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setembro-outubro de 2013 – ano 54 – número 292

Evangelho de Lucas:
fé cristã e justiça social
3 Caminho aberto para o próximo: introdução ao evangelho de Lucas Equipe do Centro Bíblico Verbo
11 Maria pôs-se a caminho Shigeyuki Nakanose
21 “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” Maria Antônia Marques e Shigeyuki Nakanose
29 As parábolas em Lucas Maria Antônia Marques
37 Roteiros Homiléticos Pe. Johan Konings, sj
AMAR O POBRE
É
AMAR A DEUS.

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176 págs.

216 págs.

io para
Subsíd lia 2013
Caminho aberto da Bíb O Novo Testamento Ásia menor nos tempos de
o Mês
para o próximo em seu ambiente social Paulo, Lucas e João
Uma introdução David L. Balch e John E. Stambaugh Aspectos sociais e econômicos para
ao Evangelho de Lucas a compreensão do Novo Testamento
Centro Bíblico Verbo Para o estudo do Novo Testamento é Eduardo Arens
determinante conhecer os aspectos
O evangelho de Lucas insiste na da Palestina e das cidades do império O autor reconstrói o contexto social,
misericórdia e na solidariedade romano. Este livro sintetiza a recente econômico, político e religioso neces-
com as pessoas excluídas e à mar- pesquisa acadêmica nessa área, sário para compreender o nascimento,
gem da sociedade, apresentando a ajudando a entender o relacionamen- desenvolvimento e expansão das
prática de Jesus, que revela o rosto to entre os cristãos mais antigos e o comunidades cristãs pela Ásia Menor,
de um Deus amoroso e fraterno. mundo que os cercava. no primeiro século da nossa era.

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Caros leitores e leitoras,


Graça e Paz! brando que nas bem-aventuranças de Mateus
não há a parte dos “ais”)...
A sociedade e a cultura greco-romanas e, Também nas primeiras comunidades cris-
particularmente, o império romano – que mar- tãs, assim como hoje, havia o problema dos
caram profundamente o contexto do Evangelho marginalizados, os conflitos sociais e o indivi-
de Lucas – anunciavam e prometiam a paz e a dualismo e indiferentismo religioso. As comu-
segurança vindas dos poderosos, do centro para nidades cristãs entraram em crise, sentiam-se
a periferia. A realidade, entretanto, era bem ou- sem rumo, inseguras, perdiam a identidade,
tra: sofrimento da periferia em proveito do bem- crescia o desânimo pela demora da realização
-estar do centro. O caminho de Jesus, no Evan- do reino de Deus, alguns caíam na descrença e
gelho de Lucas, contrapõe-se a isso: Jesus anun- tendiam a abandonar o caminho. Era necessá-
cia a boa-nova e convoca à solidariedade e à rio fazer uma releitura da Palavra e da prática
justiça social, indo da periferia para o centro. de Jesus à luz da realidade da comunidade, re-
O domínio do império romano era exercido avivando a “solidez dos ensinamentos recebi-
por meio de guerras constantes pelo poder e de dos” (Lc 1,4), voltando às origens a fim de en-
numerosos impostos, que caíam pesadamente contrar luzes para o momento presente e reto-
sobre a população pobre, 90% da qual compos- mar a prática da partilha e da solidariedade.
ta de camponeses. Muitas pessoas se endivida- Por isso o Evangelho de Lucas dá atenção
vam, perdiam suas terras e acabavam tendo de especial às pessoas pobres e marginalizadas, cha-
trabalhar como arrendatárias, meeiras e diaris- mando os ricos à conversão (como no caso de
tas, isso quando não ficavam sem trabalho (cf. Zaqueu – cf. Lc 19,1-10) e ressaltando a impor-
Lc 14,12-14). Além de os impostos serem altos, tância da solidariedade e da partilha: a riqueza
havia trabalhos forçados para sustentar as obras só é bênção de Deus se for partilhada (cf. Lc
e os exércitos do império. O Templo, em grande 12,13-21; 16,19-31). Esse evangelho reforça a
medida, era conivente com essa situação e tam- necessidade da oração perseverante e insiste na
bém cobrava inúmeras taxas. A vida do povo conversão permanente, pois a salvação começa
tornava-se cada vez mais precária e dura. no hoje da história para as pessoas que se abrem
Toda essa realidade afetava a comunidade ao projeto de Deus misericordioso.
cristã de Lucas, seja pela adoção da mesma Que a reflexão e a oração suscitadas por esse
cultura de falta de solidariedade e conforma- evangelho nos ajudem – a nós que vivemos em
ção com as injustiças, seja pela experiência um país tão desigual – a abrir o coração para a
direta da opressão. São muitas as evidências solidariedade e a justiça social, dando nosso
disso em todo o evangelho: a parábola que fala apoio e participação em iniciativas e políticas
de um abismo entre o pobre Lázaro e o rico públicas que promovam a redistribuição de ren-
epulão (texto exclusivo de Lucas); o canto de da, sem desanimar diante das dificuldades. Lem-
Maria profetizando a derrubada dos podero- bremos aquilo que dizia dom Hélder Câmara:
sos e a elevação dos humildes; Jesus apresen- falar das causas das injustiças sociais e denunciá-
tado como o ungido pelo Espírito para anun- -las não é comunismo, como algumas vezes se
ciar a boa-nova aos pobres e oprimidos; as acusa injustamente, é Evangelho de Jesus Cristo.
bem-aventuranças anunciadas aos pobres e os
“ais” dirigidos aos ricos que se fecham à com- Pe. Jakson Ferreira de Alencar, ssp
paixão, à solidariedade e à justiça social (lem- Editor
Revista bimestral para
sacerdotes e agentes de pastoral
Ano 54 – número 292
setembro-outubro de 2013

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Caminho aberto para o próximo:
introdução ao evangelho de Lucas
Equipe do Centro Bíblico Verbo

O evangelho de Lucas apresenta


Jesus realizando a sua missão
“V isto que muitos já tentaram compor
uma narração dos fatos que se cumpri-
ram entre nós – conforme no-los transmitiram
na cidade e, preferencialmente, os que, desde o princípio, foram testemunhas
no meio de pessoas pobres, oculares e ministros da Palavra – a mim tam-
bém pareceu conveniente, após acurada inves-
doentes, mulheres, estrangeiras, tigação de tudo desde o princípio, escrever-te
samaritanas e pecadoras. de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que
verifiques a solidez dos ensinamentos que re-
Gente excluída e à margem cebeste” (Lc 1,1-4). Conforme as regras lite-
da sociedade. Esse evangelho rárias do século I, o autor explica o motivo de
sua obra, método, destinatário e objetivo.
reforça a necessidade da oração
A obra lucana é composta por dois livros:
perseverante e insiste evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. O
na necessidade de primeiro livro apresenta a vida, as atividades
e os ensinamentos de Jesus, desde a Galileia
conversão permanente. até Jerusalém. O segundo livro narra a vida e
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o desenvolvimento das primeiras comunida-


des cristãs de Jerusalém até Roma. Essa obra

ano 54

descreve o caminho da Palavra: da periferia


para o centro; do ambiente do campo para a

www.cbiblicoverbo.com.br cidade; do mundo judaico para um ambiente


Vida Pastoral

E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br de cultura grega. Segundo a compreensão ro-

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mana, o reino de César anunciava que a paz vra cidade nos faz pensar que o terceiro evan-
e a segurança vinham dos poderosos, do cen- gelho foi escrito para pessoas e comunidades
tro para a periferia. localizadas nas cidades, com a presença de
Como historiador, o escritor se propõe a ricos e pobres (Lc 19,1-2).
fazer uma investigação
cuidadosa, retomando os b) Pobres
acontecimentos desde as “De maneira dura, Jesus Desde o início, no
origens. Ele recolhe infor- cântico de Maria, ouvi-
mações de outras fontes,
critica a avareza dos ricos, mos: “Depôs poderosos
como, por exemplo, do o acúmulo e a falta de de seus tronos, e a humil-
evangelho de Marcos, do des exaltou. Cumulou de
compaixão e solidariedade
evangelho Q e da tradição bens a famintos e despe-
das comunidades. A obra com os pobres.” diu ricos de mãos vazias”
de Lucas é destinada a Te- (Lc 1,52-53). De acordo
ófilo, nome que pode in- com o evangelho de Lu-
dicar uma pessoa importante, alguém que cas, a missão de Jesus é evangelizar os po-
deve ter financiado o seu trabalho. Mas o bres: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
nome Teófilo também significa aquele que porque ele me consagrou com a unção para
ama a Deus. É possível que essa obra tenha evangelizar os pobres” (Lc 4,18). Os pobres
sido dedicada às amigas e aos amigos de Deus. são os preferidos de Deus: “Ide contar a João
De acordo com a apresentação, o objetivo o que vedes e ouvis: os cegos recuperam a
é claro: “para que verifiques a solidez dos en- vista, os coxos andam, os leprosos são purifi-
sinamentos que recebeste” (Lc 1,4). A finalida- cados, os surdos ouvem, os mortos ressusci-
de dessa obra é animar as comunidades que tam e aos pobres é anunciado o Evangelho”
estão enfrentando desânimo, cansaço, inse- (Lc 7,22; cf. 6,20). De maneira dura, Jesus
gurança e descrença. Muitas pessoas estão critica a avareza dos ricos, o acúmulo e a falta
abandonando a comunidade (Lc 24,13). É de compaixão e solidariedade com os pobres
preciso reavivar a fé das comunidades cristãs (Lc 12,16-21; 16,19-31).
e retomar o fervor missionário.
Para conhecer a mensagem e os possíveis c) Multidão/multidões
destinatários do evangelho de Lucas, vamos É muita gente ao redor de Jesus: “as mul-
apresentar algumas palavras-chave desse livro. tidões se aglomeravam a ponto de sufocá-lo”
(Lc 8,42; cf. 5,1.3.15; 19.29; 8,19.45; 11,29;
Mensagem e destinatários 12,1; 14,25). Em Lucas, o discurso das bem-
Ao apresentar a sua narrativa, o autor uti- -aventuranças foi proclamado diante de uma
liza com frequência as seguintes palavras: ci- imensa multidão (Lc 6,17-19). A multidão
dade, pobres, multidão, oração, salvação, testemunha os gestos de Jesus ao curar o ser-
conversão e misericórdia. vo de um centurião, ao ressuscitar o filho
único da viúva de Naim, ao libertar as pesso-
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a) Cidade as de espíritos impuros (Lc 7,9.11-12;


É usada cerca de trinta e nove vezes no 11,14). Por diversas vezes, Jesus se dirige à

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evangelho de Lucas; em Mateus, vinte e seis multidão (Lc 7,24; 8,4; 12,54), que sempre o
vezes, e em Marcos, nove. A cidade é a sede acompanha (Lc 18,36; 19,3). A multidão
da organização e o lugar dos poderosos (Lc

acolhe Jesus, e ele também acolhe as multi-


Vida Pastoral

2,1-3; 3,1-2). A constante repetição da pala- dões (Lc 8,40; 9,11.37). Jesus é solidário

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com a multidão faminta no deserto (Lc cumprimento das exigências da Lei, mas é
9,12.16). As multidões seguem Jesus e pro- um processo permanente (Lc 13,1-5; 6-9).
curam definir quem é ele (Lc 9,18-21). A Deus é paciente e nos espera sempre, como
multidão se alegra com as maravilhas realiza- podemos ler na parábola da figueira: “Se-
das por Jesus (Lc 13,17). nhor, deixa-a ainda este ano para que cave ao
redor e coloque adubo. Depois, talvez, dê
d) Oração frutos... Caso contrário, tu a cortarás” (Lc
Palavra que é usada cerca de setenta ve- 13,8-9). Sempre há mais uma chance. Con-
zes no evangelho de Lucas! É o evangelho verter-se exige levantar, voltar, reconhecer a
que mais apresenta Jesus rezando e convida a sua condição e pedir perdão... é reviver: “este
comunidade a rezar. Só Lucas coloca Jesus meu filho estava morto e tornou a viver, esta-
rezando no batismo (Lc 3,21), após o milagre va perdido e foi reencontrado” (Lc 15,24.32).
(Lc 5,16), antes da escolha dos Doze (Lc
6,12) e da confissão de Pedro (Lc 9,18), no g) Misericórdia
momento da transfiguração (Lc 9,28-29) e O evangelho de Lucas reforça a misericór-
no Getsêmani (Lc 22,46). Esse evangelho in- dia de Deus: “Graças ao misericordioso cora-
siste na necessidade de ser perseverante na ção do nosso Deus, pelo qual nos visita o Astro
oração (Lc 11,5-8; 18,1), especialmente nos das alturas” (Lc 1,78). Um coração que ama a
momentos de dificuldades (Lc 22,40.46). É partir das entranhas, amor que se manifesta
um evangelho que reforça a necessidade de no perdão e na acolhida: é como o pastor que
buscar a vontade de Deus e não simplesmen- procura a ovelha perdida e faz festa quando a
te o cumprimento da Lei (Lc 18,2-14). encontra; ou como a mulher que procura a
moeda perdida e quando a encontra reúne e
e) A salvação “hoje” celebra com suas amigas e vizinhas; é como o
“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o pai da parábola que acolhe seus filhos de ma-
Cristo-Senhor” (Lc 2,11). Em Cristo, Deus neira incondicional (Lc 15,1-32). Mesmo no
nos oferece a salvação no tempo presente: momento da morte, Jesus pede a Deus que
“Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa perdoe seus inimigos: “Pai, perdoa-lhes: não
passagem da Escritura” (Lc 4,21). Na casa de sabem o que fazem” (Lc 23,43).
Zaqueu, Jesus afirma: “Hoje a salvação en- O evangelho de Lucas apresenta Jesus rea-
trou nesta casa” (Lc 19,9). E mesmo na cruz, lizando a sua missão na cidade e, preferencial-
Jesus promete ao bom ladrão: “Em verdade, mente, no meio de pessoas pobres, doentes,
eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” mulheres, estrangeiras, samaritanas e pecado-
(Lc 23,43). É um convite para acolher Deus ras. Gente excluída e à margem da sociedade.
que em Jesus visita o seu povo. O evangelho Esse evangelho reforça a necessidade da ora-
de Lucas nos ajuda a viver o seguimento de ção perseverante e insiste na conversão perma-
Jesus no hoje de nossas vidas! nente, pois a salvação acontece no hoje da his-
tória para as pessoas que se abrem ao projeto
f) Conversão de Deus misericordioso.
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Em muitas passagens, o evangelho de Lu- Desde a pregação de Jesus nos anos 30 até
cas destaca a salvação dos pecadores, mas os anos 80, as comunidades aguardam a che-

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exige que a pessoa esteja disposta a mudar de gada do Reino de Deus. E nada... Ao contrá-
vida: “não vim chamar os justos, mas sim os rio, há muito sofrimento, dominação e explo-
pecadores, ao arrependimento” (Lc 5,32). A ração. A desconfiança e a dúvida se instalam

Vida Pastoral

salvação não está garantida unicamente pelo na comunidade cristã, e muitas pessoas estão

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abandonando a prática de Jesus. Nesse con- tolos, Paulo é muito semelhante a Pedro, é mais
texto, o autor faz uma releitura da vida e da inclinado a se adaptar diante das exigências dos
prática de Jesus; ele reforça o compromisso judeus, e se apresenta como cidadão romano, o
com as pessoas marginalizadas e combate o que não acontece nas cartas paulinas.
ritualismo e o legalismo, insistindo na prática O autor de Lucas e Atos deve ter sido ou-
da misericórdia. Conhecendo um pouco mais tra pessoa. Ele não era da Palestina, pois se
o projeto do evangelho de Lucas, vejamos atrapalha ao falar da geografia da região. Pos-
quem é o autor desta obra. sivelmente um admirador de Paulo, talvez
membro de uma das comunidades de origem
Autor do evangelho de Lucas paulina ou um prosélito grego, alguém que
Cada evangelho surgiu numa comunidade entrou em contato com a religião judaica, es-
específica que conhecia quem era o seu autor tudou a fundo as Escrituras e mais tarde ade-
ou os seus autores. Os nomes dos autores não riu ao evangelho de Jesus Cristo.
constavam no texto porque não era preciso. No fim do século, as comunidades vivem
Assim, circularam de for- um momento crítico em
ma anônima, mais ou me- “Lucas reforça o sua caminhada, correm o
nos, até o ano 150 d.C., risco de abandonar o pro-
compromisso com as
quando começava-se a de- jeto de Jesus e assimilar os
finir a lista dos livros con- pessoas marginalizadas valores propostos pela so-
siderados inspirados do e combate o ritualismo e ciedade greco-romana. Al-
Novo Testamento. É nesse gumas pessoas caem na
momento que os evange- o legalismo, insistindo na descrença e no desânimo,
lhos foram atribuídos a prática da misericórdia.” abandonando a caminha-
Marcos, Mateus, Lucas e da (Lc 24,13.21). Diante
João. O nome Lucas é ci- dos desafios de seu tempo,
tado na carta de Paulo a Filêmon (v. 24), e apa- o autor procura reavivar a memória da prática
rece mais duas vezes: uma em Cl 4,14 e outra de Jesus tendo como objetivo principal “verifi-
em 2Tm 4,11, que são cartas escritas por dis- car a solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc
cípulos de Paulo. 1,4). Para isso, ele apresenta quem é Jesus de
Ao compararmos Lucas e Atos com as Nazaré e o que é preciso fazer para segui-lo.
Cartas de Paulo, encontraremos diferenças
importantes que nos levam a crer que o Evan- Pisando o chão
gelho e os Atos não foram escritos por esse das comunidades de Lucas
Lucas que foi companheiro de Paulo. Em Atos A obra lucana teve a sua redação final
dos Apóstolos, Paulo é descrito como um mis- por volta do ano 85. Essa obra pode ter sido
sionário que tem poder de curar doentes, de escrita na cidade de Antioquia da Síria, Éfe-
expulsar demônios e ressuscitar mortos (At so, ou mesmo numa cidade da Grécia. Para
14,3.8-10; 16,16-18.25-34; 20,4), mas não é nós, o mais importante é saber que surgiu
considerado um apóstolo. numa cidade grande, sob o domínio do im-
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Nas cartas, como em 2Cor 12,5-10, o pró- pério romano e em comunidades fundadas
prio Paulo se apresenta como uma pessoa frágil, por Paulo, compostas por estrangeiros/as e

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sem poder algum, mas afirma ser apóstolo, cha- judeus cristãos. A grande maioria era pobre,
mado e enviado por Jesus, que por amor a Cris- mas havia também algumas pessoas ricas
to crucificado faz-se solidário com os crucifica- (cf. 1Cor 4,13). Essa mistura gerou vários

Vida Pastoral

dos da história. Além disso, em Atos dos Após- conflitos internos.

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Além das dificuldades internas, as comu- Nesse período, as primeiras lideranças das
nidades há muito tempo enfrentavam várias comunidades cristãs, como Pedro, Paulo, Ma-
situações de sofrimento. O domínio do impé- ria Madalena, já haviam morrido. As cristãs e
rio romano foi marcado por guerras constan- os cristãos estavam vivendo num ambiente de
tes pelo poder e por numerosos impostos. A mentalidade grega. Na cidade reinava a lógica
situação do povo foi piorando cada vez mais. do lucro, do dinheiro e do comércio, inclusive
Muitas pessoas ficaram endividadas, perde- de vidas humanas. O sistema escravista era
ram suas terras e acabaram tendo que traba- predominante nas cidades greco-romanas. A
lhar como arrendatárias, meeiras, diaristas competição, a ganância e o acúmulo de rique-
ou mesmo sem trabalho (Lc 14,12-14). zas criaram um verdadeiro abismo entre ricos
Vivendo nessa realidade, as comunidades e pobres (Lc 16,19-31). A prática da partilha e
cristãs entraram em crise. Eis alguns aconte- da solidariedade foi deixada de lado. Tornou-
cimentos que marcaram profundamente a -se um ideal muito distante.
vida dessas comunidades: As comunidades cristãs sentiam-se perdi-
das, inseguras e sem rumo. Havia uma forte
• Em 64 d.C., Nero começou a perseguir os
crise de identidade. Nesse contexto, era neces-
cristãos em Roma.
sário fazer uma releitura da palavra e da prática
de Jesus a partir da realidade da comunidade.
• Entre os anos 66 e 73 d.C., aconteceu a
Era preciso voltar às origens, procurando en-
Guerra Judaica, tendo como consequência
contrar luzes para viver o momento presente.
o desaparecimento de vários grupos in-
A realidade das comunidades exige atu-
fluentes na vida do povo judeu.
alizar a prática de Jesus. A existência de ri-
cos cada vez mais ricos e a presença de mi-
• Por volta do ano 70 d.C., o templo e a cida-
seráveis nas comunidades cristãs mostram
de de Jerusalém foram destruídos. Os úni-
que é preciso retomar a prática da partilha e
cos grupos que sobreviveram foram o dos
da solidariedade (Lc 6,20-38). Por isso, o
fariseus e o dos cristãos, que fugiram para
evangelho de Lucas e o livro dos Atos dos
as regiões vizinhas.
Apóstolos dão uma atenção especial às pes-
soas pobres e marginalizadas, insistindo na
• Por volta de 85 d.C., começa uma persegui-
importância da partilha.
ção contra os grupos de judeus hereges;
entre eles está o grupo de cristãos, que é
Conhecendo a proposta
expulso da sinagoga.
do evangelho de Lucas
Após a Guerra Judaica, o grupo de ju- Espírito, conversão dos ricos, imagem de
deus-fariseus procurou reconstruir e reorga- Deus misericordioso e caminho são elemen-
nizar o povo judeu na sinagoga. Pouco a tos importantes para conhecermos qual é a
pouco, esse grupo ganhou força, foi reconhe- proposta do evangelho de Lucas.
cido pelo poder romano e recebeu o direito
de cobrar tributo do povo judeu. Participar a) Espírito
nº- 292

da sinagoga era uma espécie de carteira de A presença do Espírito é constante. Ele


identidade. As autoridades judaicas retoma- atua na vida de João Batista e na de Jesus antes

ano 54

ram a rigorosa observância da Lei judaica, e de eles nascerem (Lc 1,15.35). Esse mesmo
quem desobedecia ou discordava era perse- Espírito se faz presente no momento do batis-
guido e eliminado. Foi o que aconteceu com

mo (Lc 3,22). É o Espírito quem conduz Jesus


Vida Pastoral

o grupo de judeu-cristãos. ao deserto e em seu ministério na Galileia (Lc

7
4,1.14). Em Lucas, Jesus é apresentado como d) Caminho
ungido pelo Espírito para anunciar a Boa-nova A obra lucana segue o caminho da perife-
aos pobres e oprimidos (Lc 4,17-20). A partir ria para o centro: as atividades de Jesus come-
do momento que Jesus inicia a sua missão, çam na Galileia e terminam em Jerusalém, e o
pouco se fala do Espírito, pois ele está presen- livro dos Atos começa em Jerusalém e termina
te em Jesus e age a partir dele. De acordo com em Roma. É no caminho que Jesus ensina as
a promessa de Jesus, o Espírito Santo estará exigências do discipulado, tendo como pontos
presente nos momentos de perseguição e na centrais a oração, a misericórdia e a partilha. E
realização da missão (Lc 12,12; 24,49). quanto mais se aproxima do centro – Jerusa-
Diante do medo e da insegurança das co- lém ou Roma – lugar da morte, da ressurreição
munidades cristãs, o autor tenta reavivar a fé e da missão, é preciso coragem para não recu-
da comunidade, reforçando que o Espírito de ar. É o caminho da Palavra! É o caminho de
Deus atua em Jesus e em cada pessoa que cada pessoa que adere à prática de Jesus.
adere à prática da partilha e da solidariedade Uma leitura atenta do evangelho de Lucas nos
com as pessoas pobres e excluídas. traz muitos apelos, e o principal é o da misericór-
dia. É um convite a nos deixar mover pela com-
b) Conversão dos ricos paixão. Assim estaremos no caminho de Jesus.
No evangelho de Lucas, há uma cateque-
se que convoca os ricos à solidariedade. A Conhecendo a estrutura do texto
riqueza só é bênção de Deus se for partilhada O autor do evangelho de Lucas tem grande
(Lc 12,13-21; 16,19-31). Zaqueu, chefe dos habilidade para escrever, conhece e emprega
cobradores de impostos, ao encontrar Jesus muito bem as regras literárias do seu tempo. Ele
realiza a partilha e é reintegrado na socieda- está preocupado em apresentar, de maneira or-
de; ele é “filho de Abraão”, ou seja, ele tam- denada e clara, os acontecimentos a respeito de
bém tem direito de pertencer ao povo de Jesus desde as origens. Por meio de seu escrito,
Deus (Lc 19,1-10). Trata-se de uma cateque- a pessoa que lê é transportada para o contexto e
se para os ricos se abrirem ao projeto da par- o tempo de Jesus na Judeia e na Galileia.
tilha e da solidariedade, convite estendido a Olhando o conjunto do evangelho de Lu-
todas as pessoas cristãs. cas acerca das atividades de Jesus, podemos
perceber que há uma organização geográfica
c) Deus misericordioso cujo percurso é a Galileia, o caminho, ou a
As páginas do evangelho de Lucas nos re- subida para Jerusalém, e a cidade de Jerusa-
velam o rosto misericordioso de Deus, que lém. A partir desse ponto de vista, após a
age em Jesus. Um Deus que nos ama de ma- apresentação do nascimento de João Batista e
neira incondicional e que está sempre aberto de Jesus (Lc 1,5-2,52) e a preparação para o
para acolher suas filhas e seus filhos (Lc 15,1- ministério de Jesus (Lc 3,1-4,13), o evange-
32). Em Jesus, Deus oferece o perdão às pes- lho pode ser dividido em três partes:
soas pecadoras. A mulher é perdoada porque
1 • A atividade de Jesus na Galileia
muito amou; o mesmo acontece com Zaqueu,
nº- 292

(Lc 4,14–9,50).
que se dispõe a mudar de vida (Lc 7,36-50;
19,1-10). Diante do homem necessitado, o 2 • A viagem para Jerusalém

ano 54

samaritano “moveu-se de compaixão” (Lc (Lc 9,51–19,28).


