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Barcincki, Mariana. O lugar da informalidade e do imprevisto na pesquisa científica: notas


epistemológicas, metodológicas e éticas para o debate
 

O lugar da informalidade e do imprevisto na pesquisa


científica: notas epistemológicas, metodológicas e éticas para o
debate

The role of informality and the unexpected in the scientific


research: epistemological, methodological and ethical notes
for discussion

Mariana Barcincki1
Resumo
A partir de um relato de experiência sobre o trabalho de campo em uma unidade prisional feminina, o presente artigo tem como
objetivo discutir o lugar ocupado pela informalidade no processo de pesquisa. O argumento central é que as orientações do método
científico – especialmente sobre a neutralidade e a objetividade necessárias à condução de protocolos rígidos de coleta e análise de
dados – têm recorrentemente se configurado em obstáculos à consecução da pesquisa social qualitativa. Para além da rigidez das
diretrizes metodológicas apontadas como adequadas ao referido método, a informalidade das relações estabelecidas no campo nos
convida igualmente ao debate acerca das questões éticas que envolvem a pesquisa com seres humanos. O presente relato ilustrará a
forma como a abertura à informalidade e ao imprevisto próprios do campo se configura em ferramenta essencial para a realização de
pesquisas sensíveis às realidades concretas dos indivíduos investigados.

Palavras-chave: método científico, trabalho de campo, papel da informalidade, questões éticas.

Abstract
From one experience report about the field work in a female prison institution, this article aims at discussing the role played by
informality in the research process. The main argument is that the guidelines provided by the scientific method – especially
regarding the need for neutrality and objectivity in order to follow rigid protocols for data collection and analysis – have recurrently
been configured as obstacles to the conduction of social qualitative research. In addition to the rigidity of methodological guidelines
indicated as appropriate to the particular method, the informality of relations established in the field also invites us to debate the
ethical issues surrounding the research with human beings. The current report will illustrate the ways in which openness to
informality and to unpredictability specific of the field constitutes an essential tool to conduct researches which are sensitive to the
concrete realities of the investigated individuals.

Keywords: scientific method, field work, role of informality, ethical issues.

                                                                                                                       
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Possui mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e
doutorado em Psicologia do Desenvolvimento pela Clark University (2006). Realiza pesquisa sobre violência e gênero,
especificamente sobre a inserção feminina em atividades criminosas. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em
Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: discurso, gênero, violência urbana e identidade.

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Introdução grande medida a adoção de posturas mais


