à com u nid ad e? E em que lhes é p róp ria? E aqui
que se revela o erro fu nd am ental na contagem . Prim eiro, a liberd ad e
do demos não é nenhuma propried ad e d eterminável mas facticid ad e
p u ra: p or trás da "au tocton ia", m ito de origem reivind icad o pelo de-
mos ateniense, im põe-se esse fato bru to que faz da d em ocracia um
objeto escand aloso para o p ensam ento: pelo simples fato de ter nasci-
do em tal p ólis, e especialm ente na pólis ateniense, depois que a es-
cravid ão p or dívidas foi abolid a, qu alqu er um desses corp os falantes
fad ad os ao anonim ato do trabalh o e da rep rod u ção, desses corp os fa-
lantes que não têm mais valor do que os escravos — e menos até, já
12 Jacqu es Rancière
qu e, diz Aristóteles, o escravo recebe sua virtud e da virtud e de seu
senhor —, qu alqu er artesão ou com erciante é contad o nessa parte da
pólis que se cham a p ovo com o p articip ante dos negócios com u ns en-
qu anto tais. A simples im p ossibilid ad e, para os oligoi, de reduzir à es-
cravid ão seus devedores transform ou -se na aparência de uma liberdade
que seria propried ad e positiva do p ovo, com o p arte da com u nid ad e.
Alguns atribu íram essa p rom oção do povo e de sua liberd ad e à
sabed oria do bom legislad or, do qu al Sólon fornece o arqu étip o. Ou -
tros im p u taram -na à "d em agogia" de alguns nobres, que tom aram
ap oio na p op u laça p ara afastar seus concorrentes. Cad a uma dessas
exp licações já pressupõe uma determinada idéia da p olítica. Mais, por-
tan to, do que op tar p or uma ou p or ou tra, é m elhor d eter-se sobre o
que as m otiva: o nó originário do fato e do d ireito e a relação singu-
lar que ele estabelece entre duas p alavras-chave da p olítica, a igual-
dade e a liberd ad e. A sabed oria "liber al" nos descreve com com p la-
cência os efeitos perversos de uma iguald ad e artificial que vem con-
trariar a liberdade natu ral de empreender e de trocar. Qu anto aos clás-
sicos, encontram , nas origens da p olítica, um fenôm eno de uma p ro-
fundidade totalm ente d iferente: é a liberd ad e, enqu anto propried ad e
vazia, que vem colocar um limite aos cálcu los da iguald ad e m ercante,
aos efeitos da simples lei do deve e do haver. A liberdade vem, em suma,
sep arar a oligarqu ia dela m esm a, im ped i-la de governar pelo simples
jogo aritm ético dos lu cros e das d ívid as. A lei da oligarqu ia é, de fato,
que a igualdade "aritm ética" mande sem entraves, que a riqueza seja
im ed iatam ente id êntica à d om inação. Direm os que os p obres de Ate-
nas eram submetidos ao poder dos nobres, não ao dos mercad ores. Mas
p recisam ente a liberd ad e do povo de Atenas recond uz a d om inação
natural dos nobres, fundada no caráter ilustre e antigo de sua linhagem,
à sua simples d om inação com o ricos p rop rietários e açam barcad ores
da propried ad e com u m . Ela recond u z os nobres à sua cond ição de ri-
cos e transform a seu d ireito absolu to, recond u zid o ao pod er dos ri-
cos, numa axia p articu lar.
Mas o erro da contagem não p ára p or aí. N ão só esse "p r óp r io"
do demos que é a liberd ad e não se d eixa d eterminar por nenhuma pro-
pried ad e p ositiva. Mas ele aind a não lhe é absolu tam ente p róp rio. O
p ovo nad a mais é que a massa ind iferenciad a d aqueles que não têm
nenhum títu lo p ositivo — nem riqu eza, nem virtude — mas qu e, no
en tan to, têm reconhecid a a mesma liberd ad e que aqueles que os pos-
suem. A gente do povo é de fato simplesmente livre como os ou tros.
11
C) Desentend im ento
Ora, é dessa simples id entid ad e com aqueles qu e, p or ou tro lad o, lhes
são em tu d o superiores que eles tiram um títu lo esp ecífico. O demos
atribu i-se, com o sua p arcela p róp ria, a iguald ad e que pertence a to-
dos os cid ad ãos. E, com isso, essa parte que não é parte id entifica sua
propried ad e im p róp ria com o p rincíp io exclu sivo da com u nid ad e, e
id entifica seu nom e — o nom e da massa ind istinta dos hom ens sem
qualid ad e — com o nome da p róp ria com u nid ad e. Isso p orqu e a li-
berdade — que é simplesmente a qualid ad e d aqueles que não têm ne-
nhuma ou tra (nem m érito, nem riqueza) — é ao mesmo tem p o con ta-
da com o a virtud e com u m . Ela permite ao demos — ou seja, o aju n-
tam ento factu al dos homens sem qu alid ad e, desses homens qu e, com o
nos diz Aristóteles, "n ão tom avam p arte em n a d a "3 — id entificar-se
p or hom oním ia com o tod o da com u nid ad e. Tal é o d ano fund am en-
tal, o nó original do blaberon e do adikon, cu ja "m an ifestação" vem
interrom p er tod a d ed ução do útil p ara o ju sto: o povo ap rop ria-se da
qualid ad e com u m com o sua qualid ad e p róp ria. O que ele traz à co-
munidade é, p rop riam ente, o litígio. Devem os entend er isso num du-
plo sentid o: o títu lo que ele traz é uma propried ad e litigiosa, já que
não lhe p ertence p rop riam ente. Mas essa propried ad e litigiosa não é,
apenas, a institu ição de um com u m -litigioso. A massa dos homens sem
propried ad es id entifica-se à com u nid ad e em nom e do d ano que não
cessam de lhe cau sar aqueles cu ja qualid ad e ou propried ad e têm p or
efeito natural relançá-la na inexistência daqueles que não tom am "p arte
em n ad a". É em nome do d ano que lhe é cau sad o pelas ou tras partes
que o povo se id entifica com o tod o da com u nid ad e. Qu em não tem
parcela — os pobres da Antigüidade, o terceiro estado ou o proletariad o
mod erno — não pode mesmo ter ou tra parcela a não ser nad a ou tu d o.
Mas é tam bém med iante a existência dessa p arcela dos sem -p arcela,
desse nad a que é tu d o, que a com u nid ad e existe enqu anto com u nid a-
de p olítica, ou seja, enqu anto dividida por um litígio fu nd am ental, por
um litígio que afeta a contagem de suas p artes antes mesmo de afetar
seus "d ir eitos". O povo não é uma classe entre ou tras. É a classe do
d ano que cau sa d ano à com u nid ad e e a institui com o "com u n id ad e"
do ju sto e do inju sto.
É assim qu e, para grand e escând alo das pessoas de bem , o demos,
esse am ontoad o das pessoas de nad a, torna-se o p ovo, a com u nid ad e
12 Jacqu es Rancière
p olítica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na
Assem bléia, depois do quê os logógrafos escrevem: "Eôo^e xcoÁT| jico":
aprouve ao p ovo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia po-
lítica,* Platão, essa fórm u la d eixa-se facilm ente trad u zir na equivalên-
cia de dois term os: demos e doxa: aprouve àqueles que só conhecem
essas ilusões do mais e do menos cham ad as prazer e d or; houve sim-
ples doxa, "ap arên cia" para o p ovo, ap arência de p ovo. Povo é apenas
a ap arência produzid a pelas sensações de prazer e d or m anejad as pe-
los retóricos e sofistas p ara ad ular ou assustar o grande anim al, a massa
ind istinta das pessoas de nada reunid as na assem bléia.
Digam os de uma vez: o ód io resolu to do antid em ocrata Platão
enxerga com mais ju steza os fu nd am entos da p olítica e da d em ocra-
cia d o que os m ornos am ores desses ap ologistas cansad os que nos ga-
rantem que convém am ar "racion alm en te", quer d izer, "m od erad a-
m en te", a d em ocracia. Pois ele enxerga o que estes esqu eceram : o erro
de cálcu lo da d em ocracia, que em ú ltim a instância é ap enas o erro de
cálcu lo fu nd ad or da p olítica. H á.jgolítica — e não simplesmente d o-
m inação — p orqu e há uma conta m alfeita nas ^áFtTs^o tod o. É es$a
impossível equ ação que a fórm u la atribu íd a por H eród oto ao persa
Otanes resume: "ev yap xco noXXco £vi xa 7tavxa": o tod o está no múl-
tip lo 4 . O demos é o m ú ltip lo id êntico ao tod o: o m ú ltip lo com o um, a
p arte com o tod o. A d iferença qu alitativa inexistente da liberd ad e p ro-
duz essa equ ação im possível, que não se d eixa com p reend er na divi-
são da iguald ade aritm ética que governa a com p ensação dos lu cros e
das perd as e da iguald ad e geom étrica que deve associar uma qu alid a-
de a uma p osição. O povo é y assim , sempre mais ou m enos do que ele
p róp rio. As pessoas de bem d ivertem-se ou afligem -se com tod as as
m anifestações d aqu ilo que para elas é fraud e e u su rp ação: o demos é
a m aioria no lugar da assem bléia, a assem bléia no lugar da com u ni-
d ad e, os p obres em nom e da p ólis, ap lau sos à guisa de acord o, ped ras
contad as no lugar de uma d ecisão tom ad a. Mas tod as essas m anifes^-
tações de desigualdade do povo para com ele mesmo são apenas a moe-
da de troco de um erro de cálcu lo fu nd am ental: essa impossível igual-
dade do m últiplo e do tod o, prod uzid a pela ap rop riação da liberd ad e
com o o que é p róp rio do p ovo. Essa impossível igualdad e arru ina, em
cad eia, tod a a d ed u ção das p artes e títu los que constitu em a p olis.
O Desentend im ento 25
Ora, é dessa simples id entid ad e com aqueles qu e, p or ou tro lad o, lhes
são em tu d o superiores que eles tiram um títu lo esp ecífico. O demos
atribu i-se, com o sua p arcela p róp ria, a iguald ad e que p ertence a to-
dos os cid ad ãos. E, com isso, essa parte que não é parte id entifica sua
propried ad e im p róp ria com o p rincíp io exclu sivo da com u nid ad e, e
id entifica seu nom e — o nom e da m assa ind istinta dos hom ens sem
qualid ad e — com o nom e da p róp ria com u nid ad e. Isso p orqu e a li-
berdade — que é simplesmente a qualid ad e d aqueles que não têm ne-
nhuma ou tra (nem m érito, nem riqu eza) — é ao mesmo tem p o con ta-
da com o a virtud e com u m . Ela permite ao demos — ou seja, o aju n-
tam ento factu al dos homens sem qu alid ad e, desses homens qu e, com o
nos diz Aristóteles, "n ão tom avam p arte em n a d a "3 — id entificar-se
p or hom oním ia com o tod o da com u nid ad e. Tal é o d ano fund am en-
tal, o nó original do blaberon e do adikon, cu ja "m an ifestação" vem
interrom p er tod a d ed ução do útil para o ju sto: o povo ap rop ria-se da
qualid ad e com u m com o sua qualid ad e p róp ria. O que ele traz à co-
munidade é, p rop riam ente, o litígio. Devem os entend er isso num du-
plo sentid o: o títu lo que ele traz é uma propried ad e litigiosa, já que
não lhe p ertence p rop riam ente. Mas essa propried ad e litigiosa não é,
apenas, a institu ição de um com u m -litigioso. A massa dos homens sem
propried ad es id entifica-se à com u nid ad e em nom e do d ano que não
cessam de lhe cau sar aqueles cu ja qu alid ad e ou propried ad e têm p or
efeito natural relançá-la na inexistência daqueles que não tom am "p arte
em n ad a". É em nome do d ano que lhe é cau sad o pelas ou tras p artes
que o povo se id entifica com o tod o da com u nid ad e. Quem não tem
parcela — os pobres da Antigüidade, o terceiro estado ou o proletariad o
mod erno — não pode mesmo ter ou tra parcela a não ser nad a ou tu d o.
Mas é tam bém med iante a existência dessa p arcela dos sem -p arcela,
desse nad a que é tu d o, que a com u nid ad e existe enqu anto com u nid a-
de p olítica, ou seja, enqu anto dividida por um litígio fu nd am ental, por
um litígio que afeta a contagem de suas p artes antes mesmo de afetar
seus "d ir eitos". O povo não é uma classe entre ou tras. É a classe do
d ano que cau sa d ano à com u nid ad e e a institu i com o "com u n id ad e"
do ju sto e do inju sto.
E assim qu e, para grand e escând alo das pessoas de bem , o demos,
esse am ontoad o das pessoas de nad a, torna-se o p ovo, a com u nid ad e
12 Jacqu es Rancière
p olítica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na
Assembléia, depois do quê os logógrafos escrevem: "Eôoí;£XCDÀr| | iCD":
aprouve ao povo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia po-
lítica; Platão, essa fórmula d eixa-se facilmente trad uzir na equivalên-
cia de dois term os: demos e doxa: aprouve àqueles que só conhecem
essas ilusões do mais e do menos chamad as prazer e d or; houve sim-
ples doxa, "ap arên cia" para o povo, aparência de povo. Povo é apenas
a aparência produzida pelas sensações de prazer e d or manejadas pe-
los retóricos e sofistas para adular ou assustar o grande animal, a massa
ind istinta das pessoas de nada reunidas na assembléia.
Digamos de uma vez: o ód io resolu to do antid em ocrata Platão
enxerga com mais justeza os fund amentos da p olítica e da d emocra-
cia do que os m ornos amores desses apologistas cansad os que nos ga-
rantem que convém amar "racion alm en te", quer d izer, "m od erad a-
m en te", a d em ocracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro
de cálcu lo da d em ocracia, que em última instância é apenas o erro de
cálcu lo fundador da p olítica. Há >jpolítica — e não simplesmente do-
m inação — porque há uma conta m alfeita nas pártTs~cfo>torto. É esSa
impossível equ ação que a fórmula atribuíd a por H erócfoío ao persa
Otanes resume: "ev yap xco noXkco evi xa 7iavxa": o tod o está no múl-
tip lo 4. O demos é o múltiplo id êntico ao tod o: o múltiplo com o um, a
parte com o tod o. A diferença qualitativa inexistente da liberdade pro-
duz essa equ ação impossível, que não se d eixa compreend er na divi-
são da igualdade aritm ética que governa a com p ensação dos lucros e
das perdas e da igualdade geométrica que deve associar uma qualid a-
de a uma p osição. O povo é y assim, sempre mais ou menos do que ele
p róp rio. As pessoas de bem divertem-se ou afligem -se com tod às as
m anifestações d aquilo que para elas é fraude e u su rpação: o demos é
a m aioria no lugar da assembléia, a assembléia no lugar da com uni-
d ad e, os pobres em nome da pólis, aplausos à guisa de acord o, pedras
contad as no lugar de uma d ecisão tom ad a. Mas tod as essas m anifesz-
tações de desigualdade do povo para com ele mesmo são apenas a moe-
da de troco de um erro de cálcu lo fund amental: essa impossível igual-
dade do múltiplo e do tod o, produzida pela ap rop riação da liberdade
com o o que é próprio do povo. Essa impossível igualdade arru ina, em
cad eia, tod a a d ed ução das partes e títu los que constitu em a p olis.
O Desentend im ento 25
Dep ois d essa singu lar p rop ried ad e do demos, é a p rop ried ad e d os
aristoi, a virtu d e, que ap arece com o o lugar de um estranho equ ívoco.
Quem são exatam ente essas pessoas de bem ou de excelência que tra-
zem a virtud e p ara o bolo com u m , assim com o o povo traz uma liber-
dade que não é a sua? Se não são o sonho do filósofo, a con ta de seu
sonho de p rop orção transform ad a em p arte do tod o, p od eriam mui-
to bem não passar de ou tro nome para os oligoi, ou seja, simplesmente,
os ricos. O mesmo Aristóteles que se esforça, na Ética a N icômaco ou
no livro III da Política, p or d ar consistência às três partes e aos três
títu los, no-lo confessa sem m istério no livro IV, ou então na Consti-
tuição de A tenas: a polis tem , na verd ad e, apenas duas p artes: os ri-
cos e os p obres. "Qu ase em tod a a p arte, são os abastad os que pare-
cem ocu p ar o lugar das pessoas de b em "5 . É p ortanto aos arranjos que
d istribuem apenas entre essas duas p artes, essas partes irred utíveis da
p olis, os pod eres ou ap arências de p od er, que se deve solicitar a reali-
zação dessa areté com u nitária na qual os aristoi vão, sem pre, faltar.
Será que disso se deve simplesmente entend er que os erud itos cál-
culos da p rop orção geom étrica não passam de constru ções id eais, pelas
quais a boa vontade filosófica busca originariamente corrigir a realidade
prim ária e incontornável da luta de classes? A resposta a essa pergunta
só pode ser dada em dois tempos. Antes de mais nada é preciso enfatizar:
foram os antigos, muito mais que os m od ernos, que reconheceram no
princípio da p olítica a luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram
exatam ente — com o risco de querer apagá-la — sua realidade propria-
mente p olítica. A luta dos ricos e dos pobres não é a realid ad e social
com que a p olítica deveria contar. Ela se confu nd e com sua institu ição.
H á p olítica qu and o existe uma parcela dos sem -p arcela, uma parte ou
um p artid o dos p obres. N ão há p olítica simplesmente porque os po-
bres se op õem aos ricos. Melh or d izend o, é a p olítica — ou seja, a in-
terrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos — que faz os pobres
existirem enqu anto entid ad e. A pretensão exorbitante do demos a ser
o tod o da comunid ad e não faz mais que realizar à sua m aneira — a de
um partido — a cond ição da p olítica. A p olítica existe qu and o a ord em
natu ral da d om inação é interrom pid a pela institu ição de uma parcela
dos sem -p arcela. Essa institu ição é o tod o da p olítica enqu anto form a
específica de víncu lo. Ela define o com um da comunid ad e com o com u -
12 Jacqu es Rancière
nidade p olítica, quer dizer, dividida, basead a num d ano que escapa à
aritm ética das trocas e das rep arações. Fora dessa institu ição, não há
p olítica. H á apenas ord em da d om inação ou desordem da revolta.
É essa pura alternativa que um relato de H eród oto em form a de
apólogo nos apresenta. Esse relato-apólogo exemplar é dedicado à revol-
ta dos escravos dos citas. Os citas, diz ele, têm o hábito de vazar os olhos
daqueles a quem escravizam, para melhor submetê-los à sua tarefa servil,
que é ord enhar o gad o. Essa ordem norm al das coisas viu-se p ertu rba-
da por suas grandes exp ed ições. Para conqu istar o país dos med os, os
guerreiros citas em brenharam -se na Ásia e lá ficaram retid os o p razo
de uma geração. Enqu anto isso, nascera uma geração de filhos de es-
cravos, que cresceu com os olhos abertos. De seu olhar p ara o m u nd o,
haviam conclu íd o que não tinham razões particu lares p ara ser escra-
vos, já que haviam nascid o da mesma maneira que seus senhores dis-
tantes e com os mesmos atribu tos. Confirm ad os, pelas mulheres que
ficaram em casa, nessa identidade de natu reza, eles d ecid iram qu e, até
prova em con trário, eram iguais aos gu erreiros. Em conseqü ência, cer-
caram o território com um grande fosso e arm aram -se p ara esperar de
pé firme a volta dos conquistadores. Quand o estes retornaram , pensaram
que facilmente esm agariam , com suas lanças e arcos, essa revolta de va-
qu eiros. Mas o ataqu e foi um fracasso. Foi então que um guerreiro de
bom conselho avaliou a situação e assim a expôs a seus irmãos de arm as:
O Desentend imento 25
O parad igm a da guerra servil é o de uma realização p u ram ente guer-
reira da iguald ad e dos d om inad os com os d om inantes. Os escravos
dos citas constitu em com o acam p am ento m ilitar o território de sua
antiga servid ão e opõem arm as a arm as. Essa d em onstração igualitá-
ria com eça p or d esconcertar aqueles que se consid eravam seus senho-
res natu rais. Mas, qu and o estes voltam a exibir as insígnias da dife-
rença de natu reza, os revoltad os ficam sem resp osta. O que não po-
dem fazer é transform ar a iguald ad e gu erreira em liberd ad e p olítica.
Essa igu ald ad e, literalm ente m arcad a no território e defendid a pelas
arm as, não cria uma comunid ad e dividida. N ão se transform a na pro-
priedade im p róp ria dessa liberd ad e que institu i o demos ao mesmo
tem p o com o p arte e com o tod o da com u nid ad e. Ora, só há p olítica
m ed iante a in terru p ção, m ed iante a torção p rim ária que institu i a
p olítica com o o d esd obram ento de um d ano ou de um litígio fund a-
m ental. Essa torção é o d ano, o blaberon fu nd am ental encontrad o
pelo p ensam ento filosófico da com u nid ad e. Blaberon significa "o que
detém a corren te", diz uma das etim ologias fantasiosas do Cr atilo7.
Ora, acontece mais de uma vez que essas etim ologias fantasiosas acer-
tem num nó de p ensam ento essencial. Blaberon significa a corrente
interrom p id a, a torção p rim eira que bloqu eia a lógica natu ral das
"p rop ried ad es". Essa interru p ção obriga a pensar a p rop orção, a ana-
logia do corp o com u nitário. Mas tam bém arru ina, por anteced ência,
o sonho dessa p rop orção!
Isso p orqu e o d ano não é simplesmente a luta de classes, a dis-
sensão interna a ser corrigid a d and o-se à polis seu princípio de unida-
d e, fu nd and o-se a pólis sobre a arkhé da com u nid ad e. É a p róp ria im-
possibilid ad e da arkhé. As coisas seriam simples demais se houvesse
apenas a infelicid ad e da lu ta que op õe os ricos e os p obres. A solu ção
do p roblem a foi encontrad a ced o. Basta suprimir a causa da dissen-
são, quer d izer, a desigualdad e das riqu ezas, d and o-se a cad a um uma
p arcela de terra igual. O m al é mais p rofu nd o. Da mesma form a que
o povo não é realm ente o povo mas os p obres, os próprios pobres não
são verdadeiramente os p obres. São apenas o reino da ausência de qua-
lid ad e, a efetivid ad e da d isju nção primeira que porta o nome vazio de
liberd ad e, a propried ad e im p róp ria, o títu lo do litígio. São eles mes-
mos p or antecip ação a u nião torcid a do p róp rio que não é realm ente
28 Jacq u e s Ran ci è re
p róp rio e do com u m que não é realm ente com u m . São simplesmente
o d ano ou a torção constitu tivos da p olítica com o tal. O p artid o dos
p obres não encarna nada mais que a p róp ria p olítica com o institu ição
de uma p arcela dos sem-parcela. Sim etricam ente, o p artid o dos ricos
não encarna nad a mais que o antip olítico. Da Atenas do século V an-
tes de Jesu s Cristo até os governos de hoje em dia> o p artid o dos ricos
sempre terá d ito uma única coisa — que é m u ito exatam ente a nega-
ção da p olítica: não há parcela dos sem-parcela.
Essa p rop osição fund am ental p od e, é claro, m od ular-se de for-
m a d iferente de acord o com o que cham am os a evolu ção dos costu -
mes e das m entalid ad es. N a franqu eza antiga que aind a subsiste nos
"liberais" do século XIX, ela se exp rim e assim: há apenas chefes e su-
bord inad os, pessoas de bem e pessoas de nad a, elites e m ultid ões, pe-
ritos e ignorantes. N os eufemismos contem p orâneos, a proposta enun-
cia-se de m aneira d iferente: há apenas partes da socied ad e: m aiorias e
m inorias sociais, categorias sócio-p rofissionais, grupos de interesses,
comunidades etc. H á apenas partes, das quais devemos fazer p arceiros.
Mas, tanto nas form as policiad as da socied ad e contratu al e do gover-
no de con certação, com o nas form as bru tais da afirm ação igu alitária,
a p rop osta fund amental permanece a m esm a: não há parcela dos sem-
p arcela. Só há as parcelas das p artes. Em ou tras p alavras: não há p o-
lítica ou não deveria haver. A gu erra d os p obres e dos ricos é assim a
gu erra sobre a p róp ria existência da p olítica. O litígio em torn o da
contagem dos p obres com o p ovo, e do povo com o com u nid ad e, é o
litígio em torno da existência da p olítica, devido ao qual há p olítica.
A política é a esfera de atividade de um comum que só pode ser litigioso,
a relação entre as partes que não passam de partid os e títulos cu ja soma
é sempre d iferente do tod o.
É esse o escând alo prim ord ial da p olítica, que a factualid ad e de-
m ocrática pede à filosofia que consid ere. O p rojeto nuclear da filo-
sofia, tal com o se resume em Platão, consiste em su bstitu ir a ord em
aritm ética, a ord em do mais e do m enos que regula a troca dos bens
p erecíveis e d os m ales hu m anos, p ela ord em d ivina da p rop orção
geom étrica que regula o verd ad eiro bem , o bem com u m que é virtu al-
mente a vantagem de cad a um, sem ser a d esvantagem de ninguém.