10,29-37). O samaritano é como Jesus, que
3 • Em Jerusalém

sente a dor do outro a partir das entranhas e


Vida Pastoral

(Lc 19,29–24,53).
se aproxima de seus semelhantes.

8
Na primeira parte, acompanhamos os passos enviado por Deus (Lc 1,46b-47). É tempo
de Jesus na Galileia não como os fariseus e os dou- de renovar a esperança e a fé na presença de
tores que murmuram e armam ciladas para Jesus, Deus que visita o seu povo. Esse evangelho
mas com a disposição de aprender dele a solida- apresenta uma releitura da vida e da prática
riedade com as pessoas marginalizadas. Impulsio- de Jesus com a intenção de ajudar as comu-
nado pelo Espírito, Jesus parte de Nazaré para nidades cristãs a retomar o seguimento de
Cafarnaum (Lc 4,31), anuncia a palavra de Deus à Jesus. Acompanhando os passos de Jesus
margem do lago da Galileia (Lc 5,1), percorre ci- nesse evangelho, descobrimos a presença de
dades e aldeias (Lc 5,12; 8,1), sobe à montanha um Deus amoroso e compassivo.
para rezar (Lc 6,12), anun- O evangelho de Lu-
cia num lugar plano (Lc “As bem-aventuranças cas é conhecido como o
6,17), retorna a Cafarnaum evangelho do caminho.
(Lc 7,1) e, em seguida, vai
anunciam a transformação No caminho, Jesus
para Naim (Lc 7,11). de uma sociedade injusta transmite seus principais
Entrando na segunda e o projeto de inclusão ensinamentos a seus se-
parte, viajamos com Jesus guidores e seguidoras.
para Jerusalém. No cami- social para as pessoas Seguir Jesus exige dei-
nho, Jesus ensina a seus marginalizadas xar-se mover pela com-
discípulos o amor ao próxi- paixão e aproximar-se
mo, a importância de ouvir e excluídas.” das pessoas marginaliza-
e praticar a palavra, o valor das e excluídas. Esse foi
da oração, o cuidado com a administração dos o caminho de Jesus, e o da pessoa cristã não
bens, a misericórdia e o cuidado especial com as pode ser diferente.
pessoas pobres e marginalizadas. Em vários mo- Entre as muitas possibilidades de leitura
mentos, o autor reforça que Jesus segue para Je- desse evangelho, eis o caminho que propo-
rusalém (Lc 9,51.53; 13,22; 17,11; 19,11.28.41). mos: o encontro entre Maria e Isabel (Lc
Chegando a Jerusalém, entramos na ter- 1,39-56) é um convite para acreditarmos na
ceira parte, Jesus aparece no Templo e enfren- solidariedade fraterna que gera comunhão de
ta as autoridades judaicas: “Minha casa será vida. Com Maria, queremos celebrar a pre-
uma casa de oração. Vós, porém, fizestes dela sença de Deus na história do seu povo e em
um covil de ladrões” (Lc 19,46). Jesus perma- nossa história. Como Maria, que se coloca a
nece na cidade até o fim de sua vida. Aí vive o caminho para servir Isabel, que sai da perife-
mistério de sua paixão, morte e ressurreição. ria para o centro, a comunidade cristã do sé-
Seguir Jesus significa colocar-se ao lado culo I e nossas comunidades hoje são chama-
das pessoas marginalizadas e excluídas da das a seguir Jesus, fazendo-se solidárias com
história. Mesmo correndo risco de morte, Je- as pessoas necessitadas.
sus não recua, mas segue adiante e paga com O evangelho de Lucas proclama quatro
sua própria vida: ele é crucificado. Mas a bem-aventuranças aos pobres e quatro mal-
morte não tem a última palavra: ele ressusci- dições contra os ricos, ou seja, são advertên-
nº- 292

ta, está vivo e caminha conosco. A missão cias contra a sociedade individualista e a bus-
continua amparada pelo Espírito de Deus. ca desenfreada de riquezas (Lc 6,20-26).

ano 54

Nesse contexto, as bem-aventuranças anun-


Um roteiro para ler o evangelho de Lucas ciam a transformação de uma sociedade in-
Desde as primeiras páginas do evange- justa e o projeto de inclusão social para as

Vida Pastoral

lho de Lucas, Jesus é proclamado o Salvador pessoas marginalizadas e excluídas. A prática

9
do amor e da justiça exige de cada pessoa De acordo com a Lei oficial, era proibido
cristã o compromisso com a construção de o contato com pessoas impuras. Indo na con-
uma sociedade justa e fraterna. tramão da teologia oficial, muitos grupos
Outro texto que nos ajuda a retomar a continuaram afirmando que Deus não aban-
prática da misericórdia é a parábola do sa- dona os pobres, mas caminha com as pessoas
maritano (Lc 10,25-37). No tempo de Jesus que sofrem, ele “protege o estrangeiro, sus-
e das primeiras comunidades, ainda havia tenta o órfão e a viúva” (Sl 146,9). Não é o
um excessivo apego às leis. Um judeu, para Deus do sacrifício, mas o Deus da misericór-
ser puro diante de Deus, devia cumprir as dia. É esse o rosto de Deus que Jesus nos re-
exigências da Lei: pagar dízimo, dar esmo- vela na parábola do pai misericordioso. É pre-
las, orar, jejuar, guardar o sábado e não ciso entrar e participar da festa da vida, “pois
manter contato com as pessoas que eram esse teu irmão estava morto e voltou a viver”.
consideradas impuras, por exemplo: defi- Será que nós entraremos nessa festa?
cientes físicos, doentes, Para coroar a leitura
pobres, indigentes e es- “Indo na contramão da do evangelho, propomos
trangeiros, como o sama- teologia oficial, muitos a narrativa dos discípulos
ritano, por exemplo. de Emaús (Lc 24,13-35).
“Quem é o meu grupos continuaram A decepção e a frustração
próximo” é a perspecti- afirmando que Deus não estão presentes nos senti-
va de quem se preocupa mentos dos discípulos de
com o cumprimento da abandona os pobres, mas Emaús: “Nós esperáva-
Lei; a parábola inverte a caminha com as pessoas mos que fosse Jesus, o na-
questão: “quem se tor- zareno, quem libertaria
nou próximo daquele
que sofrem.” Israel”. Os discípulos e o
que caiu nas mãos dos povo esperavam um mes-
assaltantes?” (Lc 10,36). É uma parábola sias-rei que fosse forte e derrotasse o império
que provoca uma revisão de nossas atitu- romano, dando liberdade para o povo judeu e
des e preconceitos. É um espelho que nos restabelecendo a realeza de Israel. Esse ensi-
ajuda a refletir se vivemos a compaixão e namento fazia parte da catequese oficial dos
a solidariedade ou se ainda continuamos judeus e era a maneira de pensar de muitas
apegadas/os às normas e prescrições que, pessoas. Por isso, os seguidores e as seguido-
muitas vezes, nos impedem de vivermos a ras de Jesus tiveram dificuldade de entender a
fraternidade. maneira de agir de Jesus. Nessa realidade de
A leitura da parábola do pai misericordioso dúvida e descrença, a comunidade de Lucas
(Lc 15,11-32), que ama seus filhos de maneira descreve como fez a experiência de Jesus res-
incondicional, contém um forte apelo para vi- suscitado na comunidade. Que o Espírito de
vermos a misericórdia. No tempo de Jesus, a Deus nos dê abertura para vivermos a partilha
teologia oficial, conhecida como a teologia da e a solidariedade e, assim, renovar a certeza
retribuição, afirmava que Deus recompensava de que o Ressuscitado está vivo entre nós.
nº- 292

uma pessoa justa com riqueza, vida longa e O caminho de Jesus é o caminho da com-
descendência, e uma pessoa injusta com po- paixão e da solidariedade. É caminho aberto

ano 54

breza, esterilidade e sofrimentos. Os pobres, os para o próximo. Entremos nesse caminho!


doentes, as pessoas com alguma deficiência fí-
sica e os estrangeiros eram considerados impu- (Referências bibliográficas para os quatro

Vida Pastoral

ros (Ex 20,5; Sl 38,2-6). artigos, p. 36)

10
Maria pôs-se a caminho
Uma leitura de Lucas 1,39-45
Shigeyuki Nakanose, svd

O artigo aborda a presença e o significado


de Maria nos evangelhos, sobretudo no de E m uma quinta-feira, no dia 31 de maio de
2012, às 9 horas da manhã, celebramos, no
cemitério do Morumbi, a vida, morte e ressurrei-
Lucas, situando-a em relação com a ção de Isaosan, esposo de dona Terezinha, ami-
caminhada histórica de Jesus e das gos de longa data. Após os cantos, rezas, depoi-
mentos, bênçãos, caminhamos para o túmulo.
comunidades. A Mãe de Jesus foi uma
Uma caminhada no meio de chuva fina, o que
mulher empobrecida da Galileia, o que se aumentava ainda mais o sentimento de tristeza.
distancia de algumas formas posteriores No lugar do sepultamento, como cele-
brante, fiquei na cabeceira e olhei para o fundo
da devoção mariana. Retomar as origens do túmulo, que devia ter entre cinco e seis me-
e compreender bem Maria no seu tros de profundidade. Um espaço escuro e te-
contexto histórico é fundamental para nebroso. Depois de uma pequena celebração,
ao observar o caixão descendo, pouco a pouco,
aprimorar a devoção mariana até o fundo, senti e achei o não à vida. A mor-
relacionada à missão de seu filho. talidade do ser humano. A vida parece estar
nº- 292

sucumbindo nas trevas.


Quando os coveiros começaram a jogar as pri-

ano 54

Shigeyuki Nakanose, religioso verbita, padre, meiras pás de terra sobre o caixão já posto no fun-
assessor do Centro Bíblico Verbo, leciona no ITESP, na do, escutei o canto bem baixinho iniciado por uma
Faculdade Católica de São José dos Campos e na

Faculdade Dehoniana, em Taubaté. mulher. Em pouco tempo, o canto ganhou força,


Vida Pastoral

E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br misturado com choro, aplausos e tristeza, conforto:

11
“Pelas estradas da vida, nunca sozinho que foram escritos quarenta e até sessenta anos
estás, contigo pelo caminho Santa Maria depois da paixão, morte e ressurreição de Jesus,
vai. Óh! Vem conosco, vem caminhar! San- não são uma mera história de Jesus. Eles nasce-
ta Maria, vem! ram das experiências das comunidades cristãs
que seguiram, reinterpretaram e transmitiram as
Se parecer tua vida inútil caminhar,
palavras e a prática de Jesus de Nazaré a partir de
pensa que abres caminho, outros te segui-
suas realidades. Em cada evangelho, há uma re-
rão. Óh! Vem conosco, vem caminhar! San-
flexão da vivência e da fé de cada comunidade.
ta Maria, vem!”
Nos Evangelhos, Maria aparece em referên-
Há uma devoção rodeando Maria, mãe cia a Jesus. Os textos bíblicos sobre ela, então,
de Jesus, que transcende o pensamento teológi- são muito mais do que fatos da vida de uma mu-
co e toca no sentimento e na fé de muita gente. lher. Eles devem ser compreendidos na cami-
É um sentimento cultivado ao longo da cami- nhada histórica de cada comunidade. Os segui-
nhada dos fiéis. Maria, Nossa Senhora, a mãezi- dores e seguidoras de Jesus acolhem a memória
nha do céu nos momentos mais difíceis. Como de Maria de Nazaré, reinterpretam-na e incluem-
entender tanta força dessa mulher cuja devoção -na no culto e na oração a partir do contexto e da
é um dos pilares da piedade católica? Como fa- experiência da fé em Jesus Cristo crucificado e
zer dessa devoção uma força para a construção ressuscitado. A figura de Maria como mãe prote-
do Reino: a unidade em tora cresceu, especialmen-
torno da justiça, da digni- te, em momentos difíceis
dade humana e da paz? “Como entender tanta como as perseguições con-
A respeito de Maria,
força dessa mulher tra as comunidades.
desde a infância, costuma- Um dos Evangelhos
-se escutar a história de cuja devoção é um que tem mais relatos sobre
Maria de Nazaré, seja na dos pilares da piedade a vida de Maria nasce na
família, na igreja, na esco- caminhada da comunidade
linha, nas rodas de conver- católica?”
de Lucas. Com as narrati-
sa. São as informações ex- vas de infância de Jesus (Lc
traídas dos evangelhos: Os 1,5–2,52), a comunidade deixa perceber a ori-
pastores visitam o menino com Maria (Lc gem humilde de Maria na pequena vila de Naza-
2,16); Os três magos visitam o menino com ré, longe de Jerusalém, capital da Judeia. É sim-
Maria (Mt 2,11) etc. No entanto, cada Evange- plesmente Maria de Nazaré! Pela tradição e fé da
lho tem seus textos exclusivos e fornece infor-
comunidade de Lucas, podemos dar início à ca-
mações diferentes sobre a vida dela. Por exem-
minhada com Maria.
plo, o Evangelho mais antigo, o de Marcos,
inicia-se com a pregação de João Batista sem
narrar o nascimento de Jesus, e informa a ten- 1. Maria no contexto
são entre Jesus e sua família com a presença de da comunidade lucana
Maria. O Evangelho de João, escrito quase se-
nº- 292

O primeiro capítulo de cada evangelho é o


tenta anos depois da morte de Jesus, descreve
cartão-postal: apresenta o rosto – o projeto e a
Maria ao pé da cruz (Jo 19,25–27), enquanto

teologia – da comunidade que está por trás do


ano 54

os outros evangelhos falam da presença de al-


livro. Vejamos:
gumas mulheres que observavam a cruz a dis-
tância (Mc 15,40–41). • O Evangelho de Mateus começa com a genea-

Vida Pastoral

Essas diferenças revelam que os Evangelhos, logia de Jesus, na qual há quatro estrangeiras

12
e Maria. Diante da Lei judaica oficial, todas • No evangelho de João, Jesus Cristo, apresentado
essas mulheres são consideradas impuras (Ta- pelo Prólogo (Jo 1,1-18), é o Filho único de Deus,
mar, Raab, Rute, Betsabeia e Maria). Com a que se fez carne e habita no meio da humanida-
presença de impuras na sua genealogia, Jesus de, revelando-nos o amor e o projeto do Pai.
é apresentado como o Messias dos impuros,
O evangelho de Lucas também não foge à
dos pobres e dos excluídos.
regra. Ao examinarmos Lc 1,5-38, narrativa
exclusiva de Lucas, percebemos de imediato
• No evangelho de Marcos, o primeiro capítu-
que os textos sobre João Batista e Jesus são
lo apresenta a prática libertadora de Jesus na
apresentados em paralelo, mostrando o rosto
Galileia: ele convive com os marginalizados,
da comunidade, representada por Maria, como
fazendo-os voltar à liberdade e ao serviço
podemos observar no esquema abaixo:
aos outros.

Anúncio do nascimento de João Batista Anúncio do nascimento de Jesus


(Lc 1,5-25) (Lc 1,26-38)

Apresentação Zacarias e Isabel (v. 5-7) José e Maria (v. 26-27)


Anjo Gabriel Para Zacarias (v. 8-11) Para Maria (v. 28)
Reação Ele perturbou-se (v. 12) Ela ficou intrigada (v. 29)
Encorajamento “Não temas” (v. 13a) “Não temas” (v. 30)
Anúncio Nascimento de João (v. 13b-14) Nascimento de Jesus (v. 31)
Converterá muitos dos filhos de Israel
Missão Reinará na casa de Jacó para sempre (v. 32-33)
(v. 15-17)
Dúvida “De que modo saberei disso?” (v. 18a) “Como é que vai ser isso?” (v. 34a)
“Pois eu sou velho e minha esposa
Argumento “Se eu não conheço homem algum?” (v. 34b)
é de idade avançada” (v. 18b)
Resposta A concepção provém de Deus (v. 19) A concepção provém de Deus (v. 35)
Sinal Mudez (v. 20) A gravidez de Isabel (v. 36-37)
Reação Silêncio (v. 21-22) “Faça-se em mim segundo tua palavra” (v. 38)

Do modo como esse paralelo foi construído, tornou muda e sem a ação do Espírito. Em outras
tudo salienta a superioridade de Jesus. O precur- palavras, ela está presa em sua velha estrutura de
sor João (=Deus dá a graça) abrirá o caminho poder e não consegue reconhecer a ação salvífica
para a chegada do Messias. Jesus (=Javé salva) é de Deus no projeto do Messias, esperado pelos
o próprio Messias, o Filho de Deus, que trará a pobres que clamam por justiça e libertação.
salvação. Além do mais, o paralelo também evi- Por outro lado, Maria, uma jovem, represen-
dencia a superioridade de Maria em relação a ta a comunidade cristã dos pobres. É um novo
Zacarias. Enquanto Zacarias, um velho sacerdo- movimento de Jesus, “Filho do Altíssimo”, no
te, está a serviço da lei do templo e fica mudo ventre de Maria. A comunidade não está no tem-
por não acreditar na ação de Deus, Maria, uma plo, mas se reúne na casa, difundindo o anúncio
jovem da aldeia da Galileia, está a serviço da casa do Reino pelo mundo inteiro. Ela não está assim
nº- 292

e fica repleta do Espírito Santo. restrita à antiga religião do Templo. E como a


Se analisarmos o paralelo no contexto da co- presteza de Maria em servir, a comunidade cristã,

ano 54

munidade de Lucas, veremos que Zacarias repre- guiada pelo Espírito, deve ser capaz de promover
senta a doutrina e o culto do Templo, da institui- a comunhão entre irmãos e com Deus, de forma

ção de Jerusalém. É uma linguagem simbólica solidária e fraterna. As palavras finais de Maria
Vida Pastoral

para expressar que a religião oficial de Israel se mostram a disponibilidade dos discípulos mis-

13
sionários de Jesus: “Eu sou a serva do Senhor; visita de Maria a Isabel contenha a interpreta-
faça-se em mim segundo tua palavra!” (Lc 1,38). ção teológica própria da comunidade lucana,
Enfim, o fato de Maria, menina pobre de exaltando o senhorio de Jesus e o projeto salví-
Nazaré, conceber Jesus Messias, o Filho de fico de Deus, mas, ao mesmo tempo, é um tex-
Deus, indica que o Deus da vida inverte a ordem to que recolhe a tradição teológica e pastoral do
social: os pobres e oprimidos se tornam sujeito cotidiano da comunidade. Por meio da visita
da história com o projeto de solidariedade e fra- de Maria a Isabel, podemos perceber o cami-
ternidade. Maria, por sua disposição a ser do nho do discipulado de Jesus:
Senhor, traz no seu ventre o novo povo de Israel.
1 • A forma como Lucas construiu a narrativa da
A comunidade cristã, como este novo povo de
visita de Maria a Isabel mostra a disposição e
Israel, deve apresentar-se como “a serva do Se-
a solidariedade de Maria. Ela viajou de Nazaré
nhor”, para concretizar o projeto do Deus da
a uma cidade de Judá para ajudar Isabel, grá-
vida assumido na vida de Jesus de Nazaré.
vida com idade avançada. Viajou da Galileia
No primeiro capítulo, temos ainda a narrati-
para a região montanhosa da Judeia – da terra
va da visita de Maria a Isabel, que também é uma
verde para a terra seca. Nessa cena, o mais
cena exclusiva de Lucas. Ora, se olharmos bem
importante é a solidariedade de Maria, oriun-
essa narrativa na perspectiva teológica e pastoral,
da da periferia, com relação a Isabel, esposa
a comunidade lucana mostra ainda mais o seu
de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusa-
rosto, sua prática e sua fé.
lém, centro do poder e da exploração. Pasto-
ralmente, a comunidade cristã da periferia
2. Maria pôs-se a caminho proclama o não à opressão e o sim à solidarie-
para a região montanhosa dade fraterna que leva à comunhão da vida.
A narrativa da visita de Maria a Isabel é
2 • O autor da narrativa descreve a atuação de
uma continuação da narrativa anterior: a visita
Maria de forma autônoma: “Naqueles dias,
do anjo Gabriel a Zacarias e a Maria (Lc 1,5-
Maria pôs-se a caminho para a região monta-
38). Continua o tema da superioridade de Je-
nhosa, dirigindo-se apressadamente a uma
sus sobre João. Mas agora aplicado diretamente
cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e
à reação da criança no ventre de Isabel: “Pois,
saudou Isabel [...]. Maria permaneceu com ela
quando tua saudação chegou aos meus ouvi-
mais ou menos três meses e voltou para a casa
dos, a criança estremeceu de alegria em meu
dela” (Lc 1,39-40.56). A atuação autônoma
ventre” (Lc 1,44).
de Maria é contrária ao costume do mundo
João, ainda no ventre de sua mãe, reco-
patriarcal do seu tempo. É muito provável
nhece a grandeza de Jesus, apontando-o como
que tal descrição reflita a atuação de algumas
o Messias, o “Filho do Altíssimo”. Com isso,
mulheres das primeiras comunidades cristãs.
Isabel, movida pelo Espírito Santo, também
proclama que Jesus é o Senhor: “Donde me
3 • “Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Ma-
vem que a mãe do meu Senhor me visite?” (Lc
ria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel
1,43). Assim, resumidamente, o projeto salví-
nº- 292

ficou repleta do Espírito Santo” (Lc 1,41). O


fico de Deus e a prontidão de Maria, na narra-
Antigo Testamento destaca a esterilidade como
tiva da visita do anjo a Maria, são confirmados

uma das causas de sofrimento e discriminação


ano 54

pela exaltação de Isabel: “Feliz aquela que


das mulheres (cf. 1Sm 1), porque a esterilida-
creu, pois o que lhe foi dito da parte do Se-
de impossibilita a continuação da casa. Além
nhor será cumprido!” (Lc 1,45).

Vida Pastoral

de ser estéril, Isabel está com a idade avança-


É provável que a redação final do texto da

14
da. É outra causa de discriminação e humilha- aprofundar melhor a vida de Maria de Nazaré,
ção: as crianças que nascem de mulheres ido- uma judia da Galileia, podemos dialogar com
sas são consideradas fracas e rejeitadas no alguns textos bíblicos que nos revelam a chave
mundo greco-romano. Mas apesar de tais dis- para tocar em sua pessoa.
criminações impostas sobre a figura de Isabel,
a comunidade cristã atribui-lhe o papel im-
2. Maria de Nazaré, Mãe de Jesus,
portante de reconhecer e exclamar o mistério
uma judia da Galileia
da concepção do Messias no corpo de Maria.
O que a comunidade quer com isso é dignifi-
Houve uma reunião dos sacerdotes e de-
car os oprimidos e denunciar todo tipo de dis-
liberaram: “Façamos um véu para o templo
criminação contra o ser humano (cf. At 6,1).
do Senhor”. Disse o sacerdote: “Chamai-me
as virgens sem mancha da tribo de Davi”.
4 • “Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi
Partiram os mensageiros, procuraram e en-
dito da parte do Senhor será cumprido” (Lc
contraram sete. O sacerdote lembrou-se da
1,45). As duas mulheres, mães grávidas, se
jovem Maria, por ser ela da tribo de Davi e
encontram e se regozijam com o cumpri-
sem mancha diante de Deus. Os emissários
mento da promessa de
saíram e a trouxeram. De-
Deus. Ao contrário de
pois que as introduziram no
Zacarias, um sacerdote “Ao contrário de Zacarias, templo do Senhor, disse o
do Templo de Jerusa-
lém, as duas mulheres um sacerdote do Templo de sacerdote: “Tirai-me a sorte
para saber quem tecerá o
pobres acreditam na Jerusalém, as duas mulheres ouro, o amianto, o linho, a
ação salvífica de Deus
na história, manifesta-
pobres acreditam na ação seda, o jacinto, o escarlate e
a púrpura genuína”. Coube-
da na tradição dos po- salvífica de Deus
ram a Maria a púrpura ge-
bres do Antigo Testa- na história.” nuína e o escarlate. Apa-
mento: ele está a favor
nhou-os e foi para sua casa.1
dos pobres, está no
meio deles. São a teologia e a fé que ilumi- No início do século III, ao fazer a releitura do
nam e animam o discipulado missionário texto da “Anunciação” (Lc 1,26-38), o autor do
das primeiras comunidades cristãs. apócrifo “A história do nascimento de Maria” (O
Protoevangelho de Tiago) salienta a majestade de
A narrativa da visita de Maria a Isabel é
Maria, com narrativa sem fundamento histórico.
uma catequese sobre o discipulado de Jesus,
À luz desse e outros textos dos apócrifos, com-
cujas exigências são: prática de solidariedade,
preende-se que a reflexão sobre Maria, que esta-
dignificação do ser humano e a justiça social
va vinculada a Jesus Cristo no início do cristia-
com a fé no Deus da vida. De modo especial, o
nismo, começa a adquirir o próprio caminho: a
cântico de Maria é um resumo do projeto do
devoção mariana com o uso de narrações mitoló-
Deus da vida, revelado na vida de Jesus.
gicas (cf. o apócrifo “Morte e assunção de Maria”
nº- 292

No evangelho de Lucas, Maria é, assim,


– Trânsito de Maria ou livro do descanso).
apresentada como uma mulher pobre da perife-
Com o crescimento da piedade mariana,

ria, consciente e comprometida com a causa dos


ano 54

surge o culto à Santíssima Virgem Maria na Ida-


pobres. Quais os rostos de Maria segundo os ou-
tros evangelhos, então? As informações sobre a

Vida Pastoral

dimensão humana de Maria? Para entender e 1


A história do nascimento de Maria: o véu do templo, X, 1-2.
Petrópolis: Vozes, 1991.