sensíveis aos contextos pesquisados. A
Além das questões teóricas que contaminação dos dados é sempre apontada
elencamos como centrais aos nossos estudos como um risco natural da implicação do
sobre a criminalidade feminina, o trabalho de pesquisador, argumento sustentado pela
campo em instituições prisionais tem suscitado premissa positivista de uma realidade empírica
questões metodológicas, especialmente no que anterior e independente dos sujeitos que
se refere à flexibilidade necessária à abordagem constroem esta realidade (Fraser & Gondim,
qualitativa em pesquisa. Munidos de nossos 2004).
protocolos de entrevista e de observação,
cuidadosamente planejados à luz da literatura Ora, se a pesquisa qualitativa tem como
disponível, as situações cotidianas têm nos objetivo promulgado buscar a interpretação que
questionado acerca da adequação de nossos os sujeitos fazem da sua própria realidade, ela
métodos. As orientações metodológicas para a obviamente deve privilegiar os discursos
condução de um trabalho de campo científico e espontâneos e as interações que tomam lugar na
ético têm recorrentemente se mostrado vida cotidiana (Poupart, 2006). Se essas
insensíveis às dinâmicas e às formas de relações interpretações e os discursos apropriados para a
estabelecidas na vida concreta dos participantes. sua construção são indissociáveis do contexto
de sua produção, o pesquisador qualitativo deve
Em pesquisas realizadas em unidades lançar mão de métodos, técnicas e análises que
prisionais femininas no Rio de Janeiro e em captem as singularidades desses contextos.
Porto Alegre não raro nos vimos obrigados a
empreender mudanças e adaptações em nossos A abordagem qualitativa em
planos de observação e entrevista, com o psicologia, portanto, coloca em pauta questões
objetivo de captar o dinamismo das realidades sobre o procedimento empírico nas ciências
encontradas nesses espaços. Os exemplos em humanas (Holanda, 2006). Contrastando com o
que tais quebras de protocolo ocorreram são rigor e a sistematização do método científico,
inúmeros, evidenciando a importância de consagrado pelas ciências naturalistas, tal
informantes não previstos nos nossos projetos abordagem enfatiza a necessária flexibilidade
originais, bem como a riqueza de observações para a apreensão dos significados atribuídos
conduzidas nos locais onde a vida, de fato, se pelos atores sociais.
desenrola.
DaMatta (1978), em sua descrição do
Foi nas filas de espera em dias de trabalho do etnólogo, refere-se à fase existencial
visitação que conversamos com os familiares de como aquela que deve promover uma síntese
mulheres presas. Nessas ocasiões, nossa postura entre a história do pesquisador e a teoria
de proximidade nos rendeu relatos aprendida na academia. É nesse momento,
emocionados, sofridos e profundamente reais, quando nos abrimos às lições que podemos
não “contaminados” pelos espaços artificiais e extrair do campo, que a prática nos aponta as
pelos roteiros de entrevista que supõem um imprecisões e insuficiências do conteúdo teórico
informante sempre disposto a colaborar com extraído dos livros e manuais. O autor segue,
nossos estudos. Foi nos ônibus a caminho das comparando o ofício do etnólogo ao de um
unidades prisionais que tivemos contato pela tradutor que circula entre dois mundos, entre
primeira vez com a realidade de mulheres que duas culturas permeadas por códigos e
visitavam seus parentes presos, carregando representações específicas. Ao discorrer sobre a
filhos e sacolas no cumprimento de uma rígida utilidade dos manuais etnográficos, que
rotina semanal. E foram essas circunstâncias, descrevem com precisão as rotinas que
não previstas e potencialmente não adequadas à garantem a coleta de dados válidos e
condução da empreitada científica, que mais nos aprofundados, DaMatta denuncia a negligência,
informaram sobre os fenômenos que na academia, dos aspectos românticos da
gostaríamos de investigar. disciplina. Trata-se, segundo o autor, dos
momentos não previstos nos protocolos de
Se, por um lado, o trabalho de campo pesquisa e nos planos de inserção no campo,
nos convida ao questionamento da eficácia de quando
nossos métodos, as diretrizes do método
científico, sustentadas nas noções de o pesquisador se vê obrigado a atuar como
neutralidade e objetividade, obstaculizam em médico, cozinheiro, contador de histórias,

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mediador entre índios e funcionários da ponto predefinido de chegada ou término, a não