Uma ciência, a ciência m atem ática, fornece o m od elo d isso, o mod e-
lo de uma ord em do número cu jo p róp rio rigor provém do fato de
escap ar à medida com u m . O cam inho do bem passa pela su bstitu i-
ção da aritm ética dos com erciantes e dos trap aceiros p or uma m ate-
11
C) Desentend im ento
m ática d os incom ensu ráveis. O p roblem a é que há pelo m enos um
cam p o em que a simples ord em d o mais e do menos foi suspensa, sen-
do su bstitu íd a p or uma ord em , p or uma p rop orção esp ecífica. Esse
cam p o se cham a p olítica. A p olítica existe devido a uma grandeza que
escapa à med id a ord inária, essa p arcela dos sem -parcela que é nad a
e tu d o. Essa grand eza p arad oxal já bloqu eou a "corren te" das gran-
dezas m ercantis, suspendeu os efeitos da aritm ética no corp o social.
A filosofia quer su bstitu ir na pólis e na alm a, com o na ciência das su-
p erfícies, d os volumes e dos astros, a iguald ade aritm ética pela igual-
dade geom étrica. Ora, o que a liberdade vazia dos atenienses lhe apre-
senta é o efeito de uma iguald ade d iferente, que suspende a aritm éti-
ca simples sem fu nd am entar nenhum a geom etria. Essa iguald ad e é
sim plesm ente a iguald ad e de qu alqu er um com qu alqu er u m , quer
d izer, em última instância, a ausência de arkhé, a pura contingência
de tod a ord em social. O au tor do Górgias emprega tod a sua raiva em
p rovar que tal igualdad e nad a mais é que a igualdad e aritm ética dos
oligarcas, qu er d izer, a desigualdade do d esejo, o apetite desmedido
que faz girar as alm as vulgares no círcu lo do prazer que o sofrim en-
to acom p anha ind efinid amente e os regimes no círcu lo infernal da oli-
garqu ia, da d em ocracia e da tirania. A "igu ald ad e" que os chefes do
p artid o p op u lar deram ao povo de Atenas é p ara ele apenas a fom e
nu nca saciad a do cad a vez m ais: cad a vez mais p ortos e navios, mer-
cad orias e colônias, arsenais e fortificações. Mas ele sabe m u ito bem
que o mal é m ais p rofu nd o. O mal não é essa fom e insaciável de na-
vios e de fortificações. É qu e, na Assembléia do p ovo, qu alqu er sapa-
teiro ou ferreiro possa levantar-se para d ar sua op inião sobre a ma-
neira de cond u zir esses navios ou de constru ir essas fortificações e,
mais aind a, sobre a m aneira ju sta ou inju sta de usá-los p ara o bem
com u m . O m al não é o cada vez mais mas o qualquer um, a bru tal
revelação da anarquia ú ltim a sobre que rep ou sa tod a hierarqu ia. O
d ebate sobre a natu reza ou a convenção, que op õe Sócrates a Protá-
goras ou a Cálicles, é aind a uma m aneira tranqü ilizad ora de apresen-
tar o escând alo. Pois o fund am ento da p olítica, se não é natu reza, não
é tam p ou co convenção: é au sência de fu nd am ento, é a pura contin-
gência de tod a ord em social. H á p olítica simplesmente porque nenhu-
ma ord em social está fund ad a na natu reza, p orqu e nenhuma lei divi-
na ord ena as socied ad es hu m anas. Tal é a lição que o p róp rio Platão
dá no grand e m ito do Político. É inútil querer bu scar m od elos na era
de Cron os e nos sonhos néscios d os reis p astores. Entre a era de
12
Jacqu es Rancière
Cronos e nós, a incisão do d ano já está sempre p assad a. Qu and o se
decide basear em seu p rincíp io a p rop orção da p ólis, é que a d emo-
cracia já passou p or aí. N osso m u nd o gira "em sentid o con trário" e
quem quiser cu rar a p olítica de seus males terá apenas uma solu ção:
a m entira que inventa uma natu reza social p ara d ar à com u nid ad e
uma arkhé.
Existe p olítica p orqu e — qu and o — a ord em natu ral dos reis
p astores, dos senhores de guerra ou das pessoas de posse é interrom -
pida p or uma liberd ad e que vem atu alizar a iguald ad e última na qu al
assenta tod a ord em social. Antes d o logos que d iscute sobre o útil e
o nocivo, há o logos que ord ena e confere o d ireito de ord enar. Mas
esse logos p rim eiro já está m ord id o p or uma con trad ição p rim eira.
H á ord em na socied ad e p orqu e uns m and am e os ou tros obed ecem .
Mas, p ara obed ecer a uma ord em , são necessárias pelo menos duas
coisas: deve-se compreend er a ordem e deve-se compreend er que é pre-
ciso obed ecer-lhe. E, p ara fazer isso, é preciso você já ser o igual d a-
quele que m and a. E essa iguald ad e que corrói tod a ord em natu ral.
Sem d úvid a, os inferiores obed ecem na quase totalid ad e dos casos.
Resta que p or aí a ord em social é rem etid a à sua contingência ú ltim a.
A d esiguald ad e só é, em ú ltim a in stân cia, possível pela igu ald ad e.
Existe p olítica qu and o pela lógica su p ostam ente natu ral da d om ina-
ção perpassa o efeito dessa iguald ad e. Isso quer dizer que não existe
sempre p olítica. Ela acontece, aliás, m u ito p ou co e raram ente. O que
com u m ente se atribu i à história p olítica ou à ciência do p olítico na
verd ad e d ep end e, com freqü ência m u ito m aior, de ou tras m aqu i-
narias, que por sua vez provêm do exercício da m ajestad e, do vicariato
da d ivind ad e, do com and o dos exércitos ou da gestão dos interesses.
Só existe p olítica qu and o essas m aqu inarias são interrom p id as pelo
efeito de uma p ressu p osição que lhes é totalm ente estranha e sem a
qu al no entanto, em ú ltim a instância, nenhuma d elas pod eria fu ncio-
nar: a p ressu p osição da igualdade de qu alqu er pessoa com qu alqu er
p essoa, ou seja, em d efinitivo, a p arad oxal efetivid ad e da pura con-
tingência de tod a ord em .
Esse segredo ú ltim o da p olítica será enu nciad o p or um "m od er-
n o ", H obbes, com o inconveniente de tê-lo rebatizad o, p ara as neces-
sidades de sua cau sa, de guerra de tod os contra tod os. Os "clássicos",
eles, d eterm inam com m uita p recisão essa iguald ad e, ao mesmo tem -
po em que se esquivam de seu enu nciad o. É que a liberd ad e deles se
d efine em relação a um contrário m u ito esp ecífico, que é a escravatu -
C) Desentend im ento 11
ra. E o escravo é, m uito p recisam ente, aqu ele que tem a cap acid ad e
de com preend er um logos sem ter a cap acid ad e do logos. É essa tran-
sição esp ecífica entre a anim alid ad e e a humanid ad e que Aristóteles
define com exatid ão: "o KO IVCÚV X oyou TO CO UZO V oaov aiaOavecrOca
aX X a /J,ri £%£iv": o escravo é aquele que p articip a da com u nid ad e da
linguagem apenas sob a form a da compreensão (aisthesis), não da posse
(hexis)8. A natu ralid ad e contingente da liberd ad e do hom em do povo
e a natu ralid ad e da escravid ão podem então se d ivid ir, sem rem eter à
contingência final da igualdade. Isso quer dizer, tam bém, que essa igual-
dade pode ser colocad a com o não tendo conseqüências sobre algo com o
a p olítica. É a d em onstração que Platão já havia>ealizad o ao fazer o
escravo de Mén on d escobrir a regra da d u p licação do qu ad rad o. O
fato de o pequeno escravo chegar tão bem qu anto Sócrates a essa ope-
ração que sep ara a ord em geom étrica da ord em aritm ética, que ele
p articip e pois da mesma inteligência, não estabelece em seu favor ne-
nhuma form a de inclu são com u nitária.
Os "clássicos" cercam pois a iguald ade p rim ária d o logos sem
nom eá-la. O que d efinem, em contrap artid a, de uma m aneira que per-
m anecerá incompreensível aos pensad ores m od ernos do con trato e do
estad o de natu reza, é a torção que esse p rincíp io, que não é um prin-
cíp io, produz quand o se efetua com o "liberd ad e" das pessoas de nad a.
Existe p olítica quand o a contingência igu alitária interrompe com o "li-
berd ad e" do povo a ord em natu ral das d om inações, qu and o essa in-
terru p ção produz um d ispositivo esp ecífico: uma d ivisão da socied a-
de em partes que não são "verd ad eiras" p artes; a institu ição de uma
parte que se iguala ao tod o em nome de uma "p rop ried ad e" que não
lhe é absolu tam ente p róp ria, e de um "com u m " que é a com u nid ad e
de um litígio. Tal é em d efinitivo o d ano qu e, passand o entre o útil e
o ju sto, p roíbe qu alqu er d ed ução de um p ara o ou tro. A institu ição
da p olítica é id êntica à institu ição da luta de classes. A luta de classes
não é o m otor secreto da p olítica ou a verd ade escond id a p or trás de
suas ap arências. Ela é a p róp ria p olítica, a p olítica tal com o a encon-
tram , sempre já estabelecid a, os que querem fund ar a comunid ad e com
base em sua arkhé. N ão se deve entend er com isso que a p olítica exis-
ta porqu e grupos sociais entram em luta p or seus interesses divergen-
tes. A torção pela qual existe p olítica é tam bém a que institu i as clas-
12 Jacqu es Rancière
ses com o diferentes de si mesmas. O p roletariad o não é uma classe mas
a d issolu ção de tod as as classes, e nisso consiste sua universalid ad e,
d irá M ar x. Devem os d ar a esse enu nciad o o seu p leno caráter genéri-
co. A p olítica é a institu ição do litígio entre classes que não são ver-
d ad eiram ente classes. Classes "verd ad eiras", isso quer dizer — que-
reria dizer — p artes reais da socied ad e, categorias que corresp ond em
a suas fu nções. O r a, vale p ara o demos ateniense, que se id entifica à
com u nid ad e inteira, o mesmo que vale para o p roletariad o m arxista,
que confessa ser exceção rad ical à com u nid ad e. Um e ou tro unem em
nom e de uma p arte da socied ad e o pu ro títu lo da igualdad e de qu al-
quer um a qu alqu er um, através do qu al tod as as classes se disj ungem
e a p olítica existe. A universalid ad e da p olítica é a de uma d iferença a
si de cad a parte e a do d iferend o com o com u nid ad e. O d ano que ins-
titu i a p olítica não é p rim eiram ente a d issensão das classes, é a d ife-
rença a si de cad a uma que impõe à p róp ria d ivisão do corp o social a
lei da m istu ra, a lei do qu alqu er um fazend o qu alqu er coisa. Platão
tem p ara isso uma p alavra: polypragmosyné, o fato de fazer "m u it o ",
de fazer "d em ais", de fazer qu alqu er coisa. Se o Górgias é a interm i-
nável d em onstração de que a iguald ad e d em ocrática não passa de de-
sigualdade tirân ica, a organização da República é, p or sua vez, uma
caça interm inável a essa polypragmosyné, a essa confu são das ativi-
dades que d estruiria tod a rep artição ord enad a das fu nções da polis e
faria passarem as classes umas pelas ou tras. O livro IV da República,
no m om ento de d efinir a ju stiça — a verd ad eira ju stiça, a que exclu i
o d ano —, nos ad verte solenem ente: essa confu são "cau saria à p olis
o m aior d ano e é com razão que p assaria p or ser crim e m a io r ."9
A p olítica com eça p or um d ano m aior: a suspensão p osta pela
liberd ad e vazia do povo entre a ord em aritm ética e a ord em geom é-
trica. N ão é a utilid ad e com um que pod e basear a com u nid ad e p olíti-
ca, com o tam bém não é o enfrentam ento e a com p osição dos interes-
ses. O d ano pelo qu al existe p olítica não é nenhum erro ped ind o re-
p aração. E a introd u ção de um incom ensu rável no seio da d istribu i-
ção dos corp os falantes. Esse incom ensu rável não rom p e som ente a
iguald ad e dos lu cros e das perd as. Ele arru ina tam bém p or antecip a-
ção o p rojeto da p olis ord enad a segund o a p rop orção do cosmos,
basead a na arkbé da com u nid ad e.
O Desentend im ento 33
O DAN O: POLÍTICA E POLÍCIA
11
C) Desentend im ento
a p olítica. N o âm ago da p olítica, há um duplo d ano, um conflito fun-
d am ental e nu nca consid erad o com o tal em torn o da relação entre a
capacid ad e do ser falante sem propried ade e a capacid ad e p olítica. Para
Platão, a m u ltip licid ad e dos seres falantes anônim os cham ad a povo
prejud ica tod a d istribu ição ord enad a dos corp os em com u nid ad e. Mas
inversamente "p ov o" é o nom e, a form a de su bjetivação, desse d ano
im em orial e sempre atu al pelo qual a ord em social se sim boliza rejei-
tand o a m aioria dos seres falantes para a noite do silêncio ou o baru -
lho animal das vozes que exprim em satisfação ou sofrim ento. Isso p or-
qu e, antes das dívidas que colocam as pessoas de nad a na dependência
dos oligarcas, há a d istribu ição sim bólica dos corp os, que as divide em
duas categorias: aqueles a quem se vê e a quem não se vê, os de quem
há um logos — uma palavra m em orial, uma contagem a m anter —, e
aqueles acerca dos quais não há /ogos, os que falam realmente e aqu e-
les cu ja voz, p ara exp rim ir prazer e d or, apenas im ita a voz articu lad a.
H á p olítica p orqu e o logos nu nca é apenas a p alavra, porque ele é sem-
pre ind issoluvelmente a contagem que é feita dessa p alavra: a conta-
gem pela qual uma emissão sonora é ouvida com o p alavra, apta a enun-
ciar o ju sto, enqu anto uma ou tra é apenas percebid a com o baru lho que
designa prazer ou d or, consentim ento ou revolta.
É o que con ta um pensad or francês do sécu lo XIX ao reescre-
ver o relato feito por Tito Lívio da secessão d os plebeus rom anos no
Aventino. Em 1829, Pierre-Sim on Ballanche p u blica na Revue de Pa-
ris uma série de artigos sob o títu lo de "Fórm u la geral da história de
tod os os p ovos aplicad a à história do povo r om an o". À sua m anei-
ra, Ballanche estabelece um víncu lo entre a p olítica dos "clássicos" e
a dos "m od er n os". O relato de Tito Lívio encad eava o fim da guerra
contra os volscos, a retirad a da plebe p ara o Aventino, a em baixad a
de Menênio Agrip a, a fábu la que o celebrizou e a volta dos plebeus à
ord em . Ballanche censu ra ao historiad or latino sua incap acid ad e de
pensar o acontecim ento a não ser com o revolta, um levante da misé-
ria e da cólera que institui uma relação de forças privad a de sentid o.
Tito Lívio é incap az de conferir sentid o ao conflito porqu e é incap az
de situar a fábu la de Menênio Agripa no seu verd ad eiro con texto: o
de uma querela sobre a qu estão da própria p alavra. Centralizand o seu
relato-ap ólogo nas discussões dos senad ores e nos atos de palavra dos
plebeu s, Ballanche efetua uma reencenação do conflito na qual tod a
a qu estão consiste em saber se existe um p alco com u m onde plebeus
e p atrícios possam d ebater sobre alguma coisa.
12
Jacqu es Ran cière
A p osição dos p atrícios intransigentes é simples: não há por que
d iscutir com os p lebeu s, pela simples razão de que estes não falam . E
não falam p orqu e são seres sem nom e, privad os de /ogos, quer dizer
de inscrição sim bólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual,
que não transm ite nad a, a não ser a p róp ria vid a, reduzida a sua fa-
culd ad e rep rod u tiva. Aquele que não tem nome não pode falar. Um
erro fatal faz o d eputad o Menênio im aginar que da boca dos plebeus
saíssem palavras, qu and o logicam ente só pod eria sair ru íd o.
11
C) Desentend imento
outra divisão do sensível, constituind o-se não com o guerreiros iguais
a outros guerreiros, mas com o seres falantes repartindo as mesmas pro-
priedades daqueles que as negam a eles. Execu tam assim uma série de
atos de palavra que mimetizam os dos patrícios: proferem imprecações
e celebram apoteoses; delegam um dos seus para ir consultar seus orá-
culos; outorgam-se representantes rebatizand o-os. Em suma, com por-
tam-se com o seres que têm nomes. Descobrem -se, ao modo da trans-
gressão, com o seres falantes, d otad os de uma palavra que não expri-
me simplesmente a necessidade, o sofrimento e o fu ror, mas manifesta
a inteligência. Escrevem, diz Ballanche, "u m nome no céu ": um lugar
numa ordem simbólica da comunidade dos seres falantes, numa co-
munidade que ainda não tem efetividade na civitas rom ana.
O relato nos apresenta essas duas cenas e nos m ostra, entre as
duas, observad ores e emissários que circulam — num único sentid o,
é claro: são patrícios atípicos que vêm ver e ouvir o que se passa nes-
sa cena, inexistente por d ireito. E observam este fenômeno incrível:
os plebeus transgred iram, pelo fato, a ordem da cidade. Deram-se no-
mes. Execu taram uma série de atos de palavra que ligam a vida de
seus corpos a palavras e a usos das palavras. Em suma, na linguagem
de Ballanche, de "m ortais" que eram , tornaram -se "h om en s", quer
dizer, seres que empenham em palavras um destino coletivo. Torna-
ram-se seres passíveis de firm ar promessas e de estabelecer contratos.
A conseqüência disso é que, quando Menênio Agripa conta seu apó-
logo, escu tam -no ed ucad amente e agrad ecem , mas para ped ir-lhe,
depois, um tratad o. Ele p rotesta, dizendo que isso é logicamente im-
possível. Infelizmente, diz Ballanche, seu apólogo tinha, num único
d ia, "envelhecid o de um ciclo". A coisa é simples de form u lar: se os
plebeus podiam compreender seu apólogo — o apólogo da necessá-
ria desigualdade entre o princípio vital p atrício e os membros execu-
tantes da plebe —, é que já eram , necessariamente, iguais. O apólogo
quer dar a compreender uma divisão desigualitária do sensível. Ora,
o senso necessário para compreender essa divisão pressupõe uma di-
visão igualitária que destrói a primeira. Mas somente o desenvolvi-
mento de uma cena de m anifestação específica confere, a essa igual-
dade, efetividade. Somente esse dispositivo mede a d istancia do logos
a si mesmo e faz efeito dessa medida, organizand o um ou tro espaço
sensível em que se verifica que os plebeus falam como os patrícios e
que a d om inação destes não tem ou tro fund amento que .1 pura con-
tingência de tod a ordem social.
38 | ncqurs Rancière
O Senad o rom an o, no relato de Ballanche, é anim ad o p or um
Conselho secreto de velhos sábios. Estes sabem qu e, quand o acaba um
ciclo, quer isso nos agrad e, quer não, ele está acabad o. E concluem qu e,
já que os plebeus se tornaram seres de p alavra, nad a mais há a fazer,
a não ser falar com eles. Essa conclu são está em conform id ad e com a
filosofia que Ballanche retom a de Vico: a passagem de uma era da p a-
lavra a ou tra não é uma revolta que se possa rep rim ir, é uma revela-
ção progressiva, cu jos sinais se reconhecem e contra a qual não se lu ta.
Mas o que nos im p orta aqu i, m ais do que essa filosofia d eterm inad a,
é a m aneira com o o ap ólogo situa a relação entre o privilégio do logos
e o jogo do litígio que institui a cena p olítica. Antes de qu alqu er m e-
dida dos interesses e dos títu los de tal ou qual p arte, o litígio refere-se
à existência das p artes com o p artes, a existência de uma relação qu e
as constitui com o tais. E o duplo sentido do logos, com o palavra e com o
contagem , é o lugar ond e se trava o con flito. O ap ólogo do Aventino
p erm ite-nos reform u lar o enu nciad o aristotélico sobre a fu nção p olí-
tica do logos hu m ano e sobre a significação do d ano que ele m anifes-
ta. A p alavra p or m eio da qual existe p olítica é a que mede o afasta-
m ento mesmo da p alavra e de sua contagem . E a aisthesis que se m a-
nifesta nessa p alavra é a p róp ria qu erela em torn o da constitu ição da
aisthesis, sobre a d ivisão do sensível pela qual corp os se encontram em
com u nid ad e. Vam os entend er aqu i d ivisão * no d uplo sentid o da pa-
lavra: com u nid ad e e sep aração. É a relação de am bas que define uma
d ivisão do sensível. E é essa relação que está em jogo no "d u p lo sen-
tid o" do ap ólogo: o que ele faz entend er e o que é necessário p ara
entend ê-lo. Saber se os plebeus falam é saber se existe algo "en tr e" as
p artes. Para os p atrícios, não há cena p olítica já que não há p artes.
N ão há p artes já que os plebeu s, não tend o /ogos, não são. "A des-
graça de vocês é n ão serem ", diz um p atrício aos p lebeu s, "e essa des-
graça é in elu tável."2 É esse o p onto d ecisivo que se vê obscu ram ente
d esignad o na d efinição aristotélica ou na p olêm ica p latônica, mas cla-
ram ente ocu ltad o, em contrap artid a, p or tod as as concep ções cam bis-
tas, contratu ais ou com u nicacionais da com u nid ad e p olítica. A p olí-
tica é p rim eiram ente o conflito em torn o da existência de uma cena
com u m , em torn o da existência e a qualid ad e d aqueles que estão ali
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C) Desentend im ento
presentes. É p reciso antes de mais nad a estabelecer que a cena existe
p ara o uso de um interlocu tor que não a vê e que não tem razões para
vê-la já que ela não existe. As p artes não p reexistem ao con flito, que
elas nom eiam e no qual são contad as com o p artes. A "d iscu ssão" do
d ano não é uma troca — sequer violenta — entre p arceiros constitu í-
d os. Ela diz respeito à p róp ria situ ação de p alavra e a seus atores. N ão
há p olítica p orqu e os hom ens, pelo privilégio da p alavra, põem seus
interesses em com u m . Existe p olítica p orqu e aqueles que não têm di-
reito de ser contad os com o seres falantes conseguem ser con tad os, e
instituem uma com unid ad e pelo fato de colocarem em com u m o d ano
que nad a mais é que o p róp rio enfrentam ento, a contrad ição de dois
mundos alojad os num só: o mund o em que estão e aquele em que não
estão, o mund o ond e há algo "en tr e" eles e aqueles que não os conhe-
cem com o seres falantes e contáveis e o mund o ond e não há nad a. A
facticid ad e da liberd ad e ateniense e o extraord inário da secessão ple-
béia encenam , assim , um conflito fu nd am ental, que é ao mesmo tem -
po m arcad o e abortad o pela guerra servil da Cítia. O conflito separa
dois m od os do estar-ju nto hu m ano, dois tip os de divisão do sensível,
op ostos em seu p rincíp io e no entanto entrelaçad os um no ou tro nas
contagens impossíveis da p rop orção, assim com o nas violências do con-
flito. H á o m od o de estar-ju nto que situa os corp os em seu lugar e nas
suas fu nções segundo suas "p rop ried ad es", segundo seu nom e ou sua
ausência de nom e, o caráter "lóg ico" ou "fô n ico" dos sons que saem
de sua boca. O p rincíp io desse estar-ju nto é simples: dá a cad a um a
p arcela que lhe cabe segundo a evid ência do que ele é. As m aneiras de
ser, as m aneiras de fazer e as m aneiras de dizer — ou de não dizer —
aí remetem exatam ente umas às ou tras. Os citas, ao fu rar os olhos da-
queles que têm de execu tar com as m ãos a tarefa que lhes é m and ad a,
d ão o exem p lo selvagem d isso. Os p atrícios, que não podem ouvir a
p alavra d aqueles que não pod em tê-la, fornecem a sua fórm u la clássi-
ca. Os "p olíticos" da com u nicação e da sondagem qu e, a cad a instante,
d ão a cad a um de nós o esp etácu lo inteiro de um mund o que se tor-
nou ind iferente e a contagem exata d aqu ilo que cad a classe de idade e
cad a categoria sócio-p rofissional pensam do "fu tu ro p olítico" de tal
ou qual m inistro pod eriam ser consid erad os uma fórm u la m od erna
exem p lar d isso. H á p ortan to, de um lad o, essa lógica que con ta as
p arcelas u nicam ente das p artes, que d istribu i os corp os no esp aço de
sua visibilid ade ou de sua invisibilid ade e põe em concord ância os m o-
dos do ser, os m od os do fazer e os m od os do dizer que convém a cad a
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Jacqu es Ran cière
um. E há a ou tra lógica, aqu ela que suspende essa harm onia pelo sim-
ples fato de atu alizar a contingência da iguald ad e, nem aritm ética nem
geom étrica, dos seres falantes qu aisqu er.