15
de Média, desenvolvendo hinos litúrgicos e pin- fundo histórico. “Toda reflexão teológica consis-
turas com a imagem de pura beleza, até angelical tente baseia-se na Sagrada Escritura.”2
de Maria. Desde o século XVI, contra a Reforma Mesmo que cada evangelho segundo sua re-
Protestante, a Igreja Católica aumenta ainda alidade seja fruto da reflexão e interpretação da
mais a devoção a Maria junto com a adoração ao vida de Jesus de Nazaré e a comunidade de seus
Santíssimo Sacramento e o papel do Papa. Maria seguidores e seguidoras à luz da fé em Jesus Cris-
é, cada vez mais, “adorada” como a “rainha do to ressuscitado, alguns textos nos fornecem da-
céu e da terra”. Chega-se a dizer que todas as dos importantes sobre a vida de Maria de Nazaré:
graças são alcançadas pela Santíssima Virgem,
proclamada com os dogmas da Imaculada Con-
1) Maria, mulher empobrecida
ceição (1854) e da Assunção (1950). É uma Ma-
da Galileia
ria triunfalista e endeusada.
Contudo, essa reflexão sobre Maria (mario- Os textos bíblicos apresentam Maria como
logia) começa a ser revista com a chegada do mo- mulher de Nazaré. É um povoado judaico entre
vimento de renovação da Igreja Católica: o Con- duzentos e quatrocentos habitantes no tempo de
cílio Vaticano II. O documento Lumen Gentium, Jesus: “As escavações levadas a efeito debaixo das
por exemplo, situa a devoção a Maria no mistério estruturas cristãs posteriores não mostram nenhu-
de Jesus Cristo: “Por isso o sagrado Concílio, ao ma sinagoga, nem fortificação ou palácios, nenhu-
expor a doutrina da Igreja, na qual o divino Re- ma basílica nem balneário, nem mesmo ruas pavi-
dentor opera a salvação, deseja esclarecer cuida- mentadas. Absolutamente nada. Em vez disso,
dosamente quer a função da bem-aventurada prensas para produzir azeite de oliva e vinho, cis-
Virgem no mistério do Ver- ternas, silo e pedras de moer
bo encarnado e do corpo espalhadas ao redor de covas
místico, quer os deveres “A devoção a Maria deve falam de uma população ru-
dos próprios homens re- estar vinculada com a missão ral que vivia em casebres
midos para com a Mãe de muito simples”.3
Deus, que é Mãe de Cristo
salvífica de Jesus Cristo, Há certas evidências na
e dos homens, em especial crucificado pelo império arqueologia de que a vida
dos fiéis” (VIII, 54). romano e ressuscitado pelo dessa população rural era
A mariologia, então, é marcada pela fome e sofri-
retomada e aprofundada Deus da vida.” mento. A pesquisa nos relata
em relação com Jesus Cris- a perspectiva de vida no
to e com a comunidade de tempo de Jesus: no primeiro
seus seguidores e seguidoras, pois ela é mãe, ano de vida, cerca de 30% dos recém-nascidos
educadora, companheira e seguidora de Jesus. A morriam; dentro dos dez anos de vida, cerca de
glorificação e a devoção a Maria devem estar vin- 50%. Na faixa etária dos trinta anos de idade, de
culadas com as missão salvífica de Jesus Cristo, 70% a 75% morriam, especialmente por desnu-
crucificado pelo império romano e seus colabo- trição e falta de alimento, devido ao trabalho pe-
radores, e ressuscitado pelo Deus da vida. sado e às guerras. A maioria das pessoas que con-
nº- 292

Nessa revisão e renovação na mariologia, o seguiam viver sofria com a fome crônica, a perda
movimento bíblico tem um papel fundamental:

ano 54

a reflexão sobre Maria a partir do estudo contex-


2
Afonso MURAD, Maria, toda de Deus e tão humana – Com-
tualizado da Bíblia. As informações bíblicas so- pêndio de Mariologia, p. 24.
bre Maria, mãe de Jesus, são imprescindíveis

John Dominic CROSSAN; Jonatham L. REED, Em busca de


Vida Pastoral

para não se construir uma devoção a Maria sem Jesus: debaixo das pedras, atrás dos textos, p. 75.

16
de dentes, a fraqueza nas vistas e os vermes no Nesse caldeirão de sofrimento e tensões so-
ventre. Era uma realidade duríssima.4 ciais, Maria de Nazaré viveu, formou-se, educou
Uma das maiores causas do empobrecimen- e acompanhou o filho, Jesus, que passou a maior
to dos camponeses judeus era a exigência de pa- parte da vida andando de uma aldeia para outra
gamento de impostos. Os judeus eram obrigados na Galileia. Ele pregou e praticou um relaciona-
a pagar para os romanos o imposto sobre 25 a mento social e religioso baseado no amor e na
30% das colheitas, o pedágio para a circulação de justiça, o que o levou a confrontar as autoridades
pessoas e mercadorias, e a dedicar um tempo de e, consequentemente, à cruz. Seus atos e pala-
trabalhos forçados para as tropas e para as obras vras estavam enraizados nas experiências da
públicas. Existiam também os impostos do Tem- vida camponesa de sua terra, da qual sua mãe,
plo: vários dízimos, ofertas de sacrifícios, impos- Maria, fazia parte.
to pessoal, estipulado em um denário etc. Cres- Com muita probabilidade, a sensibilidade,
ceu o número de pessoas endividadas e escravi- a compaixão e a solidariedade de Jesus com
zadas. Era comum presenciar famílias inteiras seus irmãos sofridos e massacrados também
sendo vendidas como escravas devido às dívidas. exprimem a dimensão humana e existencial de
O sofrimento do povo acontecia não somente Maria de Nazaré, mulher empobrecida da Gali-
no campo de tributos e comércio, mas também no leia (cf. Mc 6,34).
campo político e cultural. Os romanos nomearam
os idumeus, inimigos dos judeus, para reger a Pa-
2) Maria, mãe preocupada com seu filho
lestina: Herodes Magno e seus filhos (Arquelau,
Herodes Antipas e Filipe), cujos reinados foram
E voltou para casa. E de novo a multi-
marcados por brutalidade e tirania, espalhando
dão se apinhou, de tal modo que eles não
ódio e desespero no meio do povo. Promoviam a
podiam se alimentar. E quando os seus to-
ostentação do luxo segundo o estilo romano (cul-
maram conhecimento disso, saíram para
tura greco-romana), construindo palácios em ci-
detê-lo, porque diziam: “Enlouqueceu!...”
dades como Cesareia, Jerusalém, Séforis, Tibería-
Chegaram então sua mãe e seus irmãos e,
des, Jodefá, entre outras. Aumentaram os tributos,
ficando do lado de fora, mandaram chamá-
assim como intensificaram a exploração, a opres-
-lo. Havia uma multidão sentada em torno
são e a violência contra os camponeses, que cons-
dele. Disseram-lhe: “Eis que tua mãe, teus
tituíam 90% ou mais da população da Palestina.
irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procu-
A violência das autoridades se evidenciou,
ram”. Ele perguntou: “Quem são minha
especialmente, na repressão contra os movi-
mãe e meus irmãos?” (Mc 3,20-21.31-34).
mentos populares de revolta que infestavam a
Palestina. Por exemplo, a cidade de Séforis, Os parentes julgaram Jesus e disseram: “En-
centro administrativo da Galileia, foi centro da louqueceu”. O julgamento deve ser motivado
rebelião após a morte de Herodes, o Grande, pelo comportamento e pela prática de Jesus, que
violentamente reprimida e devastada; a popu- não segue a Lei e o costume oficial. Os evange-
lação foi massacrada e escravizada. Nazaré fica- lhos trazem à tona essas características da atua-
va apenas a sete quilômetros de Séforis, de ção de Jesus: “Aconteceu que, estando à mesa,
nº- 292

modo que Maria e seu filho Jesus tinham pre- em casa de Levi, com muitos publicanos e peca-
senciado e experimentado, em sua pele, a tra- dores, com seus discípulos” (Mc 2,15); “Aconte-

ano 54

gédia e o desespero do povo. ceu que, ao passar num sábado pelas plantações,
seus discípulos começaram a abrir caminhos
arrancando as espigas” (Mc 2,23).

Masahiro YAMAGUTI, O amanhecer do nascimento de


Vida Pastoral

Jesus: a história e o povo da Galileia, p. 225-227. Jesus vive no meio dos impuros, excluídos,

17
endemoninhados... Entra em conflito com o Nesse mundo oriental e judaico, é estranha a
guardião da Lei do puro e do impuro, de modo presença de Maria na delegação de seus parentes
que os escribas o julgam: “Ele está possuído por e familiares para prender Jesus, filho adulto, que
um espírito impuro” (Mc 3,30). Diante da cor- estaria ameaçando a honra de seu clã e família. O
rupção e exploração da autoridade do Templo, problema deve ser resolvido e executado pelos
Jesus expressa sua indignação: “Vós, porém, fi- homens do clã. Que pensar do encontro de Maria
zestes dela um covil de ladrões” (Mc 11,17). Essa com Jesus neste contexto? Também o encontro é
é a causa principal da ira e marcado pela tensão entre
condenação das autorida- Jesus e seus familiares: “Ele
des religiosas de Jerusalém
“Nesse caldeirão perguntou: ‘Quem é minha
(cf. Mc 11,18). de sofrimento e tensões mãe e meus irmãos?’. E, re-
Os parentes e familiares passando com o olhar os
sociais, Maria de Nazaré
tentam prender e neutrali- que estavam sentados ao seu
zar essa atuação de Jesus viveu, formou-se, educou redor, disse: ‘Eis a minha
que compromete e ameaça e acompanhou mãe e os meus irmãos.
o nome, a vida do seu clã e Quem fizer a vontade de
sua família no mundo me- o filho, Jesus.” Deus, esse é meu irmão,
diterrâneo da cultura pa- irmã e mãe’” (Mc 3,33-35).
triarcal de “honra e vergonha”. O dever de um Apesar de tudo isso, Maria foi ao encontro de
membro de uma aldeia judaica é a fidelidade e a seu filho. Por quê? Uma resposta mais convin-
obediência ao chefe (ancião) de seu clã e a seu pai, cente está na experiência humana de todos os
que controla a família e sua herança (terra, casa, tempos: uma mãe não abandona seu filho. É um
animais, filhos etc). A honra de uma família está exemplo de laço humano, utilizado até na descri-
em primeiro lugar e deve ser mantida até com a ção sobre o relacionamento entre Deus e o povo
morte. A organização e a tradição familiar são de Israel: “Por acaso uma mulher se esquecerá da
meios importantes de sobrevivência e, ao mesmo sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela
tempo, servem, às vezes, para manter o sistema do do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se
poder na sociedade oriental e judaica da época. esquecessem eu não me esqueceria de ti. Eis que
Assim, entende-se que a reação dos parentes te gravei nas palmas da mãos” (Is 49,14-16).
ao saber da atuação de Jesus é julgá-lo fora de si. Maria percebe que seu filho Jesus corre
Nesse grupo de pessoas com laços consanguíne- perigo, que está na mira das autoridades ju-
os, Maria, a mãe de Jesus, está presente. Segun- daicas e romanas por construir uma verdadei-
do a tradição conservadora familiar dos judeus ra família baseada no amor, na justiça e na
daquele tempo, uma mulher virtuosa deve se solidariedade, conforme o projeto do Deus da
dedicar completamente à casa, a sua administra- vida. Ela vai tentar falar, convencer e mudar a
ção e organização (cf. Pr 31,13-15). Enquanto o atitude de Jesus. Ela procura preservar a vida
pai cuida da família no exterior (herança, rela- do seu filho. Emocionalmente, Maria age
ções jurídicas etc.), o cuidado da mãe está com o como qualquer mãe que ama, se compadece e
interior: as crianças, animais domésticos, cozi- se arrisca pelo filho do seu ventre.
nº- 292

nha e outras tarefas da casa. Ela desempenha


como a perfeita dona de casa para honrar seu
3) Maria, mãe do filho massacrado

ano 54

marido (cf. Pr 31,23). E não deve desempenhar


pelo poder imperial
atividade e responsabilidade jurídica fora de
casa, porque isso desonraria o homem, o chefe “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé

Vida Pastoral

da família, na cultura de honra e vergonha. sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de

18
Copas, e Maria Madalena” (Jo 19, 25). Enquan-
to, nos sinóticos, as mulheres assistem à crucifi-
cação a distância (Mc 15,40), em João, ao invés,
as mulheres e o discípulo amado permanecem
ao pé da cruz. O verbo “permanecer”, que não é Cartas Marcadas
utilizado pelos sinóticos, exprime a teologia joa- Pedro Casaldáliga
nina: “Se permanecerdes na minha palavra, se-
reis verdadeiramente meus discípulos e conhe-
cereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo
8,31-32). Para a comunidade joanina, as mulhe-
res são as verdadeiras discípulas de Jesus.
Hoje a maioria dos biblistas pensa que as
mulheres estavam observando de longe. Alguns
presumem que Maria estaria em Nazaré da Gali-
leia. Quer seja Maria a distância ou ao pé da
cruz, ela teve o filho morto. A morte é um mo-
mento de angústia e tristeza. Para uma mãe, a
morte de um filho é um contrassenso inaceitá-
296 págs.
vel. Ainda mais: Jesus foi executado com a cruci-
ficação. Era uma punição cruel e assustadora,
aplicada aos escravos e aos não romanos crimi- As Cartas marcadas de Dom Pedro
nosos, como assassinos, bandidos e rebeldes. Casaldáliga, escritas de 1986 a 2005,
decorrem de um claro compromisso de
Em geral, os romanos crucificavam os crimino- pastor, extravasando em sua linguagem
sos inteiramente nus em local de muita visibili- poética uma lúcida visão da realidade
dade para humilhar e intimidar o povo. e decidida opção pelas causas do povo
e apresentando uma abordagem
Para Maria, a morte de Jesus na cruz foi um transparente e objetiva.
golpe brutal, que bateu no fundo de sua alma:
“Meu coração se contorce dentro de mim, mi-
nhas entranhas comovem-se” (Os 11,8). Ou
como diz a comunidade de Lucas: “Eis que este
menino foi posto para a queda e para o soergui-
mento de muitos em Israel, e como um sinal de
Imagens meramente ilustrativas.

contradição – e a ti, uma espada traspassará tua


alma! – para que se revelem os pensamentos
íntimos de muitos corações” (Lc 2,34-35).
Humanamente falando, Maria chorou por Je-
sus, arrasada pela perda do seu filho amado, com
Vendas: (11) 3789-4000
a memória de um menino carinhoso, amável,
0800-164011
sensível ao sofrimento de outros. Também deve SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

ter chorado por ele, destruída pelo doloroso sen-


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
timento de impotência de não ter conseguido

paulus.com.br
ano 54

proteger e convencer o filho a sair do caminho de


confrontos com as autoridades da época.
Maria é como “inúmeras mães judias com

Vida Pastoral

os filhos cruelmente assassinados”. Uma mu-

19
lher devastada. A situação de sofrimento extre- costume, todos os dias, os meus pais me visita-
mo pode levar a pessoa a se tornar dura, infle- vam, trazendo-me o jantar – meus pratos favori-
xível e fechada, ou pode ser uma verdadeira tos –, contra a orientação médica. Certo dia, a
escola de humanização. Segundo o evangelho imagem de Maria chegou junto com a comida.
de Lucas e o de João, que descrevem Maria Passaram-se mais de vinte anos. Meus
como “discípula exemplar e testemunha apos- pais já faleceram. Mas a imagem ainda conti-
tólica”, Maria amadurece, compreende e se nua na minha frente. É a memória sagrada.
abre para o projeto de seu filho Jesus por uma Por ela, me lembro de minha mãe e de meu
sociedade igualitária, com direito de todos a pai, que tiveram a experiência dolorosa com a
uma vida digna e plena. bomba atômica de Nagasaki e suas consequên­
Historicamente, na perseguição provoca- cias, e sempre rezavam o rosário, meditando
da por anunciar Jesus sobre a vida de Jesus.
Cristo crucificado, “que “Ao reduzir Maria a apenas Lembro-me da internação,
para os judeus é escânda- do sofrimento, do deses-
lo, para os gentios é lou-
uma devoção à Maria pero, do amadurecimento
cura” (1Cor 1,23), o so- gloriosa sem carne e osso, etc. Recentemente, após as
frimento e a dor cruel andanças por Israel, a terra
o caminho cristão ignora e
dos cristãos fazem a me- de Maria, José e Jesus, a
mória de Maria com o fi- perde toda a humanidade imagem de Maria me sus-
lho assassinado ser am- de Jesus de Nazaré.” cita reflexões sobre o coti-
plamente solidária com diano dessa mulher e seu
os familiares dos fiéis povo de Nazaré, Galileia,
mutilados e mortos. E, até hoje, Maria, com mundo marcado pela violência, exploração,
Jesus morto, enquanto figura histórica e sim- exclusão, miséria, doença e muita fome. E
bólica da comunidade cristã das origens, per- também reflexões sobre as mulheres mães de
manece e estimula nossa sensibilidade pela hoje e, especialmente, as mães, como Maria
necessidade de transformar o mundo de in- de Nazaré, que perderam os filhos e filhas nas
justiça e violência. diversas formas de violência e em tragédias,
Ao reduzir Maria a apenas uma devoção à como, por exemplo, as mães dos 241 jovens
Maria gloriosa sem carne e osso, o caminho cris- mortos de Santa Maria, vítimas do descaso, da
tão ignora e perde toda a humanidade de Jesus corrupção de valores e da impunidade.
de Nazaré: “Ele, estando na forma de Deus, não As dores de inúmeras mães espalhadas no
usou de seu direito de ser tratado como um mundo suscitam a lembrança de Maria de Naza-
deus, mas se despojou, tomando a forma de es- ré, uma judia da Galileia, Mãe de Jesus, morto
cravo. Tornando-se semelhante aos homens e por tentar abolir todo tipo de violência como a
reconhecido em seu aspecto como um homem, única expressão apropriada da fé no Deus da
abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à vida, presente no cotidiano da humanidade. O
morte sobre a cruz” (Fl 2,6-8). Brasil e o mundo serão muito melhores quando
todos os devotos de Maria educarem as crianças
nº- 292

Uma palavra final para se tornarem pessoas sensíveis ao sofrimento


Na mesa do meu quarto, há uma pequena de outros, e para sonhar com uma sociedade re-

ano 54

imagem de Maria. Ela foi danificada por vários gida pela partilha, amor e justiça.
“tombos”. É uma imagem trazida por minha mãe
ao hospital, no qual eu estava lutando contra a (Referências bibliográficas para os quatro arti-

Vida Pastoral

doença. A internação durou seis meses. Como de gos, p. 36)

20
“Felizes vós, os pobres, porque
vosso é o reino de Deus” (Lc 6,20)
Maria Antônia Marques
Shigeyuki Nakanose

Em resposta à dura realidade dos pobres


e oprimidos, a comunidade de Lucas E nquanto policiais mandavam um grupo
de sem-tetos esvaziar um prédio invadi-
do na Avenida Ipiranga, Júlia, 7, só pensava
transmite e interpreta as mensagens de Jesus em não deixar para trás todo o seu material
de Nazaré. Uma delas é o sermão da escolar. Paula, a mãe, diz que a filha não
queria perder a aula no dia seguinte. Fazia
planície, que insiste no tema dos pobres, frio, e a lona da barraca não impedia o vento
famintos e injustiçados, a quem o reino de de entrar. Mesmo protegida por cobertores,
a menina acordou com os lábios rachados
Deus pertence. Anuncia não abstrações, mas
pelo frio, e o corpo dolorido pela cama dura.
a reversão dessa situação, fazendo um forte “Tava muito frio, parecendo gelo”, disse. De-
alerta à consciência cristã diante da divisão pois do café da manhã (um copo de refrige-
rante e pão com manteiga), a mãe conseguiu
socioeconômica entre pobreza e riqueza. que ela tomasse banho em outro prédio in-
vadido na Ipiranga. Só que havia fila, e Pau-
la e Júlia demoraram mais do que o planeja-
Maria Antônia Marques, Assessora do Centro Bíblico do. Chegaram às 13h08 à escola. Os portões
nº- 292

Verbo e professora da Faculdade Dehoniana, em Taubaté, na


Faculdade Católica de São José dos Campos, na Escola
haviam fechado. Paula ainda insistiu com
Dominicana e no ITESP, em São Paulo. uma funcionária, que negou a entrada. Júlia

ano 54

E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br teve que voltar para o acampamento.1


Shigeyuki Nakanose, Religioso verbita, padre, assessor do
Centro Bíblico Verbo, leciona no ITESP, na Faculdade Católica de

Vida Pastoral

São José dos Campos e na Faculdade Dehoniana, em Taubaté. 1


Da Redação, Folha de São Paulo, São Paulo, 31.07.2012,
E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br Caderno Cotidiano, p. 10.