FUNAI, viajante solitário e até palhaço, ser o sentimento de ‘ser suficiente’”.
lançando mão desses vários e insuspeitados O que as discussões acima suscitam é o
papéis para poder bem realizar as rotinas que repensar necessário dos processos de pesquisa,
infalivelmente aprendeu na escola graduada bem como dos pressupostos teóricos e
(DaMatta, 1978, p.27). epistemológicos que fundamentam o seu
delineamento. A postura de estranhamento e
O presente relato de experiência tem o abertura acima referida é dificultada quando
objetivo de discutir de que forma a Psicologia adotamos uma perspectiva positivista de
tem (ou não) sido permeável às lições de outras ciência, negando as contradições próprias do
disciplinas, especialmente no que se refere às objeto estudado, tomando sua aparência
estratégias metodológicas e às possibilidades de contextual como sua essência a ser desvelada e
interpretação e entendimento que elas nos afirmando, enfim, a primazia do método sobre
abrem. Através de um relato de campo, esse mesmo objeto (Casco, 2011).
discutiremos a forma como os debates Nessa forma de abordagem, os
metodológicos, epistemológicos e éticos indivíduos são transformados em informantes
travados no âmbito acadêmico obstaculizam a de pesquisa e os contextos nos quais eles
abertura necessária ao imprevisto e à constroem suas vidas e seus significados são
espontaneidade que se impõem ao tomarmos coisificados, dotados de um caráter estático que
contato com esse mesmo campo. Nesse sentido, definitivamente não lhes é intrínseco. O campo
as prescrições acadêmicas acerca da condução como realidade a ser apreendida é
ética e científica da pesquisa nos engessam de imediatamente desprovido de seu dinamismo.
tal forma que nos tornamos cegos às Em outras palavras, tomamos o retrato que
imprevisibilidades e surpresas do cotidiano de tiramos da realidade como a realidade em si.
qualquer pesquisador. Uma das formas de repensarmos a
relação estabelecida entre pesquisador e
Lições (não) aprendidas pesquisado é a partir das metodologias
privilegiadas pela Antropologia e pela
Segundo Spink (2003), o termo Sociologia para o conhecimento das realidades
‘pesquisa de campo’ é adotado na Psicologia encontradas no campo. A observação
Social para se referir a um tipo de pesquisa feito participante – cuja origem tem sido creditada
nos locais onde a vida cotidiana se desenrola e, ora à Antropologia, a partir dos estudos de
portanto, fora dos contextos mais controlados Malinowski, ora à Sociologia, com a Escola de
do laboratório ou da sala de entrevista. A partir Chicago nos anos 20 – postula a participação do
dessa concepção, o autor chama a atenção para pesquisador no ambiente social que visa
a variedade de métodos de coleta e análise de investigar. Ao interagir, às vezes por longos
dados que adotamos para empreender as períodos de tempo, com os sujeitos em seus
interpretações das realidades encontradas no cotidianos o pesquisador tem acesso
campo. Discute, ainda, a relação peculiar entre privilegiado aos significados atribuídos às
pesquisador e pesquisado na pesquisa práticas, às regras e às relações singulares
tradicional que tende a separar o primeiro das estabelecidas em determinado contexto. E é essa
realidades supostamente existentes antes e inserção que coloca em questão a suposta
independente da sua empreitada de pesquisa. neutralidade do pesquisador que, ao integrar o
Nesse sentido, o campo, entendido grupo pesquisado, transforma o campo de forma
simplisticamente como o local onde coletamos não intencional (Queiroz, Vall, Souza & Vieira,
dados é uma realidade dada que devemos captar 2007).
através de métodos rígidos e técnicas bem A inserção do pesquisador no campo a
delineadas. Em contraste, é dessa forma que ser investigado rompe deliberadamente com a
Spink (2003, p. 20) descreve o processo de dicotomia entre esse pesquisador e seu objeto de
trabalho de campo em psicologia social, estudo. O primeiro é então reconhecido,
especificamente aquele desenvolvido em seu segundo Mary Jane Spink (2007, p. 7), como
Núcleo de Organização e Ação Social: “o “parte do fluxo de ações” que sucedem no
processo [de pesquisa] foi descrito em termos campo. A autora elabora seus questionamentos
da desnaturalização sucessiva [ou metodológicos a partir da perspectiva
estranhamento] em relação à temática em foco, construcionista de produção de conhecimento
do olhar multidirecional e da ausência de um que privilegia os conhecimentos locais em
detrimento dos universais, produzidos em

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contextos diversos daqueles em que são conhecimento e o questionamento da hierarquia