N o conflito p rim ário que põe em litígio a d ed u ção entre a cap a-
cid ad e do ser falante qu alqu er e a com u nid ad e do ju sto e do inju sto,
deve-se então reconhecer duas lógicas do estar-ju nto hum ano que ge-
ralm ente se confu nd em sob o nom e de p olítica, qu and o a ativid ad e
p olítica nad a mais é que a ativid ad e que as divide. Cham am os geral-
mente pelo nome de p olítica o con ju n to dos p rocessos pelos qu ais se
op eram a agregação e o consentim ento das coletivid ad es, a organiza-
ção dos p od eres, a d istribu ição dos lugares e fu nções e os sistemas de
legitim ação dessa d istribu ição. Prop onho dar ou tro nom e a essa dis-
tribu ição e ao sistem a dessas legitim ações. Prop onho cham á-la de po-
lícia. Sem d úvid a, essa d esignação coloca alguns p roblem as. A p ala-
vra polícia evoca com u m ente o que cham am os baixa p olícia, os gol-
pes de cassetete das forças da ord em e as inqu isições das p olícias se-
cretas. Mas essa id entificação restritiva pode ser consid erad a contin-
gente. Michel Fou cau lt m ostrou qu e, com o técnica de governo, a p o-
lícia d efinid a pelos au tores do sécu lo XVII e XVIII estend ia-se a tu d o
o que diz resp eito ao "h om em " e à sua "felicid ad e"3 . A baixa p olícia
é apenas uma form a p articu lar de uma ord em mais geral que d ispõe o
sensível, na qu al os corp os são d istribu íd os em com u nid ad e. E a fra-
queza e não a força dessa ord em que incha em certos estad os a baixa
p olícia, até encarregá-la do con ju n to das fu nções de p olícia. Prova
d isso, a contrario, é a evolu ção das socied ad es ocid entais que faz do
p olicial um elem ento de um d isp ositivo social, em que se entrelaçam
o m éd ico, o assistencial e o cu ltu ral. O p olicial está fad ad o nesse con -
texto a tornar-se conselheiro e anim ad or tanto qu anto agente da or-
dem p ú blica e sem dúvida até o seu nome será trocad o um d ia, nesse
p rocesso de eu fem ização pelo qu al nossas socied ad es revalorizam , ao
m enos em im agem , tod as as fu nções trad icionalm ente d esprezad as.
Utilizarei p ortanto a p artir de agora a palavra polícia e o ad jetivo po-
licial num sentid o am p lo, que é tam bém um sentid o "n eu tr o", n ão pe-
jorativo. N em p or isso estou id entificand o a p olícia àqu ilo que é de-
signad o pelo nom e de "ap arelh o de Estad o". A noção de ap arelho de
3 Michel Fou cau lt, "O m n es et singulatim: vers une critiqu e de la raison
p olitiqu e", Dits et Écrits, t. IV, pp. 134-161.
C) Desentend imento 11
Estad o encontra-se de fato ligada à pressuposição de que Estad o e socie-
dade se op õem , sendo o p rim eiro figurad o com o a m áqu ina, o "m on s-
tro frio" que impõe a rigidez de sua ord em à vida da segunda. Ora essa
figu ração já pressupõe uma certa "filosofia p olítica", isto é, uma certa
confu são da p olítica e da p olícia. A d istribu ição d os lugares e fu nções
que define uma ord em p olicial depende tan to da suposta esp ontanei-
dade das relações sociais qu anto da rigidez das fu nções de Estad o. A
p olícia é, na sua essência, a lei, geralm ente im p lícita, que define a par-
cela ou a au sência de p arcela das p artes. Mas, p ara d efinir isso, é pre-
ciso antes definir a configu ração do sensível na qual se inscrevem umas
e ou tras. A p olícia é assim , antes de mais nad a, uma ord em dos cor-
pos que d efine as divisões entre os m od os do fazer, os m od os de ser e
os mod os do d izer, que faz que tais corp os sejam designados p or seu
nome p ara tal lugar e tal tarefa; é uma ord em d o visível e do dizível
que faz com que essa ativid ad e seja visível e ou tra não o seja, que essa
palavra seja entendida com o discurso e outra com o ruíd o. É, p or exem-
p lo, uma lei de p olícia que faz trad icionalm ente do lugar de trabalh o
um esp aço privad o não regid o pelos m od os do ver e dizer p róp rios do
que se cham a o esp aço p ú blico, ond e o ter parcela do trabalhad or é
estritam ente d efinid o pela rem u neração de seu trabalho. A p olícia não
é tanto uma "d iscip lin arização" dos corp os qu anto uma regra de seu
ap arecer, uma con figu ração d as ocupações e d as p rop ried ad es dos
espaços em que essas ocu p ações são d istribu íd as.
Prop onho agora reservar o nome de p olítica a uma atividade bem
d eterm inad a e antagônica à p rim eira: a que rom p e a con figu ração
sensível na qual se definem as p arcelas e as p artes ou sua au sência a
p artir de um pressu posto que p or d efinição não tem cabim ento ali: a
de uma p arcela dos sem -p arcela. Essa ru ptu ra se m anifesta p or uma
série de atos que reconfigu ram o esp aço ond e as p artes, as p arcelas e
as ausências de p arcelas se d efiniam . A ativid ad e p olítica é a que des-
loca um corp o do lugar que lhe era d esignad o ou muda a d estinação
de um lu gar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um dis-
cu rso ali ond e só tinha lugar o baru lho, faz ouvir com o d iscurso o que
só era ou vid o com o baru lh o. Pod e ser a ativid ad e dos plebeus de
Ballanche que fazem uso de uma palavra que "n ã o têm ". Pode ser a
desses op erários do século XI X que colocam em razões coletivas rela-
ções de trabalh o que só dependem de uma infinid ad e de relações in-
dividuais p rivad as. Ou aind a a desses m anifestantes de ruas ou barri-
cad as que literalizam com o "esp aço p ú blico" as vias de com u nicação
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C) Desentend im ento
d ão do Estad o ou o Estad o do cid ad ão oferece, na verd ad e, à p olítica
sua mais simples alternativa: a da simples p olícia. Pois é uma figura-
ção da com u nid ad e p róp ria à p olícia aqu ela que id entifica a cid ad a-
nia com o propried ad e dos indivíduos passível de se d efinir numa re-
lação de m aior ou m enor p roxim id ad e entre o seu lugar e o d o pod er
p ú blico. Qu anto à p olítica, ela não conhece relação entre os cid ad ãos
e o Estad o. Ela conhece apenas d ispositivos e m anifestações singula-
res pelos qu ais às vezes há uma cid ad ania que nunca pertence aos in-
divíduos com o tais.
N ão se deve esquecer tam bém qu e, se a p olítica emprega uma
lógica totalm ente heterogênea à da p olícia, está sempre am arrad a a
ela. A razão disso é simples. A p olítica não tem objetos ou qu estões
que lhe sejam p róp rios. Seu ú nico p rincíp io, a iguald ad e, não lhe é
p róp rio e não tem nad a de p olítico em si m esm o. Tu d o o que ela faz
é d ar-lhe uma atualid ad e sob a form a de caso, inscrever, sob a form a
de litígio, a averifigu ação da igualdade no seio da ord em p olicial. O
que constitu i o caráter p olítico de uma ação não é seu objeto ou o
lugar onde é exercid a mas unicamente sua form a, a que inscreve a ave-
rigu ação da igualdade na institu ição de um litígio, de uma com u ni-
dade que existe apenas pela d ivisão. A p olítica encontra em tod a parte
a p olícia. Aind a se deve pensar esse encontro com o encontro dos he-
terogêneos. Deve-se p ara isso renu nciar ao benefício de alguns con-
ceitos que asseguram por antecip ação a passagem entre os d ois cam -
p os. O conceito de pod er é o p rim eiro desses conceitos. Foi ele que
perm itiu , ou trora, que uma certa boa vontad e m ilitante assegurasse
que "tu d o é p olítico", já que p or tod a p arte há relações de p od er. A
p artir disso podem separar-se a visão som bria de um pod er presente
em tod a p arte e a tod o instante, a visão heróica da p olítica com o re-
sistência ou a visão lúdica dos espaços de afirm ação criad os p or aque-
les e aqu elas que viram as costas à p olítica e a seus jogos de p od er. O
conceito de pod er permite conclu ir de um "tu d o é p olicial" um "tu d o
é p olítico". Ora, a conseqü ência não é boa. Se tu d o é p olítico, nad a
o é. Se então é im p ortante m ostrar, com o Michel Fou cau lt o fez m a-
gistralm ente, que a ord em p olicial se estende p ara muito além de suas
institu ições e técnicas esp ecializad as, é igualm ente im p ortante dizer
que nenhum a coisa é em si p olítica, pelo ú nico fato de exercerem -se
relações de p od er. Para que uma coisa seja p olítica, é preciso que sus-
cite o encontro entre a lógica p olicial e a lógica igu alitária, a qu al
nunca está p reconstitu íd a.
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Jacqu es Ran cière
N enhu m a coisa é então p or si p olítica. Mas qu alqu er coisa pod e
vir a sê-lo se der ocasião ao encontro das duas lógicas. Uma mesma
coisa — uma eleição, uma greve, uma m anifestação — pode d ar ense-
jo à política ou não dar nenhum ensejo. Uma greve não é política quan-
do exige reform as em vez de m elhorias ou qu and o ataca as relações
de au torid ad e em vez da insu ficiência dos salários. Ela o é qu and o
reconfigu ra as relações que d eterm inam o local de trabalho em sua
relação com a com u nid ad e. O lar pôd e se tornar um lugar p olítico,
não pelo simples fato de que nele se exercem relações de pod er mas
p orqu e se viu arguíd o no interior de um litígio sobre a cap acid ad e dás
mulheres à com u nid ad e. Um m esm o conceito — a op inião ou o d irei-
to, p or exem p lo — pode d esignar uma estru tu ra do agir p olítico ou
uma estru tu ra da ord em p olicial. E assim que a mesma p alavra opi-
nião designa dois processos op ostos: a rep rod u ção das legitim ações de
Estad o sob a form a de "sen tim en tos" dos governad os ou a constitu i-
ção de uma cena em que se arm a o litígio desse jogo de legitim ações e
de sentim entos; a escolha entre resp ostas p rop ostas ou a invenção de
uma qu estão que ninguém se colocava. Mas é p reciso acrescentar que
essas p alavras pod em tam bém d esignar, e d esignam na m aioria das
vezes, o p róp rio entrelaçam ento das lógicas. A p olítica age sobre a p o-
lícia. Ela age em lugares e com p alavras que lhes são com u ns, se for
p reciso reconfigu rand o esses lugares e mud and o o estatu to dessas p a-
lavras. O que é habitu alm ente colocad o com o o lugar do p olítico, ou
seja, o con ju n to das institu ições do Estad o, ju stam ente não é um lu-
gar hom ogêneo. Sua configu ração é d eterm inad a p or um estad o das
relações entre a lógica política e a lógica policial. Mas é tam bém , é claro,
o lugar privilegiad o ond e sua d iferença se d issimula na p ressu p osição
de uma relação d ireta entre a arkbé da com u nid ad e e a d istribu ição
das institu ições, das arcbai que efetu am o p rincíp io.
N enhu m a coisa é em si p olítica, pois a p olítica só existe p or um
p rincíp io que não lhe é p róp rio, a iguald ad e. O estatu to desse "p rin -
cíp io" deve ser p recisad o. A iguald ad e não é um d ad o que a p olítica
ap lica, uma essência que a lei encarna nem um objetivo que ela se
p rop õe atingir. E apenas uma p ressu p osição que deve ser d iscernid a
nas p ráticas que a põem em u so. Assim , no ap ólogo do Aventino, a
p ressu p osição igu alitária deve ser d iscernid a até no d iscurso que p ro-
nu ncia a fatalid ad e da d esiguald ad e. Menênio Agripa exp lica aos ple-
beus que eles são apenas os m em bros estúpid os de uma pólis cu jo co-
ração são os p atrícios. Mas, p ara ensinar-lhes assim seu lu gar, deve
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C) Desentend im ento
pressupor que os plebeus entend am seu d iscu rso. Deve pressupor essa
igualdade dos seres falantes que contrad iz a d istribu ição p olicial dos
corp os colocad os em seu lugar e estabelecid os em sua fu nção.
Conced am os, de antem ão, aos espíritos pond erad os, para os quais
igualdade rima com utopia enquanto desigualdade evoca a sadia robus-
teza das coisas natu rais: essa pressu posição é mesmo tão vazia quan-
to eles a d escrevem . N ão tem p or si mesma nenhum efeito p articu lar,
nenhuma consistência p olítica. Pode-se até duvidar de que chegue um
dia a ter esse efeito e essa consistência. Melh or aind a, os que levaram
essa dúvida a seu limite extrem o são os p artid ários mais resolu tos da
iguald ad e. Para que haja p olítica, é preciso que a lógica p olicial e a
lógica igu alitária tenham um p onto de encontro. Essa consistência da
igualdade vazia só pode ser ela mesma uma propried ad e vazia, com o
o é a liberd ad e dos atenienses. A possibilid ad e ou a im possibilid ad e
da p olítica joga-se aí. E tam bém aí que os esp íritos p ond erad os per-
dem seus referenciais: para eles, são as noções vazias de iguald ade e
de liberd ad e que impedem a p olítica. Ora, o p roblem a é estritam ente
o inverso: p ara que haja p olítica, é preciso que o vazio ap olítico da
igualdade de qu alqu er pessoa com qu alqu er pessoa produza o vazio
de uma propried ad e p olítica com o a liberd ad e do demos ateniense. É
uma suposição que se pode rejeitar. Analisei num ou tro trabalho a for-
ma pura dessa rejeição na obra d o teórico da iguald ad e das inteligên-
cias e da em ancip ação intelectu al, Josep h Ja co t o t 4 . Ele opõe rad ical-
mente a lógica da p ressu p osição igu alitária à da agregação d os cor-
pos sociais. Para ele sempre é possível fazer prova dessa igualdade sem
a qu al nenhu m a d esigu ald ad e pod e ser p ensad a, mas sob a estrita
cond ição de que essa prova seja sempre singu lar, que seja a cad a vez
a reiteração do puro traçad o de sua verificação. Essa prova sempre sin-
gular da iguald ade não pode consistir em nenhuma form a de víncu lo
social. A igualdade vira seu con trário, tão logo ela quer inscrever-se
num lugar da organização social e estatal. É assim que a em ancip a-
ção intelectu al não pode institu cionalizar-se sem tornar-se instru ção
do p ovo, isto é, organização de sua m inoria p erp étu a. Assim , os dois
p rocessos devem continu ar absolu tam ente estranhos um ao ou tro,
constitu ind o duas com unid ad es rad icalm ente d iferentes, mesmo que
sejam com p ostas pelos mesmos ind ivíd uos, a com u nid ad e das inteli-
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Jacqu es Rancière
gências iguais e a dos corpos sociais agregados pela ficção desigualitária.
Eles nu nca pod em entrelaçar-se, a não ser transform and o a iguald ad e
em seu con trário. A iguald ade das inteligências, cond ição absolu ta de
tod a com u nicação e de tod a ord em social, não pod eria cau sar efeito
nessa ord em pela liberd ad e vazia de nenhum su jeito coletivo. Tod os
os ind ivíd uos de uma socied ad e pod em ser em ancip ad os. Mas essa
em ancipação — que é o nome mod erno do efeito de igualdade — nunca
prod u zirá o vazio de alguma liberd ad e p ertencente a um demos ou a
qu alqu er ou tro su jeito do mesmo tip o. N a ord em social, não p od eria
haver vazio. H á apenas o p leno, ap enas pesos e contrap esos. A p olíti-
ca não é, assim , o nom e de nad a. N ão pode ser ou tra coisa senão a
p olícia, isto é, a d enegação da iguald ad e. O p arad oxo da em ancip a-
ção intelectual nos permite pensar o nó essencial do logos com o d ano,
a fu nção constitu tiva do d ano para transform ar a lógica igualitária em
lógica p olítica. Ou a igualdade não cau sa nenhum efeito na ord em so-
cial. Ou cau sa efeito sob a form a esp ecífica do d ano. A "liberd ad e"
vazia que faz dos pobres de Atenas o su jeito p olítico demos não é ou tra
coisa senão o encontro das duas lógicas. N ão é ou tra coisa senão o
d ano que institui a com u nid ad e com o com u nid ad e do litígio. A p olí-
tica é a p rática na qu al a lógica do traço igu alitário assume a form a
do tratam ento de um d ano, onde ela se torna o argumento de um d ano
principiai que vem ligar-se a tal litígio d eterminad o na divisão das ocu -
p ações, das fu nções e dos lugares. Ela existe m ed iante su jeitos ou dis-
positivos de su bjetivação específicos. Estes medem os incomensuráveis,
a lógica do traço igu alitário e a da ord em p olicial. Fazem -no unind o
ao nome de tal grupo social o pu ro títu lo vazio da iguald ade de qu al-
quer pessoa com qu alqu er p essoa. Fazem -no sobre-im p ond o à ord em
p olicial que estru tu ra a com u nid ad e uma ou tra com u nid ad e que só
existe p or e para o con flito, uma com u nid ad e que é a do conflito em
torn o da p róp ria existência do com u m entre o que tem parcela e o que
é sem p arcela.
A p olítica é assu nto de su jeitos, ou m elhor, de m od os de sub-
jetivação. Por subjetivação vam os entend er a p rod u ção, por uma sé-
rie de atos, de uma instância e de uma cap acid ad e de enu nciação que
não eram id entificáveis num cam p o de exp eriência d ad o, cu ja id enti-
ficação p ortanto cam inha a par com a reconfigu ração do cam p o da
exp eriência. Form alm ente, o ego sum f ego existo cartesiano é o p ro-
tótip o desses sujeitos indissociáveis de uma série de operações implican-
do a p rod u ção de um novo cam p o de exp eriência. Tod a su bjetivação
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C) Desentend im ento
política se parece com essa fórm u la. Ela é um nos sumus, nos existimus.
O que significa que o su jeito que ela faz existir tem nem mais nem me-
nos que a consistência desse con ju n to de op erações e desse cam p o de
exp eriência. A su bjetivação p olítica produz um m últiplo que não era
d ad o na constitu ição p olicial da com u nid ad e, um múltiplo cu ja con-
tagem se põe com o contrad itória com a lógica p olicial. Povo é o pri-
meiro desses m ú ltiplos que desunem a com unid ad e dela mesma, a ins-
crição p rim ária de um su jeito e de uma esfera de ap arência de su jeito
no fund o do qu al ou tros m od os de su bjetivação propõem a inscrição
de ou tros "existen tes", de ou tros su jeitos do litígio p olítico. Um mod o
de su bjetivação não cria su jeitos ex nihilo. Ele os cria transform and o
identidades definidas na ordem natural da rep artição das funções e dos
lugares em instâncias de exp eriência de um litígio. "O p er ár ios" ou
"m u lh eres" são id entid ad es ap arentem ente sem m istério. Tod o mun-
do vê de quem se trata. Ora, a su bjetivação p olítica arranca-os dessa
evid ência, colocand o a qu estão da relação entre um quem e um qual
na ap arente red u nd ância de uma p rop osição de existência. "M u lh er "
em p olítica é o su jeito de exp eriência — o su jeito d esnatu rad o, des-
fem inizad o — que mede a d istância entre uma p arcela reconhecid a —
o da com p lem entarid ad e sexu al — e uma au sência de p arcela. "O p e-
r á r io", ou m elhor "p r oletár io", é da mesma form a o su jeito que mede
a d istância entre a p arcela do trabalh o com o fu nção social e a ausên-
cia de parcela d aqueles que o execu tam na d efinição do com u m da co-
munid ad e. Tod a su bjetivação p olítica é a m anifestação de um afasta-
mento desse tip o. A bem conhecid a lógica policial que julga que os pro-
letários m ilitantes não são trabalhad ores mas d esclassificad os, e que
as m ilitantes dos d ireitos das mulheres são criatu ras estranhas a seu
sexo tem , afinal de contas, fu nd am ento. Tod a su bjetivação é uma desi-
d entificação, o arrancar à natu ralid ad e de um lu gar, a abertu ra de um
esp aço de su jeito ond e qu alqu er um pode contar-se p orqu e é o espa-
ço de uma contagem dos incontad os, do relacionam ento entre uma
p arcela e uma au sência de p arcela. A su bjetivação p olítica "p roletá-
r ia ", com o tentei m ostrá-lo em ou tro local, não é nenhuma form a de
"cu ltu r a", de ethos coletivo que ganharia voz. Ela pressu põe, ao con-
trário, uma m ultiplicid ad e de fratu ras que sep aram os corp os op erá-
rios de seu ethos e da voz que su postam ente exp rim e sua alm a, uma
m ultiplicid ad e de eventos de p alavra, quer d izer, de exp eriências sin-
gulares do litígio em torno da p alavra e da voz, em torn o da d ivisão
do sensível. A "tom ad a da p alavra" não é consciência e exp ressão de
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Jacqu es Ran cière
um si mesmo que afirm a o seu p róp rio. Ela é ocu p ação do lugar ond e
o logos define ou tra natu reza que a phoné. Essa ocu p ação pressupõe
que d estinos de "trabalh ad ores" sejam de uma m aneira ou de ou tra
d esviad os p or uma exp eriência do p od er d os logoi na qual a revi-
vescência de antigas inscrições p olíticas pode com binar-se com o se-
gred o d escoberto do alexand rino. O anim al p olítico m od erno é antes
de tudo um animal literário, preso no circu ito de uma literaried ad e que
d esfaz as relações entre a ord em das p alavras e a ord em dos corp os
que d eterminavam o lugar de cad a um. Um a su bjetivação p olítica é o
produto dessas linhas de fratura múltiplas pelas quais indivíduos e redes
de indivíduos subjetivam a d istância entre sua cond ição de animais do-
tad os de voz e o encontro violento da iguald ad e do logos5.
A d iferença que a desordem p olítica vem inscrever na ord em p o-
licial pode p ortan to, em prim eira análise, exp rim ir-se com o d iferença
entre uma su bjetivação e uma id entificação. Ela inscreve um nome de
su jeito com o d iferente de tod a parte id entificad a da com u nid ad e. Esse
p onto pode ser ilu strad o p or um episód io histórico, uma cena de pa-
lavra que é uma das prim eiras ocorrências p olíticas do su jeito p role-
tário m od erno. Trata-se de um d iálogo exem p lar, ocasionad o pelo pro-
cesso movid o em 1832 contra o revolu cionário Auguste Blanqu i. Ins-
tad o pelo presid ente do tribu nal a d eclinar sua p rofissão, ele respon-
de sim plesm ente: "p r oletár io". A essa resp osta o presid ente objeta de
p ronto: "Isso não é p rofissão", para logo ouvir o acu sad o rep licar: "É
a p rofissão de trinta m ilhões de franceses que vivem de seu trabalh o e
que são privad os de seus d ireitos p olíticos"6 . O que faz o presid ente
p erm itir que o escrivão anote essa nova "p r ofissão". N essas duas ré-
plicas pode-se resumir tod o o conflito entre a p olítica e a p olícia. Tu d o
aí se liga à dupla acep ção de uma mesma p alavra, profissão. Para o
p rom otor, encarnand o a lógica p olicial, profissão significa ofício: a ati-
vidade que situa um corp o em seu lugar e em sua fu nção. Ora, está
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C) Desentend imento
claro que p roletário não designa nenhum ofício, qu and o m u ito um
estad o vagam ente d efinid o de trabalh ad or braçal miserável qu e, de
qu alqu er form a, não se aju sta ao acu sad o. Mas, com o p olítico revo-
lu cionário, Blanqu i dá à mesma palavra uma acep ção d iferente: uma
p rofissão é uma confissão, uma d eclaração de p ertencim ento a um co-
letivo. Só que esse coletivo tem uma natu reza bem p articu lar. A clas-
se dos p roletários na qual Blanqu i faz p rofissão de alinhar-se não é de
form a algum a id entificável a um grupo social. Os p roletários não são
nem os trabalhad ores braçais, nem as classes laboriosas. São a classe
dos incontad os que só existe na p róp ria d eclaração pela qu al eles se
contam com o os que não são contad os. O nom e p roletário não defi-
ne nem um conju nto de propried ad es (trabalhad or braçal, trabalho in-
d u strial, miséria etc.) que seriam igualmente d etid as p or uma multi-
d ão de ind ivíd uos, nem um corp o coletivo, que encarna um p rincíp io,
do qual esses indivíduos seriam os m em bros. Ele pertence a um pro-
cesso de su bjetivação que é id êntico ao p rocesso de exp osição de um
d ano. A su bjetivação "p roletária" d efine, numa sobre-im p ressão em
relação à m u ltid ão dos trabalhad ores, um su jeito do d ano. O que é
subjetivid ad e não é nem o trabalh o nem a m iséria, mas a pura conta-
gem dos incontad os, a d iferença entre a d istribu ição d esigualitária dos
corp os sociais e a igualdade dos seres falantes.