21
A presença dos crucificados se faz realida- rão. Para refletir sobre o tema dos contrastes
de no meio de nós. Conhecemos quem são sociais entre pobres e ricos e da sociedade
eles e elas? Depende de cada um. Depende da justa e fraterna à luz de Lc 6,20-26, vamos
experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao conhecer a sociedade greco-romana na qual a
nosso redor com mínima sensibilidade. Ou – comunidade de Lucas estava inserida:
para nós, cristãos – olhar com a fé no Cristo
Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado no
1. Contrastes sociais
meio das pessoas empobrecidas e crucificadas.
entre pobres e ricos.
Muitos cristãos costumam ter compaixão
e misericórdia pelos crucificados, e até refle- Na sociedade do primeiro século, havia
tem sobre a mudança de mentalidade: pensar duas categorias: os ricos e os pobres. Os ricos
mais no amor de Deus e voltar-se para ele. Po- (entre 1 e 5% da população) eram aqueles
rém, a verdadeira mudança deve atingir todas que viviam em abundância sem necessidade
as dimensões da vida: os pensamentos, as rela- de trabalhar para sobreviver. Os pobres, pelo
ções humanas, sociais e econômicas. Deus se contrário, eram todos os que não podiam
manifesta na totalidade da manter-se sem traba-
vida humana, pois a criatura lhar fisicamente. Ou
humana é imagem e seme- “Por trás da sociedade seja, “trabalhar com as
lhança do Criador (Gn greco-romana havia um próprias mãos”, diz
1,26-27). Deve-se escutar o Paulo. Nesse grupo es-
grito de corpos massacrados
mecanismo de explorar e
tavam os agricultores,
no cotidiano, e criar as con- manter esses pobres em os comerciantes, os ar-
dições favoráveis para eles.
condição de escravidão.” tesãos etc. Havia tam-
No cotidiano das pri- bém os pobres – “indi-
meiras comunidades cris- gentes” – que necessita-
tãs, como no cotidiano da maioria dos cris- vam mendigar para sobreviver.
tãos de hoje, sempre existiu o problema dos No último patamar da categoria dos po-
crucificados, os conflitos entre os privilegia- bres estavam os escravos e as escravas, pesso-
dos, os excluídos e o individualismo religio- as sem liberdade, sem direitos e sem dignida-
so. Destacamos, entre outras, a comunidade de humana e, em certos casos, sujeitos a abu-
cristã de Lucas, que focaliza os fortes contras- sos e espancamentos. De fato, na sociedade
tes sociais entre os pobres e os ricos, por do tempo de Lucas existia um abismo descri-
meio de seus textos exclusivos, como, por to na história do pobre Lázaro: “Entre nós e
exemplo, a parábola do pobre Lázaro e do vós existe um grande abismo, a fim de que
rico (Lc 16,19-21). aqueles que quiserem passar daqui para jun-
Em resposta à dura realidade dos pobres to de vós não o possam, nem tampouco atra-
e oprimidos, a comunidade cristã de Lucas vessem de lá até nós” (Lc 16-26).
transmite, interpreta e aumenta as mensa- Por trás da sociedade greco-romana havia
gens de Jesus de Nazaré. Uma delas é o ser- um mecanismo de explorar e manter esses
nº- 292

mão da planície (Lc 6,17-49), que se equipa- pobres em condição de escravidão:


ra ao sermão da montanha de Mateus (Mt

1 • Sociedade patronal: a elite monopoliza-


ano 54

5-7). O sermão, sobretudo em Lc 6,20-26,


insiste no tema dos pobres, famintos e injus- va informações e usava em proveito pró-
tiçados, a quem o reino de Deus pertence. prio os recursos financeiros que o poder

Vida Pastoral

Anuncia assim que suas situações se reverte- central disponibilizava para obras e ben-

22
feitorias, manobrando tudo a seu favor. controle social eram a religião: a diviniza-
Por exemplo, o imperador, como o gran- ção da imagem do imperador, exibindo-a
de protetor, beneficiava os administrado- em moedas, broches, taças, estátuas, alta-
res e as elites locais com doações de car- res e fóruns. Promovia cultos, sacrifícios,
gos, títulos de honra e títulos de terras. jogos, festas e festivais em datas significa-
Dessa forma, criava laços de gratidão, tivas da vida do imperador, criando uma
submissão e dependência. Esse modelo “aura” divina em torno de sua imagem.
de administrar era conhecido como pa-
tronato, modelo que abrange todas as re- 5 • Religião oficial dos judeus: além de pagar
lações sociais, desde o imperador até os os impostos civis, os judeus deviam hon-
estratos sociais mais pobres. rar as leis e os tributos religiosos, como o
dízimo. Quem não conseguia observar era
2 • Tributos: o Império, por meio de sua polí- considerado impuro e endemoninhado.
tica patronal, sabia se beneficiar de todas as Era excluído da bênção de Deus e do Rei-
atividades econômicas: cobrava, com mão no de Deus. Após a destruição do templo,
de ferro, taxas e impostos, o que levava pe- os pobres sofriam toda a carga das restri-
quenos comerciantes e produtores rurais à ções legais da sinagoga.
falência. Os ricos se mantinham, pois eram
donos de latifúndios e estavam inseridos 6 • A sociedade greco-romana, marcada pela
na “rede comercial” do sistema patronal. competição e ambição de riqueza, de po-
Isso fazia crescer, cada vez mais, a diferen- der e de honra, espoliava e excluía os po-
ça entre ricos e pobres. “Alguns publicanos bres. A busca desenfreada por poder e a
também vieram para ser batizados e disse- marginalização social dos pobres aconte-
ram-lhe: ‘Mestre, que devemos fazer?’. Ele ciam também na convivência cristã. A dis-
disse: ‘Não deveis exigir nada além do que criminação contra os pobres atingia até o
vos foi prescrito’” (Lc 3,13). O texto exclu- cerne da vivência cristã: a refeição comu-
sivo de Lucas descreve o abuso cotidiano nitária em memória de Jesus.
da cobrança de tributo no império roma-
no, empobrecendo a população. A celebração era um dos momentos mais
fortes da vivência comunitária. Um convite
3 • Exército: havia um poderoso exército para experimentar a comunhão fraterna entre
para conquistar e sustentar o domínio do ricos e pobres, livres e escravos, judeus gen-
Império. Uma de suas funções era contro- tios, mulheres e homens. No entanto, muitas
lar o cotidiano da população, frequente- vezes isso não ocorria no interior das comu-
mente cometendo abusos. “Os soldados, nidades. “Quando, pois, vos reunis o que fa-
por sua vez, perguntavam: ‘E nós, que zeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um
precisamos fazer?’. Disse-lhes: ‘A ninguém se apressa por comer a sua própria ceia; e,
molesteis com extorsões; não denuncieis enquanto um passa fome, o outro fica em-
falsamente e contentai-vos com o vosso briagado”, assim afirma Paulo, condenando a
nº- 292

soldo’” (Lc 3,14). Esse texto, exclusivo do divisão criada no momento da ceia (1Cor
evangelho de Lucas, teria nascido da rea- 11,20-21).

ano 54

lidade de violência e de abuso do exército. No mundo greco-romano, os cristãos po-


bres sofriam dentro e fora das comunidades.
4 • Religião: outro recurso que o Império uti-

O evangelho de Lucas, provavelmente, foi


Vida Pastoral

lizava para expandir seu poder e manter o dirigido a esse grupo sofrido e aflito da Ásia

23
menor e da Grécia. Ele discute e apresenta o bertados no Reino de Deus, onde não há
caminho de Jesus como caminho que trans- mais nem fome nem choro. É uma nova so-
forma a sociedade injusta e excludente em ciedade de justiça, amor, reconciliação e par-
uma nova sociedade de fraternidade. tilha do “ano da graça” (cf. Lv 25). Por isso, a
bem-aventurança dos pobres não significa a
exaltação de sua condição precária e sofrida,
2. Felizes vós, os pobres,
mas porque Jesus, como o Deus dos pobres
e ai de vós, ricos...
no Antigo Testamento, convive e liberta os
pobres: “Sim, pois ele não desprezou, não
“Felizes vós, os pobres, porque vosso
desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe
é o Reino de Deus. Felizes vós, que agora
ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele
tendes fome, porque sereis saciados. Feli-
gritou. Os pobres comerão e ficarão saciados,
zes vós, que agora chorais, porque haveis
louvarão a Iahweh aqueles que o buscam” (Sl
de rir” (Lc 6,20-21).
22, 25.27).
A palavra “pobre”, no A prática de Jesus era
sentido original do termo a da libertação dos pobres,
bíblico anawim, encontra- “A bem-aventurança e agora são os pobres que
-se em Amós e Sofonias: dos pobres não significa devem promover o Reino
“Porque vendem o justo de Deus: “porque vosso é
a exaltação de sua o Reino de Deus”. Eles são
por prata e o indigente por
um par de sandálias. Eles condição precária os sujeitos da construção
esmagam sobre o pó da ter- e sofrida, mas sua da nova sociedade de jus-
ra a cabeça dos fracos e tor- tiça e solidariedade: “Pro-
nam torto o caminho dos libertação.” curai a Javé vós todos, os
pobres” (Am 2,6-7). Os po- pobres da terra, que reali-
bres são as pessoas empobrecidas, espoliadas e zais a sua ordem. Procurai
injustiçadas pelos ricos desejosos de riqueza. a justiça, procurai a solidariedade, talvez sejais
São as vítimas da sociedade exploradora e ex- protegidos no dia da ira de Javé” (Sf 2,3). Nesse
cludente. contexto, surge um desafio: o seguimento de
Para esses pobres, Jesus diz que eles são Jesus é o caminho da cruz, está na contramão
os destinatários das bem-aventuranças, e que da sociedade dominada pelo Império Romano
deles é o Reino de Deus. Porém, esse não é o e seus colaboradores:
reino de César nem dos ricos ambiciosos, Felizes sereis quando os homens vos
mas o reino inaugurado por Jesus segundo a odiarem, quando vos rejeitarem, insulta-
sua proclamação, na sinagoga de Nazaré: “O rem e proscreverem vosso nome como
Espírito do Senhor está sobre mim, porque infame, por causa do Filho do Homem.
ele me consagrou pela unção para evangeli- Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque
zar os pobres; enviou-me para proclamar a no céu será grande a vossa recompensa;
libertação aos presos e aos cegos a recupera-
nº- 292

pois do mesmo modo seus pais tratavam


ção da vista, para restituir a liberdade aos os profetas (Lc 6,22-23).
oprimidos e para proclamar um ano de graça

ano 54

do Senhor” (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2). A quarta bem-aventurança já se percebe


A leitura do livro do profeta Isaías, episó- bem no cântico do servo sofredor (Is 42,1-9;
49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12): o servo, no

dio exclusivo do evangelho de Lucas, insiste


Vida Pastoral

no tema dos pobres e oprimidos que são li- sentido do povo sofrido do exílio na Babilô-

24
nia (Is 54,17), é chamado para o serviço da
justiça, é perseguido, resiste até o fim e por CENTRO BÍBLICO VERBO
isso é morto, mas Deus o acolhe e lhe dá a
Um centro de estudos que há
vitória. No cântico, Deus está com o servo e
vinte e cinco anos está a serviço do
intervém a seu favor. É um cântico de espe- povo de Deus, desenvolvendo uma
rança e de futuro presente. leitura exegética, comunitária,
A ação de Deus é agora a de Jesus. Ele ecumênica e popular da Bíblia. O
está com os pobres perseguidos e lhes pro- Centro Bíblico Verbo oferece cursos
mete o Reino de Deus, que está em oposi- regulares de formação bíblica, em
diferentes modalidades.
ção ao reino organizado pelas relações hu-
manas baseadas na injustiça, no poder e Cursos intensivos
em privilégio. O Reino de Deus dado aos
Especialização em Bíblia
pobres então exige deles uma ação de com-
Primeiro e Segundo Testamento
prometer-se com a construção da socieda-
de de relações humanas de justiça, serviço Mestrado
e comunhão. A ação dos pobres é para a Estudos de temas específicos
libertação do reinado deste mundo do mes- Línguas do mundo bíblico
mo modo que os profetas, como Amós e (hebraico e grego)
Miqueias, trabalharam: “os seus pais trata-
Retiro bíblico
vam os profetas”.
O anúncio da bem-aventurança, portanto, Cursos extensivos
Introdução ao Primeiro
não significa simplesmente uma promessa do
e Segundo Testamento
futuro: “os pobres vão descansar no céu”, (um sábado por mês)
nem: “esta terra é a terra de lágrima e de peni-
tência para ganhar o céu”. O anúncio não se Especialização e Aperfeiçoamento
trata de uma predição abstrata, mas uma con- (semanal)
vocação urgente para a ação libertadora. E essa
Cursos nas paróquias
ação atinge e envolve os ricos, para quem Lu-
e outras entidades
cas dirige a advertência dos quatro “ais”: Além dos cursos realizados na sede
do Centro Bíblico Verbo, a equipe
Mas, ai de vós, ricos, porque já ten-
presta assessoria às dioceses,
des a vossa consolação! Ai de vós, que paróquias, comunidades, grupos de
agora estais saciados, porque tereis fome! reflexão, colégios, congregações
Ai de vós, que agora rides, porque conhe- religiosas e outras entidades, no
cereis o luto e as lágrimas! Ai de vós, Brasil e em outros países.
quando todos vos bendisseram, pois do
mesmo modo seus pais tratavam os falsos Mais informações:
Rua Antônio das Chagas, 124
profetas (Lc 6,24-26). Bairro Chácara Santo Antônio
04714-002 – São Paulo/SP
Primeiramente, os quatro “ais” são as Tel.: (11) 5181-7450
nº- 292

maldições aos ricos, folgazões e ambiciosos E-mail:


da riqueza, que na acumulação espoliam os contato@cbiblicoverbo.com.br ou

cbiblicoverbo@uol.com.br
ano 54

pobres. São contra o reinado de injustiça e de


Nossa página:
exclusão para o qual os falsos profetas propa- www.cbiblicoverbo.com.br

gam e contribuem. O mais importante, po- Facebook: Centro Bíblico Verbo


Vida Pastoral

rém, é aplicar os quatro “ais” para os pobres

25
também. Para eles, a maldição é uma adver- trona os ricos apegados às suas riquezas e
tência contra as seduções de riqueza e luxo aos seus poderes, enquanto os pobres, em
sem limites, que os levam a se tornarem os suas práticas de solidariedade, são eleva-
protagonistas do mundo da injustiça. dos e acolhidos por Deus. O cântico,
A “bem-aventurança” não se trata então como as bem-aventuranças (Lc 6,20-26),
de uma predição abstrata ou de uma pro- aponta para a subversão da ordem social.
messa salvífica, mas de um anúncio da
transformação do mundo de acúmulo e in- 2 • “E as multidões o interrogaram: ‘Que de-
justiça, feita com a força de solidariedade e vemos fazer?’. Respondia-lhes: ‘Quem
partilha dos seguidores e seguidoras de Je- tiver duas túnicas, reparta-as com aquele
sus de Nazaré. É um forte alerta à consciên- que não tem, e quem tiver o que comer,
cia cristã diante da divisão socioeconômica faça o mesmo’” (Lc 3,10). A conversão,
entre pobreza e riqueza. anunciada por João Batista, significa mu-
dança de vida: romper com o comporta-
mento e os valores do
3. Catecismo para os
mundo, que no acúmulo
pobres e os ricos “O anúncio da bem- e no luxo espoliam os
O evangelho de Lucas -aventurança não significa pobres. É um convite ra-
salienta a forte divisão so- dical e uma advertência
cioeconômica entre po- simplesmente uma para os ricos contra as
bres e ricos, o que fica evi- promessa do futuro: ‘os seduções do “dinheiro”.
dente no acréscimo das
quatro maldições aos ri-
pobres vão descansar no 3 • “E se emprestais
cos às bem-aventuranças céu’, mas uma convocação àqueles de quem espe-
dos pobres. Há nesse rais receber, que graça
urgente para a ação
evangelho outros textos alcançais? Até mesmo
exclusivos, que advertem libertadora.” os pecadores empres-
e convidam os pobres e os tam aos pecadores para
ricos a aderirem às bem- receberem o equivalen-
-aventuranças: justiça, compaixão, solidarie- te. Muito pelo contrário, amais vossos
dade e partilha, características do reinado do inimigos, fazei o bem e emprestai sem
Deus da vida. É Deus que vem ao encontro esperar coisa alguma em troca. Será
das pessoas que passam fome e padecem grande a vossa recompensa, e sereis fi-
com tantos outros sofrimentos. lhos do Altíssimo, pois ele é bom para
com os ingratos e com os maus” (Lc
1 • “Seu nome é santo e sua misericórdia per-
6,34-35). Lc 6,27-38 é a continuação
dura de geração em geração, para aqueles
das quatro maldições aos ricos (Lc 6,24-
que o temem. Agiu com a força de seu
26). Possivelmente, os destinatários
braço, dispersou os homens de coração
deste trecho são os ricos, chamados a
nº- 292

orgulhoso. Depôs poderosos de seus tro-


superar os valores da sociedade patro-
nos, e a humildes exaltou. Cumulou de
nal: a doutrina e a teologia da retribui-

bens a famintos e despediu ricos de mãos


ano 54

ção. Eles devem amar “seus inimigos”,


vazias” (Lc 1,49-53). No cântico de Maria
nome atribuído aos pobres, famintos,
(o Magnificat), a comunidade lucana

mendigos no mundo greco-romano da-


Vida Pastoral

anuncia o projeto salvífico de Deus: des-


quele tempo.

26
4 • “E eu vos digo: fazei amigos com o Di-
nheiro da iniquidade, a fim de que, no
dia em que faltar o dinheiro, estes vos
recebam nas tendas eternas” (Lc 16,9-
12). O termo “dinheiro” em grego se diz
Mamon, deus das riquezas. O “Dinheiro”
é iníquo enquanto fonte de riqueza acu-
mulada de maneira injusta. Ou seja, acu-
mular o dinheiro na mordomia e no luxo

152 págs.
sem se preocupar com os necessitados.
“Fazer amigos com o Dinheiro”, então, é
uma prática oposta: partilhar as riquezas Jesus em nova perspectiva
com os necessitados. James D. G. Gunn
Confira a tradição de Jesus em sua forma
original como tradição oral. O impacto da
5 • “Quando Jesus chegou ao lugar, levan-
fé, a natureza da comunicação oral e um
tou os olhos e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce foco sobre o Jesus “característico” destacam-
depressa, pois hoje devo ficar em tua se em um contexto de desvalorização da fé.

casa’ [...] Zaqueu, de pé, disse ao Senhor:


‘Senhor, eis que dou a metade de meus
bens aos pobres, e se defraudei a alguém,
restituo-lhe o quádruplo’. Jesus lhe dis-
se: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa,
porque ele também é um filho de Abraão.
Com efeito, o Filho do Homem veio pro-
curar e salvar o que estava perdido’” (Lc
19,5.8-10). Zaqueu trabalha em Jericó,
176 págs.

cidade situada no vale do Jordão, que se


torna, por ter água abundante, uma pa-
rada obrigatória para os peregrinos a Je- O evangelho social de Jesus
rusalém e os comerciantes para os países O reino de Deus em
perspectiva mediterrânea
do sudeste. Nessa cidade, Zaqueu se en-
Bruce J. Melina
riquece por fiscalizar e cobrar impostos
Imagens meramente ilustrativas.

Um instrumento sobre a proclamação


e, em muitas ocasiões, defraudar pagan- a respeito de Deus. De maneira nova,
tes. Uma riqueza empregada assim é in- agradável e não convencional, o autor
critica e aponta os limites da leitura
justa. Ele se torna justo por manifestar tradicional das Escrituras.
sua conversão (receber Jesus), partilhar
sua riqueza com os pobres e restituir a
Vendas: (11) 3789-4000
quem tenha defraudado. É reparar as in-
0800-164011
justiças pelas quais se enriqueceu. Na SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

verdadeira conversão, os ricos são convi-


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
dados a não acumular.

paulus.com.br
ano 54

Com base nesses textos exclusivos do


Evangelho de Lucas, percebe-se a dura reali-

Vida Pastoral

dade da divisão socioeconômica entre os po-

27
bres e os ricos do mundo greco-romano da tem.” A família não tem planos de sair tão
Ásia menor e da Grécia. Os textos desafiam e cedo do acampamento, até porque não tem
convidam os ricos e os pobres para fazer uma para onde ir. Desempregados, a mãe e o pai
mudança radical: usar os bens em favor da vivem com os R$ 620 reais, do seguro-desem-
vida e restabelecer as relações de justiça so- prego dela, o que não dá para pagar aluguel e
cial. É um apelo de conversão desafiadora se sustentar. Paula, auxiliar de cozinha, de-
para todos e todas! sempregada, concluiu o segundo grau. O so-
Como a história de Za- nho dela é que a filha faça
queu, muito rico e chefe curso superior. “Ela quer
dos cobradores de impos- “Os textos desafiam e ser médica. Já tem o pró-
tos (Lc 19,1-10), a conver- convidam os ricos e os prio sonho dela, vive di-
são também atinge o con- zendo: ‘Mãe, quando eu
pobres para fazer uma
ceito da “salvação”, a “vida virar médica, vou te dar
eterna”: Jesus lhe disse: mudança radical: usar os uma casa e um carro’”.
“Hoje a salvação entrou bens em favor da vida e A “bem-aventuran-
nesta casa, porque ele tam- ça” significa bem mais do
bém é um filho de Abraão. restabelecer as relações de que a mensagem evoca:
Com efeito, o Filho do Ho- justiça social.” uma esperança eterna
mem veio procurar e salvar após a morte. Ela se en-
o que estava perdido” (Lc raíza na vida concreta.
19,9-10). A salvação começa aqui neste mun- Todas as pessoas têm o direito a uma vida
do. O reino de Deus inaugurado pela prática digna. Porém, na realidade de ontem e hoje,
de Jesus de Nazaré se enraíza na vida cotidiana: há muitos famintos, aflitos e perseguidos.
a partilha dos bens e as relações humanas, fra- Muitas Júlias, Paulas e outras.
ternas e justas das pessoas. Hoje, no Brasil, temos 60 milhões de po-
Segundo os evangelhos interpretados den- bres (outras fontes indicam “apenas” 30 mi-
tro do contexto socioeconômico, Jesus quer lhões) e outros tantos milhões abaixo da li-
atingir e transformar as pessoas para que as- nha de indigência. Por fim, o dado mais agra-
sim as estruturas injustas da sociedade possam vante: 1% da população concentra fortuna
ser transformadas. Os seus seguidores e segui- equivalente ao rendimento dos 50% mais
doras devem participar da vida eterna presen- pobres da população.
te na prática da compaixão, solidariedade e Uma pessoa pode ser feliz com a riqueza
justiça. Quem, por amor, segue Jesus Cristo, farta enquanto milhares de pessoas dormem
vive e participa na vida divina e eterna. com fome? Quem só pensa em si mesmo com
a acumulação e luxo da sociedade consumis-
ta não colocará nenhuma pedra na constru-
4. Uma palavra final
ção do reino de Jesus Cristo.
Mesmo acampada, Paula diz que incenti-
vará a filha a ir à aula. “Queria dar continuida- (Referências bibliográficas para os quatro ar-
nº- 292

de, para ela aproveitar esse prazer que ela tigos, p. 36)

ano 54

Vida Pastoral

28
As parábolas em Lucas
Maria Antônia Marques

Os evangelhos sinóticos – Mateus,


Marcos e Lucas – apresentam um C ontos, “causos” e parábolas são narra-
tivas envolventes e sempre abertas a
diferentes releituras. São ensinamentos
total de 40 parábolas, das quais 29
extraídos da vida cotidiana. Cada pessoa,
estão no evangelho de Lucas e 16 de acordo com a sua realidade, ouve a his-
só aparecem nesse evangelho. São tória e a aplica para a sua vida. As histórias
sempre trazem uma lição de vida. No tem-
ensinamentos preciosos, sempre po de Jesus e das comunidades cristãs, era
abertos a novas reflexões. Neste muito comum o ensinamento em parábo-
las. Ouçamos, com o coração, um antigo
artigo são apresentadas algumas conto judaico:
parábolas que só aparecem no
Uma vez um judeu rico e religioso,
evangelho de Lucas, buscando-se mas avarento, foi visitado por um rabi. O
sua compreensão a partir do visitante, com todas as atenções, levou-o
à janela. “Olhe lá para fora”, disse ele. O
contexto das comunidades rico olhou para a rua. “Que vê?”, pergun-
às quais foram dirigidas. tou o rabi. “Vejo homens, mulheres e
crianças”, respondeu o rico. De novo e
muito atenciosamente, o rabi levou-o até
nº- 292

junto dum espelho. “Amigo, o que vê


agora?” “Agora vejo-me a mim mesmo”,

respondeu o rico. “Tome nota”, disse o


ano 54

Maria Antônia Marques, Assessora do Centro Bíblico rabi, “na janela há vidro e no espelho vi-
Verbo e professora da Faculdade Dehoniana, em Taubaté, na
dro há também, mas o vidro do espelho é

Faculdade Católica de São José dos Campos, na Escola


Vida Pastoral

Dominicana e no ITESP, em São Paulo. prateado”. Uma lição se aprende: logo


E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br

29
que o homem junta prata, ele deixa de cialista em leis pergunta para Jesus: “Quem é
ver os outros para só ver a si mesmo.1 o meu próximo?” (Lc 10,29). A resposta não
é dada imediatamente, mas por meio de uma
Uma história judaica muito antiga, mas que
parábola que leva o ouvinte a refletir sobre o
pode traduzir a realidade de muitas pessoas cris-
sentido do amor ao próximo, cujo caminho é
tãs, que se fecham diante das necessidades de seus
o da compaixão e da misericórdia.
semelhantes. Esse problema vem de longe; desde
A história está ambientada no caminho
o século I, ouvimos a seguinte advertência: “Se al-
entre Jerusalém e Jericó, estrada perigosa e
guém possui riquezas neste mundo e vê o irmão
apropriada para a ação dos ladrões. Nesse ca-
passando necessidade, mas fecha o coração diante
minho, há um homem que foi roubado, es-
dele, como pode estar nele o amor de Deus?” (1Jo
pancado e deixado à beira do caminho, semi-
3,17). Uma camada de prata pode nos levar ao
morto. Um sacerdote e um levita passam pela
fechamento, tornando-nos individualistas, distan-
mesma estrada. Eles são homens fiéis à Lei e
te de Deus, das pessoas e de nós mesmos. O conto
prestam serviço no Templo. Os dois veem o
judaico é antigo, mas muito atual!
homem caído, mas seguem adiante, fecham
Os evangelhos sinóticos – Mateus, Mar-
os olhos e o coração. O sacerdote e o levita
cos e Lucas – apresentam um total de qua-
não são pessoas ruins, ao contrário, eles são
renta parábolas, das quais vinte e nove estão
piedosos e seguidores da Lei (Lv 21,1-3).
no evangelho de Lucas e dezesseis só apare-
Em seguida, passa um samaritano, ele viu o
cem nesse evangelho. São ensinamentos pre-
homem caído e moveu-se de compaixão (Lc
ciosos, sempre abertos a novas reflexões.
10,33). Essa história certamente causou espan-
O sentido literal da palavra parábolas é
to para uma audiência judaica, pois entre ju-
“lançar ao lado”. É uma história que conta
deus e samaritanos há uma rixa antiga. Quando
outra história. As parábolas nascem da reali-
a Samaria, capital do reino do Norte, foi invadi-
dade cotidiana, de situações corriqueiras,
da pelos assírios, em 722 a.C., esse Império de-
mas sempre trazem um elemento que foge
portou as elites da cidade e levou para lá pesso-
dos padrões normais. A mensagem é indireta
as de cinco regiões diferentes: Babilônia, Kut,
e tem como objetivo causar impacto e quem
Avá, Hamat e Serfárvaim (2Rs 17,24).
a ouve é convidado a tomar uma posição.
Com o passar do tempo, esses colonos
Neste artigo, apresentaremos algumas pa-
assírios foram se unindo com os israelitas,
rábolas que só aparecem no evangelho de Lu-
formando um novo povo: os samaritanos. A
cas, procurando compreendê-las a partir do
origem mista desse grupo e suas práticas reli-
contexto das comunidades às quais foram di-
giosas eram motivo de desprezo e hostilidade
rigidas. A maior parte das parábolas exclusivas
da parte dos judeus fariseus. Com a promul-
desse evangelho está na parte central: na via-
gação da Lei, especialmente as leis referentes
gem de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51-19,28).
à pureza, houve vários desentendimentos en-
É nesse caminho que Jesus ensina seus discí-
tre judeus e samaritanos.
pulos as atitudes básicas do discipulado.
É justamente um excluído que é capaz de
amar o próximo. Quem é esse homem ferido?
nº- 292