aplicados. Sob a mesma abordagem entre pesquisadores e pesquisados,
construcionista, Gergen (2008, p. 475) aponta tradicionalmente imposta pela pesquisa
para a especificidade do objeto da psicologia científica. Se decidimos ouvir nossos
social, a saber, fatos instáveis e “irrepetíveis”. participantes para então (re)pensarmos nossas
Nesse sentido, o autor discute a impossibilidade estratégias metodológicas é porque entendemos
da derivação de leis universais que expliquem que o conhecimento local, produzido por
esses fatos, uma vez que seu significado é pessoas concretas em seus cotidianos, é tão
sempre circunscrito historicamente. Por essa valioso quanto os protocolos que produzimos a
razão, ele defende o argumento de que a partir de uma sólida fundamentação teórica. A
psicologia social é um inquérito histórico. pesquisa social, notadamente a pesquisa
A valorização do conhecimento local, qualitativa, tem como característica o
produzido pelas pessoas em seus contextos questionamento da distância e do
particulares de existência, é uma das principais descompromisso político do pesquisador com os
características da Psicologia Comunitária Latino fenômenos estudados.
Americana. Ao elencar as pessoas da
comunidade como protagonistas em seus A regulamentação da ética
processos de mudança, a psicologia comunitária
questiona não somente a hierarquia entre A inserção implicada do pesquisador
conhecimento científico e conhecimento no campo e na realidade investigada, bem como
popular, mas os métodos por meio dos quais o a admissão da centralidade do conhecimento
conhecimento acadêmico é produzido (Scarparo produzido localmente, resulta em um
& Guareschi, 2007). Fundamentada a partir da questionamento dos preceitos éticos que
crítica sobre a aplicabilidade do conhecimento regulam as pesquisas conduzidas na academia.
produzido nos gabinetes, a disciplina promulga Silveira e Huning (2010, p. 389) discutem que a
a conexão indispensável entre teoria e prática existência dos comitês de ética em pesquisa é
(Lane, 1996). Portanto, a produção de fundamentada na justificativa da “imperfeição
conhecimento deve visar à transformação das ética humana”. A possibilidade humana de
realidades sociais, a partir da implicação transgressão de preceitos éticos na condução das
política do pesquisador (Guzzo & Lacerda, pesquisas, portanto, garantiria a autoridade de
2007). certo grupo de pessoas que então legisla a ética
Freitas (1998) afirma que a inserção do entre pesquisadores e pesquisados, segundo as
psicólogo em comunidades nos convida ao autoras.
questionamento das nossas certezas Delegar a avaliação ética dos projetos
epistemológicas e filosóficas, especialmente de pesquisa a um comitê externo à relação que
quando essa inserção tem como objetivo lidar se estabelece no campo entre pesquisadores e
com questões que impactam o cotidiano das pesquisados significa, em primeiro lugar, negar
pessoas com as quais trabalhamos. A autora a capacidade desses atores de decidirem, a partir
problematiza os instrumentais teóricos e da natureza da relação estabelecida, o que se
metodológicos, apontando para a forma como configura ou não como uma condução ética de
nossos valores e concepções de homem e pesquisa. Nesse sentido, restabelecemos uma
mundo sustentam nossas práticas como relação assimétrica com os participantes que, a
pesquisadores. Portanto, se entendemos os partir de uma perspectiva paternalista, são
participantes como co-autores em processos de destituídos do poder de decisão de se engajarem
mudança – dos quais nós psicólogos somo ou não na relação proposta no trabalho de
mediadores –, é preciso que trabalhemos campo.
verdadeiramente em conjunto com esses A atual resolução brasileira que regula
participantes na definição dos objetivos e das a condução de pesquisas com seres humanos – a
estratégias de intervenção visadas. É nesse Resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde
sentido que qualquer processo de transformação – define pesquisa como o “processo formal e
deve partir de demandas reconhecidas pela sistemático que visa à produção, ao avanço do
comunidade, assumindo seus membros o papel conhecimento e/ou à obtenção de respostas para
de investigadores internos, segundo Montero problemas mediante emprego de método
(1994). científico”. (Ministério da Saúde, 2012). Nesta
As perspectivas aqui apresentadas têm definição encontramos alguns problemas que
em comum a preocupação com a afetam notadamente os pesquisadores que
descentralização do processo de produção de conduzem pesquisas qualitativas.

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Primeiramente, há nela um pressuposto reveste de pelo menos uma questão ética