Essa é tam bém a razão pela qual o d ano exp osto no nome de pro-
letário não se id entifica de form a alguma à figura historicam ente da-
tad a da "vítim a u niversal" e a seu pathos esp ecífico. O d ano exp osto
pelo p roletariad o sofred or dos anos 1830 tem a mesma estru tu ra ló-
gica que o blaberon im p licad o na liberd ad e sem p rincíp ios desse de-
mos ateniense que se id entificava insolentem ente ao tod o da com u ni-
d ad e. Simplesmente essa estru tu ra lógica, no caso da d em ocracia ate-
niense, fu nciona sob sua form a elem entar, na unid ade im ed iata do
demos com o tod o e com o p arte. A d eclaração de p ertencim ento p ro-
letário, em contrap artid a, exp licita o afastam ento entre dois p ovos: o
da com u nid ad e p olítica d eclarad a e o que se define por ser exclu íd o
dessa com u nid ad e. "Demos" é o su jeito da id entid ade da p arte e do
tod o. "Pr oletár io", ao con trário, su bjetiva essa p arcela d os sem -par-
cela que torna o tod o d iferente de si m esm o. Platão insurgia-se contra
esse demos que é a contagem do incontável. Blanqu i inscreve, sob o
nome de p roletários, os incontad os no esp aço em que são contáveis
com o incontad os. A p olítica em geral é feita desses erros de cálculo, é
obra de classes que não são classes, que inscrevem sob o nom e p arti-
12
Jacqu es Rancière
cu lar de uma p arte excep cional ou de um tod o da com u nid ad e (os p o-
bres, o p roletariad o, o p ovo) o d ano que separa e reúne duas lógicas
heterogêneas da com u nid ad e. O conceito de d ano não se liga pois a
nenhuma d ram atu rgia de "vitim ização". Faz p arte da estru tu ra origi-
nal de tod a p olítica. O d ano é simplesmente o m od o de su bjetivação
no qual a verificação da iguald ade assume figura p olítica. H á p olítica
p or cau sa apenas de um universal, a igu ald ad e, a qual assume a figu-
ra específica do d ano. O d ano institu i um universal singu lar, um uni-
versal p olêm ico, vincu land o a ap resentação da iguald ad e, com o p ar-
te dos sem -p arte, ao conflito das p artes sociais.
O d ano fu nd ad or da p olítica é p ortanto de uma natu reza m u ito
p articu lar, que convém d istinguir das figuras às qu ais se costu m a assi-
m ilá-lo, fazend o assim d esaparecer a p olítica no d ireito, na religião ou
na gu erra. Distingu e-se antes de mais nad a do litígio ju ríd ico passível
de se objetivar com o relação entre p artes d eterm inad as, regulável p or
proced imentos ju ríd icos apropriad os. Isso se deve simplesmente ao fato
de que as partes não existem anteriorm ente à d eclaração do d ano. O
p roletariad o não tem , antes do d ano que seu nom e exp õe, nenhum a
existência com o p arte real da socied ad e. Assim , o d ano que ele exp õe
não pod eria ser regulad o sob a form a de um acord o entre p artes. Ele
não pode ser regulad o p orqu e os su jeitos que o d ano p olítico põe em
jogo não são entidades às quais ocorreria acid entalmente esse ou aquele
d ano, mas su jeitos, cu ja p róp ria existência é o m od o de m anifestação
desse d ano. A p ersistência desse d ano é infinita p orqu e a verificação
da iguald ad e é infinita e porqu e a resistência de tod a ord em p olicial a
essa verificação é p rincip iai. Mas, mesmo esse d ano que não é solu-
cionável, nem p or isso é intratável. Ele não se id entifica nem com a
gu erra inexpiável nem com a dívida irresgatável. O d ano p olítico não
se regula — p or objetivação do litígio e com p rom isso entre as p artes.
Mas é tratad o — p or d ispositivos de su bjetivação que o fazem consis-
tir com o relação m od ificável entre p artes, com o m od ificação mesmo
do terreno no qual o jogo é jogad o. Os incom ensu ráveis da iguald ade
dos seres falantes e da d istribu ição dos corp os sociais medem-se um
ao ou tro e essa medida influ encia essa p róp ria d istribu ição. Entre a
regu lação ju ríd ica e a dívida inexp iável, o litígio p olítico revela um in-
conciliável qu e, entretanto, é tratável. Só que esse tratam ento u ltra-
passa tod o d iálogo de interesses respectivos com o tod a recip rocid ad e
de d ireitos e de d everes. Ele passa pela constitu ição de su jeitos especí-
ficos que assumem o d ano, conferem -lhe uma figu ra, inventam suas
C) Desentend im ento 11
form as e seus novos nomes e cond uzem seu tratam ento numa m onta-
gem específica de demonstrações: de argumentos "lógicos" que são ao
mesmo tem p o reagenciam entos da relação entre a palavra e sua con-
tagem , da configu ração sensível que recorta os cam p os e os poderes
do logos e da phoné, os lugares do visível e do invisível, e articu la-os
na repartição das partes e das parcelas. Uma subjetivação política torna
a recortar o cam p o da exp eriência que conferia a cad a um sua id enti-
dade com sua p arcela. Ela d esfaz e recom p õe as relações entre os m o-
dos do fazer, os mod os do ser e os m od os do dizer que definem a or-
ganização sensível da com u nid ad e, as relações entre os espaços onde
se faz tal coisa e aqueles ond e se faz ou tra, as capacid ad es ligad as a
esse fazer e as que são requerid as para ou tro. Ela pergunta se o traba-
lho ou a m aternid ad e, por exem p lo, são assu nto privad o ou assu nto
social, se essa fu nção pública implica uma capacid ad e p olítica. Um su-
jeito p olítico não é um grupo que "tom a con sciên cia" de si, se dá voz,
impõe seu peso na socied ad e. E um op erad or que ju nta e separa as re-
giões, as id entid ad es, as fu nções, as cap acid ad es que existem na con-
figu ração da exp eriência d ad a, quer d izer, no nó entre as divisões da
ord em p olicial e o que nelas já se inscreveu com o iguald ad e, p or frá-
geis e fugazes que sejam essas inscrições. É assim , p or exem p lo, que
uma greve op erária, na sua form a clássica, pode ju ntar duas coisas que
não têm "n ad a a ver" uma com a ou tra: a igualdade p roclam ad a pe-
las Declarações dos Direitos do H om em e um obscu ro tóp ico de ho-
ras de trabalh o ou de regu lam ento da oficina. O ato p olítico da greve
é, então, constru ir a relação entre essas coisas que não têm relação, é
fazer ver ju n to, com o objeto do litígio, a relação e a não-relação. Essa
constru ção im p lica tod a uma série de d eslocam entos na ord em que
define a "p a r te" do trabalh o: ela pressupõe que uma m ultiplicid ad e
de relações de indivíduo (o empregad or) a indivíduo (cada um dos seus
empregad os) seja posta com o relação coletiva, que o lugar privad o do
trabalho seja p osto com o p ertencente ao cam p o de uma visibilid ad e
p ú blica, que o p róp rio estatu to da relação entre o ruído (das m áqu i-
nas, dos gritos ou dos sofrim entos) e a p alavra argu m entativa que
configu ra o lugar e a p arcela do trabalh o com o relação privad a seja
reconfigu rad o. Uma su bjetivação p olítica é uma cap acid ad e de pro-
duzir essas cenas polêm icas, essas cenas p arad oxais que revelam a con-
trad ição de duas lógicas, ao colocar existências que são ao mesmo tem-
po inexistências ou inexistências que são ao mesmo tempo existências.
Foi o que Jean n e Deroin fez de m aneira exem p lar qu and o, em 1849,
12 Jacqu es Rancière
se cand id atou a uma eleição legislativa à qual não p od ia cand id atar-
se, isto é, d em onstrand o a contrad ição de um su frágio universal que
exclu ía o seu sexo dessa universalid ad e. Ela se m ostra e m ostra o su-
jeito "a s m u lheres" com o necessariam ente incluíd o no povo francês
soberano que goza d o su frágio universal e da iguald ade de tod os pe-
rante a lei e ao mesmo tem p o com o rad icalm ente exclu íd o. Essa de-
m onstração não é apenas a denúncia de uma inconseqüência ou de uma
m entira do u niversal. É tam bém a encenação da contrad ição mesma
da lógica p olicial e da lógica p olítica que está no cerne da d efinição
rep u blicana de com u nid ad e. A d em onstração de Jean n e Deroin não é
p olítica no sentid o em que d iria que o lar e a d om esticid ad e são tam -
bém coisa "p olítica". O lar e o esp aço d om éstico não são mais p olíti-
cos em si mesmos que a ru a, a fábrica ou a ad m inistração. Sua demons-
tração é política porque evidencia o extraord inário im bróglio que m ar-
ca a relação republicana entre a parcela das mulheres e a d efinição mes-
m a do com u m da com u nid ad e. A rep ú blica é, ao mesmo tem p o, o re-
gime fund ad o numa d eclaração igu alitária que não conhece d iferença
de sexos e a idéia de uma com p lem entarid ad e das leis e dos costu m es.
Segund o essa com p lem entarid ad e, a p arcela das mulheres é a dos cos-
tumes e da ed u cação pelos quais se form am os espíritos e corações dos
cid ad ãos. A mulher é m ãe e ed u cad ora, não som ente dos fu tu ros ci-
d ad ãos que são seus filhos mas tam bém , e p articu larm ente p ara a mu-
lher p obre, de seu m arid o. O espaço d om éstico é assim ao mesmo tem -
po o espaço privad o, separad o do espaço da cid ad ania, e o espaço com -
preend id o na com p lem entarid ad e das leis e dos costu m es pelos quais
se d efine a realização da cid ad ania. A ap arição indevida de uma mu-
lher na cena eleitoral transform a em m od o de exp osição de um d ano,
no sentid o lógico, esse topos rep u blicano das leis e d os costu m es que
envolve a lógica p olicial na d efinição do p olítico. Constru ind o a uni-
versalid ad e singu lar, p olêm ica, de uma d em onstração, ela faz o uni-
versal da rep ú blica ap arecer com o universal p articu larizad o, torcid o
em sua p róp ria d efinição pela lógica p olicial das fu nções e das p arce-
las. Isso quer d izer, inversam ente, que ela transform a em argu m entos
do nos sumos, nos existimus fem inino tod as essas fu nções, "p rivilégi-
os" e capacid ad es que a lógica p olicial, assim p olitizad a, atribui às mu-
lheres m ães, ed u cad oras, cu rad oras e civilizad oras da classe dos cid a-
d ãos legislad ores.
É assim que o relacionar duas coisas sem relação torna-se a me-
d id a do incom ensu rável entre duas ord ens: a da d istribu ição desi-
11
C) Desentend im ento
gu alitária dos corp os sociais numa d ivisão do sensível e a da cap aci-
dade igual dos seres falantes em geral. Trata-se, m esm o, de incom en-
suráveis. Mas esses incom ensu ráveis estão bem medidos um no ou-
tro. E essa medida refigura as relações das p arcelas e das p artes, os
objetos passíveis de p rovocar litígio, os su jeitos capazes de articu lá-
lo. Ela prod u z, ao mesmo tem p o, inscrições novas da igualdade em
liberd ad e e uma esfera de visibilid ad e nova p ara ou tras d em onstra-
ções. A p olítica não é feita de relações de p od er, é feita de relações
de m u nd os.
12
Jacqu es Rancière
A RAZÃO DO DESEN TEN DIM EN TO
11
C) Desentend im ento
tom am a seu cargo a relação intersubjetiva que sustenta essa compreen-
são. Assim, a pragm ática da linguagem em geral (as cond ições necessá-
rias p ara que um enu nciad o faça sentid o e efeito para quem o emite)
forneceria o telos da troca razoável e ju sta.
Será que é assim que o logos circu la nas relações sociais e nelas
se efetu a: nessa id entid ad e da com p reensão e da intercom p reensão?
Pode-se resp ond er, é claro, que tal id entificação é uma antecip ação,
que ela deve antecip ar uma situ ação id eal, aind a não d ad a, da inter-
locu ção. Conced am os que uma ilocu ção bem-sucedid a antecip a, sem-
pre, uma situ ação de p alavra que aind a não é d ad a. Mas d isto não se
segue, de form a alguma, que o vetor dessa antecip ação seja a identida-
de entre com p reend er e com p reend er. É, ao con trário, a d istância en-
tre duas acep ções de "com p reen d er" que institui a racionalid ad e da
interlocu ção p olítica e fund a o tip o de "su cesso" que lhe é p róp rio:
não o acord o dos p arceiros sobre a rep artição optim al das p arcelas,
mas a m elhor m anifestação da d ivisão. O uso corrente basta de fato
para nos instru ir sobre um fato de linguagem singular: as exp ressões
que contêm o verbo "com p reen d er" contam entre as exp ressões que
devem mais freqü entem ente ser interp retad as de maneira não literal,
e m esm o, o m ais das vezes, ser entend id as estritam ente com o antí-
frases. N o uso social com u m , uma exp ressão com o "Você me com -
p reend eu ?" é uma falsa interrogação cu jo conteú d o afirm ativo é o se-
guinte: "Você não tem nada para com preend er, você não precisa com -
p reen d er", e m esm o, eventu alm ente: "Você não tem con d ições de
com p reend er. Você só tem que obed ecer." Assim , "Você me com -
p reend eu " é uma exp ressão que nos diz que ju stam ente "com p reen -
d er" quer dizer duas coisas d iferentes, senão op ostas: com p reend er
um p roblem a e com preend er uma ord em . N a lógica p ragm ática, o lo-
cu tor é obrigad o, para o sucesso de sua p róp ria performance, a sub-
m etê-la a cond ições de valid ad e que dependem da intercom p reensão.
Caso con trário, cai na "con trad ição p erform ativa", que arru ina a
força de seu enu nciad o. Ora, "Você me com p reend eu ?" é um p erfor-
m ativo que zom ba da "con trad ição p erform ativa", p orqu e sua per-
formance p róp ria, sua m aneira de se fazer com p reend er, é traçar a
linha de d em arcação entre d ois sentid os da mesma palavra e duas ca-
tegorias de seres falantes. Esse p erform ativo dá a entend er àqueles a
quem se dirige que existem pessoas que com preend em os p roblem as
e pessoas que devem compreend er as ordens que as primeiras lhes d ão.
É um d esignad or da d ivisão do sensível que op era, sem ter de con-
12
Jacqu es Rancière
ceitu alizá-la, a d istinção aristotélica entre os que têm apenas a ais-
thesis do logos e os que têm a hexis1.
Dizer isso não é invocar a fatalidade de uma lei do poder que sempre
selaria, por anteced ência, a língua da com u nicação e m arcaria com sua
violência tod a racionalid ad e argu m entativa. É d izer, ap enas, que essa
racionalid ad e p olítica da argu m entação nunca pode ser a mera exp li-
citação do que falar quer dizer. Su bm eter os enu nciad os às cond ições
de sua validad e é colocar em litígio o m od o com o cad a uma das p artes
p articip a do logos. Um a situ ação de argu m entação p olítica deve sem-
pre ser ganha da d ivisão p reexistente, e constantem ente reprod u zid a,
entre uma língua dos p roblem as e de uma língua das ord ens. O engano
do "Você me com p reend eu " não é a noite do pod er em que as cap aci-
dades da argu m entação d esapareceriam — e em p articu lar as da argu-
m entação do d ireito. Mas ela obriga a tornar a cena mais com p lexa.
Assim , a resp osta ao "Você me com p reend eu ?" vai necessariam ente
d esm u ltiplicar-se. O d estinatário dessa ilocu ção vai realm ente resp on-
der refletind o, em vários níveis, o enu nciad o e seu duplo sentid o. Vai
resp ond er, num p rim eiro nível: "Com p reend em os vocês, já que com -
p reend em os." O que quer dizer: "já que com p reend em os suas ord ens,
compartilhamos com vocês o mesmo poder de com p reend er." Mas, num
segundo grau , essa tau tologia se com p lica exatam ente pelo evid enciar
— colocar num com u m litigioso — da d istância pressuposta pela ques-
tão: a d istância entre língua das ord ens e língua dos p roblem as, que é
tam bém a d istância interna do logos: a que separa a com p reensão de
um enu nciad o e a com p reensão da contagem da p alavra de cad a um
que ela im p lica. A resp osta vai então com p licar-se dessa form a: "Com -
preend emos o que você diz qu and o diz Você me com p reend eu ?'. Com -
preend emos que qu and o diz 'você me com p reend eu ', diz na verd ad e:
'n ão precisa me com p reend er, não têm com o me com p reend er, et c.'".
Mas essa com p reensão de segundo grau pode ela mesma ser com -
preend id a e universalizad a de duas m aneiras op ostas, dependendo da
m aneira com o ela articu la a com u nid ad e e a não-com u nid ad e impli-
cad as pelo afastam ento da cap acid ad e falante e da contagem da p ala-
vra. A prim eira m aneira coloca essa contagem em p osição de inter-
p retante último do sentid o do enu nciad o. Ela se resumirá p ortanto as-
sim: "Com p reend em os que vocês utilizam o meio da com u nicação para
nos im p or sua linguagem . Com p reend em os que vocês mentem ao co-
11
C) Desentend im ento
locar com o língua com u m a língua de suas ord ens. Com p reend em os,
em sum a, que tod o universal da língua e da com u nicação é apenas um
logro, que há tão-som ente id iomas de pod er e que d evemos, nós tam -
bém , forjar o n osso". A segunda m aneira raciocinará de form a inver-
sa, fazend o da com unid ad e (de cap acid ad e) a razão última da não-co-
munidade (da contagem ): "Com preend em os que vocês querem d eclarar
a nós que existem duas línguas e que não pod em os com p reend er vo-
cês. Percebem os que vocês fazem isso p ara dividir o mund o entre os
que m and am e os que obed ecem . Dizem os, ao con trário, que há uma
ú nica linguagem que nos é com u m e que conseqü entem ente nós com -
preendemos vocês mesmo que vocês não o qu eiram . Enfim , com preen-
demos que vocês mentem ao negar que existe uma linguagem com u m ".
A resp osta à falsa pergunta "Você me com p reend eu ?" implica
p ortanto a constitu ição de uma cena de p alavra específica em que se
trata de constru ir uma ou tra relação, ao exp licitar a p osição do enun-
ciad or. O enu nciad o assim com p letad o vê-se então extraíd o da situa-
ção de p alavra em que fu ncionava de m aneira natu ral. É colocad o
numa ou tra situ ação em que não fu nciona m ais, em que é objeto de
exam e, entregue ao estatu to de enu nciad o de uma língua com u m . É
nesse esp aço do com entário que objetiva e universaliza o enu nciad o
"fu n cion al" que as pretensões de valid ade desse enu nciad o são rad i-
calm ente p ostas à p rova. N a institu ição do com u m litigioso p róp rio
da p olítica, o cum do comentário que objetiva o afastam ento d o logos
de si m esm o, no afastam ento p olêm ico de uma primeira e de uma ter-
ceira p essoas, não se separa realm ente d aquele da comunicação entre
uma prim eira e uma segunda pessoa. Sem dúvida é a d esconfiança em
relação a essa red ução das pessoas que contraria os esforços feitos por
Juergen H aberm as para distinguir a racionalid ad e argumentativa cria-
d ora de com unid ad e e a simples d iscussão e com p osição dos interes-
ses p articu lares. Em O discurso filosófico da modernidade, ele censu -
ra aqu eles a quem com bate p or tom arem na cena argu m entativa e
com u nicacional o p onto de vista do observad or, da terceira p essoa,
que congela a racionalid ad e com u nicativa, cu jo trabalho se op era no
jogo de uma prim eira pessoa empenhad a em assumir o p onto de vista
da segunda p essoa 2. Mas tal op osição bloqu eia a racionalid ad e ar-
2 "Sob o olhar da terceira pessoa, esteja esse olhar voltad o para o exterior
ou para o interior, tudo se congela em objeto", Le Discours philosophique de la
modernité, Gallim ard , 1988, p. 352.
12
Jacqu es Rancière
gu m entativa da d iscu ssão p olítica na mesma situ ação de palavra que
ele quer u ltrap assar: a simples racionalid ad e do d iálogo dos interes-
ses. Desconhecend o essa d esm u ltip licação das pessoas que se liga à
d esm u ltip licação do logos p olítico, ela esquece tam bém que a terceira
pessoa é tanto uma pessoa de interlocu ção direta e indireta quanto uma
pessoa de observação e de objetivação. Ela esquece que se fala corren-
tem ente com os p arceiros na terceira p essoa, não só nas fórm u las de
tratam ento de várias línguas, mas em tod a parte ond e se trata de pôr
a relação entre os interlocu tores com o o p róp rio cerne da situ ação de
interlocu ção. N osso teatro resume esse jogo em alguns d iálogos exem -
p lares, com o o do cozinheiro/cocheiro de H arp agon e seu intend ente:
O Desentend imento 59
op inião p ú blica política — d istinta da gestão p olicial dos p rocessos
estatais de legitim ação — não é antes de m ais nad a a rede d os espíri-
tos esclarecid os que d iscutem p roblem as com u ns. É, antes, uma opi-
nião eru d ita de tip o p articu lar: uma op inião que ju lga a p róp ria m a-
neira com o as pessoas se falam e com o a ord em social está ligad a ao
fato de falar e à sua interp retação. Por aí, pod e-se com p reend er o laço
histórico entre a fortu na de alguns criad os de com éd ia e a form ação
da p róp ria idéia de op inião p ú blica.
N o âm ago de tod a argu m entação e de tod o litígio argu m entativo
p olíticos, há uma querela p rim eira que incid e sobre aqu ilo im p licad o
pelo entend im ento da linguagem. Certam ente, tod a interlocu ção su-
põe uma com p reensão de um conteú d o da ilocu ção. Mas qu e essa
com p reensão pressuponha um telos da intercom p reensão, eis a ques-
tão litigiosa. Por "qu estão litigiosa" se qu er dizer duas coisas. Primei-
ram ente, há aí uma p ressu p osição que aind a tem os de p rovar. Mas,
tam bém , é p recisam ente este o litígio p rim eiro que está em jogo p or
trás de tod o litígio argu m entativo p articu lar. Tod a situ ação de inter-
locu ção e de argu m entação está de saíd a fragm entad a pela qu estão li-
tigiosa — irresolvid a e conflitu osa — de saber o que se deduz do en-
tend im ento de uma linguagem .
Desse entend im ento, com efeito, pod e-se deduzir alguma coisa
ou então nad a. Do fato de uma ord em ser com preend id a p or um infe-
rior pod e-se deduzir simplesmente que essa ord em foi bem d ad a, que
quem ord ena teve pleno sucesso no seu trabalho p róp rio e conseqü en-
tem ente quem recebe a ord em execu tará bem o seu trábalh o que é um
p rolongam ento d aqu ele, de acord o com a d ivisão entre a simples ais-
thesis e a plenitud e da hexis. Mas tam bém se pode deduzir uma con-
seqüência totalm ente d esconcertante: se o inferior com preend eu a or-
dem do su p erior, é que ele p articip a da mesma com u nid ad e dos seres
falantes, que é, nisso, seu igu al. Ded uz-se d aí, em sum a, que a desi-
gualdade d os níveis sociais só fu nciona p or cau sa da p róp ria iguald a-
de dos seres falantes.
Essa d ed u ção é, no sentid o p róp rio do term o, d esconcertante.
Qu and o nos lem bram os de fazê-la, de fato, já havia m uito tem p o que
as socied ad es giravam . E giram em torn o da idéia de que o entend i-
m ento da linguagem não tem conseqü ência p ara a d efinição da ord em
social. Elas and am com suas fu nções e suas ord ens, suas rep artições
das p arcelas e das p artes, com base na idéia que parece confirm ad a
pela lógica mais simples, ou seja, de que a desigualdad e existe em vir-
12
Jacqu es Ran cière
tude da d esiguald ad e. A conseqü ência disso é que a lógica do enten-
dimento "n orm alm en te" só se apresenta sob a forma do p arad oxo des-
concertante e do conflito interminável. Dizer que há uma cena comum
da p alavra porque o inferior entend e o que diz o su p erior só é possí-
vel med iante a institu ição de um d iscord e, de um enfrentam ento de
princípio entre dois cam pos: há os que pensam que existe entendimento
no entend imento, isto é, que tod os os seres falantes são iguais enquanto
seres falantes. E há os que não pensam assim . Mas o p arad oxo reside
no seguinte: os que pensam que existe entend im ento no entend im en-
to precisamente só podem fazer valer essa d ed ução a não ser sob a for-
ma do con flito, do d esentend im ento, já que devem fazer ver uma con-
seqüência que nad a d eixa ver. Por esse fato, a cena p olítica, a cena de
comunid ad e p arad oxal que põe em com u m o litígio, não pod eria iden-
tificar-se com um m od elo de com u nicação entre p arceiros constitu í-
dos sobre objetos ou fins pertencentes a uma linguagem com u m . Isso
não implica remetê-la a uma incomunicabilid ad e das linguagens, a uma
im possibilid ad e de entend im ento ligad a à heterogeneid ad e dos jogos
de linguagem. A interlocu ção p olítica sempre m isturou os jogos de lin-
guagem e os regimes de frases e sempre singularizou o universal em
seqüências d em onstrativas feitas do encontro dos heterogêneos. Com
jogos de linguagem e regimes de frases heterogêneos, sempre se cons-
tru íram intrigas e argu m entações com p reensíveis. Porqu e o p roblem a
não é se entend erem pessoas que falam , no sentid o p róp rio ou figu ra-
d o, "língu as d iferen tes", nem rem ed iar "p an es da lingu agem " pela
invenção de linguagens novas. O p roblem a está em saber se os su jei-
tos que se fazem con tar na interlocu ção "s ã o " ou "n ã o sã o ", se falam
ou prod uzem ru íd o. Está em saber se cabe ver o objeto que eles desig-
nam com o o objeto visível do conflito. Está em saber se a linguagem
com u m na qual exp õem o d ano é, realm ente, uma linguagem com u m .