1 • “Quem se tornou próximo


Seria um judeu? O homem caído está desfigu-
do homem ferido?” (Lc 10,25-37)
rado, sem identidade. Pouco importa saber

A parábola do samaritano é um ensina-


ano 54

quem ele é, pois a compaixão ultrapassa as bar-


mento sobre o amor ao próximo. Um espe-
reiras étnicas, sociais, culturais e de gênero. É
um sentimento que não se traduz com palavras,

Vida Pastoral

1
<http://www.sfnet.com.br/~walter. pacheco/avareza.
htm>: acesso em 25.03.2013. mas com gestos concretos de cuidado amoroso

30
com a vida ameaçada. Para viver a proposta amigo, mesmo no meio da noite. É um fato do
cristã, é preciso ser sensível aos sofrimentos das cotidiano que foi adaptado para reforçar a ne-
pessoas que estão à beira do caminho. cessidade de rezar sempre. Reze de maneira
Terminada a história, Jesus, dirigindo-se ao confiante, pois se até mesmo um amigo atende
legista, pergunta: “Qual dos três, em tua opi- às necessidades do outro, mesmo numa hora
nião, foi o próximo do homem que caiu nas imprópria, muito mais o Pai do céu.
mãos dos assaltantes?” (10,36). A questão mu- Na parábola da viúva, temos, de um lado,
dou de perspectiva: não se trata de identificar o juiz, alguém que dispõe de poder, e do ou-
quem é o próximo, mas tro, uma viúva, desprovi-
como alguém se torna pró- “A resposta de Jesus da de poder. A parábola
ximo do outro. O legista é ressalta que a viúva não
obrigado a admitir que o denuncia o legalismo tem chance de conseguir
próximo é aquele que usou religioso, que ignora o o que reclama, mas por
de misericórdia com o ho- sua insistência ela alcança
mem ferido. O samaritano,
sofrimento das pessoas seus objetivos.
um impuro, um fora da caídas à beira do caminho.” Diante do corre-corre
Lei, é capaz de se aproxi- e do ritmo acelerado que
mar e de realizar a vontade vivemos, acabamos nos
de Deus. Os dois homens religiosos e apegados distanciando da oração. Aos poucos, vamos
à Lei não conseguem reconhecer qual é o proje- perdendo nossa capacidade de fazer silêncio
to de Deus. A resposta de Jesus denuncia o le- interior. Buscamos responder aos apelos de
galismo religioso, que ignora o sofrimento das uma sociedade pautada pela lógica da compe-
pessoas caídas à beira do caminho. Precisamos tição, do lucro e do rendimento imediato.
aprender a nos aproximar das pessoas com os Nesse contexto, a oração se torna dispensável.
olhos do coração. A comunidade cristã é cha- É possível que essa fosse a realidade da comu-
mada a revelar o rosto misericordioso de Deus nidade lucana, por isso o autor insiste na atitu-
e a sua presença nas realidades de sofrimento. de orante de Jesus, provocando as pessoas do
século I a rezar e a viver com vigor a fé cristã.
2 • “Pedi e vos será dado” Um apelo atual e necessário para os tempos de
(Lc 11,5-8; 18,1-8) hoje, pois a oração nos aproxima da Luz e nos
Duas parábolas sobre a necessidade de ajuda a nos tornar mais humanos e solidários.
rezar sempre e nunca desistir:
A do amigo importuno e a do juiz e da 3 • “Descansa, come, bebe, festeja”
viúva. A primeira descreve uma pessoa que (Lc 12,16-21)
incomoda o amigo no meio da noite (Lc “Precavei-vos cuidadosamente de qual-
11,5-8). Apesar dos protestos, o amigo im- quer cupidez, pois, mesmo na abundância, a
portunado acaba cedendo por causa da insis- vida de um homem não é assegurada por seus
tência de quem pede. A mesma lição contém bens” (Lc 12,15). Essa advertência é exempli-
a parábola da viúva que pede várias vezes até ficada na parábola do rico insensato. O rico só
nº- 292

conseguir que um juiz injusto lhe faça justi- se preocupa consigo mesmo: “Que hei de fa-
ça. Essa viúva é apresentada como modelo de zer? Não tenho onde guardar minha colheita”;

ano 54

perseverança na oração (Lc 18,1-8). “Eis o que farei: demolirei meus celeiros, cons-
No Oriente, a hospitalidade é um costume truir maiores e lá recolherei todo o meu trigo e
sagrado, assim, era impossível pensar em al- os meus bens. E direi à minha alma” (Lc

Vida Pastoral

guém que se recusasse a prestar um favor a um 12,17-19). Ele é o centro de tudo. Será que

31
tem sentido uma vida totalmente voltada para 5 • “Esforçai-vos por entrar pela porta
si mesmo? A riqueza não garante a vida de estreita” (Lc 13,24-30)
ninguém, pois a vida é um dom de Deus. O “Senhor, é pequeno o número dos que se sal-
rico morreu sem desfrutar de seus bens. “Não vam”. Essa questão era debatida em vários gru-
te felicites pelo dia de amanhã, pois não sabes pos judaicos. Para alguns, a resposta é a totalida-
o que o hoje gerará” (Pr 27,1; cf. Eclo 11,19). de do povo de Israel; para outros, especialmente
Em todo o Novo Testamento, a palavra in- os grupos apocalípticos, apenas alguns eleitos.
sensato só aparece nesse texto (Lc 12,20). No Fugindo desse debate, Jesus exorta ao empenho
Antigo Testamento, ela é pessoal (Lc 13,24). A salva-
usada para designar aquele “A imagem da figueira ção é um dom, mas exige o
que é autossuficiente e que
estéril é aplicada às pessoas esforço humano.
se distancia de Deus (cf. Sl Após a exortação, se-
14,1; 49,11; 92,7). Na pa- que vivem preocupadas gue a parábola da porta
rábola, o rico leva uma com seu próprio bem-estar, estreita, composição pró-
vida sem Deus, fechado pria de Lucas (Lc 13,25-
em si mesmo. É uma histó- descomprometidas e distantes 29), tecida com a reunião
ria que faz pensar sobre o do projeto de Deus.” de vários ditos de Jesus,
sentido da vida e a necessi- que também se encon-
dade de nos abrirmos para tram no evangelho de Mateus, de forma sepa-
as pessoas e, consequentemente, para Deus. rada. Eis as semelhanças: “porta estreita” (Lc
13,24; Mt 7,13); porta fechada e acesso recu-
4 • A figueira estéril sado (Lc 13,25; Mt 25,10-12); protesto dos
(Lc 13,6-9) que ficaram de fora e nova rejeição (Lc 13,26-
A parábola da figueira estéril começa com 27; Mt 7,22-23); o sofrimento dos que fica-
o pedido do proprietário para que ela seja cor- ram de fora (Lc 13,28-29; Mt 8,11-12); “os
tada. O vinhateiro intervém: “Senhor, deixa-a últimos serão os primeiros” (Lc 13,30; Mt
ainda este ano para que cave ao redor e colo- 20,16). É provável que Mateus e Lucas tive-
que adubo. Depois, talvez, dê frutos... Caso ram acesso a uma fonte comum.
contrário, tu a cortarás” (Lc 13,8-9). A parábo- A conversão é um tema frequente no evange-
la é uma referência à audiência judaica que lho de Lucas. Os que eram considerados excluí-
não acolhe Jesus. A imagem da figueira estéril dos serão incluídos: “Eles virão, do oriente e do
é aplicada às pessoas que vivem preocupadas ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à
com seu próprio bem-estar, descomprometi- mesa no Reino de Deus” (Lc 13,29). Todos, es-
das e distantes do projeto de Deus. A paciên- trangeiros e judeus, que se abrem à mensagem
cia de Deus não tem limites e ele toma a inicia- de Jesus participarão do Reino. A salvação é para
tiva, dispensando cuidados amorosos para todos os que se convertem, para as pessoas que
que os pecadores se convertam. Deus espera se esforçam em viver o perdão, a compaixão, a
sempre! A pessoa cristã é chamada a enraizar misericórdia e que buscam o Reino de Deus e a
sua vida em Cristo e esse caminho só é possí- sua justiça. Entrar pela porta estreita é seguir Je-
nº- 292

vel fazer seguindo seus passos, o que significa sus e trilhar os mesmos caminhos que ele andou.
muitas vezes ficar na contramão da sociedade.

ano 54

6 • “A torre a construir” e “partir


para a guerra” (Lc 14,28-32)
1. Para maiores informações, ler Vida Pastoral, no 282,

2012, artigo “A Pastoral em Novas Perspectivas (IV): Pers- Lucas apresenta a parábola de um homem
Vida Pastoral

pectiva política de futuro na cosmovisão ecológica”. que começou a construir uma torre sem calcu-

32
lar e não pôde concluí-la, e a de um rei que rábolas precisam ser lidas como uma resposta
não mediu as forças inimigas e teve que fazer aos v. 1-2: “Todos os publicanos e pecadores
uma negociação de paz forçada (Lc 14,28-32). aproximavam-se para ouvi-lo. Os fariseus e es-
Essas parábolas falam da necessidade de refle- cribas, porém, murmuravam: ‘Esse homem re-
tir antes de iniciar qualquer projeto. Mas o cebe os pecadores e come com eles!’”.
evangelho de Lucas as situou no contexto do A mulher procura por sua moeda perdi-
seguimento de Jesus, exortando os discípulos da. Ela possui apenas dez moedas, portanto
à perseverança. O seguimento a Jesus não uma representa parte considerável de suas
pode ser feito de maneira impensada, apenas economias. É uma mulher pobre, por isso a
como fruto de um entusiasmo passageiro. sua busca é minuciosa. Ao encontrar a moe-
Essas duas parábolas denunciam o erro da, a mulher se alegra profundamente e par-
básico de não saber as consequências de um tilha dessa alegria com suas amigas e vizi-
projeto. “Quem não carrega a sua cruz e não nhas. O enfoque é colocado na alegria de re-
vem após mim, não pode ser meu discípulo” encontrar o objeto perdido. A alegria da mu-
(Lc 14,27). Quem quiser ser discípulo de Je- lher é comparada à alegria de Deus pela con-
sus deve colocar-se totalmente a serviço do versão de um só pecador.
reino e ser capaz, se preciso for, de enfrentar A parábola do pai misericordioso é uma
rupturas com seus familiares. Em caso de história que sempre nos inquieta e nos convi-
perseguição ou outros conflitos, o engaja- da a refletir sobre as nossas atitudes.
mento do discípulo podia levá-lo a opor-se a Vejamos as atitudes das principais perso-
seus familiares e até mesmo os esposos (1Cor nagens:
7,15). É preciso ser capaz de entregar a pró-
a) O filho mais novo (Lc 15,11-20a):
pria vida, estar apto para “carregar sua cruz”.
gasta seus bens levando uma vida devassa
Após contar as parábolas, segue uma ter-
(Lc 15,13). Longe de casa e sem condições
ceira exigência: “renunciar a tudo que possui”
de sobreviver, o filho mais novo passa
(Lc 14,33; 18,22). É preciso ser livre para as-
fome, procura emprego e começa a cuidar
sumir a proposta cristã. No final, Lucas ainda
de porcos, animais considerados impuros
acrescenta um dito de Jesus: “Se até o sal se
(Lv 11,7). Para os judeus, cuidar de por-
tornar insosso, com que se há de temperar?
cos é uma situação considerada humi-
Não presta para a terra, nem é útil para o ester-
lhante e degradante! No fundo do poço,
co: jogam-no fora” (Lc 14,34-35). Aquele que
ele faz memória da casa do pai: “Quantos
se coloca no seguimento de Jesus e não aceita
empregados de meu pai têm pão com far-
as consequências é como o sal que perde seu
tura, e eu aqui, morrendo de fome!” (Lc
sabor, não tem mais utilidade. As pessoas cha-
15,17). O filho mais novo “partiu e foi ao
madas à vida cristã têm o compromisso de ser
encontro de seu pai” (Lc 15,20). Ao pedir
o sal que dá novo sabor à vida das pessoas.
a herança e o direito de usá-la, o filho mais
jovem rompe com o pai, com o irmão
7 • “Filho, tu estás sempre comigo e
mais velho e com as pessoas do povoado.
tudo o que é meu é teu.”
nº- 292

É uma atitude imperdoável.


(Lc 15,8-10; 11-32)
No capítulo 15, há três parábolas: a ovelha

b) O pai (Lc 15,15b-24): ao ver o filho


ano 54

reencontrada (Lc 15,4-7), a moeda reencontra-


mais novo voltar, o pai “encheu-se de com-
da (Lc 15,8-10) e o filho reencontrado (Lc
paixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço,
15,11-32). A primeira encontra-se também no

Vida Pastoral

cobrindo-o de beijos” (Lc 15,20b). O amor


evangelho de Mateus (Mt 18,12-14). As três pa-

33
do pai o faz abrir mão de sua dignidade tecendo e ouve a seguinte explicação: “É
pessoal: ele levanta a sua túnica e sai cor- teu irmão que voltou e teu pai matou o no-
rendo ao encontro de seu filho mais novo. vilho cevado, porque o recuperou com saú-
O pai não quer que seu filho seja rejeitado de” (Lc 15,27). Ele “ficou com muita raiva
ou hostilizado pelas pessoas do povoado; e não queria entrar” (Lc 15,28a).
com seus gestos de acolhida, mostra a to-
dos que o filho está sob a sua proteção. Recusando-se a entrar na festa, o filho
mais velho, que até agora tinha sido exem-
Quando o filho mais novo consegue fa- plar, ofende e desrespeita seu pai diante de
lar e pedir perdão, o pai nem sequer o escu- todas as pessoas presentes e menospreza seu
ta direito, mas logo pede aos servos para que irmão. O filho mais velho não entendeu a ló-
tragam a melhor túnica para o filho mais gica da casa: ele não se sente filho. Ele não é
novo. A melhor vesti- como o pai, que está sem-
menta normalmente “A parábola do homem pre de braços abertos para
era destinada ao pai. O acolher e perdoar. O convi-
mais novo é acolhido rico e de Lázaro é um grito te para entrar e participar da
como filho: “Ponde-lhe contra a insensibilidade festa continua... Nem todos
um anel no dedo e san- entraram para participar da
dálias nos pés” (Lc diante da realidade de
festa, alguns se converteram
15,22). O pai vai além, sofrimento e de miséria e entraram. Será que nós
manda preparar um
de tantas pessoas.” participaríamos da festa?
banquete com o novi-
lho cevado, animal re-
servado para as grandes 8 • O administrador
festas. O pai não cabe em si de contente e esperto (Lc 16,1-8): uma parábola cons-
quer festejar, “pois este meu filho estava truída a partir do cotidiano da administra-
morto e tornou a viver; estava perdido e foi ção de propriedades na Galileia ou na
reencontrado!” (Lc 15,24). Transjordânia. Um rico dono de terras rece-
be uma denúncia contra um de seus admi-
O pai também toma iniciativa e vai ao nistradores. Em geral, um administrador
encontro do filho mais velho. Este reclama dispunha de total liberdade para cuidar da
contra o pai por nunca lhe ter dado uma propriedade de um senhor. Normalmente, a
festa e ainda despreza seu irmão, referin- recompensa pelo seu trabalho vinha dos
do-se a ele com desprezo: “este teu filho” empréstimos e da cobrança de altos juros.
(Lc 15,30). O pai mantém sua relação pa- Ao ser demitido, o administrador busca uma
ternal com o mais velho chamando-o de solução rápida para garantir o seu futuro. “Que
“filho” e ainda reafirma a irmandade com farei, uma vez que meu senhor me retire a admi-
o mais novo: “esse teu irmão” (Lc 15,32). nistração? Cavar? Não tenho força. Mendigar?
Tenho vergonha... Já sei o que farei para que,
nº- 292

c) O filho mais velho (Lc 15,25-28a): uma vez afastado da administração, tenha quem
como sempre, o filho mais velho estava tra- me receba na própria casa”. O administrador só

ano 54

balhando no campo. Um filho fiel, respon- pensa em si mesmo, em achar uma forma de fi-
sável, cumpridor de seus deveres. Era um car bem, mesmo que seja à custa de seu senhor.
dia normal de trabalho, por isso, ao voltar O administrador beneficia duas pessoas:

Vida Pastoral

do campo, ele não entende o que está acon- uma que devia cem barris de óleo e outra

34
cem medidas de trigo, e propõe a redução justos” (Lc 14,13-14). O dinheiro do rico não
das dívidas. Um novo registro das dívidas é tem utilidade na outra vida. Talvez o problema
providenciado por escrito. Que quantidades do rico seja o mau uso do dinheiro.
são essas? É difícil saber ao certo, estima-se Diante da insistência do rico para
algo em torno de 3.500 litros de óleo e 2.000 que Lázaro seja enviado para avisar a seu pai
litros de trigo. Em todo caso, o administrador e a seus irmãos, temos a seguinte resposta:
concede um abatimento muito generoso. “Eles têm Moisés e os Profetas; que os ou-
A estratégia do administrador é elogiada! çam” (Lc 16,29). A Lei e os profetas com fre-
Como? O senhor não louva a desonestidade do quência insistem no amor ao próximo, por-
administrador, mas a sua astúcia e habilidade tanto é necessário acolher a Palavra e não fi-
para encontrar uma saída para a sua situação: car esperando uma intervenção miraculosa.
“Os filhos deste mundo são mais prudentes Essa parábola é um grito contra a insensibili-
com sua geração do que os filhos da luz” (Lc dade diante da realidade de sofrimento e de
16,8). Da mesma forma que o administrador miséria de tantas pessoas.
agiu com rapidez para sair de sua crise, os cren-
tes deveriam reagir na ordem da fé. O acolhi- 10 • O fariseu e o publicano
mento do Evangelho deveria mobilizar nossas (Lc 18,9-14)
energias para tornar presente o Reino de Deus. A parábola do fariseu e do publicano é
contada para algumas pessoas que se achavam
9 • O homem rico e Lázaro justas diante de Deus. O fariseu, homem pie-
(Lc 16,19-31) doso e fiel à Lei, vai ao templo para rezar. A
Na parábola do homem rico e de Lázaro sua ação de graças é por todo o bem que ele
há duas partes, a primeira apresenta o con- próprio faz. Ele exalta a sua justiça e despreza
traste entre o rico e o pobre (Lc 16,19-23); a a dos outros: “ladrões, injustos, adúlteros,
segunda, o diálogo entre o rico e o pai, nem como este publicano” (Lc 18,11). A segu-
Abraão (Lc 16,24-31). rança do fariseu está no cumprimento da Lei.
A narrativa descreve o modo de vida de um De acordo com o evangelho, os fariseus
homem rico e o de um pobre. O rico está reves- jejuam e fazem orações (Lc 5,33), pagam o
tido de púrpura e de linho fino, o que era próprio dízimo sobre todos os produtos que colhem
dos trajes reais, e cotidianamente se banqueteia; (Lc 11,42) e se consideram justos diante de
o pobre, ao contrário, está coberto de úlceras e Deus (Lc 16,15). Esses elementos estão pre-
passa fome. O rico permanece no anonimato e o sentes na oração do fariseu no templo.
pobre é chamado pelo nome Lázaro, cujo senti- O publicano é desprezado pelos que se
do pode ser “Deus socorre” ou “Deus ajuda”. O acham justos, mantém-se a distância e reza:
nome Lázaro resume a narrativa: o pobre despre- “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!”.
zado nesta vida conta com a ajuda de Deus. Ele assume a sua condição de pecador e supli-
Por que o rico sofre num lugar de tormen- ca o perdão de Deus (Lc 18,13). O pecado dos
tos? Não há acusações morais contra o rico, ao publicanos era o de exigir, em seu próprio
contrário, ele é tratado de maneira terna: “fi- proveito, mais impostos do que era prescrito:
nº- 292

lho” (Lc 16,25). O seu erro foi a falta de soli- “Alguns publicanos também vieram para ser
dariedade e sua indiferença para com pobres: batizados e disseram-lhe: ‘Mestre, que deve-

ano 54

“Quando deres uma festa, chama os pobres, mos fazer?’. Ele disse: ‘Não deveis exigir nada
estropiados, coxos, cegos, feliz serás, então, além do que vos foi prescrito’” (Lc 3,12-13).
porque eles não têm com que te retribuir. Se- O fariseu, que se achava justo diante de

Vida Pastoral

rás, porém, recompensado na ressurreição dos Deus, voltou para casa não justificado. O pu-

35
blicano experimenta a misericórdia de Deus e é quase sempre imediata. As parábolas que
volta justificado. “Todo o que se exalta será hu- aparecem exclusivamente no evangelho de
milhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc Lucas são apelos para as comunidades reto-
18,14; cf. 14,11). marem a prática de Jesus. Essas parábolas fo-
O fariseu age de maneira errada em rela- ram contadas para as comunidades lucanas,
ção a Deus e às pessoas. Ele é autossuficiente mas também para nós: “Senhor, é para nós
e não há mais espaço para nada em sua vida. que estás contando essa parábola, ou para to-
Essa atitude deve ser evitada pelos que se co- dos?” (Lc 12,41).
locam no seguimento de Jesus. Ao contrário, As parábolas recordam valores que devem
o publicano reconhece a sua condição e se ser prioritários na vida cristã: o amor ao próxi-
abre para acolher a graça de Deus. Muitas ve- mo, o cuidado com os pobres e a oração. É
zes nós podemos pensar que somos melhores preciso “entrar pela porta estreita”, sermos fiéis
do que outras pessoas ou grupos, esquecen- às exigências do Evangelho e abertos para aco-
do-nos de que a compaixão de Deus é para lher a graça de Deus em nossas vidas. É preciso
todas as pessoas. reconhecer o Deus da gratuidade e se tornar
O autor do evangelho de Lucas é mestre semelhante a ele: “Sede misericordiosos como
na arte de contar parábolas. A parábola tem o o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Que a
fascinante poder de atrair os ouvintes, levan- leitura e a reflexão das parábolas possam pro-
do-os a refletir a partir da vida. A identificação duzir frutos de vida em nossas vidas!

Bibliografia

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para a compreensão do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1998.
BOFF, Clodovis M. Mariologia social: O significado da virgem para a sociedade. São Paulo: Paulus,
2006.
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GOURGUES, Michel. As parábolas de Lucas: do contexto às ressonâncias. São Paulo: Loyola, 2005.
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tura controvérsia e conversão. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2005.
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ano 54

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Vida Pastoral

YAMAGUTI, Masahiro. O amanhecer do nascimento de Jesus: a história e o povo da Galileia. Tokyo:


Japanese Christian Church Publishing House, 2002.

36
Homiléticos
Roteiros

Pe. Johan Konings, sj


Também na internet:
www.vidapastoral.com.br
22º domingo do tempo comum
1º de setembro

Modéstia e gratuidade
Pe. Johan Konings, nascido na Bélgica, I. Introdução geral
reside há muitos anos no Brasil, onde
leciona desde 1972. É doutor em As leituras de hoje insistem em virtudes fora de moda: mansi-
Teologia e licenciado em Filosofia e
em Filologia Bíblica pela Universidade dão e humildade (primeira leitura), modéstia e gratuidade (evan-
Católica de Lovaina. Atualmente é gelho). Quanto à modéstia, Jesus usa um argumento da sabedoria
professor de Exegese Bíblica na Faje,
popular, do bom senso: se alguém for sentar no primeiro lugar
em Belo Horizonte. Entre outras
obras, publicou: Descobrir a Bíblia a num banquete e um convidado mais digno chegar depois, o que
292
-- 292

partir da liturgia; A Palavra se fez escolheu o primeiro lugar terá de cedê-lo ao outro e contentar-se
livro; Liturgia dominical: mistério de

com qualquer lugarzinho que sobrar. Mas quem se coloca no últi-


54 •• nº

Cristo e formação dos fiéis – anos A


- B - C; Ser cristão; Evangelho mo lugar só pode ser convidado para subir e ocupar um lugar
ano 54

segundo João: amor e fidelidade; A


mais próximo do anfitrião...
Pastoral •• ano

Bíblia nas suas origens e hoje.