implícito de que o comitê de ética é capaz de fundamental, a saber, a afirmação de uma
avaliar a relevância do conhecimento produzido, posição aparentemente não situada social e
em uma apreciação desconectada das realidades politicamente do pesquisador. Esta posição lhe
concretas e das percepções dos protagonistas do garantiria acesso privilegiado e não
campo investigado. Ainda mais problemático, a contaminado às verdades dos indivíduos
partir da perspectiva implicada discutida neste participantes em suas pesquisas.
texto, é a admissão do método científico como A partir do relato de experiência do
único capaz de produzir os conhecimentos ditos trabalho de campo em uma unidade prisional
relevantes. Se o método científico, tal como feminina, o objetivo é ilustrar as problemáticas
discutido acima, se sustenta na obrigatoriedade teóricas, metodológicas e éticas aqui elencadas.
da separação entre sujeito conhecedor e objeto O referido relato aponta para a necessidade de
conhecido, bem como nas noções de controle e incluirmos em nossos protocolos de pesquisa a
não contaminação dos dados, como pretender a possibilidade do imprevisto, do informal e do
construção de um conhecimento não planejado. Nas palavras de DaMatta (1978,
verdadeiramente co-construído entre p. 24), de “todos esses intrusos que os livros,
pesquisadores e pesquisados? sobretudo os famigerados manuais das Ciências
No nosso entender, algumas das Sociais teimam por ignorar”.
premissas do método científico nos colocam
questões éticas raramente discutidas nos O relato
comitês ou nos departamentos onde pesquisas
são discutidas e regulamentadas. Como dito Chegamos à penitenciária feminina em
anteriormente, a necessária separação entre um dia de visitas, no final de semana. Ao
sujeito conhecedor e objeto a ser conhecido contrário do que imaginávamos a fila dos
parte da premissa de que tal objeto não deve ser visitantes não se estendia para fora dos muros
contaminado pelos gostos, afeições e valores do da instituição. Nossa expectativa justificava-se
pesquisador. A possibilidade dessa separação se pelas experiências anteriores em unidades
sustenta, em uma instância, na crença de que prisionais, onde as filas em dias de visita
pesquisadores – diferentemente dos sujeitos abrigavam centenas de pessoas. Na verdade,
pesquisados – não são situados socialmente e, naquele sábado havia somente cerca de dez
portanto, não carregam consigo os hábitos, pessoas aguardando o início do horário de
preconceitos e modos de ver o mundo visita.
característicos dos grupos aos quais são Percebemos uma carrocinha de lanches
afiliados. montada na calçada em frente à penitenciária.
A feminista Donna Haraway (1988), ao Ela não estava ali nas outras diversas vezes em
explicitar as bases epistemológicas das teorias que estivemos na instituição em dias de semana.
do standpoint, nos fala do caráter situado do A essa altura, frequentávamos essa unidade
conhecimento, o que significa reconhecer que prisional havia mais de dois anos, entrevistando
esse conhecimento deve ser sempre mulheres presas e agentes penitenciárias.
contextualizado a partir das condições de sua Aproximamo-nos da carrocinha e iniciamos
produção. Oliveira e Amâncio (2006) propõem uma conversa com a mulher que cuidava dela.
a incorporação da crítica feminista pela Para nossa surpresa, na conversa
psicologia social, pautando a discussão sobre a informal travada com Vera – nome fictício com
responsabilidade na produção dos saberes e na o qual passamos a identificá-la neste relato –
afirmação de sua fundamentação sócio- durante cerca de 30 minutos (essa conversa viria
histórica. Se o conhecimento é sempre a se repetir por mais 30 minutos no final de
produzido por indivíduos contextualizados semana seguinte) aprendemos mais sobre as
social e historicamente, afirmam os autores, regras daquela instituição do que nos dois anos
obviamente precisamos reconhecer a em que estivemos dentro dela como
parcialidade do saber contextualizado, ao invés pesquisadoras. No entanto, mais do que
de enfatizarmos os “falsos universalismos da informações que talvez pudéssemos obter por
ciência positiva” (Oliveira & Amâncio, 2006, p. meios mais formais ou oficiais, a riqueza das
601). conversas com Vera estava naquilo que de
O que argumentamos a partir da noção informal e cotidiano ela nos transmitia. E essa
de conhecimentos situados é que a velha concretude, essa realidade empírica – passível
discussão sobre a neutralidade científica, mais de ser contada somente por personagens reais de
do que um debate técnico ou metodológico, se