A qu erela não tem p or objeto os conteú d os de linguagem mais ou me-
nos transp arentes ou op acos. Incid e sobre a consid eração dos seres fa-
lantes com o tais. E p or isso que não se trata de op or uma era mod er-
na do litígio, ligada à grand e narrativa de ontem e à d ram atu rgia da
vítim a universal, a uma era m od erna do d iferend o, ligada ao esface-
lam ento contem p orâneo dos jogos de linguagem e d os pequenos con-
tos 3 . A heterogeneid ad e dos jogos de linguagem não é um d estino das
C) Desentend imento 11
socied ad es atu ais que viria suspender a grand e narrativa da p olítica.
Ela é, ao con trário, constitu tiva da p olítica, é o que a separa da igual
troca ju ríd ica e com ercial de um lad o, da alterid ad e religiosa ou guer-
reira de ou tro.
Tal é o sentid o da cena no Aventino. Essa cena excep cional não
é apenas uma "n arrativa de origem ". Essa "or igem " não p ára de re-
p etir-se. A narrativa de Ballanche ap resenta-se sob a form a singular
de uma p rofecia retrosp ectiva: Um m om ento da história rom ana é
reinterpretad o de m aneira a transform á-lo em p rofecia do d estino his-
tórico dos povos em geral. Mas essa p rofecia retrosp ectiva é tam bém
uma antecip ação do fu tu ro im ed iato. O texto de Ballanche aparece
na Revue de Paris entre a prim avera e o ou tono de 1830. Entre essas
duas d atas estou ra a revolu ção parisiense de ju lho, que p ara m uitos
p arece a d em onstração hic et nunc dessa "fórm u la geral de tod os os
p ovos" de que falava Ballanche. E essa revolu ção é seguida por tod a
uma série de m ovim entos sociais que afetam exatam ente a mesma
form a de seu relato. O nom e dos atores, do cenário e dos acessórios
pode m u d ar. Mas a fórm u la é a mesma. Ela consiste em criar, em tor-
no de tod o conflito singu lar, uma cena ond e se põe em jogo a igual-
dade ou desigualdad e dos p arceiros do conflito enqu anto seres falan-
tes. Sem d úvid a, na ép oca em que Ballanche escreve seu ap ólogo, não
se diz m ais que os equ ivalentes dos plebeu s antigos, os p roletários
m od ernos, não são seres falantes. Sim plesm ente, pressupõe-se que o
fato de falarem não tem relação com o fato de trabalharem . N ão se
precisa exp licitar a não-conseqü ência, basta que não se veja a conse-
qü ência. Os que fazem fu ncionar a ord em existente, com o p atrões,
magistrad os ou governantes, não vêem a conseqü ência que leva de um
term o ao ou tro. N ão vêem o meio term o entre duas id entid ad es que
poderia reunir o ser falante, que com -p artilha uma linguagem com u m ,
e o op erário que exerce uma p rofissão d eterm inad a, é em p regad o
numa fábrica ou trabalha p ara um fabricante. Eles não vêem , conse-
qü entem ente, com o a p arcela recebid a p or um op erário sob o nom e
de salário pod eria tornar-se uma qu estão da com u nid ad e, objeto de
uma d iscu ssão p ú blica.
A qu erela tem p or objeto, p ortan to, sempre a qu estão pré-ju d i-
cial: o mund o com u m de uma interlocu ção sobre esse assu nto cabe ser
constitu íd o? E o d esentend im ento que se instala nos anos que se se-
guem ao ap ólogo de Ballanche, esse d esentend im ento que se cham ará
m ovim ento social ou m ovim ento op erário, consistiu em dizer que esse
12 Jacqu es Rancière
mund o com u m existia; que a qualid ad e com u m ao ser falante em ge-
ral e ao op erário empregad o em tal fu nção d eterm inad a existia; e que
essa qualid ad e com u m era tam bém com u m aos op erários e a seus em-
p regad ores, que era a sua p ertença a uma mesma esfera de com u nid a-
de já reconhecid a, já escrita — mesmo que fosse em inscrições id eais
e fugazes: a da d eclaração revolu cionária da iguald ad e, em d ireito, dos
hom ens e dos cid ad ãos. O d esentend im ento d estinad o a p ôr em ato o
entend im ento consistiu no seguinte: afirm ar que a inscrição da igual-
dade sob a form a de "igu ald ad e dos hom ens e dos cid ad ãos" p erante
a lei d efinia uma esfera de com u nid ad e e pu blicid ad e que incluía os
"assu n tos" do trabalh o e d eterminava o espaço de seu exercício com o
dependente da d iscu ssão p ú blica entre su jeitos esp ecíficos.
Ora, essa afirm ação implica uma cena de argu m entação m u ito
singular. O sujeito op erário que nela se d eixa contar com o interlocu tor
deve fazer como se a cena existisse, com o se houvesse um mundo co-
mum de argu m entação, o que é em inentem ente razoável e em inente-
mente d esarrazoad o, eminentemente com portad o e eminentemente sub-
versivo, já que esse mund o não existe. As greves desse tem p o tiram da
exasp eração desse p arad oxo sua estrutura discursiva singular: aplicam-
se a m ostrar que é realm ente enqu anto seres falantes racionais que os
op erários fazem greve, que o ato que os faz p arar ju ntos o trabalho
não é um ruído, uma reação violenta a uma situ ação p enosa, mas que
exp rim e um logos, o qual não é apenas o estad o de uma relação de
forças mas constitu i uma demonstração de seu d ireito, uma manifes-
tação do ju sto que pod e ser com p reend id o pela ou tra p arte.
Os m anifestos op erários desse tem p o ap resentam assim uma no-
tável estru tu ração d iscu rsiva, cu jo p rim eiro elem ento pod e ser assim
esqu em atizad o: "Eis nossos argu m entos. Vocês p od em , ou , m elhor,
"eles" podem reconhecê-los. Qu alqu er um pode recon h ecê-los": de-
m onstração d irigid a ao mesmo tem p o ao "eles" da op inião p ú blica e
ao "eles" que lhe é assim d esignad o. É claro, esse reconhecim ento não
ocorre, porque o que ele mesmo pressupõe não é reconhecid o, ou seja,
que h aja um mund o com u m , sob a form a de um esp aço p ú blico em
que d ois grupos de seres falantes, os chefes e os op erários, trocariam
seus argu m entos. Ora, o mundo do trabalho é su p ostam ente um uni-
verso privad o em que um indivíduo p rop õe cond ições a n ind ivíd uos
qu e, cad a um p or sua con ta, as aceitam ou recu sam . Os argu m entos,
p or consegu inte, não podem mais ser recebid os, já que são d irigid os
p or su jeitos que não existem a su jeitos que tam p ou co existem , a p ro-
11
C) Desentend im ento
p ósito de um objeto com u m igualmente inexistente. En tão o que há é
apenas uma revolta, um ruíd o de corp os irritad os. E basta esperar que
pare ou pedir à au torid ad e que o faça p arar.
A estru tu ração d iscursiva do conflito enriquece-se então de um
segund o elem ento, de um segundo m om ento que se enu ncia assim :
"Tem os razão de argu m entar em favor de nossos d ireitos e de colo-
car, assim , a existência de um mundo com u m de argu m entação. E te-
mos razão de fazê-lo, exatam ente p orqu e os que deveriam reconhecê-
lo não o fazem, pois agem com o pessoas que ignoram a existência desse
mund o com u m ". E nesse segundo m om ento da estru tu ra argumen-
tativa que a fu nção objetivante do com entário desempenha um papel
essencial. Os m anifestos op erários da ép oca com entam a palavra dos
chefes que só se exerce p ara cham ar a repressão dos pod eres p ú blicos,
a p alavra dos m agistrad os que cond enam e a dos jornalistas que co-
m entam , para d em onstrar que seus p rop ósitos vão ao encontro da evi-
dência de um mundo com u m da razão e da argu m entação. Dem ons-
tram assim que as falas dos chefes ou dos m agistrad os, que negam aos
op erários o d ireito de greve, são uma confirm ação desse d ireito, já que
tais falas implicam uma não-com u nid ad e, uma desigualdade que é im-
possível, contrad itória. Se a "con trad ição p erform ativa" pode inter-
vir aqu i, é no cerne dessa cena argu m entativa que deve prim eiram en-
te ignorá-la, p ara evid enciar sua ignorância.
Vejam os, então, uma situ ação de d esentend im ento desse tip o,
trad u z em um conflito op erário a cena ballanchiana. A argu m enta-
ção situa p rim eiram ente, p ara uso da terceira pessoa da op inião pú-
blica, a cena do d esentend im ento, ou seja, a própria qu alificação da
relação entre as partes: ruído da revolta ou palavra que exp õe o d ano.
12
Jacqu es Rancière
O tom da carta dos chefes que qu alifica a m anifestação grevista
de revolta ju stifica essa m anifestação, já que m ostra que os chefes não
falam d aqueles que empregam com o seres falantes unid os a eles p elo
entend im ento da mesma linguagem , mas com o anim ais baru lhentos
ou escravos capazes apenas de com p reend er ord ens, já que ela m os-
tra assim que a não-consid eração im plicad a em sua m aneira de falar
é um não-d ireito. Estand o então arm ad a a cena do d esentend im ento,
é possível argu m entar como se estivesse ocorrend o essa d iscussão en-
tre p arceiros que é recusad a pela ou tra p arte, em su m a, estabelecer,
p or raciocínio e cálcu lo, a valid ad e das reivind icações op erárias. Um a
vez estabelecid a essa d em onstração do "d ireito" dos grevistas, é p os-
sível acrescentar-lhe uma segunda, tirad a exatam ente da recusa de levar
em consid eração esse d ireito, de acolhê-lo com o uma palavra que conte.
Esse "já os com p reend em os" resume bem o que é com p reend er,
numa estrutura política de desentendimento. Essa compreensão implica
uma estru tu ra de interlocu ção com p lexa que reconstitu i, duas vezes,
uma cena de com u nid ad e duas vezes negad a. Mas essa cena de com u -
nidade só existe na relação de um "n ó s" com um "eles". E essa rela-
ção é tam bém de fato uma não-relação. Ela inclui por duas vezes na
situ ação de argu m entação aquele que lhe recusa a existência — e que
é ju stificad o, pela ord em existente das coisas, em recusar sua existên-
cia. Ela o inclui uma prim eira vez, sob a su p osição de que está de fato
com p reend id o na situ ação, de que é cap az de entend er o argu m ento
(e que aliás o entend e, já que não encontra nada para lhe respond er).
Ela o inclui ali com o a segunda pessoa im plícita de um d iálogo. E ela
o inclui uma segunda vez na d em onstração do fato de que ele se sub-
trai a essa situ ação, de que não quer entend er o argu m ento, op erar as
nom eações e as d escrições ad equ ad as a uma cena de d iscussão entre
seres falantes.
Em tod a d iscussão social em que há efetivam ente algo a d iscu tir
é essa a estru tu ra que está im p lícita, essa estru tu ra na qual o lu gar, o
11
O Desentend imento 101
objeto e os su jeitos da d iscussão estão, eles p róp rios, em litígio e têm
prim eiro de ser testad os. Antes de qu alqu er confronto de interesses e
de valores, antes de qu alqu er submissão de afirm ações a pedidos de
valid ad e entre p arceiros constitu íd os, há o litígio em torno do objeto
do litígio, o litígio em torno da existência do litígio e das partes que
nele se enfrentam . Pois a idéia de que os seres falantes são iguais por
sua cap acid ad e com u m de falar é uma idéia razoável/d esarrazoad a,
d esarrazoad a em relação à maneira com o se estruturam as socied ad es,
desde as antigas realezas sagrad as até as m od ernas socied ad es de pe-
ritos. A afirm ação de um mund o comum efetua-se assim numa ence-
nação p arad oxal que coloca ju ntas a com u nid ad e e a não-com u nid a-
de. E uma tal con ju n ção remete sempre ao p arad oxo e ao escând alo
que p ertu rba as situ ações legítimas de com u nicação, as divisões legí-
tim as dos mund os e das linguagens, e red istribu i a maneira com o os
corp os falantes estão d istribu íd os numa articu lação entre a ord em do
d izer, a ord em do fazer e a ord em do ser. A demonstração d o d ireito
ou manifestação do ju sto é refigu ração da divisão do sensível. N os ter-
mos de Ju ergen H aberm as, essa d em onstração é indissoluvelmente um
agir com u nicacional que p õe em jogo as p retensões de valid ad e de
certos enu nciad os e um agir estratégico que d esloca a relação de for-
ças, d eterm inand o a ad missibilid ad e dos enu nciad os com o argumen-
tos sobre sobre uma cena com u m . É que essa com u nicação escapa tam-
bém às d istinções que fund am as regras supostas "n or m ais" da dis-
cu ssão. Ju ergen H aberm as insiste, em O discurso filosófico da moder-
nidade na tensão entre d ois tip os de atos de linguagem : linguagens
"p oéticas" de abertu ra p ara o mundo e form as intram u nd anas de ar-
gu m entação e valid ação. Ele reprova àqueles que critica o fato de des-
conhecerem essa tensão e a necessid ade de que as linguagens estéticas
de abertu ra para o mundo tam bém se legitimem no interior das regras
da ativid ad e com u n icacion al 6. Mas exatam ente a demonstração pró-
pria da p olítica é sempre, a um só tempo argu m entação e abertu ra do
mundo no qual a argu m entação pode ser recebid a e fazer efeito, ar-
gu m entação sobre a p róp ria existência desse mund o. E é aí que se joga
a questão do universal antes de se jogar nas questões da universalização
possível ou impossível dos interesses e de averigu ação das form as da
12
100 Jacqu es Rancière
argu m entação numa situ ação suposta norm al. O prim eiro pedido de
universalid ad e é o da pertença universal dos seres falantes à com u ni-
dade da linguagem. E ele sempre é tratad o em situ ações "an orm ais"
de com u n icação, em situ ações que instau ram casos. Essas situ ações
p olêm icas são aquelas em que um dos p arceiros da interlocu ção se re-
cusa a reconhecer um de seus elem entos (seu lu gar, seu objeto, seus
su jeitos...). N elas, o universal sempre está em jogo de m aneira singu-
lar, sob a form a de casos em que sua existência e sua pertença estão
em litígio. Ele sempre está em jogo de m aneira local e p olêm ica, ao
mesmo tem po com o aqu ilo que obriga e com o aqu ilo que não obriga.
E p reciso antes de tu d o reconhecer e fazer reconhecer que uma situ a-
ção apresenta um caso de universalid ad e que obriga. E esse reconhe-
cim ento não au toriza a separar uma ord em racional da argu m entação
e uma ord em p oética, senão irracional, do com entário e da m etáfora.
Ele é prod uzid o p or atos de linguagem que são, a um só tem p o, argu-
m entações racionais e m etáforas "p oéticas".
Deve-se na verdade d izer, p arafraseand o Platão, "sem com isso
se assu star": as form as de interlocu ção social que fazem efeito são, a
um só tem p o, argu m entações numa situ ação e m etáforas dessa situ a-
ção. O fato de a argu m entação ter com u nid ad e com a m etáfora e a
m etáfora com a argu m entação, isso em si não acarreta nenhuma das
conseqü ências catastróficas por vezes d escritas. Essa comunid ad e não
é uma d escoberta da exau rid a mod ernid ade que d enunciaria a univer-
salid ad e da d iscussão e do conflito sociais com o send o o artefato p ro-
duzido por um grande relato. A argumentação que encadeia duas idéias
e a m etáfora que faz ver uma coisa numa ou tra sempre tiveram co-
munid ad e. Sim plesm ente, essa com u nid ad e é mais ou menos forte em
fu nção dos cam pos de racionalid ad e e as situações de interlocu ção. H á
cam p os em que ela pode reduzir-se até a extenu ação. São os cam p os
em que a p ressu p osição do entend im ento não é p roblem ática, em que
se pressupõe ou que tod os se entend em ou podem entend er-se sobre o
que dizem, ou que isso não tem nenhuma im portância. O primeiro caso
é o das linguagens sim bólicas que não remetem a nad a de exterior a
elas m esm as, o segundo é o da tagarelice que pode remeter livremente
a qu alqu er coisa. H á cam p os, em contrap artid a, em que essa com u ni-
dade atinge o seu m áxim o. São aqueles onde a pressu posição do en-
tend im ento está em litígio, em que é preciso prod uzir ao mesmo tem -
po a argu m entação e a cena em que ela deve ser entend id a, o objeto
da d iscussão e o mund o em que figura com o objeto.
101
O Desentend im ento
A interlocu ção p olítica é, p or excelência, um tal cam p o. N o que
se reíe ao p róp rio nó do logos e de sua consideração com a aisthesis
— a d ivisão do sensível —, sua lógica da demonstração é ind issolu-
velmente uma estética da manifestação. A p olítica não sofreu , recen-
tem ente, a d esgraça de ser estetizad a ou esp etacu larizad a. A configu -
ração estética na qual se inscreve a palavra do ser falante sempre cons-
tituiu o p róp rio cerne do litígio que a p olítica vem inscrever na or-
dem p olicial. Isso m ostra o qu anto é falso id entificar a "estética" ao
cam p o da "au to-referen cialid ad e" que d esconcertaria a lógica da
interlocu ção. A "estética" é, ao con trário, o que coloca em com u ni-
cação regimes separad os de exp ressão. O que é verd ad e, em contra-
p artid a, é que a história m od erna das form as da p olítica está ligada
às m u tações que fizeram a estética ap arecer com o d ivisão do sensível
e discurso sobre o sensível. O aparecimento mod erno da estética com o
d iscurso au tônom o que d etermina um recorte au tônom o do sensível
é o aparecim ento de uma ap reciação do sensível que se separa de tod o
ju lgam ento sobre seu uso e define assim um mundo de com u nid ad e
virtual — de com u nid ad e exigid a — sobre-im p resso no mundo das
ordens e das partes que dá a cad a coisa seu uso. Que um p alácio possa
ser o objeto de uma ap reciação que não recai nem sobre a com od i-
dade de uma habitação nem sobre os privilégios de uma fu nção ou
os em blem as de uma m ajestad e, eis o que p ara Kant singulariza a co-
munidade estética e a exigência de universalid ade que lhe é p róp ria 7.
A estética assim autonomizad a é em primeiro lugar a em ancipação das
normas da rep resentação, em segundo lugar a constitu ição de um tipo
de com u nid ad e do sensível que fu nciona sob o m od o da p resu nção,
do como se que inclui aqueles que não estão inclu íd os, ao fazer ver
um m od o de existência do sensível su btraíd o à rep artição das partes
e das p arcelas.
N ão hou ve, en tão, "estetização" da p olítica na era m od erna,
porque esta é estética em seu p rincíp io. Mas a au tonom ização da es-
tética com o um novo nó entre a ord em do logos e a d ivisão do sensí-
vel faz p arte da configu ração mod erna da p olítica. A p olítica antiga
arm ava-se com base em noções ind istintas com o essa doxa, essa apa-
rência que institu ía o povo em p osição de su jeito decisor da com u ni-
d ad e. A p olítica m od erna arm a-se, p rim eiro, nessa d istinção de uma
100
Jacqu es Rancière
comunid ad e sensível virtual ou exigível, acim a da d istribu ição das or-
dens e das fu nções. A p olítica antiga exigia o ú nico conceito de de-
mos e de suas propried ad es im p róp rias, que abrem o espaço p ú blico
com o espaço do litígio. A p olítica mod erna exige a m u ltip licação des-
sas op erações de su bjetivação que inventam mund os de com u nid ad e,
que são mundos de d issentimento, exige esses dispositivos de demons-
tração que são, a cad a vez e a um só tem p o, argu m entações e abertu -
ras de m u nd o, abertu ra de mundos com u ns — o que não quer dizer
consensu ais —, de mundos nos quais o su jeito que argumenta é sem-
pre contad o com o argu m entad or. Esse su jeito é sempre um um-a-
mais. O su jeito que escreve em nosso m anifesto "Já os com preend e-
m os" não é a coleção dos op erários, não é um corp o coletivo. É um
su jeito exced ente, que se define no con ju n to das op erações que de-
monstram essa com p reensão manifestando sua estru tu ra de afasta-
m ento, sua estru tu ra de relação entre o com u m e o não-com u m . A
p olítica m od erna existe pela m u ltip licação dos mundos com u ns/liti-
giosos passíveis de ser extraíd os da su perfície das ativid ad es e d as
ord ens sociais. Existe pelos su jeitos que essa m u ltip licação au toriza,
su jeitos cu ja contagem é sempre extra-nu m erária. A p olítica antiga
prend ia-se ao único erro de cálcu lo desse demos que é parte e tod o e
dessa liberd ad e que só pertence a ele, ao mesmo tem po que pertence
a tod os. A p olítica m od erna prend e-se ao d esd obram ento de d isposi-
tivos de su bjetivação do litígio que ligam a contagem dos incontad os
ao afastam ento de si de tod o su jeito ap rop riad o para enu nciá-lo. N ão
é só que os cid ad ãos, os trabalhad ores e as mulheres designados numa
seqü ência do tip o "n ós, cid ad ãos", "n ós, trabalh ad ores" ou "n ós,
m u lheres" não se id entifiquem com nenhuma coleção, com nenhum
grupo social. E tam bém que a relação do "n ó s ", do su jeito de enun-
ciação que abre a seqü ência, com o su jeito do enu nciad o cu ja id enti-
dade é d eclinad a (cid ad ãos, trabalhad ores, m ulheres, p roletários) se
define apenas pelo con ju n to das relações e das op erações da seqüên-
cia d em onstrativa. N em o nós nem a identidad e que lhe é atribu íd a,
nem a ap osição dos dois definem um su jeito. Só há su jeitos, ou , me-
lhor, mod os de su bjetivação p olíticos, no con ju n to de relações que o
nós e seu nome mantêm com o con ju n to das "p essoas", o jogo com -
p leto das id entid ad es e das alterid ad es im plicad as na d em onstração,
e dos m u nd os, com u ns ou sep arad os, em que se d efinem.
Sem d úvid a, a d em onstração opera-se mais claram ente qu and o
os nomes de su jeitos se separam de tod o grupo social id entificável
101
O Desentend im ento
com o tal. Qu and o os op ositores do Leste europeu retom avam para
si o term o de "h ou ligan s" com que os d irigentes desses regimes os es-
tigm atizavam , quand o os m anifestantes parisienses de 1968 afirm a-
vam , con tra qu alqu er evid ência p olicial, "Som os tod os jud eus ale-
m ã es", estavam colocan d o em plena luz o afastam en to da su bje-
tivação p olítica, d efinid a no nó de uma enu nciação lógica e de uma
m anifestação estética, em face de tod a id entificação. O d ialogismo da
p olítica tem m uito da heterologia literária, de seus enu nciad os sub-
traíd os de seus au tores e devolvidos a eles, de seus jogos da primeira
e da terceira pessoa — tem m uito mais disso que da situ ação, supos-
tam ente id eal, do d iálogo entre uma primeira e uma segunda pessoa.
A invenção p olítica op era-se em atos que são ao mesmo tem p o ar-
gu m entativos e p oéticos, golpes de força que abrem e reabrem tantas
vezes qu antas for necessário os mundos nos quais esses atos de co-
munidade são atos de com u nid ad e. Eis p or que o "p oético" não se
opõe ao argu m entativo. E tam bém p or que a criação dos mundos es-
téticos litigiosos não é a simples invenção de linguagens ap tas a re-
form u lar p roblem as intratáveis nas linguagens existentes. Em Con-
tingência, Ironia e Solidariedade, Richard Rorty distingue as situações
com uns de com u nicação em que se entend e p raticam ente tu d o o que
se discute e as situ ações excep cionais em que os motivos e os term os
da d iscussão estão, eles m esm os, em qu estão 8. Estes últimos d efiniri-
am m om entos p oéticos em que criad ores form am novas linguagens
que permitem a red escrição da exp eriência com u m , inventam m etá-
foras novas, cham ad as mais tard e a integrar o cam p o das ferram en-
tas lingüísticas com uns e da racionalid ad e consensu al. Assim , segun-
do Richard Rorty, elaborar-se-ia um acord o entre a m etaforização po-
ética e a consensualid ad e liberal: consensualid ad e não exclu siva, p or-
que é a sed im entação de velhas m etáforas e de velhas intervenções da
ironia p oética. Mas não é apenas em momentos de exceção e pela ação
de especialistas da ironia que o consenso exclu sivo se d esfaz. Ele se
desfaz tantas vezes qu antas se abrem mundos singulares de com u ni-
dade, mundos de d esentend imento e de d issensão. H á p olítica se a co-
munidade da cap acid ad e argu m entativa e da cap acid ad e m etafórica
é, a qu alqu er hora e pela ação de qualquer um, passível de ocorrer.