E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br. Como lema para o povo celebrante recordar, se for de classe
Vida Pastoral

humilde, pode servir a frase da primeira leitura: “O poder de Deus


é exaltado pelos humildes”; ou, se o público for de classe média
Vida

37
Roteiros Homiléticos

calculista, a frase do evangelho: “Convida os po- cheia de seus correligionários, não muito bem-
bres, porque não têm como te retribuir”. -intencionados (14,2). Para começar, Jesus aborda
o litigioso assunto do repouso sabático, defenden-
do uma opinião bastante liberal (14,3-6).
II. Comentários de textos Depois (em 14,7, onde começa o texto de
bíblicos hoje) critica, com uma parábola, a atitude dos
fariseus, que prezam ser publicamente honra-
dos por sua virtude, também nos banquetes,
1. I leitura (Eclo 3,19-21.30-31) onde gostam de ocupar os primeiros lugares (cf.
A verdadeira modéstia de vida, tema da pri- Lc 11,43). Alguém que ocupa logo o primeiro
meira leitura, não é a falsa modéstia de quem se lugar num banquete já não pode ser convidado
gaba de ser humilde ou “se faz de burro para pelo anfitrião para subir a um lugar melhor; só
comer milho”. Consiste na consciência de que pode ser rebaixado se aparecer alguma pessoa
só Deus é poderoso e bom. O ser humano deve mais importante. É melhor ocupar o último lu-
sempre recorrer a ele. Daí a atitude do sábio: gar, para poder receber o convite de subir mais.
segurança ante os poderosos, pois sua confiança Alguém pode achar que isso é esperteza. Mas o
está em Deus, e magnanimidade para com os que Jesus quer dizer é que, no reino de Deus, a
fracos, pois pode contar com Deus. gente deve-se adotar uma posição de receptivi-
dade, não de autossuficiência.
Segue-se outra lição, também relacionada
2. Evangelho (Lc 14,1.7-14) com o banquete, porém dirigida ao anfitrião
O evangelho nos ensina a modéstia e a gra- (um fariseu: cf. 14,1). Não se devem convidar
tuidade na perspectiva do reino de Deus. Lucas os que podem convidar de volta, mas os que
gosta de apresentar Jesus como viajante e hóspe- não têm condições para isso. Só assim nos
de: a comunhão de mesa é o lugar da amizade, mostraremos verdadeiros filhos do Pai, que
e Jesus quer ser amigo. Mas amigo de verdade nos deu tudo de graça. É claro que tal gratuida-
não esconde a verdade. Na casa de um fariseu, de pressupõe a atitude recomendada na pará-
de modo surpreendente e, segundo os nossos bola anterior: o saber receber.
critérios, um tanto indelicado, Jesus ensina al- Portanto, a mensagem do evangelho de
gumas regras: 1) aos convidados, ensina a não hoje é: saber receber de graça (humildade) e sa-
procurar o primeiro lugar, para que o dono da ber dar de graça (gratuidade). Isso ficou ilustra-
casa possa apontar o lugar mais importante; 2) do na primeira leitura, que sublinha a necessi-
ao anfitrião, ensina a não convidar as pessoas de dade da humildade, oposta à autossuficiência.
bem, mas os que não podem retribuir, pois só
assim demonstramos gratuidade e magnanimi- 3. II leitura (Hb 12,18-19.22-24a)
dade. Em outros termos, Jesus ensina a saber
receber de graça e a saber dar sem intenções cal- Deus se tornou manifesto e acessível em
culistas. O sentido profundo dessa lição se reve- Cristo. A manifestação de Deus no Antigo Testa-
lará na Última Ceia (22,24-27), em que o anfi- mento (no Sinai) era inacessível (12,18-21). No
nº- 292

trião é o Servo, que dá até a própria vida. Novo Testamento, verifica-se o contrário (12,22-
Jesus é um desses hóspedes que não ficam re- 24): agora vigora uma ordem melhor (9,10); a

ano 54

féns de seus anfitriões. Já o mostrou a Marta (cf. Lc manifestação de Deus (em Cristo) é agora acessí-
10,38-42, 16º domingo); mostra-o também no vel, menos “terrível”, porém mais compromete-

evangelho de hoje. Olhemos o contexto da períco- dora. Não é por ser mais humana que ela seria
Vida Pastoral

pe. O anfitrião é um chefe dos fariseus. A casa está menos divina. Pelo contrário! No homem Jesus,

38
Deus se torna presente. Essa nova e escatológica
presença de Deus em Cristo é chamada, no tex-
to, “monte Sião”, “cidade do Deus vivo”, “Jerusa-
lém celeste”. E quem quiser ler alguns versículos
além da perícope de hoje encontrará a conclusão
prática: não recusar a palavra do Cristo (12,25).
A segunda leitura não demonstra muito pa-
rentesco temático com a primeira e o evangelho.
Contudo, complementa o tema da gratuidade,

248 págs.
mostrando como Deus se tornou, gratuitamen-
te, acessível para nós, em Jesus Cristo. O tom da
leitura é de gratidão por esse mistério. Um Jesus Popular
(Desejando uma leitura das cartas que se Nestor Míguez
aproxime da primeira leitura e do evangelho, A obra utiliza um estilo narrativo para retratar
a vida de Jesus, nos aproximando mais
pode-se olhar para 1Pd 5,5b-7.10-11, sobre hu- do relato do que da erudição filosófica e
mildade e grandeza.) resgatando os autores não nomeados dos
textos bíblicos, os quais Jesus amou, curou
e a quem devolveu dignidade e esperança.

III. Pistas para reflexão


Simplicidade e gratuidade: graça, gratidão
e gratuidade são os três momentos do mistério
da benevolência que nos une com Deus. Rece-
bemos sua “graça”, sua amizade, seu bem-que-
rer. Por isso nos mostramos agradecidos, con-
servando seu dom em íntima alegria, que abre
304 págs.

nosso coração. E desse coração aberto mana


generosa gratuidade, consciente de que “há O Jesus do povo
mais felicidade em dar do que em receber” (cf. Trajetórias no Cristianismo Primitivo
At 20,35). Isso não significa que a gente não
Robin Scroggs
pode se alegrar com aquilo que recebe. Significa O autor distingue três concepções
Imagens meramente ilustrativas.

que só atingirá a verdadeira felicidade quem fundamentais da significância de Jesus:


souber dar gratuitamente. Quem só procura re- como Cosmocrator, como Filho do
Homem apocalíptico e como Christos,
ceber será um eterno frustrado. correlacionando tais concepções às
A humildade não é a prudência do tímido realidades e necessidades sociais de
comunidades primitivas distintas.
ou do incapaz nem o medo de se expor, que
não passa de egoísmo. A verdadeira humildade
Vendas: (11) 3789-4000
é a consciência de ser pequeno e ter de receber 0800-164011
para poder comunicar. Humildade não é taca- SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

nhice, mas o primeiro passo da magnanimida-


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
de. Quem é humilde não tem medo de ser ge-

paulus.com.br
ano 54

neroso, pois é capaz de receber. Gostará de re-


partir, porque sabe receber; e de receber, para

poder repartir. Repartirá, porém, não para cha-


Vida Pastoral

mar a atenção para si, como o orgulhoso que

39
Roteiros Homiléticos

distribui ricos presentes, e sim porque, agrade- lorizamos. Dar o que não tem valor não é parti-
cido, gosta de deixar seus irmãos participar lha: é liquidação... Mas, quando damos de graça
dos dons que recebeu. aquilo que, com gratidão, recebemos como
Podemos também focalizar o tema de hoje dom de Deus, estamos repartindo o seu amor.
com uma lente sociológica. Torna-se relevante, Tal gratuidade é muito importante na trans-
então, a exortação ao convite gratuito. Jesus formação de que a sociedade está necessitando.
manda convidar pessoas bem diferentes das Não apenas “fazer o bem sem olhar para quem”
que geralmente são convidadas: em vez de ami- individualmente, mas também social e coletiva-
gos, irmãos, parentes e vizinhos ricos, convi- mente: contribuir para as necessidades da co-
dem-se pobres, estropiados, coxos e cegos – ou munidade, sem desejar destaque ou reconheci-
seja, em vez do círculo costumeiro, os margina- mento especial; trabalhar e lutar por estruturas
lizados. E na parábola seguinte no Evangelho de mais justas, independentemente do proveito
Lucas, a parábola do grande banquete, o “se- pessoal que isso nos vai trazer; praticar a justiça
nhor” convida exatamente essas quatro catego- e o humanitarismo anônimos; ocupar-nos com
rias mencionadas (Lc 14,21). os insignificantes e inúteis...
O amor gratuito é imitação do amor de Concluindo, a lição de hoje tem dois aspec-
Deus. A autenticidade do amor gratuito se mede tos: para nós mesmos, procurar a modéstia, ser
pela pouca importância dos beneficiados: crian- simplesmente o que somos, para que a graça de
ças, inimigos, marginalizados, enfermos (cf.
Deus nos possa inundar e não encontre obstá-
também Mt 25,31-46). Jesus não nos proíbe
culo em nosso orgulho. E para os outros sermos
gostar de parentes e vizinhos; mas imitar real-
anfitriões generosos, que não esperam compen-
mente o amor gratuito (a hésed de Deus), a gen-
sação, mas, sem considerações de retorno em
te só o faz na “opção preferencial” pelos que são
dinheiro ou fama, oferecem generosamente suas
menos importantes.
dádivas a quem precisa.
A parábola daquele que ocupa o último
lugar para ser convidado a subir mais faz pen-
sar em quem “se faz de burro para comer mi- 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM
lho”. Contudo, Jesus pensa em algo mais. É (8 de setembro)
por isso que ele acrescenta outra parábola,
para nos ensinar a fazer as coisas não por inte-
resse egoísta, mas guiados pela gratuidade. Se- A Sabedoria e o Reino
remos felizes – diz Jesus – se convidarmos os
que não podem retribuir, porque Deus mesmo
será, então, nossa recompensa. Estaremos bem I. Introdução geral
com ele por termos feito o bem aos seus filhos
mais necessitados. O tema de hoje é a sabedoria evangélica.
A gratuidade não é a indiferença do homem Esta não se deve confundir com a sabedoria do
frio, que faz as coisas de graça porque não se mundo, que, muitas vezes, é uma “safadoria”:
importa com nada, pois isso é orgulho! Deve- calcular e safar-se... A sabedoria do evangelho é
nº- 292

mos ser gratuitos simplesmente porque os nos- ponderar o nosso empenho pelo Reino de Deus.
sos “convidados” são pobres e sua indigência Não é uma posse segura, conquistada de uma

ano 54

toca o nosso coração fraterno. O que lhes da- vez para sempre. Até o sábio rei Salomão teve de
mos tem importância, tanto para eles como pedi-la a Deus, mas ele a via muito em função

para nós. Tem valor. Recebemo-lo de Deus, do reinado dele. A nós cabe procurá-la em vista
Vida Pastoral

com muito prazer. E repartimo-lo, porque o va- do reinado de Deus.

40
II. Comentários dos textos sível, mas a gente deve preparar-se para tudo o
bíblicos que for possível.
A sabedoria ensina a dar a tudo seu devido
lugar, a ponderar o que é mais e o que é menos
1. Leitura (Sb 9,13-19) importante. Isso pode conduzir a conclusões
A 1ª leitura é uma parte da prece de Salo- que, aos olhos de pessoas superficiais, parecem
mão pela sabedoria, dom indispensável de Deus loucura. As exigências do seguimento de Jesus
para ser um bom rei. parecem loucura: “Odiar (= não preferir) pai e
O livro da Sabedoria é, na realidade, uma mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs” (14,26),
obra escrita por um judeu de língua grega, con- por causa de Cristo e seu evangelho, não é isso
temporâneo de Jesus. Foi posto sob o nome do uma loucura? Não. É a consequência da sabe-
grande rei Salomão, que tinha fama de sábio doria cristã, da ponderação do investimento ne-
porque soube fazer julgamentos prudentes, cessário para o Reino de Deus. Começar a cons-
construir o Templo e responder às perguntas da truir a torre sem o necessário capital, isso é que
rainha do Sul (cf. 1Rs 3,1-18; 5,9-14; 8,22-61; é loucura, pois todo mundo ficará gozando da
10,1-13 etc.). Sua sabedoria é o dom do discer- cara da gente porque não conseguiu concluir a
nimento e ponderação outorgado por Deus. Foi obra! A alusão à torre de Babel, símbolo da vai-
o que ele pediu a Deus (1Rs 3,9). dade e da confusão humana, é evidente. O ho-
Também no livro da Sabedoria, Salomão mem sábio faz seu orçamento e decide quanto
pede esse dom e ensina a pedi-lo (9,1-19). O vai investir. No caso do cristão, o único orça-
esforço de nossa inteligência, por si, não é o mento adequado é o do investimento total, já
suficiente. As faíscas do Espírito de Deus não que se trata do supremo bem, sem o qual os
se deixam programar; devem ser recebidas outros bens ficam sem valor.
como dádivas. A sabedoria cristã consiste em ousar optar
O mundo de hoje carece de sabedoria. Nem radicalmente pelo valor fundamental, mesmo se
mesmo respeita suas próprias fontes de subsis- isso exige uma escolha dolorosa contra pessoas
tência, sacrificando tudo à sustentação de obs- muito queridas, realidade que se repetia diaria-
curos poderes e lucros, com a cumplicidade de mente na Igreja no tempo de Lucas. E observe-
praticamente toda a sociedade, deixando-se en- -se que essas palavras foram dirigidas às “gran-
volver no jogo da competição e do consumo... des multidões” que seguiam Jesus (14,25), não
a monges e ascetas. Além disso, formam a
sequên­cia da exortação ao convite gratuito e da
2. Evangelho (Lc 14,25-33) parábola do grande banquete, em que Jesus en-
O evangelho nos coloca numa nova realida- sina a dar a preferência às pessoas “não gratifi-
de, que tem como marco zero a cruz de Cristo. cantes” em vez dos familiares e amigos (14,7-
Essa nova realidade exige também uma nova 14; evangelho de domingo passado). Assim,
sabedoria. Muitos pretendem seguir Jesus, mas “odiar” seus familiares pode referir-se, concreta-
será que sabem que seu caminho conduz ao mente, a duas realidades: 1) num primeiro sen-
Gólgota? Daí as duras exigências formuladas tido, muito atual no tempo de Lucas: a perse-
nº- 292

por Jesus: abandonar a família, o sucesso, até a guição, que obriga o cristão a preferir o Cristo
vida (Lc 14,25-27), e ponderar sobriamente sua acima dos laços de parentesco e até acima da

ano 54

força e disponibilidade (14,28-32). Em resumo: própria vida (sentido primeiro); 2) num sentido
o discípulo deve largar tudo (14,33). Como isso mais geral, atual também hoje: a preferência

se realiza na vida de cada um não é dito aqui. (por causa do Evangelho) por categorias de pes-
Vida Pastoral

Ora, uma coisa é certa: Jesus não pede o impos- soas pouco estimadas, excluídas, mesmo se isso

41
Roteiros Homiléticos

nos custa o afastamento de nossos círculos so- se Paulo não pensava numa sociedade sem es-
ciais preferidos. cravos, ele aboliu mentalmente a diferença entre
Ouve-se, em nosso ambiente, muitas ve- senhor e escravo, judeu e grego, homem e mu-
zes, a observação de que é preciso ter “bom lher (cf. Gl 3,28), diante da perspectiva do en-
senso” em questões de justiça e direito, mas contro com Cristo na Parusia (cf. 1Cor 7,20-
esse “bom senso”, geralmente, não significa 23). Espiritualmente falando, “em Cristo”, am-
outra coisa senão o medo, ou até a covardia. bos, Onésimo e Filêmon, pertencem a uma
Quando é claro que o amor de Cristo está em nova realidade e são irmãos.
jogo, a sabedoria cristã exige um investimento
radical. Porém, radicalidade não é imprudên-
cia. É liberdade perante aquilo que nos pode
III. Pistas para reflexão
desviar do que é importante. A sabedoria cristã Os cristãos e as estruturas sociais: “Se
nos ajuda a estabelecer as opções preferenciais Deus só serve para deixar tudo como está,
certas. E depois, é preciso realizar na prática não precisamos dele”, palavras de uma agente
essas opções sabiamente feitas. da educação popular. O Deus que é apenas o
Quem acha que seguir Cristo é fundamen- arquiteto do universo, mas fica impassível
tal, deve fazê-lo, custe o que custar. Assim, o sá- diante da injustiça dos habitantes de sua ar-
bio cristão não é o sofista brilhante que explica quitetura, não tem relevância alguma. O cris-
tudo sem jamais se comprometer. É o homem tianismo serve ou não para mudar as estrutu-
que, ao mesmo tempo lúcido e convicto, investe ras da sociedade?
tudo no que julga ser o sentido último da vida e São Paulo tinha um amigo, Filêmon. Este –
da História, à luz da fé em Cristo Jesus. O sábio como todos os ricos de seu tempo – tinha escra-
não é aquele que hesita quando se trata de saltar, vos, que eram como se fossem as máquinas de
mas aquele que salta; o que hesita é o que cai... hoje. Um dos escravos, sabendo que Paulo ti-
nha sido preso, fugiu do dono, Filêmon, para
3. II leitura (Fm 9b-10.12-17) ajudar Paulo na prisão. Paulo o batizou (“o fez
nascer para Cristo”). Depois, mandou-o de volta
A 2ª leitura não foi escolhida em função do a Filêmon, recomendando que este o acolhesse
tema principal, que determina a 1ª leitura e o não como escravo, mas como irmão. Mais:
evangelho, mas não destoa dele. A carta de Pau- como se ele fosse o próprio Paulo!
lo a seu discípulo Filêmon gira em torno do in- Essa história é emocionante, mas nos deixa
cidente do escravo Onésimo. Este fugira de seu insatisfeitos. Por que Paulo não exigiu que o es-
dono, Filêmon, para ficar cuidando de Paulo, cravo fosse libertado, em vez de acolhido como
aprisionado (provavelmente) em Éfeso, não irmão, continuando escravo? Aliás, a mesma
muito longe de Colossas, a cidade de Filêmon. pergunta surge ao ler outros textos do Novo
Agora Paulo manda-o de volta a Filêmon, não Testamento (1Cor 7,21; 1Pd 2,18). Por que o
mais na qualidade de escravo (um escravo fugi- Novo Testamento não condena a escravidão?
do poderia ser punido de morte), mas, como ele A humanidade leva tempo para tomar cons-
recebera o batismo, na qualidade de irmão, “fi- ciência de certas incoerências, e mais tempo
nº- 292

lho” de Paulo, como era o próprio Filêmon (v. ainda para encontrar-lhes remédio. A escravi-
10). Filêmon deve recebê-lo não mais como es- dão, naquele tempo, podia ser consequência de

ano 54

cravo, mas como irmão (v. 16). uma guerra perdida ou uma forma de compen-
No mundo escravocrata daquele tempo, o sar as dívidas contraídas. Imagine que se resol-

que Paulo propõe deve ter parecido loucura; vesse desse jeito a dívida do Brasil! Seríamos
Vida Pastoral

porém, é a mais pura sabedoria cristã. Mesmo todos vendidos (se já não é o caso...).

42
Na Antiguidade, a escravidão fazia parte da
estrutura econômica. Na Idade Média, com os
numerosos raptos praticados pelos piratas mou- A origem da Bíblia
ros, surgiram até ordens religiosas para resgatar Um guia para os perplexos
os escravos e, se preciso, tomar o lugar deles. Lee Martin McDonald
Apesar disso, ainda na Idade Moderna, a Igreja
foi conivente com a escravidão dos negros. A
consciência moral cresce devagar, e mudar algu-
ma coisa nas estruturas é mais demorado ainda,
porque depende da consciência e das possibili-
dades históricas. As estruturas manifestam len-
tamente, com clareza, a sua injustiça, e então
levam séculos ainda para transformá-las.
Porém, a lição de Paulo nos ensina que,
não obstante essa lentidão histórica, devemos
viver desde já como irmãos, vivenciando um
espírito novo que vai muito além das estrutu-
ras vigentes e que – como uma bomba-relógio 264 págs.
– fará explodir, cedo ou tarde, a estrutura in-
justa. Novas formas de convivência social, vo-
luntariados dos mais diversos tipos, organis-
Um ótimo trabalho que oferece respostas e
mos não governamentais, pastorais junto aos explica os caminhos percorridos pela Bíblia
excluídos – a criatividade cristã inventa mil até os dias atuais. Em estilo acessível, o
autor descreve como a Bíblia cristã teve seu
maneiras para viver já aquilo que as estruturas início, desenvolveu-se e, por fim, se fixou.
só irão assimilar muito depois. Lee Martin McDonald analisa textos desde
Essa é uma forma da sabedoria do Reino, a Bíblia hebraica até a literatura patrística.

não para construir um templo ao modo de Salo-


mão, mas o templo de pedras vivas, fundamen-
tado em Cristo.

24º DOMINGO DO TEMPO COMUM


Imagens meramente ilustrativas.

15 de setembro

Um deus de perdão
e reconciliação Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

I. Introdução geral V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL


paulus.com.br

ano 54

“Não quero a morte do pecador, e, sim, que


ele se converta e viva.” Essas palavras de Eze-

quiel (18,23) formam o pano de fundo (deixado


Vida Pastoral

na penumbra) da liturgia de hoje (cf. Lc 15,32).