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histórias reais – não conseguiríamos apreender testemunhamos o afeto e a intimidade com que
por relato algum de nossos participantes típicos. se tratavam. Ela perguntava sobre o processo da
Vera deve ter em torno de 40 anos, é apenada, se a sonhada liberdade viria logo,
negra, casada e tem dois filhos. No segundo dia perguntava sobre o restante da família, guardava
em que conversamos, os três a acompanhavam os pertences que ficariam sob seus cuidados
em seu dia de trabalho. Os filhos brincavam no durante a visita e dava uma ficha com um
jardim em frente à penitenciária; vez por outra número para que os visitantes os resgatassem na
paravam a brincadeira para ouvirem atentos os volta.
depoimentos experientes de Vera. Em nossa primeira abordagem a Vera,
O próprio trabalho de Vera já nos fala perguntamos a razão de a fila estar tão
da necessidade de estarmos abertos à esvaziada naquele dia, contrariando as nossas
informalidade, à surpresa e ao inesperado que expectativas. Ela nos forneceu um acurado
envolve qualquer processo (sensível) de relato histórico sobre as visitas naquela
pesquisa. Ela tem uma carrocinha de lanches, instituição, justificando que os “bons tempos”
mas não vende nenhuma comida. Ela vem de (certamente “bons” para os seus negócios)
sua casa aos sábados e domingos (dias de visita haviam ficado para trás. Com a construção de
naquela unidade) empurrando a carrocinha que uma nova penitenciária feminina nos arredores
estrategicamente estaciona em frente à da cidade, quase metade das internas daquela
penitenciária. É primordialmente com ela que instituição havia sido transferida para lá. A
familiares contam para lidar com as queda no número de presas obviamente se
desinformações e as arbitrariedades das refletia na queda do número de visitantes. Vera
instituições prisionais em geral e dessa, em sabia do que estava falando quando delineava
especial. Ela sabe todas as regras de cor: o que esse histórico para nós. E foi esse conhecimento
entra e o que não entra em dias de visita, as do nativo, que vive a realidade sem a
comidas que familiares podem ou não levar nas necessidade de fontes secundárias para
sacolas trazidas às detentas e em que recipientes testemunhá-la, que nos chamou a atenção.
elas devem ser acondicionadas. Sabe também Gostaríamos de saber mais sobre o local em que
das roupas e sapatos que visitantes homens e estávamos entrando e, principalmente, dessa
mulheres podem vestir e calçar para serem relação peculiar que Vera estabelecia com o
liberados pela segurança da penitenciária. Vera lugar e com as pessoas que ali circulavam.
não só sabe dessas informações, como oferece O que descobrimos é que ela e sua
recursos para os desavisados lidarem com família faziam parte da história que ela nos
tamanhas arbitrariedades. Ela aluga chinelos, contava. Nos anos 2000, sua mãe fazia esse
para que aqueles com tênis acolchoados ou mesmo trabalho que ela faz agora, motivada
aquelas com saltos altos não tenham que voltar pela demanda percebida nos dias em que
para casa sem visitar seus familiares. Ela aluga visitava sua outra filha presa. No entanto, a
potes transparentes do tamanho exato permitido senhora, tal como descrita por ela, tinha um tino
pela segurança da penitenciária. muito especial para os negócios. No começo
E obviamente Vera cobra pelos seus apenas guardava os pertences proibidos dentro
inestimáveis serviços. A falta de estrutura da da prisão. Com o tempo, começou a vislumbrar
unidade prisional faz com que seus serviços novas formas de fazer seu negócio crescer.
sejam utilizados por praticamente todos os Alugava lugares na fila, nos “bons tempos” em
visitantes. Afinal, onde poderiam deixar as que elas se estendiam até o mercado vizinho à
chaves de casa e os telefones celulares, não penitenciária. E cobrava valores diferentes
permitidos dentro da prisão? Ela aluga um dependendo do quão perto do portão de entrada
espaço em sua carrocinha para esses pertences fosse o lugar. Chegava ainda de madrugada à
proibidos. penitenciária e colocava sacolas suas para
E é nesse misto de amiga e prestadora guardar as diferentes posições na fila, depois
de serviços que Vera estabelece uma singular disputadas pelos familiares que se davam ao
relação com os visitantes. Ela os conhece pelos luxo de chegar quase no horário da abertura do
nomes, sabe das histórias das “presas de cada portão. Além disto, a velha empreendedora
um”. E, nesse sentido, conjecturamos que ela é vendia doses de vinho para aquecer os visitantes
mesmo parte da rede de apoio desses visitantes, na fila durante o inverno. Segundo Vera, sua
rede frequentemente fragmentada pelo desgraça era provar sempre do vinho, o que lhe
encarceramento de um membro familiar. Nos rendeu sérios problemas de saúde e resultou em
dias em que nos sentamos no banco ao lado da sua morte precoce. Vera falava com orgulho dos
carrocinha, conversando com Vera, negócios da mãe, que agora ela herdava, porém