100
Jacqu es Rancière
em su m a, de realizar a essência da p olítica pela supressão da p olíti-
ca, pela realização da filosofia "n o lu gar" da p olítica.
Mas suprimir a p olítica em sua realização, colocar a idéia ver-
d ad eira da com u nid ad e e do bem ligad o a sua natu reza no lugar da
torsão da igualdade em d ano, isso significa antes de mais nada supri-
mir a d iferença entre p olítica e p olícia. O p rincíp io da p olítica dos fi-
lósofos é a id entificação do p rincíp io da p olítica com o atividade com
o da p olícia enqu anto d eterm inação da d ivisão do sensível que define
as parcelas dos indivíduos e das partes. O ato conceituai inaugural dessa
p olítica é a cisão que Platão op era numa n oção, a de politéia. N a for-
ma com o ele a p ensa, esta não é a constitu ição, a form a geral que se
rep artiria em varied ad es, d em ocrática, oligárqu ica ou tirânica. Ela é
a alternativa a essas alternâncias. H á de um lad o a politéia, de ou tro
as politeiai, as diversas varied ad es de maus regimes ligad as ao confli-
to das partes da polis e à d om inação de uma sobre as ou tras. O m al,
diz o livro VIII das Leis, está nessas politeiai das quais nenhuma é uma
politéia, que são tod as ap enas facções, governos do d esacord o 1. A
politéia p latônica é o regime de interiorid ad e da comunid ad e que se
opõe à cirand a dos maus regimes. A politéia opõe-se às politeiai com o
o Um da com unid ad e opõe-se ao múltiplo das com binações do d ano.
E mesmo o "realism o" aristotélico conhece a politéia com o o bom es-
tad o da com u nid ad e, do qual a d em ocracia é a form a d esviad a. É que
a politéia é o regime da com u nid ad e fund ad o em sua essência, aquele
no qual tod as as m anifestações do com u m provêm do mesmo p rincí-
p io. Os que hoje opõem a boa rep ú blica à duvidosa d em ocracia her-
d am , com m aior ou menor consciência, essa sep aração prim eira. A re-
pública ou a politéia, tal com o Platão a inventa, é a com unid ad e que
fu nciona no regime do Mesm o, que exprim e em tod as as ativid ad es
das partes da sociedade o princípio e o telos da com unid ad e. A politéia
é prim eiro um regim e, um m od o de vid a, um m od o da p olítica segun-
do o qual ela é a vida de um organism o regulad o p or sua lei, que res-
pira segundo seu ritm o, que inerva cad a uma de suas partes com o prin-
cíp io vital que o d estina à fu nção e ao bem que lhe são p róp rios. A
politéia, segundo seu conceito fom u lad o por Platão, é a com unid ad e
que efetua seu p róp rio p rincíp io de interiorid ad e em tod as as m ani-
1Cf. Leis, VIII, 832 b/c, que deve ser com p arad o notad am ente a República,
IV, 445 c.
101
O Desentend imento
festações de sua vid a. É tornar impossível o d ano. Pod e-se d izer, sim-
plesmente: a politéia dos filósofos é a identidade da política e da polícia.
Essa identidad e tem dois asp ectos. De um lad o, a p olítica dos
filósofos id entifica a p olítica à p olícia. Coloca-a sob o regime do Um
d istribu íd o em p arcelas e fu nções. Incorp ora a com u nid ad e na assi-
m ilação de suas leis a m aneiras de viver, ao p rincíp io de resp iração
de um corp o vivo. Mas essa incorp oração não significa que a filoso-
fia p olítica volte à naturalid ad e p olicial. A filosofia política existe por-
que essa naturalid ad e está perd id a, porqu e a era de Cronos ficou para
trás e p orqu e, aliás, sua tão d ecantad a beatitud e celebra apenas a par-
voíce de uma existência vegetativa. A filosofia p olítica ou a p olítica
dos filósofos existe p orqu e a divisão está aí presente, p orqu e a d emo-
cracia p rop õe o p arad oxo de um incom ensurável esp ecífico, de uma
p arcela dos sem -parcela com o p roblem a a ser resolvid o pela filoso-
fia. A isonomia passou p or aí, isto é, a idéia de que a lei esp ecífica da
p olítica é uma lei fund ad a na igualdade que se op õe a tod a lei natu -
ral de d om inação. A República não é a restau ração da virtude dos
tem pos antigos. É tam bém uma solu ção para o p roblem a lógico pelo
qual a d em ocracia p rovoca a filosofia, o p arad oxo da p arcela d os
sem -p arcela. Id entificar a p olítica à p olícia pode tam bém significar
id entificar a polícia à p olítica, construir uma im itação da p olítica. Para
im itar a id éia do bem , a politéia im ita então a "m á " p olítica que sua
im itação deve su bstitu ir. As filosofias p olíticas, pelo m enos as que
merecem esse nom e, o nome desse p arad oxo, são filosofias que tra-
zem uma solu ção p ara o p arad oxo da p arcela dos sem -p arcela, seja
su bstitu ind o-o por uma fu nção equ ivalente, seja criand o seu simula-
cro, op erand o uma im itação da p olítica na sua negação. É a p artir
do duplo asp ecto dessa id entificação que se definem as três grand es
figuras da filosofia p olítica, as três grand es figuras do conflito da fi-
losofia e da p olítica e do p arad oxo dessa realização-su p ressão da po-
lítica cu ja última p alavra é, talvez, a realização-su p ressão da p róp ria
filosofia. Designarei essas três grandes figuras pelos nom es de arqui-
política, para-política e meta-política.
A arqu i-p olítica, de que Platão m ostra o m od elo, exp õe em tod a
a sua rad icalid ad e o p rojeto de uma com unid ad e fund ad a na realiza-
ção integral, na sensibilização integral da arkhé da com u nid ad e, subs-
titu ind o sem d eixar qu alqu er resto a configu ração d em ocrática da po-
lítica. Su bstitu ir sem resto essa configu ração quer dizer d ar uma solu-
ção lógica ao p arad oxo da parcela dos sem -parcela. Essa solu ção passa
100
Jacqu es Rancière
p or um p rincíp io que não é apenas de p rop orcionalid ad e mas de p ro-
porcionalid ad e inversa. O relato fund ad or das três raças e dos três me-
tais, no livro III da República, não estabelece apenas a ordem hierár-
qu ica da pólis em que a cabeça com and a a barriga. Estabelece uma
pólis na qual a su periorid ad e, o kratos do m elhor sobre o menos bom
não significa nenhuma relação de d om inação, nenhuma "cracia" no
sentid o p olítico. Para isso, é preciso que o kratein do m elhor se reali-
ze com o d istribu ição invertida das p arcelas. O fato de os m agistrad os,
que têm ou ro na alm a, não pod erem ter nenhum ou ro m aterial nas
m ãos significa que eles só podem ter com o coisa p róp ria aqu ilo que é
com u m . Send o o "títu lo" deles o conhecim ento da amizade dos cor-
pos celestes que a com u nid ad e deve im itar, a p arcela que lhes é "p ró-
p ria" só pod eria ser o com u m da com u nid ad e. Sim etricam ente, o co-
mum dos artesãos é possuir apenas aqu ilo que lhes é p róp rio. As ca-
sas e o ou ro que eles são os únicos a ter d ireito de possuir são o p aga-
mento por sua singular participação na comunidade. Só participam dela
sob a cond ição de não terem que cu id ar do tod o. São m em bros da co-
munidade apenas pelo fato de execu tarem a obra própria para a qu al
a natureza os destina com exclusividade: sap ataria, carpintaria ou qual-
quer outra obra das mãos — ou , antes, pelo fato de nad a fazerem além
dessa fu nção, de não terem ou tro esp aço-tem p o senão o de seu ofício.
O que é evid entemente suprimid o p or essa lei de exclusivid ad e dada
com o característica própria e natu ral do exercício de tod o ofício, é esse
esp aço com u m que a d em ocracia recortava no seio da pólis enqu anto
lugar de exercício da liberd ad e, lugar de exercício do pod er desse de-
mos que atu aliza a p arcela dos sem -p arcela; é esse tem p o p arad oxal
que aqueles que não têm tem p o p ara isso d ed icam a esse exercício. A
ap arente empiricid ad e do início da República, com sua enu m eração
das necessidades e das fu nções, é um regu lam ento inicial do p arad o-
xo d em ocrático: o demos é d ecom p osto em seus m em bros para que a
com unid ad e seja recom p osta em suas fu nções. O relato ed ificante da
reu nião prim eira dos indivíduos pond o em com u m suas necessid ad es
e trocan d o seus serviços, que a filosofia p olítica e seus su ced âneos
arrastarão de era em era, em versões ingênuas ou sofisticad as, tem
originalm ente essa fu nção bem d eterm inad a de d ecom p osição e de
recom p osição, ap ta a lim par do demos o território da p ólis, a lim pá-
lo de sua "liberd ad e" e dos lugares e tem pos de seu exercício. Antes
de ed ificar a com u nid ad e sobre sua lei p róp ria, antes do gesto refu n-
d ad or e da ed u cação cívica, o regime de vida da politéia já está m ol-
101
O Desentend im ento
dado na fábula desses qu atro trabalhad ores que nada devem fazer além
de seu p róp rio n egócio 2. A virtude de fazer (apenas) isso cham a-se so-
phrosyné. As palavras tem p erança e m od eração, pelas quais nos ve-
mos obrigad os a trad u zi-la, escondem atrás de pálidas imagens de con-
trole dos apetites a relação propriamente lógica expressa por essa "vir-
tu d e" da classe inferior. A sophrosyné é a estrita réplica da "liberd a-
d e" do demos. A liberd ad e era a axia p arad oxal do p ovo, o títu lo
comum do qual o demos se apropriava com o sua coisa "p r óp r ia". Por
simetria, a sophrosyné que é definida com o a virtude dos artesãos nada
mais é que a virtud e com u m . Mas essa id entid ad e do p róp rio e do
com u m fu nciona ao inverso da "liberd ad e" do demos. N ão pertence
em absolu to àqueles de quem ela é a única virtud e. É, ap enas, a domi-
nação do m elhor sobre o menos bom . A virtude própria e com u m dos
homens da multidão nada é além da submissão à ordem segundo a qual
eles são apenas o que são e só fazem o que fazem. A sophrosyné dos
artesãos é id êntica à sua "au sência de tem p o". É sua m aneira de vi-
ver, na exteriorid ad e rad ical, a interiorid ad e da p ólis.
A ordem da politéia pressupõe assim a ausência de tod o vazio, a
satu ração do espaço e do tem p o da com u nid ad e. O reino da lei é tam -
bém o d esap arecim ento do que é consu bstanciai ao m od o de ser da
lei ali ond e a p olítica existe: a exteriorid ad e da escrita. A repú blica é
a comunidad e onde a lei (o nomos) existe com o logos vivo: com o ethos
(costu m es, m aneira de ser, caráter) da com unid ad e e de cad a um de
seus m em bros; com o ocu p ação dos trabalhad ores; com o m elod ia que
fica nas cabeças e com o m ovim ento que anim a esp ontaneam ente os
corp os, com o alim ento espiritual (t rophé) que volta natu ralm ente os
espíritos para um certo torneio (t ropos) de com p ortam ento e de pen-
sam ento. A repú blica é um sistema de trop ism os. A p olítica dos filó-
sofos não com eça, com o o querem os bem -p ensantes, com a lei. Co-
meça com o espírito da lei. O fato de as leis exp rim irem antes de mais
nad a uma m aneira de ser, um tem p eram ento, um clim a da com u ni-
d ad e, isso não é a d escoberta de um esp írito cu rioso do século das Lu-
zes. Ou , m elhor, se Montesqu ieu d escobriu à sua m aneira esse espíri-
to, é que ele já estava acop lad o à lei, na d eterm inação filosófica origi-
nal da lei p olítica. A igualdade da lei é antes de tud o a igualdade de
2Cf. República, II, 369 c-370 c. Propus um extenso com entário sobre essa
passagem em Le Philosophe et ses pauvres, Fayard , 1983.
100
Jacqu es Rancière
um hu m or. A boa polis é aqu ela ond e a ordem do kosmos, a ord em
geom étrica que rege o m ovim ento d os astros d ivinos, m anifesta-se
com o tem p eram ento de um organism o, no qual o cid ad ão age não se-
gund o a lei mas segundo o esp írito da lei, o sop ro vital que o insp ira.
É aqu ela na qual o cid ad ão é convencid o por uma história, mais d o
que retid o p or uma lei, em que o legislad or, ao escrever as leis, entre-
laça numa tram a cerrad a as ad m oestações necessárias aos cid ad ãos
assim com o "su a op inião sobre o belo e o feio "3 . É aquela na qu al a
legislação se absorve por inteiro na ed u cação, mas tam bém na qu al a
ed u cação transbord a os m eros ensinam entos do m estre-escola, e em
que ela se oferece a tod o instante no concerto do que se oferece a ver
e se dá a entend er. A arqu i-p olítica é a integral realização da physis
em nomos, o total tornar-se sensível da lei comunitária. N ão pode haver
tem p o m orto nem esp aço vazio na tram a da com u nid ad e.
Essa arqu i-p olítica é, então, tam bém uma arqu i-p olícia que con -
cilia sem d eixar restos as m aneiras de ser e as de fazer, as m aneiras de
sentir e as de p ensar. Mas red uzimos o alcance dessa arqu i-p olítica ou
arqu i-p olícia e d esconhecem os sua herança, se a assim ilarm os à u to-
pia do filósofo ou ao fanatism o da polis fechad a. O que Platão inven-
ta, de m aneira mais ampla e mais d urad oura, é a op osição da rep ú bli-
ca à d em ocracia. O regime do d ano e da divisão d em ocráticos, a exte-
riorid ad e da lei que mede a eficácia da parcela dos sem-parcela no con-
flito dos partid os, ele os substitui pela república que não se funda tanto
no universal da lei, mas sobretu d o na ed ucação que transform a, in-
cessantem ente, a lei em seu esp írito. Ele inventa o regime de interiori-
dade da com u nid ad e, na qual a lei é a harmonia do ethos, a con cor-
d ância do caráter dos indivíduos aos costumes da coletivid ad e. Ele in-
venta as ciências que acom p anham essa interiorização do víncu lo co-
m u nitário, essas ciências da alm a individual e coletiva que a m od er-
nidade cham ará p sicologia e sociologia. O p rojeto "rep u blican o", tal
com o é elaborad o pela arqu i-p olítica p latônica, é a p sicologização e a
sociologização integrais dos elem entos do d ispositivo p olítico. A poli-
téia coloca, no lugar dos elem entos turvos da su bjetivação p olítica, as
fu nções, as aptid ões e os sentim entos da comunid ade concebid a com o
corp o anim ad o pela alma una do tod o: divisão dos ofícios, unid ad e
dos trop ism os éticos, u níssono das fábulas e d os refrões.
101
O Desentend imento
É im p ortante ver com o a idéia de rep ú blica, o p rojeto ed ucati-
vo e a invenção das ciências da alma individual e coletiva se mantêm
ju ntos enqu anto elem entos do d ispositivo arqu i-p olítico. A "restau -
r ação" hoje p roclam ad a da filosofia p olítica afirm a constitu ir uma
reação à ilegítima u su rpação sobre a p olítica e as prerrogativas da fi-
losofia p olítica pelas ciências sociais. E o ideal da república e de sua
instru ção universalista é constantem ente op osto a uma escola subme-
tid a aos im perativos p arasitários de uma psicoped agogia e de uma
sociop ed agogia ligadas aos vícios conju gad os do individualismo de-
m ocrático e do totalitarism o socialista. Mas essas polêm icas esque-
cem , geralm ente, que foi a "filosofia p olítica" que inventou as ciên-
cias "hu m anas e sociais" enqu anto ciências da com u nid ad e. A cen-
tralid ad e da paidéia na repú blica é também o primad o da harm oni-
zação dos caracteres individuais e dos costum es coletivos sobre tod a
d istribu ição de saber. A república de Ju les Ferry, paraíso supostamen-
te perd id o do universalism o cívico, nasceu à som bra de ciências hu-
m anas e sociais, herd ad as p or sua vez do p rojeto arqu i-p olítico. A
escola e a repú blica não foram recentem ente pervertidas pela p sico-
logia e pela sociologia. Apenas mudaram de psicologia e de sociolo-
gia e mud aram o fu ncionam ento desses saberes da alma individual e
coletiva no sistema da d istribu ição dos saberes, conciliaram de for-
ma d iferente a relação de cam p o p ed agógico, a an-arqu ia da circu la-
ção d em ocrática dos saberes e a form ação repu blicana da harm onia
dos caracteres e dos costu m es. N ão aband onaram o universal pelo
p articu lar. Com binaram de ou tra m aneira o universal singularizad o
(p olêm ico) da d em ocracia e o universal p articu larizad o (ético) da re-
p ú blica. As d enúncias filosóficas e rep u blicanas do im perialism o so-
ciológico, assim com o as denúncias sociológicas de uma filosofia e de
uma rep ú blica d enegad oras das leis da rep rod u ção social e cu ltu ral,
esquecem tam bém o nó p rim ário que a arqu i-p olítica estabelece en-
tre a com unid ad e fund ad a na p rop orção do cosm o e o trabalho das
ciências da alm a individual e coletiva.
A arqu i-p olítica, da qual Platão dá a fórm u la, resume-se assim
na realização integral da physis em nomos. Isto supõe a supressão dos
elem entos do d ispositivo polêm ico da p olítica, sua su bstitu ição pelas
form as de sensibilização da lei com u nitária. A su bstitu ição de um tí-
tu lo vazio — a liberdade do povo — por uma virtude igualmente va-
zia — a sopbrosyné dos artesãos — é o p onto nod al desse p rocesso. A
supressão total da p olítica enqu anto ativid ad e específica é seu resul-
100
Jacqu es Rancière
tad o. A para-política, cu jo princípio Aristóteles inventa, recusa-se a pa-
gar esse p reço. Com o tod a "filosofia p olítica", ela tend e a id entificar
em última instância a ativid ad e p olítica com a ord em p olicial. Mas o
faz do p onto de vista da especificid ad e da p olítica. A especificid ad e
da p olítica é a interru p ção, o efeito da iguald ade enqu anto "liberd a-
d e" litigiosa do p ovo. E a d ivisão original da physis que é cham ad a a
realizar-se em nomos com u nitário. H á política porque a igualdade vem
operar essa cisão originária da "natu reza" p olítica, que é cond ição para
que se possa simplesmente im aginar uma tal natu reza. Essa cisão, essa
submissão do telos com u nitário ao fato da iguald ad e, é constatad a p or
Aristóteles no início desse segundo livro da Política que constitui o acer-
to de contas com seu mestre Platão. Sem dúvida, d eclara ele, seria pre-
ferível que os m elhores mand assem na pólis e que mand assem sem-
pre. Mas essa ord em natu ral das coisas é impossível quand o se está
numa pólis ond e "tod os são iguais por n atu reza"4 . Inútil p ergu ntar-
se p or que essa igualdade é natu ral e por que essa natureza advém em
Atenas e não na Laced em ônia. Basta que exista. Numa tal pólis, é justo
— seja isso uma coisa boa ou má — que tod os p articip em do m and o
e que essa d ivisão igual se m anifeste numa "im ita çã o" esp ecífica: a
alternância entre o lugar de governante e o de governad o.
Tu d o se decide nessas p ou cas linhas que separam o bem d istin-
tivo da política — a justiça — de tod a e qualquer ou tra form a do bem .
O bem da p olítica com eça p or qu ebrar a simples tau tologia segund o
a qual o que é bom é que o m elhor tenha preced ência sobre o m enos
bom . A p artir do m om ento em que a igualdade existe e configu ra-se
com o liberd ad e do p ovo, o justo não pod eria ser sinônim o do bem e
não pod eria ser o d esd obram ento de sua tau tologia. A virtude do ho-
mem de bem , que é m and ar, não é a virtude p róp ria da p olítica. Só
existe p olítica p orqu e há iguais e porque é sobre eles que o m and o se
exerce. O p roblem a não é apenas "ad equ ar-se" à presença bru ta da
duvidosa liberd ad e do demos. Pois essa presença bruta é tam bém a
presença da p olítica, o que distingue sua arkhé própria de qu alqu er
ou tra form a de m and o. Tod os os ou tros se exercem de um su perior
sobre um inferior. Mu d ar o m od o dessa su periorid ad e, com o p rop õe
Sócrates a Trasím aco, não resulta em nad a. Se a política é alguma coi-
sa, é por uma cap acid ad e totalm ente singular qu e, antes de existir o
101
O Desentend imento
demos, era simplesmente inimaginável: a igual cap acid ad e de com an-
dar e de ser com and ad o. Essa virtude não pod eria red uzir-se à virtu-
de m ilitar bem conhecid a do exercício que torna ap to a m and ar me-
d iante a p rática da obed iência. Platão abriu lugar a esse aprend izad o
pela obed iência. Mas este aind a não é a cap acid ad e p olítica de per-
mutabilid ad e. Por isso, a pólis p latônica não é p olítica. Mas uma pólis
não-p olítica não é, de form a algu m a, uma pólis. Platão com p õe um
estranho m onstro, que impõe à pólis o m od o de mand o da fam ília.
Que ele deva para isso suprimir a família é um p arad oxo perfeitamen-
te lógico: suprimir a d iferença entre uma e ou tra é suprimir as d uas.
N ão existe pólis que não seja p olítica e a p olítica com eça com a con-
tingência igu alitária.
O p roblem a da p ara-p olítica estará então em conciliar as duas
natu rezas e suas lógicas antagônicas: a que quer que o m elhor em to-
das as coisas seja o m and o do m elhor e a que quer que o m elhor em
m atéria de igualdade seja a iguald ad e. Pou co im p orta o que se diga
sobre os antigos e sua pólis do bem com u m : Aristóteles efetu a nesse
bem com u m um corte d ecisivo, pelo qual tem início um novo m od o
da "filosofia p olítica". Qu e esse novo m od o seja id entificad o à quin-
tessência da filosofia p olítica e que Aristóteles seja o ú ltim o recu rso
de tod os esses "restau rad ores", é fácil de com p reend er. Ele propõe a
figu ra, p ara sempre fascinante, de uma realização feliz da contrad ição
im plícita na própria exp ressão. É aquele que resolveu a qu ad ratu ra do
círcu lo: p rop or a realização de uma ord em natu ral da p olítica em or^
dem constitu cional pela inclusão mesma do que causa obstácu lo a qual-
quer realização desse gênero — o demos, isto é, a form a de exp osição
da guerra dos "r icos" e dos "p obr es", isto é, enfim , a eficácia da anar-
quia igu alitária. E realiza tam bém a proeza de ap resentar esse tour de
force com o a conseqü ência bastante simples da d eterm inação prim á-
ria do anim al p olítico. Assim com o Platão realiza de p ronto a perfei-
ção da arqu i-p olítica, Aristóteles conclu i de p ronto o telos dessa p ara-
p olítica que fu ncionará com o o regime norm al, honesto, da "filosofia
p olítica": transform ar os atores e as form as de ação do litígio p olítico
em partes e form as de d istribu ição do d ispositivo p olicial.
Em vez da su bstitu ição de uma ord em por ou tra, a p ara-p olíti-
ca efetu a assim o recobrim ento. O demos, p or interm éd io do qual
existe a especificid ad e da p olítica, torna-se uma das partes de um con-
flito p olítico que se id entifica com o conflito pela ocu p ação dos "car -
gos de m an d o", das arkhai da p ólis. E para isso que Aristóteles ope-
100
Jacqu es Rancière
au sência de recu rso 5: ausência de d inheiro e de lazer para ir à assem -
bléia, ausência de meio que p erm ita ao demos ser um mod o efetivo
de su bjetivação da p olítica. A com u nid ad e contém então o demos sem
exp erim entar o seu litígio. A politéia realiza-se assim com o d istribu i-
ção dos corp os num território que os m antém afastad os uns d os ou-
tros, d eixand o apenas aos "m elh ores" o esp aço central do p olítico.
Um a d iferença do povo em relação a si mesmo im ita e anula uma ou-
tra. A esp acialização — a d iferença em relação a si mesmo do demos
bem constitu íd o — inverte, im itand o-a, a d iferença em relação a si
mesmo do povo d em ocrático. Essa utopia da d em ocracia corrigid a, da
política espacializada terá, também ela, vida longa: a "b o a " d emocracia
tocqu evilliana, a Am érica dos grand es espaços em que é possível não
se encontrar, lhe serve de eco, assim com o, em m enor escala, a Eu ro-
pa de nossos p olíticos. Se a arqu i-p olítica p latônica se transm u d a, na
era m od erna, em sociologia do víncu lo social e das crenças com u ns
que corrigem o laisser-aller d em ocrático e d ão coesão ao corp o repu-
blicano, a p ara-p olítica se transm ud a numa ou tra "sociologia": repre-
sentação de uma d em ocracia separad a de si m esm a, tornand o, inver-
sam ente, em virtude da d ispersão que impede o povo de tom ar corp o.