43
Roteiros Homiléticos

A leitura do livro do Êxodo mostra-nos um 2. Evangelho (Lc 15,1-32)


Deus que volta atrás do seu projeto de rejeitar
Israel, e o evangelho apresenta as parábolas de O evangelho nos mostra Jesus em má com-
Jesus a respeito de quem se perdeu e por Deus é panhia: “todos os publicanos e pecadores” (Lc
reencontrado. Paulo entendia bem isso: na Pri- 15,1). É um escândalo para os fariseus. Em duas
meira Carta a Timóteo descreve como, de perse- parábolas menores, Jesus apresenta, então, uma
guidor, ele foi, pela abundante graça de Deus, imagem de Deus, descrevendo o pastor que só
levado à vida em Cristo. Jesus veio para salvar pensa na ovelha desgarrada, que está em perigo
os pecadores, e Paulo foi o principal deles. Com (15,3-7); ou a dona de casa, procurando adoi-
isso, tornou-se exemplo daquilo que ele mesmo dada uma moeda extraviada e ficando fora de si
pregou: a reconciliação. de alegria quando a reencontra (15,8-10). E de-
pois conta a parábola do filho perdido e reen-
contrado – obra prima entre as parábolas de Je-
sus (15,11-32, na leitura longa, que evidente-
II. Comentários dos textos
mente deve ser preferida à breve!).
bíblicos Nessas parábolas, o pastor, a dona de casa,
o pai de família parecem alegrar-se mais com o
perdido que reencontraram do que com aquilo
1. I leitura (Ex 32,7-11.13-14) que não se perdeu: o rebanho a pastar, as moe-
O livro do Êxodo descreve como Moisés, das no pote, o filho que fica em casa trabalhan-
logo depois da promulgação da Lei e da Aliança do... Como entender isso? Será que a “opção
(Ex 10-24), permanece, durante quarenta dias, preferencial” pelas ovelhas perdidas os leva a se
na montanha do Sinai, onde Deus lhe mostra o esquecerem das que ficaram no rebanho? Pen-
projeto do seu santuário e o encarrega de mon- sar isso seria uma ideia bem mesquinha do cari-
tá-lo no meio do povo (Ex 25-31). Ao descer da nho de Deus. Se o pai faz festa para o filho pró-
montanha, porém, encontra o povo em festa, digo, é porque “aquele que estava morto voltou
adorando o bezerro de ouro, símbolo da fecun- à vida”, e se não faz nada especial para o outro
didade e objeto ritual das religiões dos povos filho, que sempre está com ele, é porque o “estar
pagãos. Essa festança é uma desistência da sempre com ele” deve ser a mais profunda ale-
Aliança com o Deus único, que se manifestou gria (Lc 13,31-32). Olhando bem, porém, tem-
no Sinai e elegeu Israel para ser seu povo-teste- -se a impressão de que o filho mais velho optou
munha (Ex 32,1-6). por ficar com o pai apenas por comodismo (ou
A reação de Deus é dura. Não quer mais para ficar certo da herança). Se for assim, é ele
esse povo (“teu povo”, diz ele a Moisés, 3,7). que deve reconhecer seu afastamento interior e
Moisés, porém, torna-se mediador e lembra a voltar ao pai; quem sabe se, então, o pai oferece-
Deus suas promessas, como Abraão lhe lem- rá um bom churrasco também para ele?
brou sua justiça (cf. Gn 18,25). E Deus se deixa Reconhecemos no filho mais velho a figura do
convencer: “O Senhor desistiu do mal com que fariseu: tem as contas em dia, mas o coração longe
havia ameaçado o seu povo” (Ex 32,14). Essa de Deus. Não é tal a atitude dos que reclamam
nº- 292

narração representa Deus de modo bastante hu- porque o padre anda nas favelas em busca de ove-
mano (antropomorfismo): tanto a cólera de lhas perdidas em vez de rezar missas nos oratórios

ano 54

Deus quanto seu arrependimento são modos de particulares ou ir a reuniões piedosas? Os que fa-
significar que Deus não é indiferente, nem ao lam assim deveriam, felizes por ter Deus sempre

nosso pecado, nem à nossa prece. São maneiras diante dos olhos, ser solidários com a Igreja que
Vida Pastoral

humanas de falar de seu amor sem fim. busca os abandonados, em vez de se sentirem

44
abandonados. Esqueceram quanta atenção rece- Certo dia, eu tive de interromper uma palestra
beram? Não perceberam que o próprio fato de se ministrada a um grupo de padres porque não
sentirem perto de Deus é sua felicidade? Em vez aceitavam que os pecadores convertidos serão
de criticar a prioridade dada aos excluídos, deve- tão bem-vindos no céu quanto os que se com-
riam ser os primeiros a estimular o reencontro de- portaram bem. Será que Deus é generoso de-
les, tornando-se “agentes da reconciliação”. mais para com os malandros que se convertem?
Deus tem razão: quem vai bem, siga à frente São Paulo diz com clareza: “Jesus veio ao
(cf. Ap 22,11). Mas aquele que está errado é que mundo para salvar os pecadores, dos quais eu
necessita de atenção. O médico não vem para os sou o primeiro” (2ª leitura). A 1ª leitura de hoje
sãos, mas para os doentes (cf. Mc 2,17). Já o nos ensina que Deus é capaz de mudar de ideia:
pensamento “elitista” diz: ocupa-te com os quando o pecador se arrepende, Deus o recon-
“bons”, os que rendem. Não percas teu tempo cilia consigo. O evangelho (texto longo) nos
com os que não valem nada, deixa-os se perde- mostra Deus como um pastor procurando a
rem. Deixa-os viver na falta de higiene e na sub- ovelha perdida, ou como um pai que espera a
nutrição. Expulsa o povinho de sua área e o “pri- volta de seu filho vagabundo.
mitivo” de suas terras... Nós achamos estranho Deus dar mais aten-
O pensamento de Deus não é assim. Ele sabe ção a uma ovelha desgarrada do que a noventa e
que rejeitar um só homem seria a mesma coisa nove que permanecem no rebanho. Não será
que rejeitar a todos, pois o princípio é o mesmo. melhor que uma se perca do que o rebanho
Por isso, deseja ansiosamente a volta de qualquer todo? Pois bem, foi exatamente isso que disse o
um, até o mínimo, o mais rebaixado, aquele que sumo sacerdote Caifás para justificar o assassina-
conviveu com os porcos (que horror, para os ju- to de Jesus. “É melhor que um morra pelo povo
deus!). Pois esse perdido é seu filho, mesmo se o todo” (Jo 11,49-51)! Deus, porém, em relação
próprio já não se acha digno de ser chamado as- ao pecador, não segue o raciocínio de Caifás. É
sim. Deus não pode esquecer seu filho (Jr 31,20; mais parecido com um motorista que não se
Is 49,15). Nós gostamos de resolver os “casos preocupa com aquilo que funciona bem, mas
difíceis” pela expulsão, a repressão (e vemos os fica atento àquilo que parece estar com defeito.
frutos...). Deus opta pela reconciliação. Os pensamentos de Deus não ficam parados nos
bons; ele está mais preocupado com os extravia-
3. II leitura (1Tm 1,12-17) dos. Faz “opção preferencial” pelos que mais ne-
cessitam, os que estão em perigo e, sobretudo,
Confirmando essa imagem de Deus, Paulo,
os que já caíram – pois para Deus nenhum mor-
na Primeira Carta a Timóteo, proclama que “en-
controu misericórdia” (1Tm 1,13.16). Essa car- tal está perdido definitivamente. Quem caiu tem
ta dirigida a Timóteo, que o acompanhou desde de ser recuperado. Essa é a preocupação de
sua “segunda viagem” missionária (cf. At 16,1), Deus. Com os bons, preocupam-se os seus se-
é uma espécie de “testamento espiritual”. Inicia- melhantes; para Deus, todos importam. Por isso
-se com o tema da vinda de Jesus ao mundo ele se preocupa com quem é abandonado por
para salvar os pecadores. Paulo mesmo experi- todos. Ele não descansa enquanto uma ovelha
estiver fora do rebanho. Ele não quer a morte do
nº- 292

mentou isso e, além disso, recebeu uma missão


importante, pelo que exprime sua gratidão. pecador, mas sua volta e sua vida (Ez 33,11).
E nós? Nós devemos assumir os interesses de

ano 54

Deus. A Igreja deve voltar-se com preferência


III. Pistas para reflexão para os pecadores, orientá-los com todos os re-

cursos do carinho pastoral e mostrar-lhes o in-


Vida Pastoral

Opção preferencial pelos pecadores? comparável coração de pai de Deus. Quem se

45
Roteiros Homiléticos

considera justo, como o irmão do filho pródigo, situa no momento em que já começava a decli-
não deve queixar-se desse modo de agir de Deus. nar o “século do ouro” de Israel, no tempo de
Pois ser justo é estar em harmonia com Deus, re- Jeroboão II (por volta de 750 a.C.). Faltavam
ceber dele o bem e a felicidade, estar realizado. poucos anos para o reino ser invadido, e o
Por que então criticar a generosidade de Deus povo, deportado pelos assírios (722 a.C.). En-
para com o pecador convertido? O “justo” alegre- tretanto, porém, reinava a riqueza injusta, fon-
-se com o pecador, aquele que realmente necessi- te de opressão, uns poucos tendo tudo e quase
tava atenção, o morto que voltou à vida! Mas tal- todos tendo quase nada.
vez muitos se comportem como justos, não por O pecado dos “poucos” não é contra tal ou
amor e alegria em união de coração com Deus, tal mandamento; aliás, eles observam as festas
mas por medo... e então, frustrados porque Deus religiosas – mas com que espírito (cf. Am 8,5)!
é bom, resmungam, como Jonas quando a cidade Pecaminosa é sua atitude global, caricatura da
de Nínive se converteu (Jn 4,1-11). “Não é a jus- justiça e misericórdia que Deus espera de seu
tos que vim chamar, mas a pecadores” (Mc 2,17). povo. Assim, Amós 8,4-6 é uma censura elo-
quente, denunciando que os ricos se tornam
sempre mais ricos e os pobres, sempre mais po-
25º DOMINGO DO TEMPO COMUM
bres. No v. 7 ressoa a ameaça do juízo.
22 de setembro

O bom uso das 2. Evangelho (Lc 16,1-13)

riquezas: desapego
O evangelho parece ir na direção oposta da
leitura do profeta Amós. Traz o texto conhecido
como a “parábola do administrador desonesto”,
na qual o dono da fazenda louva a ação pouco
I. Introdução geral escrupulosa de seu administrador! É uma pará-
bola que escandaliza, e é isso que Jesus quer,
Num tempo de esbanjamento desbragado; pois se contasse só coisas com que todo mundo
num tempo em que se pretende resolver o dese- está de acordo ninguém prestaria atenção! Ora,
quilíbrio social estimulando o consumo de produ- entenda-se bem: Jesus não propõe como mode-
tos que mais complicam que ajudam e, além disso, lo tudo o que esse administrador andou fazen-
ameaçam o ambiente natural; num tempo de nar- do! Só quer ressaltar a sua “prudência” (= previ-
cisismo alimentado pela insaciável febre de com- dência), o resto não!
pras e pela alienação induzida pelas mídias indivi- Jesus quer ensinar que a inteligência no uso
duais, alcançam-nos, oportunamente, as severas dos bens deste mundo faz parte do Reino de
advertências do profeta-agricultor Amós e do pro- Deus, em dois sentidos: 1) utilizá-los prevendo
feta-carpinteiro Jesus a respeito das riquezas. a crise (juízo); 2) utilizá-los para fazer amigos
para a eternidade (caridade). Inteligente é quem
sabe escolher de quem ele será amigo, enquanto
II. Comentário dos textos ainda tem oportunidade.
nº- 292

bíblicos Vejamos o texto de perto. Diante da imi-


nente demissão por causa de má administra-

ano 54

ção da fazenda, o administrador comete


1. I leitura (Am 8,4-7) umas fraudes em favor dos devedores do pa-
trão, para poder contar com o apoio deles na

Amós denuncia a injustiça institucionali-


Vida Pastoral

zada no reino do Norte (Israel). Sua atuação se hora em que for posto para a rua. Será um

46
exemplo? Em certo sentido, sim: era um ho-
mem que enxergava mais longe que seu na-
riz. Porém, não o devemos imitar na sua in- Papa Francisco
justiça, mas na sua previdência. Não vem ao A vida e os desafios
caso argumentar que os administradores cos-
Saverio Gaeta
tumavam definir pessoalmente sua “comis-
são” dos bens do patrão e que, portanto, esse
administrador não foi propriamente injusto,
mas apenas desistiu de sua comissão. Jesus
mesmo o chama de administrador injusto
(16,8). Mas mereceu elogios, até do patrão
prejudicado, porque agiu com previdência.
Sabia – melhor que aquele fazendeiro estúpi-
do descrito em Lc 12,16-21 – que sua posi-
ção era precária, e tomou providências. Sem
esconder a imoralidade desse homem, Jesus
observa que os “filhos das trevas” são geral-
mente mais espertos, nos seus negócios, que 72 págs.

os filhos da luz. Ter consciência da precarie-


dade das riquezas e utilizar as últimas chan-
ces para ganhar amigos para o futuro, eis o
que Jesus quis ensinar. O livro narra as origens do Papa Francisco,
sua história, seus pensamentos, e também
O grande amigo que devemos ganhar apresenta um resumo dos principais desafios
para o futuro é Deus mesmo (“ser rico peran- que o pontífice terá de enfrentar, dos
escândalos à reforma da Cúria, do diálogo
te Deus”, Lc 12,21). Ganhamo-lo através dos inter-religioso à nova evangelização.
pequenos amigos: seus filhos. A iminência do
juízo (Lucas tomava isso bastante literalmen-
te) nos deve levar à prática da caridade. En-
tenda-se bem: não se trata de fazer caridade
para “comprar o céu”, mas para – com os
olhos fitos na realidade definitiva que é Deus,
Pai de bondade – transformar nossa vida
Imagens meramente ilustrativas.

numa prática que combine com ele. Já que


sabemos o que é definitivo, ajamos em con-
formidade: sejamos misericordiosos como
Deus é misericordioso (cf. Lc 6,35b-36).
O encontro com os amigos das “moradas
Vendas: (11) 3789-4000
eternas” inclui os coxos, cegos, estropiados, os
0800-164011
pobres em geral, os que são convidados para o SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

banquete eterno (cf. Lc 14,12-14.15-24). Te-


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
mos amplas oportunidades de usar o “vil di-

paulus.com.br
ano 54

nheiro” para conquistar esses amigos. Será que


o dinheiro é vil? Não há dúvida. Não há um
dólar que não seja manchado de opressão e

Vida Pastoral

exploração. Através dos bancos que investem

47
Roteiros Homiléticos

minha aplicação compulsória do Imposto de III. Pistas para reflexão


Renda, estou investindo em indústria bélica,
em projetos que acabam com o meio ambien- A riqueza bem utilizada: nesta e na próxi-
te e assim por diante... ma semana, a liturgia dominical está usando os
O dinheiro participa do sistema que o textos de Amós como “aperitivo” para, depois,
gera. O fato de eu poder “comer como um se alimentar com as palavras de Jesus. Hoje ou-
padre” participa de uma estrutura em que vimos na 1ª leitura uma crítica inflamada de
muitos não podem fazer isso. Então, alimen- Amós contra os que “compram os pobres por
tado como um padre, devo pelo menos fazer dinheiro”. Mas, no evangelho, Jesus conta uma
tudo o que posso para que os outros possam parábola que parece louvar o suborno que um
alimentar-se assim também. Ou estar dispos- administrador de fazenda comete para “com-
to a não mais comer como um padre, pois prar” amigos para o dia em que ele for despa-
esta não é a realidade definitiva. A caridade, chado do seu serviço. Admiramos que Jesus es-
pelo contrário, é definitiva e não perece nun- colheu esse exemplo para explicar que ninguém
ca (cf. 1Cor 13). pode servir a dois senhores: Deus e o dinheiro.
Ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro
(cf. Lc 16,13). Há pessoas que observam as
3. II leitura (1Tm 2,1-8) prescrições do culto, mas interiormente estão
A 2ª leitura, extraída da leitura contínua longe de Deus (cf. Is 29,13). Observam o sába-
das cartas de Paulo, trata de um tema diferen- do e a “lua nova” – festa religiosa tradicional no
te das outras. Paulo continua a reflexão em antigo Israel –, mas interiormente pensam em
torno do anúncio da reconciliação que ele como explorar, logo depois, os pobres e os opri-
deve proclamar entre os gentios (cf. domingo midos com uma avareza sem fim: convertem
passado). Nesse espírito, insiste na oração da em lucro até o refugo do trigo (Am 8,6; 1ª leitu-
comunidade, oração de agradecimento e in- ra). Para nada servem seus cultos e orações:
tercessão por todos os homens (cf. também Deus não os esquecerá (Am 8,7)! E, quanto aos
17º domingo comum). O foco está na comu- oprimidos, Deus os levantará (salmo responso-
nidade orante, no culto da comunidade, que rial). As palavras de Amós nos advertem a res-
comporta aspectos de petição, de adoração, peito do vazio da riqueza procurada por si mes-
de intercessão e de ação de graças. Todos pre- ma. A riqueza não apenas não nos acompanha
cisam suplicar e devem agradecer, pois Jesus (cf. Lc 13,16-21), ela pode tornar-se causa de
salvou a todos, sendo mediador único, dado nossa condenação. Que dizer, então, de uma so-
em resgate por nós. Essa é a verdade que sal- ciedade que coloca tudo a serviço do lucro?
va. A comunidade está diante de Deus rezan- Aí está a fineza de Jesus. Mostra que nem
do e agradecendo por todos, elevando suas mesmo um administrador inescrupuloso almeja
mãos, purificadas pela prática da caridade, somente o dinheiro. Esse “filho das trevas” é
como as mãos do Crucificado. previdente, larga peixe pequeno para apanhar
Nós devemos traduzir nossa busca de uni- grande. Diminui o débito dos devedores para
dade e reconciliação no fato de tornar-nos me- lograr a amizade das pessoas, que vai lhe ser
nº- 292

diadores de todos, assim como Cristo reconci- muito mais útil que o dinheiro.
liou a todos, tornando-se mediador, por sua A lição para nós é: dar preferência àquilo

ano 54

morte salvadora. A última frase (2,8) pode ser- que combina com Deus e o seu projeto, acima
vir de motivação para que a comunidade reze, da riqueza material. E o projeto de Deus é: jus-
por exemplo, o Pai-Nosso, com as mãos eleva- tiça e amor para com os seus filhos, em primeiro

Vida Pastoral

das ao céu, “sem ira nem rancor”. lugar os pobres.

48
A riqueza de nossa sociedade deve ser usa-
da para estarmos bem com os pobres. A riqueza
é passageira. Se vivermos em função dela, esta-
remos algum dia com a calça na mão. Mas se a
tivermos investido num projeto de justiça e fra-
ternidade para com os mais pobres, teremos ga-
nho a amizade deles e de Deus, para sempre.
Observe-se que Jesus declara o dinheiro in-
justo – todo e qualquer dinheiro. Pois, de fato, o

232 págs.
dinheiro é o suor do operário acumulado nas
mãos daqueles que se enriquecem com o traba-
lho dele. Todo o dinheiro tem cheiro de explo- Eu, Francisco
ração, de capital não invertido em bens para os Carlos Carretto
O autor transforma o livro numa
que trabalham. Mas já que a sociedade, por en-
autobiografia de São Francisco de
quanto, funciona com este recurso injusto, pelo Assis, por meio de um recurso literário
menos usemo-lo para a única coisa que supera a extremamente eficaz para expressar os
sentimentos e o estado de espírito do santo.
caducidade de todo esse sistema: o amor e a fra-
ternidade para com os outros filhos de Deus,
especialmente os mais deserdados e explorados.
Assim corresponderemos à nossa vocação de fi-
lhos de Deus. Não serviremos ao dinheiro, mas
o usaremos para servir ao único Senhor.

26º DOMINGO DO TEMPO COMUM


29 de setembro

Coitado, DVD São Francisco


só tem dinheiro! Michele Soavi
São Francisco é o filme mais completo
sobre a vida e os feitos do Santo de Assis,
Imagens meramente ilustrativas.

um dos maiores nomes do cristianismo.


Essa superprodução conta a trajetória
I. Introdução geral de São Francisco desde sua juventude
até seus últimos dias como líder da
Ordem Franciscana.
As leituras do 26º domingo comum dificil-
mente deixarão insensível o coração do verda-
deiro cristão. Trazem uma contundente crítica à Vendas: (11) 3789-4000
ganância, que, esta sim, torna insensíveis as 0800-164011
pessoas. As leituras de hoje trazem um forte SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

chamamento à conversão à solidariedade e à V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL


justiça social para a transformação de uma rea- paulus.com.br

ano 54

lidade injusta e iníqua, segundo a vontade de


Deus. Essa necessidade de conversão não é ape-

nas para os ricos, mas também para os pobres


Vida Pastoral

que têm coração e mentalidade de ricos e para

49
Roteiros Homiléticos

todos os que não abrem os olhos para a realida- mesa do rico não vão para o pobre, mas para o
de social injusta. cachorro. Parece que é hoje. Significativo é que
Lázaro tem nome, e seu nome quer dizer: Deus
ajuda. O rico não tem nome, é ignominioso.
II. Comentário dos textos Quando então sobrevém a morte, igual para
bíblicos ambos, o quadro se inverte. Lázaro vai para “o
seio de Abraão” (é acolhido por Abraão no lu-
gar de honra do banquete, podendo reclinar-se
1. I leitura (Am 6,1a.4-7) sobre seu lado). O rico, entretanto, vai para o
Mais uma vez (como no domingo passado) xeol, a região dos mortos, onde passa por tor-
Amós, mestre da ironia profética (veja as “vacas mentos. Há entre os dois um abismo intranspo-
de Basã”, Am 4,1), critica a “sociedade de consu- nível, de modo que Lázaro não poderia nem
mo” de Samaria e de Jerusalém (Sião). Os ricos, dar ao ricaço um pouco de água na ponta do
especialmente os da corte real, aproveitam a vida dedo para aliviar-lhe o calor infernal. Na reali-
sem se importar com a “casa de José”, ou seja, dade, esse abismo já existia antes da morte – o
com a ruína do povo. A “casa de José” são as abismo entre ricos e pobres –, mas com a morte
tribos de Efraim e Manassés, filhos de José do tornou-se intransponível, definitivo. Então, o
Egito, que constituíram o reino do Norte (Sama- rico pede que Lázaro possa avisar seus irmãos,
ria). José, porém, distribuía alimentos ao povo, que vivem do mesmo jeito como ele viveu. Mas
enquanto os donos de Samaria tiravam o pão do Abraão responde: “Eles têm Moisés e os profe-
povo. Por isso, essa elite tem que ir ao cativeiro, tas. Nem mesmo se alguém ressuscitasse dos
para aprender o que é a justiça e o direito. mortos, não acreditariam nele”: alusão a Cristo.
Na leitura da semana passada, Amós revela- Dureza, isolamento, incredulidade: eis as
va a ambiguidade dos ricos comerciantes da Sa- consequências do viver para o dinheiro. Pode-
maria. Hoje, censura-lhes a irresponsabilidade. mos verificar esse diagnóstico ao redor de nós,
Denuncia o luxo e a luxúria das classes dominan- cada dia, e, provavelmente, também em nós
tes. Evoca ironicamente a gloriosa história antiga: mesmos. A pessoa só tem um coração; se o co-
os ricos, porque têm uma cítara para tocar, ração se afeiçoa ao dinheiro, fecha-se ao irmão.
acham que são cantores como Davi... enquanto o Os ricos são infelizes porque se rodeiam de
povo é ameaçado pela catástrofe da injustiça so- bens como de uma fortaleza. É a impressão que
cial e da invasão assíria. Por isso, esses ricaços suscitam hoje os condomínios fechados. São
sairão ao exílio na frente dos deportados... “incomunicáveis”. As pessoas vivem defenden-
do-se a si e a suas riquezas. Os pobres não têm
nada a perder. Por isso, “as mãos mais pobres
2. Evangelho (Lc 16,19-31)
são as que mais se abrem para tudo dar”.
A insensibilidade pelo sofrimento do po- Em nosso mundo de competição, a riqueza
bre é também o tema da leitura evangélica des- transforma as pessoas em concorrentes. A ri-
te domingo, a parábola do ricaço e do pobre queza é vista não como “gerência” daquilo que
Lázaro, Lc 16,19-31. Nesta parábola, própria deve servir para todos, mas como conquista e
nº- 292

de Lucas, o narrador acentua o perigo da ri- expressão de status. Tal atitude marca a riqueza
queza. Mostra a insensibilidade de quem ven- financeira (capitalização sem distribuição), a ri-

ano 54

deu sua alma em troca de riqueza – quem é tão queza cultural (saber não para servir, mas para
pobre que só possui dinheiro! sobrepujar) e a riqueza afetiva (possessividade,

A descrição do pobre e de sua contraparti- sem verdadeira comunhão). Considera-se a ri-


Vida Pastoral

da, o ricaço, é extremamente viva. As sobras da queza recebida como posse em vez de “econo-

50
mia” (palavra grega que significa: gerência da mento na inesquecível pintura do ricaço e seus
casa). Não se imagina o tamanho deste mal irmãos, que vivem banqueteando-se, enquanto
numa sociedade que proclamou o lucro e a desprezam o pobre Lázaro, mendigo sentado à
competição como seus dinamismos fundamen- porta. Quando morre e vai ao xeol, o rico vê, de
tais. Até a afetividade transforma-se em posse. longe, Lázaro no céu, com o pai Abraão e todos
As pessoas não se sentem satisfeitas enquanto os justos. Pede a Lázaro que venha com uma
não possuem o objeto de seu desejo, e, quando gota d’água aliviar sua sede. Mas é impossível. O
o possuem, não sabem o que fazer com ele, pas- rico não pode fazer mais nada, nem sequer con-
sando a desejar outro... Não sabem entrar em segue que Deus mande Lázaro avisar seus ir-
comunhão. Assim, a parábola de hoje é um co- mãos a respeito de seu erro. Pois, diz Deus, nem
mentário do “ai de vós, ricos” (Lc 6,24). mandando alguém dentre os mortos eles não
acreditarão. Imagine, se mesmo a mensagem de
Jesus ressuscitado não encontra ouvido!
3. II leitura (1Tm 6,11-16)
E nós? Nós continuamos como o rico e
A 2ª leitura de hoje não participa da temáti- seus irmãos. Os pobres morrem às nossas por-
ca principal da 1ª leitura e do evangelho, mas tas, onde despejamos montes de comida inuti-
completa-a, no sentido de apresentar o contrá- lizada... (Alguma prefeitura poderia talvez or-
rio da dureza e avareza. ganizar a distribuição das sobras dos restau-
Imediatamente antes do trecho de hoje, a rantes para os pobres.) Será que devemos criar
primeira Carta a Timóteo fala da avareza, que uma nova estrutura na sociedade, de modo
chega a abalar a fé (6,10). Também os minis- que não haja mais necessidade de mendigar
tros da Igreja devem pôr-se em guarda contra nem supérfluos a despejar? Isso certamente ali-
ela. Depois, positivamente, exorta Timóteo a viaria, ao mesmo tempo, o problema social e o
cultivar as boas virtudes (6,11-12), a ser fiel à problema ecológico, pois o meio ambiente não
profissão da fé (6,12.13), confiada a ele por precisaria mais acolher os nossos supérfluos.
Cristo, até sua volta (6,14.15-16). A Igreja está Mas, ao contrário, cada dia produzimos mais
no tempo do crescimento; deve conservar o lixo e mais mendigos.
que lhe é confiado. O exemplo do rico confirma a mensagem
O testemunho de Cristo neste mundo não é de domingo passado: não é possível servir a
nada pacífico. É uma luta: o bom combate. Im- Deus e ao dinheiro. Quem opta pelo dinheiro
porta travar esta luta – como o fez Paulo – até o afasta-se de Deus, de seu plano e de seus filhos.
fim, para que vivamos para sempre com aquele Talvez decisivamente.
que possui o fim da História. (Poder-se-iam Em teoria, aceitamos essa lição. Mas ficamos
acrescentar à leitura os versículos que seguem, por demais no nível pessoal e interior. Procura-
1Tm 6,17-19, e que são uma lição do que o mos ter a alma limpa do apego ao dinheiro e, se
cristão deve fazer com seus bens.) nem sempre o conseguimos, consideramos isso
uma fraqueza que Deus há de perdoar. Mas não
fazemos a opção por Deus e pelos pobres em
nível estrutural, ou seja, na organização de nossa
III. Pistas para reflexão
nº- 292

sociedade, de nosso sistema comercial etc. Te-


A riqueza que endurece: ouvimos as cen- mos até raiva de quem quer mudar a ordem de

ano 54

suras de Amós contra os ricos da Samaria, en- nossa sociedade. Prendemo-nos ao sistema que
durecidos no seu luxo e insensíveis ao estado produz os milhões de lázaros às nossas portas.
Pior para nós, que não teremos realizado a justi-

lamentável em que se encontra o povo. Jesus,


Vida Pastoral

no evangelho, descreve esse tipo de comporta- ça, enquanto eles estarão na paz de Deus.