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aparentemente sem o mesmo entusiasmo e dessa forma, com o mínimo de interferência


espírito visionário. institucional e o máximo de abertura possíveis,
Por fim, Vera ainda permeou nossas não poderíamos supor a riqueza dos discursos
conversas com dicas metodológicas para a produzidos na rua. Vera foi um grato imprevisto
condução de nossas pesquisas. Segundo ela, os de pesquisa, um elemento surpresa com o qual
familiares devem ser abordados com essa projetos de pesquisa teórica, ética e
mesma abertura e “simpatia” com que nós a metodologicamente bem fundamentados
abordamos em sua carrocinha. É assim que as possivelmente não poderiam contar.
pessoas nos contariam aquilo que queríamos Depois do primeiro encontro com
saber, não com entrevistas prontas e blocos de Vera, aguardamos ansiosas pelo final de semana
anotações. O que Vera nos oferecia era uma seguinte, na expectativa de que ela continuasse
opinião leiga sobre a forma adequada de nos a permitir a nossa entrada em um universo sobre
aproximamos de nossos potenciais o qual ela versava com desenvoltura. A partir
participantes. Uma opinião que aprendemos daquelas trocas, nossa perspectiva sobre o
desde sempre nos bancos da academia a sistema prisional e sobre os dramas dos
desqualificar como desinformada e ingênua, familiares resultantes das relações ali forjadas
mas que vem – ao longo dos nossos anos de ganharam um sentido renovado. Passamos a
pesquisa social – nos sensibilizando a ouvirmos entender que se uma sólida vinculação
as vozes que vêm das margens, dos contextos institucional nos permite a realização de
onde os dramas sobre os quais teorizamos pesquisas, ao mesmo tempo ela cerceia nosso
ganham sentido. olhar e nossa escuta para vozes não legitimadas
pelos protocolos que orientam e pelos comitês
Conclusões que julgam a adequação de nossas empreitadas.

Os encontros e as conversas travadas


com Vera não puderam ser incluídos em nossos Referências
relatórios formais da pesquisa com os familiares
de mulheres presas naquela penitenciária. Isto Casco, R. (2011). A análise da situação da
porque no projeto enviado ao CEP de nossa violência sexual contra crianças e
instituição ela não constava originalmente como adolescentes: contribuições da Teoria
participante da pesquisa. Durante alguns meses Crítica da Sociedade. In J. L. Crochik, &
guardamos as histórias de nossa informante A. M. Fernandes (Orgs.). Violência Sexual
imprevista como anedotas a serem contra Adolescentes na cidade de São
compartilhadas em momentos informais. No Paulo: enfrentamento e crítica (pp. 151-
entanto, nenhum outro “participante legítimo”, 158). Campo Grande: UFMS.
autorizado a participar da pesquisa mediante a
assinatura do termo de consentimento livre e DaMatta, R. (1978). O Ofício de Etnólogo, ou
esclarecido, produzira relatos tão esclarecedores como Ter “Anthropological Blues”. In E.
acerca da história, das dinâmicas e das normas O. Nunes (Org.). A Aventura Sociológica
não ditas do sistema prisional. Portanto, (pp. 23-35). Rio de Janeiro: Zahar.
compartilhar o testemunho de Vera, como
nativa em um campo do qual ainda sabemos tão Fraser, M. T. D., & Gondim, S. M. G. (2004).
pouco, mostrou-se fundamental para o Da fala do outro ao texto negociado:
delineamento de um retrato fiel e sensível das discussões sobre a entrevista na pesquisa
realidades que estávamos investigando. qualitativa. Paidéia, 14(28), 139 -152.
Ao submetermos a referida pesquisa ao
CEP, um dos pareceristas questionou a Freitas, M. F. Q. (1998). Inserção na
adequação ética da condução de entrevistas na comunidade e análise de necessidades:
rua, do lado de fora da instituição, ironicamente reflexões sobre a prática do psicólogo.
perguntando se as pesquisadoras disporiam de Psicologia: reflexão e crítica, 11(1), 175-
uma Kombi para receber os participantes 189.
durante as entrevistas. Nossa resposta, naquele
momento, focou-se na importância da condução Gergen, K. (2008). A psicologia social como
de pesquisas naturalísticas como método história. Psicologia & Sociedade, 20(3),
privilegiado de acesso ao cotidiano daquelas 475-484.
famílias. No entanto, ainda que apostássemos na
necessidade de realizar o trabalho de campo

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Guzzo, R. S. L., & Lacerda Jr., F. (2007). Poupart, J. (2006). A entrevista de tipo
Fortalecimento em tempo de sofrimento: qualitativo: Considerações
reflexões sobre o trabalho do psicólogo e a epistemológicas, teóricas e metodológicas.
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Reformulado em: 07/11/2014
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Pesquisas  e  Práticas  Psicossociais  –  PPP  -­‐  9(2),  São  João  del-­‐Rei,  julho/dezembro/2014  

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