Se a "filosofia p olítica" p latônica e seus suced âneos p rop õem cu rar a
p olítica su bstitu ind o as ap arências litigiosas do demos pela verd ade
de um corp o social anim ad o pela alm a das fu nções com u nitárias, a fi-
losofia p olítica aristotélica e seus suced âneos p rop õem a realização da
idéia do bem pela exata mimésis do d istú rbio d em ocrático que obsta
a sua efetu ação: u topia última de uma p olítica sociologizad a, inverti-
da em seu con trário; fim calm o da p olítica em que os dois sentid os do
"fim ", o telos que se realiza e o gesto que suprime, acabam por coin-
cid ir de m aneira exata.
Mas, antes que se opere essa transform ação da "filosofia p olíti-
ca " em "ciên cia social", há a form a m od erna que o em preend im ento
p ara-p olítico assum e, aquela que se resume nos term os da soberania
e do con trato. É H obbes quem fixa sua fórm u la, e quem a fixa com o
crítica à "filosofia p olítica" dos antigos. Esta é, para ele, u tóp ica, ao
afirm ar a existência de uma "p oliticid ad e" inerente à natureza huma-
na. E é sed iciosa, ao fazer dessa p oliticid ad e natu ral a norm a p or cu jo
p ad rão qu alqu er um pode pretend er avaliar a conform id ad e de um
5 Política, IV, 1292 b 37-38. Para uma análise mais detalhada, ver J. Rancière,
A ux bords du politique, Osiris, 1990.
101
O Desentend imento
regime a essa p oliticid ad e p rincip iai e ao bom governo que é a sua
realização id eal. H obbes, com efeito, está entre aqueles que percebem
ced o o nó singular da p olítica e da filosofia p olítica. Os conceitos que
a filosofia p olítica su btrai à p olítica p ara elaborar as regras de uma
com unid ad e sem litígio, a p olítica não cessa de retom á-los com o fito
de reconvertê-los, mais uma vez, em elementos de um novo litígio. As-
sim, Aristóteles dividia os regimes em bons e m au s, segundo servissem
ao interesse de tod os ou ao da parte soberana. O tirano se d istinguia
do rei, não pela form a de seu p od er, mas p or sua finalid ad e. Ou tros-
sim , o tiran o, ao mud ar os meios da tirania, fazia "com o se" mudasse
sua finalid ad e 6. Ele transform ava sua tirania numa qu ase-realeza, o
que era o meio de servir ao mesmo tem po a seu interesse e ao da co-
munid ad e. A d istância entre os dois nomes só era d enotad a p ara mos-
trar, m elhor, a possibilid ad e de tornar as coisas id ênticas: um bom ti-
rano é com o um rei, e p ou co im p orta p ortanto o seu nom e. H obbes é
confrontad o com a inversão da relação: o nom e de tirano é o nome
vazio que permite a qu alqu er p regad or, oficial ou homem de letras,
contestar a conform id ad e do exercício do pod er real à razão de ser da
realeza, ju lgar que é um mau rei. Um mau rei é um tirano. E um tira-
no é um falso rei, alguém que tom a ilegitim am ente o lugar do rei, al-
guém que é p ortanto legítim o exp u lsar ou m atar. Da mesma form a,
Aristóteles guard ava o títu lo do povo ad equand o a d istância do nom e
do povo soberano à realidade do poder das pessoas de bem. Ainda aqui
as coisas se invertem : o nome vazio de povo torna-se o pod er su bjeti-
vo de ju lgar a d istância entre a realeza e a sua essência e de consid erar
esse ju lgam ento para reabrir o litígio. O p roblem a é, então, suprimir
essa contagem flutuante do povo que coloca em cena a d istância en-
tre um regime e sua norm a. O mal fu nesto, diz H obbes, é que as "p es-
soas p rivad as"7 ocupem-se em decidir sobre o ju sto e o inju sto. Mas
o que ele entende por "p essoas p rivad as" nad a mais é que aqueles qu e,
em term os aristotélicos, "n ã o tom am p arte" no governo da coisa co-
mum. O que está em jogo é então a própria estrutura do d ano que ins-
titui a p olítica, a eficácia da igualdade com o p arcela dos sem -p arcela,
d efinição de "p artes" que são na verdade su jeitos do litígio. Para cor-
100
Jacqu es Rancière
tar o mal pela raiz e desarmar "as falsas opiniões do vulgo no que tange
ao d ireito e ao d a n o "8 , é preciso refu tar a p róp ria idéia de uma "p oli-
ticid ad e" natu ral do anim al hu m ano, pela qu al ele estaria d estinad o
a um bem diferente de sua mera conservação. É preciso estabelecer que
a politicidade é apenas secund ária, que é apenas a vitória do sentimento
da conservação sobre o ilimitad o do d esejo que põe cad a um em guerra
contra tod os.
O p arad oxo é que H obbes, p ara refu tar Aristóteles, no fu nd o
apenas transp õe o raciocínio aristotélico — a vitória do d esejo racio-
nal de conservação sobre a p aixão p róp ria do d em ocrata, do oligarca
ou do tirano. Ele o desloca do plano das "p artes" no poder para o plano
dos ind ivíd uos, de uma teoria do governo p ara uma teoria da origem
do p od er. Esse duplo d eslocam ento que cria um objeto privilegiad o
da filosofia p olítica m od erna — a origem do pod er — tem uma fun-
ção bem esp ecífica: liquid a inicialm ente a p arcela dos sem -p arcela. A
p oliticid ad e só existe assim m ed iante a alienação inicial e sem resto
de uma liberd ad e que é apenas dos ind ivíd uos. A liberd ad e não pod e-
ria existir com o p arcela dos sem -p arcela, com o a propried ad e vazia
de algum su jeito p olítico. Ela deve ser tud o ou nad a. Só pode existir
sob duas form as: com o propried ad e de puros indivíduos a-sociais ou ,
na sua alienação rad ical, com o soberania do soberano.
Isso quer dizer tam bém que a soberania não é mais a d om ina-
ção de uma p arte sobre ou tra. Ela é o não-lu gar rad ical das p artes e
d aquilo a que seu jogo dá ensejo: a eficácia da parcela dos sem -parcela.
A problem atização da "origem " do poder e os termos de seu enunciad o
— con trato, alienação e soberania — dizem antes de tu d o: não há
p arcela dos sem -p arcela. Só há indivíduos e o pod er do Estad o. Tod a
parte a pôr em jogo o d ireito e o d ano é contrad itória com a p róp ria
idéia da com u nid ad e. Rou sseau d enunciou a frivolid ad e da d emons-
tração hobbesiana. É um hysteron proteron grosseiro refu tar a idéia
de uma sociabilid ad e natu ral invocand o as m aled icências dos salões e
as intrigas das cortes. Mas Rou sseau — e a trad ição rep u blicana m o-
d erna depois dele — concord a com o que é o cerne sério dessa frívola
d em onstração, a liqu id ação dessa p arcela dos sem -p arcela que a teo-
ria aristotélica se empenhava em integrar na sua p róp ria negação. Ele
101
O Desentend imento
concord a com a tau tologia hobbesiana da soberania: a soberania só
repou sa em si m esm a, p orqu e fora dela existem apenas ind ivíd uos.
Qu alqu er ou tra instância no jogo p olítico é apenas facção. A p ara-p o-
lítica mod erna com eça p or inventar uma natureza esp ecífica, uma "in -
d ivid u alid ad e" estritam ente correlata ao absolu to de uma soberania
que deve excluir a querela das frações, a querela das parcelas e das par-
tes. Ela com eça por uma primeira d ecom p osição do povo em indiví-
d uos, que exorciza de golp e, na guerra de tod os contra tod os, a guer-
ra das classes em que consiste a p olítica. Os d efensores dos "an tigos"
facilm ente vêem a origem das catástrofes da p olítica m od erna na fa-
tal su bstitu ição da regra objetiva do d ireito, que fund aria a com u ni-
dade p olítica aristotélica, pelos "d ireitos su bjetivos". Mas Aristóteles
não conhece "o d ireito" com o princípio organizad or da sociedade civil
e p olítica. Ele conhece o justo e suas d iferentes form as. O r a, a form a
p olítica do ju sto é, para ele, a que d etermina as relações entre as "p ar-
tes" da com u nid ad e. A mod ernid ad e não coloca som ente os d ireitos
"su bjetivos" no lugar da regra objetiva de d ireito. Ela inventa o direi-
to com o princípio filosófico da com unid ad e política. E essa invenção
cam inha a par da fábu la de origem , da fábu la da relação dos indiví-
duos com o tod o, feita p ara liqu id ar a relação litigiosa d as p artes.
Inclusive porqu e uma coisa é o direito, que conceitu aliza a "filosofia
p olítica" para regular a qu estão do d ano, ou tra coisa é o d ireito que a
p olítica faz fu ncionar no d ispositivo de tratam ento de um d ano. Pois,
em p olítica, não é o d ireito que é fu nd ad or mas o d ano, e o que pode
d iferenciar uma p olítica dos m od ernos de uma p olítica dos antigos é
uma d iferente estrutura do d ano. Mas é p reciso acrescentar que o tra-
tam ento p olítico do d ano não pára de tom ar em prestad os à "filosofia
p olítica" elem entos para transform á-los em elementos de uma argu-
m entação e uma m anifestação novas do litígio. É assim que as form as
m od ernas do d ano ligarão ao litígio acerca da contagem das partes da
com u nid ad e o novo litígio que refere cad a um ao tod o da soberania.
Pois o p arad oxo está aí: a ficção de origem que deve fund ar a
paz social é aquela qu e, no fim , cavará o abism o de um litígio mais
rad ical que o dos antigos. Recu sar a luta de classes com o segunda ló-
gica, segunda "n atu reza" que institui o p olítico, fazer logo de início
que a d ivisão da natureza represente uma passagem do d ireito natu -
ral à lei natu ral, é confessar que o princípio último do p olítico é a pura
e simples iguald ad e. A fábu la da guerra de tod os contra tod os é nés-
cia com o tod as as fábu las de origem . Mas, por trás dessa p obre fá-
100
Jacqu es Rancière
bula de m orte e de salvação, d eclara-se algo mais sério, a enu nciação
do segredo ú ltim o de tod a ord em social, a pura e simples iguald ade
de qu alqu er um a qu alqu er um: não há um p rincíp io natural de d o-
m inação de um homem sobre ou tro. A ord em social rep ou sa, em úl-
tima instância, na igualdade que é tam bém sua ruína. Nenhuma "con -
ven ção" pode mud ar nad a dessa falha da "n atu reza" se ela não for
alienação total e sem volta de tod a "liberd ad e" na qual essa iguald a-
de pod eria ter efeito. É preciso p ortanto id entificar originariam ente
igualdade e liberd ad e e liqu id á-las ju ntas. O absolu to da alienação e
o da soberania são necessários p rop orcionalm ente à iguald ad e. Isso
quer dizer tam bém que só são ju stificáveis a p reço de nomear a igual-
dade com o fu nd am ento e abism o p rim eiro da ord em com u n itária,
com o única razão da d esiguald ad e. E contra o fund o dessa iguald ad e
d oravante d eclarad a dispõem-se os elementos do litígio p olítico novo,
as razões da alienação e do inalienável que virão argum entar as no-
vas form as da guerra das classes.
De um lad o, a liberdade tornou -se o próprio dos indivíduos com o
tais, e da fábu la da alienação sairá, a contrap elo da intenção hobbe-
siana, a qu estão de saber se e em que cond ições os indivíduos podem
aliená-la totalm ente, sairá em suma o d ireito do indivíduo enqu anto
não-d ireito do Estad o, o título de qu alqu er um a p ôr em qu estão o Es-
tad o ou a servir de prova de sua infid elid ad e a seu p rincíp io. De ou-
tro lad o, o p ovo, que se pretend ia suprimir na tau tologia da sobera-
nia, ap arecerá com o a personagem que deve ser pressuposta p ara que
a alienação seja pensável e, em d efinitivo, com o o verd ad eiro su jeito
da soberania. É a d em onstração que Rou sseau opera na sua crítica a
Grócio. A "liberd ad e" do p ovo, que se devia liqu id ar, pod erá então
voltar, com o id êntica à realização do pod er com u m dos homens que
nascem "livres e iguais em d ireito". Ela pod erá argu m entar-se na es-
tru tu ra de um d ano rad ical, aquele cau sad o a esses homens que "n as-
ceram livres e em tod a a p arte se encontram a ferros". Aristóteles co-
nhecia o fato acid ental dessas pólis em que os p obres são "livres por
natu reza" e o p arad oxo que liga essa natu reza "acid en tal" à p róp ria
d efinição da natureza p olítica. Mas a ficção de origem , em sua trans-
form ação ú ltim a, torna o litígio da liberd ad e p róp ria e im própria do
povo no absolu to da contrad ição original de uma liberd ad e da qual
cad a su jeito — cad a homem — é originalm ente possuid or e d espos-
suíd o. H om em é então o su jeito mesmo da relação do tod o e do nad a,
o cu rto-circu ito vertiginoso entre o mund o d os seres que nascem e
101
O Desentend im ento
m orrem e os term os da igualdade e da liberd ad e. E o direito, cu ja de-
term inação filosófica fora prod uzida p ara desfazer o nó do justo ao
litígio, torna-se o nom e novo, o nome p or excelência do d ano. Sob
qu alqu er d em onstração de uma contagem dos incontáveis, sob tod o
m od o de com u nid ad e organizad o para a m anifestação de um litígio,
estará d oravante presente a figura-mestra daquele cuja contagem é sem-
pre d eficitária: esse hom em que não é contad o enqu anto uma qual-
quer de suas réplicas não o for; m as, tam bém , que nu nca é contad o
em sua integrid ad e enqu anto não for contad o com o anim al p olítico.
Denu nciand o os com p rom issos da p ara-p olítica aristotélica com a se-
d ição que am eaça o corp o social e d ecom p ond o o demos em indiví-
d uos, a p ara-p olítica do con trato e da soberania reabre uma d istância
mais rad ical do que a velha d istância p olítica da parte tom ad a pelo
tod o. Ela dispõe a d istância do homem a si mesmo com o o fund o pri-
meiro e ú ltim o da d istância do povo a si m esm o.
Pois, ao mesmo tem po que o povo da soberania, apresenta-se seu
hom ônim o, que não se parece em nad a com ele, que é a d enegação ou
o escárnio da soberania, o povo p ré-p olítico ou fora-d o-p olítico que
se cham a p op u lação ou p op u lacho: p op u lação laboriosa e sofred ora,
massa ignorante, tu rba acorrentad a ou d esacorrentad a etc., cu ja fac-
tualid ad e entrava ou contrad iz a realização da soberania. Assim tor-
na a se estabelecer a d istância do povo m od erno, essa d istância que
está inscrita na con ju n ção p roblem ática dos term os do hom em e do
cid ad ão: elementos de um novo d ispositivo do litígio p olítico, em que
cad a term o serve para m anifestar a não-contagem do ou tro; m as, tam -
bém , p rincíp io de um restabelecim ento da d istância entre a arqu i-p o-
lítica e a p olítica e instalação dessa d istância sobre a p róp ria cena do
p olítico. Essa eficácia p olítica da d istância arqu i-política tem um nome.
Cham a-se terror. O terror é o agir p olítico que assume com o tarefa
política o pedido da efetu ação da arkhé com u nitária, de sua interiori-
zação e de sua sensibilização integral, que assum e, p ortan to, o p ro-
grama arqu i-p olítico mas que o assume nos term os da p ara-p olítica
m od erna, os da relação apenas entre o pod er soberano e indivíduos
qu e, cad a um no que lhe concerne, são sua d issolu ção virtu al, am ea-
çand o em si mesmos a cid ad ania que é a alm a do tod o.
N o fund o do d ano rad ical — a desumanidade do hom em —, vão
entrecru zar-se assim o d ano novo que coloca os indivíduos e seus di-
reitos em relação com o Estad o; o d ano que coloca o verd ad eiro so-
berano — o povo — às voltas com os usurpad ores da soberania; a di-
100
Jacqu es Rancière
ferença do povo da soberania e do povo com o p arte; o d ano que op õe
as classes, e aquele que op õe a realid ad e de seus conflitos aos jogos
do indivíduo e do Estad o. É nesse jogo que se forja a terceira grand e
figura da "p olítica dos filósofos", que será cham ad a m eta-p olítica. A
m eta-p olítica ocu p a uma situ ação sim étrica em relação à arqu i-p olí-
tica. A arqu i-p olítica revogava a falsa p olítica, quer d izer, a d em ocra-
cia. Ela p roclam ava a d istância rad ical entre a verdadeira ju stiça, se-
m elhante à p rop orção d ivina, e as encenações d em ocráticas do d ano,
assimilad as ao reino da inju stiça. Sim etricam ente, a m eta-p olítica sen-
tencia um excesso rad ical da inju stiça ou da desigualdad e em relação
ao que a p olítica pode afirm ar de ju stiça ou de iguald ad e. Afirm a o
d ano absolu to, o excesso do d ano que arru ina tod a cond u ção p olíti-
ca da argu m entação igu alitária. N esse excesso ela revela, tam bém ela,
uma "verd ad e" do p olítico. Mas essa verdade é de um tip o p articu -
lar. N ão é a id éia do bem , a ju stiça, o kosmos divino ou a verd ad eira
igualdade que perm itiria institu ir uma verd ad eira com unid ad e no lu-
gar da m entira p olítica. A verdade da p olítica é a m anifestação de sua
falsid ad e. É essa d istância de tod a nom eação e de tod a inscrição p olí-
ticas em relação às realid ad es que as su stentam .
Sem dúvida essa realid ad e pode ser nom ead a, e a m eta-p olítica
a nom eará: social, classes sociais, m ovim ento real da socied ad e. Mas
o social só é essa verdade da p olítica a p reço de ser a verdade de sua
falsid ad e: m enos a carne sensível da qual a p olítica é feita, do que o
nome de sua falsid ad e rad ical. N o d ispositivo m od erno da "filosofia
p olítica", a verdad e da p olítica não está mais situad a acim a de si em
sua essência ou sua id éia. Está situad a abaixo ou atrás d ela, naqu ilo
que ela escond e e que ela é feita somente p ara escond er. A m eta-p o-
lítica é o exercício d aquela verd ad e, não mais situ ad a em face da fac-
tualidade d emocrática com o o bom modelo diante do simulacro m ortal,
mas com o o segredo de vida e de m orte, enrolad o no cerne mesmo de
qu alqu er d em onstração da p olítica. A m eta-p olítica é o d iscurso so-
bre a falsid ad e da p olítica que vem d uplicar cad a m anifestação p olíti-
ca do litígio, para provar seu d esconhecim ento de sua p róp ria verd a-
d e, m arcand o a cad a vez a d istância entre os nom es e as coisas, a dis-
tância entre a enu nciação de um logos do p ovo, do homem ou da ci-
d ad ania e o cálcu lo que dele é feito, a d istância revelad ora de uma in-
ju stiça fu nd am ental, ela mesma id êntica a uma m entira constitu tiva.
Se a arqu i-p olítica antiga propunha uma terap êu tica da saúde com u ni-
tária, a m eta-p olítica mod erna apresenta-se com o uma sintom atologia
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O Desentend im ento
m orrem e os term os da igualdad e e da liberd ad e. E o direito, cu ja de-
term inação filosófica fora prod uzida p ara desfazer o nó do justo ao
litígio, torna-se o nom e novo, o nome p or excelência do d ano. Sob
qu alqu er d em onstração de uma contagem dos incontáveis, sob tod o
m od o de com u nid ad e organizad o p ara a m anifestação de um litígio,
estará doravante presente a figura-mestra daquele cu ja contagem é sem-
pre d eficitária: esse hom em que não é contad o enqu anto uma qual-
quer de suas réplicas não o for; m as, tam bém , que nu nca é contad o
em sua integrid ad e enqu anto não for contad o com o anim al p olítico.
Denu nciand o os com p rom issos da p ara-p olítica aristotélica com a se-
d ição que am eaça o corp o social e d ecom p ond o o demos em indiví-
d uos, a p ara-p olítica do con trato e da soberania reabre uma d istância
mais rad ical do que a velha d istância p olítica da parte tom ad a pelo
tod o. Ela dispõe a d istância do homem a si mesmo com o o fund o pri-
meiro e ú ltim o da d istância do povo a si m esm o.
Pois, ao mesmo tempo que o povo da soberania, apresenta-se seu
hom ônim o, que não se parece em nad a com ele, que é a d enegação ou
o escárnio da soberania, o povo p ré-p olítico ou fora-d o-p olítico que
se cham a p op u lação ou p op u lacho: p op u lação laboriosa e sofred ora,
massa ignorante, tu rba acorrentad a ou d esacorrentad a etc., cu ja fac-
tualid ad e entrava ou contrad iz a realização da soberania. Assim tor-
na a se estabelecer a d istância do povo m od erno, essa d istância que
está inscrita na con ju n ção p roblem ática dos term os do homem e do
cid ad ão: elementos de um novo d ispositivo do litígio p olítico, em que
cad a term o serve para m anifestar a não-contagem do ou tro; m as, tam -
bém , p rincíp io de um restabelecim ento da d istância entre a arqu i-p o-
lítica e a p olítica e instalação dessa d istância sobre a p róp ria cena do
p olítico. Essa eficácia política da d istância arqui-política tem um nome.
Cham a-se terror. O terror é o agir p olítico que assume com o tarefa
política o pedido da efetu ação da arkhé com u nitária, de sua interiori-
zação e de sua sensibilização integral, que assum e, p ortan to, o p ro-
gram a arqu i-p olítico mas que o assume nos term os da p ara-p olítica
m od erna, os da relação apenas entre o pod er soberano e indivíduos
qu e, cad a um no que lhe concerne, são sua d issolu ção virtu al, am ea-
çand o em si mesmos a cid ad ania que é a alma do tod o.
N o fundo do d ano rad ical — a desumanidade do hom em —, vão
entrecru zar-se assim o d ano novo que coloca os indivíduos e seus di-
reitos em relação com o Estad o; o d ano que coloca o verd ad eiro so-
berano — o povo — às voltas com os usurpad ores da soberania; a di-
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Jacqu es Rancière
ferença do povo da soberania e do povo com o p arte; o d ano que op õe
as classes, e aquele que op õe a realid ad e de seus conflitos aos jogos
do indivíduo e do Estad o. É nesse jogo que se forja a terceira grand e
figura da "p olítica dos filósofos", que será cham ad a m eta-p olítica. A
m eta-p olítica ocu p a uma situ ação sim étrica em relação à arqu i-p olí
tica. A arqu i-p olítica revogava a falsa p olítica, quer d izer, a d em ocra-
cia. Ela p roclam ava a d istância rad ical entre a verd ad eira ju stiça, se-
m elhante à p rop orção d ivina, e as encenações d em ocráticas do d ano,
assimilad as ao reino da inju stiça. Sim etricam ente, a m eta-p olítica sen-
tencia um excesso rad ical da inju stiça ou da desigualdad e em relação
ao que a p olítica pode afirm ar de ju stiça ou de iguald ad e. Afirm a o
d ano absolu to, o excesso do d ano que arru ina tod a cond u ção p olíti-
ca da argu m entação igu alitária. Nesse excesso ela revela, tam bém ela,
uma "verd ad e" do p olítico. Mas essa verdade é de um tip o p articu -
lar. N ão é a id éia do bem , a ju stiça, o kosmos divino ou a verd ad eira
igualdade que p erm itiria institu ir uma verd ad eira com unid ad e no lu-
gar da m entira p olítica. A verdade da p olítica é a m anifestação de sua
falsid ad e. E essa d istância de tod a nom eação e de tod a inscrição p olí-
ticas em relação às realid ad es que as su stentam .
Sem dúvida essa realid ad e pode ser nom ead a, e a m eta-p olítica
a nom eará: social, classes sociais, m ovim ento real da socied ad e. Mas
o social só é essa verdade da p olítica a p reço de ser a verdade de sua
falsid ad e: m enos a carne sensível da qual a p olítica é feita, do que o
nome de sua falsid ad e rad ical. N o d ispositivo m od erno da "filosofia
p olítica", a verdade da p olítica não está mais situad a acim a de si em
sua essência ou sua id éia. Está situad a abaixo ou atrás d ela, naqu ilo
que ela escond e e que ela é feita som ente p ara escond er. A m eta-p o-
lítica é o exercício d aquela verd ad e, não mais situad a em face da fac-
tualidade d emocrática com o o bom modelo diante do simulacro m ortal,
mas com o o segredo de vida e de m orte, enrolad o no cerne mesmo de
qu alqu er d em onstração da p olítica. A m eta-p olítica é o d iscurso so-
bre a falsid ad e da p olítica que vem d uplicar cad a m anifestação p olíti-
ca do litígio, p ara provar seu d esconhecim ento de sua p róp ria verd a-
d e, m arcand o a cad a vez a d istância entre os nom es e as coisas, a dis-
tância entre a enu nciação de um logos do p ovo, do homem ou da ci-
d ad ania e o cálcu lo que dele é feito, a d istância revelad ora de uma in-
ju stiça fu nd am ental, ela mesma id êntica a uma m entira constitu tiva.
Se a arqu i-p olítica antiga propunha uma terap êu tica da saúde com u ni-
tária, a m eta-p olítica mod erna apresenta-se com o uma sintom atologia
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O Desentend im ento
qu e, em cad a d iferença p olítica, por exem p lo, na do homem e do ci-
d ad ão, d etecta um signo de não-verd ad e.
Foi evidentemente Mar x quem, muito particularmente em A ques-
tão judaica, deu a form u lação canônica da interp retação m eta-p olítica.
O alvo continu a sendo o mesmo de Platão, ou seja, a d em ocracia com o
p erfeição de uma certa p olítica, quer d izer, p erfeição de sua m entira.
O princípio de seu qu estionam ento é d ad o estritam ente pela d istância
entre um id eal id entificad o à figu ração rou sseau niana da soberania
cid ad ã e uma realid ad e concebid a nos term os hobbesianos da luta de
tod os contra tod os. O tratam ento dessa d istância entre o homem hobbe-
siano e o cidadão rousseauniano sofre ele mesmo, no desenrolar do texto,
uma inflexão significativa. De início, significa o limite da p olítica, sua
im potência para realizar a parte propriam ente humana do hom em . A
em ancipação humana é então a verdade da humanidade livre para além
dos limites da cid ad ania p olítica. Mas, d urante o p ercu rso, essa verda-
de do homem muda de lugar. O homem não é a realização p or vir para
além da rep resentação p olítica. Ele é a verdade escond id a sob essa re-
presentação: o homem da sociedade civil, o proprietário egoísta ao qual
correspond e o não-p rop rietário, cu jos d ireitos de cid ad ão só estão ali
para m ascarar seu não-d ireito rad ical. A falha da cid ad ania em reali-
zar a verd ad eira humanidad e do homem torna-se a sua cap acid ad e de
servir, m ascarand o-os, os interesses do homem p rop rietário. A "p arti-
cip ação" p olítica é então a pura m áscara da rep artição das p arcelas. A
p olítica é a mentira sobre uma verdade que se cham a a socied ad e. Mas,
recip rocam ente, o social é sempre red utível, em última instância, à sim-
ples não-verd ad e da p olítica.
O social com o verdade do p olítico está preso num esqu arteja-
m ento notável. N um p ólo, ele pode ser o nom e "realista" e "cien tífi-
co " da "hu m anid ad e do h om em ". O m ovim ento da p rod u ção e o da
luta de classes são então o m ovim ento verd ad eiro que deve, med ian-
te sua realização, dissipar as aparências da cid ad ania p olítica em pro-
veito da realid ad e do hom em p rod u tor. Mas essa positivid ad e é de
p ronto corroíd a pela ambigüid ad e do conceito de classe. Classe é de
m aneira exem p lar um desses hom ônim os sobre os quais se dividem
as contagens da ordem p olicial e as da m anifestação p olítica. N o sen-
tid o p olicial, uma classe é um agru pam ento de homens aos quais sua
origem ou sua ativid ade lhes confere um estatu to e uma p osição par-
ticu lar. Classe, nesse sentid o, pode d esignar, no sentido fraco, um gru-
po p rofissional. Fala-se assim , no século XIX, da classe dos impres-
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Jacqu es Rancière
m od erno. Alternativam ente, perm ite reduzir a ap arência p olítica do
povo a ilu são, recobrind o a realid ad e do conflito ou , ao con trário, de-
nu nciar os nomes do povo e as m anifestações de seu litígio com o ve-
lharias que retard am o ad vento dos interesses com u ns. Id eologia é o
nom e que liga a p rod u ção do p olítico à sua evacu ação, que designa a
d istância das p alavras às coisas com o falsid ad e na p olítica sem pre
transform ável em falsidad e da p olítica. Mas é tam bém o conceito pelo
qu al se d eclara que qu alqu er coisa pertence à p olítica, à d em onstra-
ção "p olítica" de sua falsid ad e. E em suma o conceito onde tod a p o-
lítica se anu la, seja p or sua evanescência p roclam ad a, seja, ao con trá-
rio, pela afirm ação de que tudo é p olítica, o que significa dizer que nada
o é, que a p olítica é apenas o m od o p arasitário da verd ad e. Id eologia
é, d efinitivamente, o term o que permite sempre d eslocar o lugar do po-
lítico até seu lim ite: a d eclaração de seu fim . O que se cham a, em lin-
guagem p olicial, "o fim do p olítico" não é talvez nad a mais que o re-
m ate do p rocesso pelo qual a m eta-p olítica, enrolad a no coração do
p olítico e enroland o em volta de qu alqu er coisa o nom e do p olítico, o
esvazia do interior, e faz d esap arecer, em nome da crítica de tod a ap a-
rência, o d ano constitu tivo do p olítico. N o final do p rocesso, o d ano,
d epois de ter passad o pelo abism o de sua absolu tização, é trazid o de
volta à iteração infinita da verdade da falsid ad e, à pura m anifestação
de uma verdade vazia. A p olítica que ele fundava pode então id entifi-
car-se ao inatingível p araíso original onde indivíduos e grupos utili-
zam a p alavra, que é o p róp rio do hom em , p ara conciliar seus inte-
resses p articu lares no reino do interesse geral. O fim da p olítica que
se p ronu ncia no túmulo dos m arxism os p oliciais é em suma apenas a
ou tra form a, a form a cap italista e "liberal" da m eta-p olítica m arxis-
ta. O "fim da p olítica" é o estágio supremo da parasitagem m eta-p o-
lítica, a afirm ação última do vazio de sua verd ad e. O "fim da p olíti-
ca " é a realização da filosofia p olítica.
Mais exatam ente, o "fim da p olítica" é o fim da relação tensa
da p olítica e da m eta-p olítica que caracterizou a era das revoluções de-
m ocráticas e sociais m od ernas. Essa relação tensa se estabeleceu na in-
terp retação da d iferença do homem e do cid ad ão, do povo sofred or/
trabalhad or e do povo da soberania. H á com efeito duas grand es m a-
neiras de pensar e de tratar essa d istância. A prim eira é a da m eta-p o-
lítica. Esta vê na d istância a d enúncia de uma id entificação im possí-
vel, o sinal da não-verd ad e do povo ideal da soberania. Define com o
d em ocracia form al o sistema das inscrições ju ríd icas e das institu ições
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O Desentend im ento
governam entais fu nd ad o no conceito da soberania do p ovo. Assim
caracterizad a, a "fo r m a " é op osta a um conteú d o virtual ou ausente,
à realid ad e de um pod er que pertenceria realm ente à com u nid ad e po-
pu lar. A p artir d aí, seu sentid o pode variar, desde a simples ilusão que
mascara a realidade do poder e do desapossamento até o mod o de apre-
sentação necessário de uma contrad ição social aind a não desenvolvi-
da su ficientem ente. Em tod os os casos, a interp retação m eta-p olítica
da d iferença do povo em relação a si mesmo cind e em duas tod a cena
p olítica: há aqueles que jogam o jogo das form as — da reivind icação
dos d ireitos, da batalha pela rep resentação etc. — e os que cond uzem
a ação d estinad a a fazer d esvanecer esse jogo das form as; de um lad o,
o povo da rep resentação ju ríd ico-p olítica, do ou tro, o povo do movi-
m ento social e op erário, o ator do m ovim ento verd ad eiro que supri-
me as ap arências p olíticas da d em ocracia.
A essa interp retação m eta-p olítica da d istância entre o homem e
o cid ad ão, entre o povo laborioso e o povo soberano, op õe-se a inter-
p retação p olítica. Que o povo seja d iferente de si mesmo não é, para
a p olítica, um escând alo que se precise d enu nciar. É a cond ição pri-
meira de seu exercício. H á p olítica desde que exista a esfera de apa-
rência de um su jeito povo cu ja propried ad e consiste em ser d iferente
de si m esm o. Logo, do p onto de vista p olítico, as inscrições da igual-
dade que figu ram nas Declarações d os Direitos do H om em ou nos
p reâm bu los dos Cód igos e das Constitu ições, as que m aterializam tal
ou qual institu ição ou que estão gravad as no frontão de seus ed ifícios,
não são "form as" desmentidas por seu conteúd o ou "ap arências" feitas
para escond er a realid ad e. São um m od o efetivo do ap arecer do p ovo,
o mínimo de igualdade que se inscreve no cam p o da exp eriência co-
mum. O p roblem a não é acu sar a d iferença entre essa iguald ade exis-
tente e tu d o o que a d esmente. N ão se trata de d esmentir a ap arência,
mas ao contrário de confirm á-la. Lá ond e está inscrito a p arcela dos
sem -p arcela, p or frágeis e fugazes que sejam essas inscrições, é criad a
uma esfera do ap arecer do demos, existe um elem ento do kratos, do
pod er do p ovo. O p roblem a está em am p liar a esfera desse ap arecer,
em au m entar esse p od er.
Su peravaliar esse pod er quer dizer criar casos de litígio e mun-
dos de comunidad e do litígio mediante a d em onstração, sob tal ou qual
esp ecificação, da d iferença entre o povo e ele m esm o. N ão há, de um
lad o, o povo ideal dos textos fund ad ores e, do ou tro lad o, o povo real
das oficinas e dos su bú rbios. H á um lugar de inscrição do pod er do
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Jacqu es Rancière
povo e lugares ond e esse pod er é consid erad o sem efeito. O esp aço d o
trabalho ou o esp aço d om éstico não desmentem o poder escrito nos
textos. Para d esm enti-lo, seria preciso que tivessem primeiramente que
confirm á-lo, que fossem relativos a ele. Ora, segundo a lógica p olici-
al, ninguém vê com o e por que o seriam . O p roblem a é p ortanto cons-
tru ir uma relação visível com a não-relação, um efeito de um pod er
que su p ostam ente não tem efeito. N ão se trata mais de interp retar no
m od o sintom atológico a d iferença de um povo com ou tro. Trata-se
de interp retar, no sentid o teatral da p alavra, a d istância entre um lu-
gar ond e o demos existe e um lugar ond e ele não existe, ond e só há
p op u lações, ind ivíd uos, em pregad ores e em p regad os, chefes de fam í-
lia e esposas etc. A p olítica consiste em interp retar essa relação, quer
dizer, primeiramente constitu ir sua d ram aturgia, inventar o argumento
no duplo sentid o, lógico e d ram ático, do term o, que coloca em rela-
ção o que não tem relação. Essa invenção não é nem obra do p ovo da
soberania e de seus "rep resen tan tes", nem obra do p ovo/não-p ovo do
trabalho e de sua "tom ad a de con sciên cia".
Ela é obra do que se pod eria cham ar um terceiro p ovo, que ope-
ra sob esse nome ou sob aqu elou tro nom e, que liga um litígio p arti-
cu lar à contagem dos incontad os. Proletário foi o nome privilegiad o
sob o qual se deu essa ligação. Isto é, que esse nome de "classe que
não é classe" qu e, na m eta-p olítica, valeu com o o p róp rio nom e da
verdade da ilu são p olítica, valeu , na p olítica, com o um desses nom es
de su jeito que organizam um litígio: não o nom e de uma vítim a uni-
versal, antes o nome de um su jeito u niversalizante do d ano. Valeu
com o nome de um m od o de su bjetivação p olítica. Em p olítica, um
su jeito não tem corp o consistente, ele é um ator interm itente que tem
m om entos, lu gares, ocorrências e cu jo caráter p róp rio é inventar, no
duplo sentid o, lógico e estético, desses term os, argumentos e demons-
trações para colocar em relação a não-relação e d ar lugar ao não-lu -
gar. Essa invenção opera-se em form as que não são as "form as" meta-
p olíticas de um "con teú d o" p roblem ático, mas as form as de um ap a-
recer do povo que se opõe à "ap arên cia" m eta-p olítica. E, da mesma
m aneira, o "d ireito" não é o atribu to ilu sório de um su jeito id eal, é o
argu m ento de um d ano. Já que a d eclaração igu alitária existe em al-
gum lu gar, é possível efetu ar a sua p otência, organizar seu encontro
com o usual ancestral da d istribu ição dos corp os colocand o a ques-
tão: tal ou qual tip o de relação está com p reend id o ou não na esfera
de m anifestação da igualdade dos cid ad ãos? Qu and o op erários fran-
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O Desentend im ento
ceses, no tem po da m onarqu ia burguesa, fazem a pergunta: "O s ope-
rários franceses são cid ad ãos fran ceses?", isto é: "têm os atribu tos
reconhecid os pela Carta real aos franceses iguais perante a lei?", ou
então, qu and o suas "ir m ãs" fem inistas, no tem po da Rep ú blica, fa-
zem a p ergu nta: "As francesas estão incluíd as entre os "fran ceses"
d etentores do sufrágio universal}", uns e ou tros partem realm ente da
d istância entre a inscrição igu alitária da lei e os esp aços em que a de-
sigualdade faz lei. Mas não conclu em d aí, de form a algu m a, o não-
lugar do texto igu alitário. Ao contrário, inventam-lhe um novo lugar:
o esp aço p olêm ico de uma d em onstração que mantém ju ntas a igual-
dade e sua au sência. A d em onstração, com o vim os, exibe ao mesmo
tempo o texto igu alitário e a relação d esigualitária. Mas tam bém , por
essa própria exibição, pelo fato de dirigir-se a um interlocu tor que não
reconhece a situ ação de in terlocu ção, faz com o se ela se exercesse
numa com u nid ad e cu ja inexistência ela d em onstra, ao mesmo tem-
p o. Ao jogo m eta-p olítico da ap arência e de seu d esm entid o, a p olíti-
ca d em ocrática opõe essa p rática do como se que constitu i as form as
de ap arecer de um su jeito e que abre uma com unid ad e estética, à ma-
neira kantiana, uma comunid ad e que exige o consentim ento d aquele
mesmo que não a reconhece.
N os mesmos nom es, o m ovim ento social e op erário m od erno
apresenta assim o entrelaçam ento de duas lógicas contrárias. Sua pa-
lavra-chave, a de p roletário, designa d ois "su jeitos" m uito d iferentes.
Do p onto de vista m eta-p olítico, designa o op erad or do m ovim ento
verd ad eiro da socied ad e que d enuncia e deve fazer estilhaçar as apa-
rências d em ocráticas da p olítica. Dessa form a, a classe d esclassifi-
cad ora, a "d issolu ção de tod as as classes", tornou -se o su jeito de uma
reincorp oração do p olítico no social. Ela serviu para ed ificar a figura
mais rad ical da ordem arqu i-policial. Do ponto de vista p olítico, é uma
ocorrência específica do demos, um sujeito d em ocrático, que opera uma
d em onstração de seu pod er na constru ção de mundos de com u nid ad e
litigiosa, que universaliza a questão da contagem dos incontad os, além
de qu alqu er acerto, aquém do d ano infinito. "O p er á r io" e "p roletá-
r io" foram assim os nomes de atores de um duplo p rocesso: atores da
p olítica d em ocrática, que exp õem e tratam a d istância entre o povo e
ele m esm o; e figuras m eta-p olíticas, atores do "m ovim ento real" co-
locad o com o d issipad or da ap arência p olítica e de sua form a supre-
m a, a ilu são d em ocrática. A m eta-p olítica veio inserir sua relação da
ap arência com a realid ad e em tod as as form a de litígio do p ovo. Mas
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Jacqu es Ran cière
a recíp roca tam bém é verd ad eira: p ara constru ir suas argu m entações
e suas m anifestações, para p ôr em relação as form as de visibilid ad e
do logos igu alitário com seus lugares de invisibilid ad e, o m ovim ento
social e op erário teve de reconfigu rar as relações do visível e do invi-
sível, as relações entre os m od os do fazer, os m od os do ser e os m o-
dos do dizer que op eram em favor dos trabalhad ores e de sua p ala-
vra. Mas, p ara fazer isso, não d eixou de retom ar as argu m entações
m eta-p olíticas que ligam o ju sto e o inju sto aos jogos da verdade "so-
cial" e da falsid ad e "p olítica". A m eta-p olítica interpretava com o sin-
tom as de não-verd ad e as form as da d istância d em ocrática. Mas não
d eixou de ser, ela m esm a, reinterp retad a, de dar m atéria e form a a ou-
tras m aneiras de estabelecer a d istância e de aboli-la.
O d isp ositivo de con ju n to dessas entre-interp retações tem um
nom e. Cham a-se o social. Se as relações da p olícia e da p olítica são
d eterm inad as p or algumas p alavras-chave, alguns hom ônim os m aio-
res, pode-se dizer que o social, na m od ernid ad e, foi o hom ônim o de-
cisivo que fez que diversas lógicas e entrelaçam entos de lógicas se ju n-
tassem e se separassem , se opusessem e se confu nd issem . Os "restau -
rad ores" au top roclam ad os do p olítico e de "su a " filosofia se com p ra-
zem na op osição do p olítico e de um social que se teria usurpado suas
p rerrogativas de form a ind evid a. Mas o social foi p recisam ente, na
ép oca m od erna, o lugar ond e se jogou a p olítica, o p róp rio nom e que
ela tom ou , lá ond e ela não foi simplesmente id entificad a à ciência do
governo e aos meios de ap od erar-se dele. Esse nom e é, na verd ad e, se-
m elhante ao de sua n egação. Mas tod a p olítica trabalh a sobre o
hom ônim o e o ind iscernível. Tod ^ p olítica trabalha tam bém à beira
de seu perigo rad ical, que é a incorp oração p olicial, a realização do
su jeito p olítico com o corp o social. A ação p olítica m antém -se sempre
no interm éd io, entre a figura "n a tu r a l", a figura p olicial da incorp o-
ração de uma socied ad e dividida em órgãos fu ncionais e a figura li-
mite de uma incorp oração arqu i-p olítica ou m eta-p olítica d iferente: a
transform ação do su jeito que serviu à d esincorp oração do corp o so-
cial "n atu ral" num corp o glorioso da verdade. A época do "m ovim ento
social" e das "revolu ções sociais" foi aqu ela em que o social teve to-
dos esses papéis. Foi p rim eiram ente o nom e p olicial da d istribu ição
dos grupos e das fu nções. Foi, ao con trário, o nom e sob o qu al d ispo-
sitivos p olíticos de su bjetivação vieram contestar a natu ralid ad e des-
ses grupos e dessas fu nções, fazend o com p u tar a p arcela dos sem -p ar-
cela. Foi, enfim , o nome m eta-p olítico de uma verdade da p olítica, ver-
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O Desentend im ento
dade que assu m iu , ela p róp ria, duas form as: a positivid ad e d o m o-
vimento real cham ad o a encarnar-se com o p rincíp io de um novo cor-
po social, mas tam bém a pura negativid ad e da d em onstração interm i-
nável da verdade da falsid ad e. O social foi o nome com u m de tod as
essas lógicas e aind a o nom e de seu entrelaçam ento.
Isso quer dizer tam bém que a "ciên cia social", acu sad a p or uns
de ter frau d u losam ente introd u zid o sua empiricid ad e nas altu ras re-
servad as da filosofia p olítica, lou vad a p elos ou tros p or ter desmis-
tificad o os conceitos supostamente elevados dessa filosofia, foi na ver-
dade a p róp ria form a de existência da filosofia p olítica na era das re-
volu ções d em ocráticas e sociais. A ciência social foi a última form a
assumida pela relação tensa da filosofia e da p olítica e pelo p rojeto fi-
losófico de realizar a p olítica, su p rim ind o-a. Esse conflito e esse p ro-
jeto se fizeram nos avatares da ciência m arxista ou da sociologia dur-
kheim iana ou w eberiana, m u ito mais que nas form as su p ostam ente
puras da filosofia p olítica. A m eta-p olítica m arxista d efiniu a regra do
jogo: o d eslocam ento entre o verd ad eiro corp o social escond id o sob a
ap arência p olítica e a afirm ação interm inável da verdade científica da
falsidade p olítica. A arqu i-p olítica p latônica deu à primeira ciência so-
cial seu m od elo: a com u nid ad e orgânica, d efinid a pela boa engrena-
gem de suas fu nções sob o governo de uma religião nova da com u ni-
d ad e. A p ara-p olítica aristotélica deu à sua segunda era o m od elo de
uma com u nid ad e sabiam ente d istanciad a de si m esm a. A últim a era
da sociologia, que é tam bém o últim o avatar da filosofia p olítica, é a
exp osição da pura regra do jogo: era do vazio, já foi d ito, era em que
a verdade do social está reduzida à da p arasitagem infinita da verd a-
de vazia. Os sociólogos da terceira era às vezes cham am isso de "fim
do p olítico". Talvez agora estejam os em cond ições de com p reend ê-lo:
esse "fim do p olítico" é estritam ente id êntico ao que os rem end ões da
"filosofia p olítica" cham am "volta do p olítico". Voltar à pura p olíti-
ca e à pureza da "filosofia p olítica" tem hoje um ú nico sentid o. Signi-
fica voltar a aquém do conflito constitu tivo da p olítica mod erna com o
do conflito fu nd am ental da filosofia e da p olítica, voltar a um grau
zero da p olítica e da filosofia: id ílio teórico de uma d eterm inação fi-
losófica do bem que a com u nid ad e p olítica teria por tarefa realizar;
id ílio p olítico da realização do bem com u m pelo governo esclarecid o
das elites ap oiad o na confiança das massas. A volta "filosófica" da po-
lítica e seu "fim " sociológico são uma ú nica e mesma coisa.
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Jacqu es Rancière
DEMO CRACIA OU CON SEN SO
2 Cf. as obras de Jean Baud rillard , e especialmente L' Illusion de la fin, Gali-
lée, 1992.
3 Cf. Gianni Vattim o, La Société transparente, Desclée de Brou w er, 1990.
Recap itu lem os: a p olítica existe ali ond e a contagem das p arce-
las e das partes da socied ad e é p ertu rbad a pela inscrição de uma par-
cela dos sem -p arcela. Ela com eça qu and o a igualdade de qu alqu er um
com qu alqu er um inscreve-se com o liberd ad e do p ovo. Essa liberd a-
de do povo é uma propried ad e vazia, uma propried ad e im própria pela
qual aqueles que não são nad a colocam seu coletivo com o id êntico ao
tod o da comunidade. A política existe enquanto formas de subjetivação
singulares renovarem as form as da inscrição p rim ária da id entid ade
entre o tod o da com u nid ad e e o nad a que a separa de si m esm a, quer
d izer, da contagem apenas de suas p artes. A p olítica d eixa de existir
ali onde não tem mais lugar essa d istância, ond e o tod o da com u nid a-
de é reduzido sem resto à soma de suas p artes. Há várias m aneiras de
pensar o tod o com o apenas a soma de suas partes. A soma pode ser
feita de indivíduos, pequenas máquinas que exploram de forma intensa
sua p róp ria liberd ad e de d esejar, de empreend er e de fru ir. Pode ser
feita de grupos sociais, que com p õem seus interesses com o p arceiros
responsáveis. Pode ser feita de com u nid ad es, cad a uma provid a do re-
conhecim ento de sua id entid ad e e de sua cu ltu ra. O Estad o consen-
sual é qu anto a isso tolerante. O que ele não tolera m ais, p or ou tro
lad o, é a p arte exced ente, a que falseia a contagem da com u nid ad e. O
que ele precisa são de partes reais, que possuem ao mesmo tem po suas
propried ad es e a propried ad e com u m do tod o. O que ele não pode to-
lerar é um nad a que seja tu d o. O sistema consensu al repousa nesses
axiom as sólid os: o tod o é tu d o, o nada não é nad a. Se se suprimirem
as entidades parasitas da su bjetivação p olítica, atinge-se, pou co a pou-
co, a id entid ad e do tod o com o tod o, que é identidad e do p rincíp io
do tod o com o de cad a uma das partes, dos herd eiros com o tod o. Essa
identidade se cham a hum anid ad e.
Aqui com eçam os problem as. O sistema consensual celebrava sua
vitória sobre o totalitarism o com o vitória final do d ireito sobre o não-
d ireito e do realism o sobre as u top ias. Preparava-se para acolher em
seu espaço liberto da p olítica e cham ad o Eu rop a as d em ocracias nas-
coisa totalm ente diferente: a subsunção dessas atividades sob uma categoria do hu-
manitário com o artifício da realpolitik dos Estad os.
6 Cf. Alain Bad iou , UÉthique. Essai sur la conscience du mal, H atier, 1993.
7 Aristóteles, Política, I, 1253 a 4.
8 A discussão sobre esse p onto poderia ser desenvolvida de maneira mais de-
talhada com o que Jean-Lu c N ancy, em La Comparution (Christian Bourgois, 1991)
e Le Sens du monde (Galilée, 1993), diz sobre a política com o d ifração do em d o
em-comum.