51
Roteiros Homiléticos

A “lição do pobre Lázaro” só produzirá seu II. Comentário dos textos


efeito em nós, “cristãos de bem”, se metermos a bíblicos
mão na massa para mudar as estruturas econô-
micas, políticas e sociais de nossa sociedade.
Porém, que adiantariam novas estruturas se 1. II leitura (Hab 1,2-3; 2,2-4)
também não se renovassem os corações? Quem Habacuc 1,2-2,4 é um diálogo entre Deus e
conhece a história sabe que nenhuma estrutura o profeta. Diante da desordem que reina em
social ou econômica é definitiva, porque é fruto Judá, nos últimos anos antes do exílio, Habacuc
do trabalho humano, que é sempre provisório. grita a Deus com impaciência, quase com deses-
As estruturas mais justas não dispensam a sen- pero. Deus, porém, anuncia que tratará o mal da
sibilidade por aquele que sofre, e é assumindo infidelidade com um remédio mais tremendo
nossa responsabilidade diante do sofrimento de ainda: os babilônios. Quando Habacuc reclama
cada um, na dedicação ao amor fraterno, que contra essa solução – na leitura deste domingo
cuidaremos também de tornar mais fraternas as –, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preci-
próprias estruturas da sociedade. so prestar contas; mas os justos se salvarão por
sua fidelidade” (2,2-4). O profeta se queixa,
porque a impiedade está vencendo, porque o
27º DOMINGO DO TEMPO COMUM direito e o próprio justo são pisados ao pé. Deus,
6 de outubro porém, não precisa prestar contas para o ser hu-
mano. Este é que lhe deve obediência, também
A Soberania nas horas difíceis: é a “fé/fidelidade” que faz vi-
ver o justo (2,4).
de Deus e nossa
fidelidade 2. Evangelho (Lc 17,5-10)
O evangelho começa com a prece dos após-
tolos: “Senhor, aumenta nossa fé!”. Às vezes
precisa-se de muita fé para acolher a palavra de
I. Introdução geral Jesus, pois o evangelho não é tão evidentemente
gratificante. Daí os discípulos dizerem: “Dá-nos
O tema da liturgia de hoje é: fé e fidelidade. mais fé!”.
O termo bíblico – emuná em hebraico, pistis em A resposta de Jesus é uma admoestação
grego, fides em latim – tem esses dois sentidos. para que tenham fé que transporta montanhas!
Ora, a base de nossa fidelidade está na firmeza Jesus fala aqui no estilo hiperbólico, exagerado,
inabalável e soberana de Deus. Se dizemos que dos orientais, mas não deixa de ser verdade que
nossa fé nos salva, isso não é por causa da nossa quem se entrega em confiança a Deus em Jesus
qualidade, mas porque nossa fé nos une a Deus, Cristo faz coisas que outros não fazem e que o
que nos salva. Fé é adesão firme a Deus, que é próprio crente não se julga capaz de fazer.
fiel. É a total entrega ao seu desígnio, que muitas Somos como peões de fazenda, que, depois
nº- 292

vezes supera nossa compreensão imediata, mas, de terem executado seu longo e cansativo servi-
em última instância, nos confirma na salvação. ço, não podem reclamar, pois apenas cumpri-

ano 54

No Antigo Testamento, por exemplo, na 1ª lei- ram seu dever (cf. 1Cor 9,16). Assim como, em
tura de hoje, a fé é a adesão em autenticidade e Habacuc, Deus não presta contas ao profeta, o

lealdade a Deus; no Novo Testamento, trata-se “dono” na parábola do evangelho não precisa
Vida Pastoral

da adesão a Jesus Cristo, que nos une a Deus. prestar contas a seus servos. Depois da longa

52
jornada dos servos no campo, ele pede que lhe
preparem a comida e a sirvam, sem reclamar.
Fizeram somente seu dever. Claro que Jesus não Novo Testamento
está justificando esse modo de agir do dono; e vida consagrada
apenas usa uma cena cotidiana de seu tempo Giacomo Perego
para expressar que Deus não precisa prestar
contas: quando o servimos, fazemos apenas o
que devemos fazer.
Nossa mentalidade atual não aceita isso facil-
mente. Em nossa sociedade, a mínima prestação
de serviço exige uma gratificação específica. Ain-
da que, muitas vezes, a gratificação não valha o
serviço, essa mentalidade exclui todo o espírito
do “simples serviço”. Até as prefeituras e gover-
nos estaduais fazem propaganda com as obras
que nada mais são que a execução de seu dever!
Ora, no Reino de Deus, o que conta é o espírito
de participação. Faz-se o que o Reino exige, sem 280 págs.
cobrar nada extra. A recompensa existe no parti-
cipar, como Paulo diz a respeito de anunciar o
evangelho gratuitamente (1Cor 9,16). Ao inter-
Estudo que nasceu da pesquisa que
pretar a parábola de Jesus, devemos pôr entre acompanha o curso “Novo Testamento
parênteses os traços paternalistas da cena que ele e Vida Consagrada”, que, em anos
evoca. O que ele quer mostrar é que participa- alternados, ministra-se no Instituto de Vida
Consagrada “Claretianum”, da Pontifícia
mos no projeto de Deus, não em função de uma Universidade Lateranense, em Roma, com o
compensação extra, mas porque é a obra de objetivo de oferecer uma primeira introdução
aos temas e aos textos neotestamentários
Deus. O próprio Deus é nossa recompensa, e a que sempre iluminaram a vida religiosa.
realização de seu amor supera qualquer recom-
pensa extra que poderíamos imaginar.

3. II leitura (2Tm 1,6-8.13-14)


Imagens meramente ilustrativas.

A 2ª leitura é tomada do início da Segunda


Carta a Timóteo. Esta carta impressiona-nos por
seu estilo vivo – uma fotografia em alta defini-
ção do Apóstolo no fim de seus dias. É seu tes-
tamento espiritual. No trecho de hoje, Paulo Vendas: (11) 3789-4000
exorta seu amigo Timóteo a manter a plena fide- 0800-164011
lidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

deve firmar-se na fidelidade, para poder confir- V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL


mar os seus irmãos na fé. paulus.com.br

ano 54

Em Romanos 1,16, Paulo escreveu que não


se envergonhava por causa do Evangelho. A Se-

gunda Carta a Timóteo repete a mesma afirma-


Vida Pastoral

ção, para exortar os pastores que o sucedem, a

53
Roteiros Homiléticos

fim de que se lembrem de estar servindo ao Cris- exemplo disso, apresentando-se, na Última
to aniquilado. Nas cidades do “mundo civiliza- Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27). Isso
do” de então, o cristianismo era ridicularizado e não rima com a mentalidade calculista e mate-
perseguido. Por isso, Paulo exorta seu discípulo rialista da nossa sociedade, que procura com-
a não se envergonhar e a guardar a doutrina sadia pensação para tudo o que se faz – aliás, com-
que dele recebeu (contra as fantasias gnósticas e pensação superior ao valor daquilo que se fez...
outras que se introduziram no cristianismo pri- Ora, se levamos a sério a parábola de Jesus,
mitivo). Exorta-o a guardar o “bom depósito”, ou como ensinamos os empregados e os operários
seja, o bem nele depositado, a ele confiado a reivindicar sempre mais (porque, se não rei-
(1,14). Esse “bom depósito” é a plena verdade do
vindicam, são explorados)? Certamente, Jesus
Evangelho. Repleto dela, o discípulo poderá dis-
não quer condenar os movimentos de reivindi-
tribuí-la aos outros, pois o cristão é responsável
cação, mas seu foco é outro. Ele quer apontar a
não só por sua própria fé, mas também pela fé e
dedicação integral no servir. Interesse próprio,
fidelidade do seu irmão. Ora, nas circunstâncias
daquele tempo e de todos os tempos, isso só é lucro, reconhecimento, fama, poder... não são
possível com a força do Espírito Santo. do nível do Reino, mas apenas da sobrevivência
Recebemos hoje, portanto, uma mensagem na sociedade que está aí. A parábola não quer
para valorizar a fé, inclusive, como base da ora- desvalorizar as reivindicações da justiça social,
ção. Mas nossa fé não é uma espécie de fundo de mas insistir na gratuidade do serviço do Reino.
garantia para que Deus nos atenda. Assim como Diante disso, convém fazer um sério exame
ele não precisa prestar contas, também não é for- de consciência acerca da retidão e da gratuidade
çado por nossa fé. Nossa fé é necessária para nós de nossas intenções conscientes e de nossas mo-
mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus tivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou
em Jesus Cristo. Deus mesmo, porém, é sobera- progressista, quanta ambição de poder, quanto
no, e soberanamente nos dá mais do que ousa- querer aparecer, quantas compensaçõezinhas!
mos pedir, como diz a oração deste domingo. E mesmo com relação às estruturas da so-
ciedade, a parábola de Jesus, hoje, nos ensina a
não focalizarmos única e exclusivamente as rei-
III. Pistas para reflexão vindicações. Estas são importantes, no seu devi-
do tempo e lugar, para garantir a justiça e con-
Somos simples servos: quem não gosta de seguir as transformações necessárias. Mais fun-
um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais
damental, porém, na perspectiva de Deus, é
cheias de inscrições elogiando os generosos do-
criar o espírito de serviço e disponibilidade, que
adores dos bancos e dos vitrais? Ora, o evange-
nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito
lho de hoje nos propõe uma atitude que parece
de comunhão nunca achará que está fazendo
inaceitável a uma pessoa esclarecida: o empre-
gado não deve reclamar quando, depois de todo demais para os outros.
o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, “Somos simples servos”. Antigamente se tra-
ele ainda deve servir a janta. Ele é um emprega- duzia: “Somos servos inúteis”. Tal tradução era
nº- 292

do sem importância especial; tem de fazer seu psicológica e sociologicamente nefasta, pois fo-
serviço, sem discutir... mentava a acomodação; e também contraditória,

ano 54

Essa parábola não é para ensinar a forma de pois servo inútil não serve... Servindo com sim-
tratar os empregados, Jesus nos quer ensinar a plicidade, não em função de compensações ego-

estar a serviço do Reino, sem atribuirmos im- ístas, mas em função da fidelidade e da objetivi-
Vida Pastoral

portância a nós mesmos. Ele mesmo dará o dade, somos muito úteis para o projeto de Deus.

54
O roteiro para a celebração do dia seu o mandou banhar-se no Jordão, para que fi-
de Nossa Sra. Aparecida encontra-se casse claro que não era Eliseu quem curava, e sim
no site da Vida Pastoral: o Senhor de Israel e das águas do Jordão. O gene-
www.vidapastoral.com.br ral, apertado, aprendeu a obedecer.
Então veio a hora de agradecer. Novamente,
Naamã quer mostrar seu prestígio oferecendo
28º DOMINGO DO TEMPO COMUM um presente digno de príncipe. Eliseu recusa,
13 de outubro pois quem agiu não foi ele, mas foi Deus! Então
vem o comovente fim da história: curado não só

A graça de Deus e nosso de sua lepra, mas de seu orgulho de militar, Na-
amã pede para levar consigo, nos jumentos,

agradecimento umas sacas de terra, para poder adorar, na Síria,


o Deus de Eliseu sobre o chão de Israel! Além
disso, pede antecipadamente perdão, porque,
como funcionário real, terá que adorar também,
I. Introdução geral de vez em quando, o deus sírio Remon; e Eliseu
responde: “Pode fazer tranquilamente”...
A liturgia do 28º domingo comum nos As lições dessa história são diversas: a gra-
apresenta um tema bem caro ao evangelista Lu- tuidade do agir de Deus, pois o que o move não
cas e muito esquecido em nossa sociedade: a são as manias militarescas ou os presentes, mas
gratidão. Em nossos dias de individualismo e de a simples confiança de Naamã; a humildade do
egocentrismo exacerbado, por causa do mito do profeta, que só quer que Deus apareça; a como-
bem-estar e da idolatria do mercado, a gratidão vente gratidão do sírio; a abertura de espírito do
brilha como uma luz nas trevas. profeta quanto às obrigações religiosas do sírio;
o fato de ele ser estrangeiro e, nesse sentido, o
fato de Deus o atender gratuitamente, sem “ter
II. Comentário dos textos obrigações” para com ele...
bíblicos
2. Evangelho (Lc 17,11-19)
1. I leitura (2Rs 5,14-17)
O evangelho lembra, sob vários aspectos, a
A 1ª leitura é a história da gratidão de Naa- história de Naamã (1ª leitura). Trata-se de lepra.
mã, o general sírio que ficou leproso. Aconselha- Dez leprosos são curados não imediatamente
-se, aos padres ou ministros da Palavra, que expli- (exatamente como Naamã), mas somente de-
quem e contextualizem bem esta leitura, pois o pois de ter mostrado confiança inicial na Palavra
trecho prescrito no Lecionário ficou muito trun- de Jesus, que os mandou mostrar-se aos sacer-
cado. O recorte litúrgico exige pelo menos uma dotes. Porém, quando eles obtêm a cura, a his-
pequena introdução narrativa, para pôr os ouvin- tória se torna menos emocionante que a de Na-
tes a par do que precedeu à entrada de Naamã na amã: torna-se um caso grave de ingratidão. Só
nº- 292

água do Jordão! É preciso lembrar como esse es- um dos dez volta para agradecer, e este é, por
trangeiro concebeu a ideia de consultar um profe- sinal, um estrangeiro (como Naamã), e, além

ano 54

ta de Israel e, sobretudo, como ele queria montar disso, samaritano, inimigo dos judeus.
um espetáculo, levando ricos presentes e vestes Parece que a graça de Deus é melhor acolhi-
da pelos estrangeiros. E é verdade, pois os estran-

(2Rs 5,5). O poderoso general sírio queria que o


Vida Pastoral

profeta Eliseu o curasse por sua palavra, mas Eli- geiros se sabem agraciados, enquanto as pessoas

55
Roteiros Homiléticos

da casa acham que tudo quanto recebem é “por chão! Em contraste com este exemplo de singe-
direito” e que, portanto, não precisam agradecer! la gratidão, o evangelho narra a história dos dez
Esquecem que tudo é graça. Acham que estão leprosos curados por Jesus, dos quais apenas
quites quando cumprem as prescrições: mostrar- um voltou para agradecer. E esse era, por sinal,
-se aos sacerdotes. Sua atenção é absorvida por um estrangeiro (como o general sírio), pior, um
seu próprio sistema. Por isso, diz-se que os pio- samaritano, inimigo do povo de Jesus...
res cristãos são os que moram perto da Igreja: Gratuidade do agir de Deus, gratidão por
apropriam-se da religião e esquecem o extraordi- tudo o que Deus faz: tudo é graça. O tema da
nário de tudo o que Deus faz. gratidão é bem enquadrado pela liturgia toda. A
oração do dia reza que a graça de Deus deve
preceder e acompanhar nosso agir; devemos es-
3. II leitura (2Tm 2,8-13)
tar atentos ao bem que Deus nos dá para fazer.
Na 2ª leitura, o “testamento de Paulo” (cf. O salmo responsorial (Sl 98[97]) e a aclamação
domingos anteriores) chega ao ponto mais sig- ao evangelho estão no mesmo tom. É também
nificativo: Paulo confia a seu cooperador, Timó- o dia indicado para ler o belo prefácio comum
teo, o evangelho que ele mesmo pregou, o IV: agradecemos a Deus até o dom de o louvar!
anúncio da ressurreição de Cristo, que garante Graça, gratuidade, gratidão, agradecimento: é o
também a nossa ressurreição – se ficarmos fir- momento de ensinar ao povo o parentesco, não
mes na fé nesta palavra. Quem segue no trilho apenas etimológico, mas vital, dessas palavras.
do Apóstolo arrisca-se. O amor ao Evangelho e As antigas orações estão cheias de ação de
aos “eleitos” exige empenho total. Isso é possível graças. O próprio termo “eucaristia”, que indica
a partir da certeza de que Cristo foi ressuscitado a principal celebração cristã, significa “ação de
dos mortos (2,8). Paulo está algemado, mas a graças”. Contudo, quando se faz, depois da co-
palavra não está algemada (v. 9)! munhão, uma ação de graças partilhada, a
As últimas frases da perícope (2Tm 2,11- maioria das pessoas dificilmente consegue for-
13) formam um hino. A palavra que é verdadei- mular um agradecimento; a oração de pedido é
ra nos ensina: se morrermos com Cristo, vivere- que lhes vem aos lábios. Numa missa, depois da
mos; se formos firmes, reinaremos com ele; se o comunhão, o padre convidou os fiéis a formular
renegarmos, ele nos renegará; – e agora vem orações de louvor e gratidão, não de pedido,
uma quebra surpreendente nos paralelismos – mas a primeira voz que se fez ouvir rezou: “Eu
se formos infiéis, ele será... fiel! À nossa infideli- te agradeço, Senhor Deus, porque te posso pedir
dade, Deus responde com sua fidelidade, pois por meu marido e meus filhos...”.
não pode negar seu próprio ser! A gratidão é uma flor rara. Brota, frágil e
efêmera, nas épocas de trocar presentes (Natal,
Páscoa...), mas desaparece durante o resto do
III. Pistas para reflexão ano. Quase ninguém agradece pelos dons que
recebe continuamente, dia após dia: a vida, o ar
Gratidão: os textos nos convidam a refletir que respira, os pais, irmãos, vizinhos...
sobre a gratidão. A 1ª leitura nos oferece uma Se fosse apenas o costume de pedir, não se-
nº- 292

das mais belas histórias do Antigo Testamento. ria grave. Pedir com simplicidade pode ser ou-
Naamã, general sírio, foi curado da lepra pelo tra face da gratidão – como aquele frei que, de-

ano 54

profeta israelita Eliseu. Para mostrar a sua grati- pois de uma boa sobremesa na casa de uma
dão, levou consigo para a Síria, nos seus jumen- benfeitora, disse: “Minha senhora, não sei como

tos, uns sacos cheios de terra de Israel, para, lá mostrar minha gratidão por esse almoço e essa
Vida Pastoral

na Síria, adorar o Deus de Israel no seu próprio sobremesa tão gostosa... posso pedir mais um

56
pedaço?”. Ao contrário, porém, a mania de pe-
dir sem agradecer reflete a mentalidade de nos-
so ambiente: sempre querer levar vantagem.
Será por causa das dificuldades da vida? Mas os
que têm a vida mais folgada é que mais pedem
sem agradecer... Falta motivação para se dirigir
em simples agradecimento àquele que é a fonte
de todos os bens. Talvez não seja apenas a grati-
dão que desapareceu. Receio que Deus mesmo

368 págs.
tenha sumido dos corações.
Não só as pessoas individuais, também as
Paulo para os conquistados
comunidades eclesiais devem precaver-se desse
Reimaginando a missão
perigo. Lutar pelo amor-com-justiça é bom e de Paulo
necessário, mas a luta deve estar inspirada pela Davina C. Lopez
visão alegre e alentadora do bem que Deus dis- Com imagens impressionantes do mundo
põe para todos, e não pela insatisfação e frustra- antigo e análises incisivas de escritos,
os estudos paulinos ganham ainda mais
ção. Um espírito de gratidão pelo que já se rece- em qualidade e comprometimento com a
beu, em termos de solidariedade e fraternidade, história do Apóstolo das Gentes.

é o melhor remédio para que a luta não faça


azedar as pessoas. Então a desgraça que se vive
não abafará a gratidão; será apenas um desafio a
mais para que tudo o que fizermos seja uma
ação de graças a Deus, conforme a palavra de
Paulo na 2ª leitura.

29º DOMINGO DO TEMPO COMUM


20 de outubro
296 págs.

Oração, Para ler o apóstolo Paulo

fé e escrituras
Chantal Reynier
Imagens meramente ilustrativas.

As cartas do apóstolo Paulo não são


de fácil compreensão. Assim, este guia
pretende esclarecer a temática paulina
a todos os interessados, mostrando a
profundidade de sua mensagem.
I. Introdução geral
Vendas: (11) 3789-4000
A liturgia de hoje sugere dois temas impor-
0800-164011
tantes: a força da oração (1ª leitura e evange- SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

lho) e a importância da S. Escritura (2ª leitura),


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
mas ambos têm o mesmo pano de fundo: a

paulus.com.br
ano 54

esperança da salvação em Jesus. Para a reflexão


(e a homilia) vamos insistir mais no segundo

tema, por ele ter uma atualidade especial no


Vida Pastoral

momento atual da América Latina. Nosso con-

57
Roteiros Homiléticos

tinente, de fato, está conhecendo desde alguns Lucas. É a história da oração insistente da viú-
anos um verdadeiro movimento de redesco- va. Uma viúva pleiteia seu direito junto a um
berta (católica e ecumênica) da Bíblia e, neste juiz pouco interessado, provavelmente com-
particular, se sabe incentivado pelo Concílio prometido com o outro partido. Porém, no fim
Vaticano II, retomado na Exortação Verbum lhe faz justiça, não por virtude e amor à justiça,
Domini do Papa Bento XVI. mas por estar cansado da insistência da viúva.
Quanto a nós, embora saibamos que Deus gos-
ta de nos atender (não é como o juiz!), Jesus
II. Comentário nos encoraja a cansar Deus com nossas ora-
dos textos bíblicos ções! Mas, para isso, precisa fé. Ora, acrescenta
Lc: será que o Filho do Homem encontrará ain-
1. I leitura (Ex 17,8-13) da fé, na terra, quando ele vier...?
Na batalha contra os amalecitas, quem Jesus ensinou a rezar pela vinda do Reino;
decide a vitória não é Josué, o general, mas mas quando esta vinda se completar, na parusia
Moisés, o homem de Deus, que reza de bra- do Filho do Homem, encontrar-se-á ainda fé na
ços estendidos desde a manhã até a noite. terra? (Lc 18,9; cf. 2Tm 4,1). Por isso, até lá, é
Como toda boa catequese, também a de Israel tempo de oração. Devemos reconhecer a carên-
gostava de histórias que falassem à imagina- cia em que vivemos e assumi-la na oração insis-
ção. Assim é esta história, que conta como tente. Se não clamarmos a Deus para fazer justi-
Moisés conseguiu a vitória de seu general Jo- ça, sua vinda nos encontrará sem fé.
sué sobre os amalecitas, os eternos inimigos Lucas escreve no último quartel do século I.
de Israel. Enquanto Moisés, segurando o bas- A fé está enfraquecendo. A demora da parusia,
tão de força divina, ergue as mãos por cima as perseguições, as tentações da “civilização” do
dos combatentes, Israel ganha. Quando ele império romano eram tantos fatores que colabo-
baixa os braços, Israel perde. Então, escoram ravam para enfraquecer a fé. Os cristãos, viven-
a Moisés com uma pedra e sustentam-lhe os do num mundo inimigo, esperavam a parusia
braços erguidos, até o pôr do sol, quando a como o momento em que Deus faria justiça em
batalha é decidida em favor de Israel. A histó- favor dos pequenos e oprimidos. Seria o Dia do
ria não diz se o gesto de Moisés significava Senhor. Mas estava demorando! Rezavam: “Ve-
oração, bênção sobre Israel ou esconjuro do nha teu Reino!” (Lc 11,2). Por outro lado, sa-
inimigo, mas, sendo Moisés o enviado de biam também que é difícil aguentar a pressão:
Deus, é evidente que se tratava de uma ma- “Não nos deixes cair em tentação” (11,4). Por
neira de tornar a força do Senhor presente no isso, Lucas pergunta: se continuar assim, não te-
combate. O gesto pode bem significar que rão todos caído quando o Filho do Homem vier?
Deus mesmo é o general do combate. O pró- (Lc 18,8). Talvez isso seja uma advertência peda-
prio gesto de levantar as mãos indica o rela- gógica, para insistir na necessidade de guardar a
cionamento com o Altíssimo. Levantar as fé até que venha o Filho do Homem. 1Pd 3,9
mãos a Deus sem cansar, eis a lição da 1ª lei- está às voltas com o mesmo problema, mas ofe-
tura. O salmo responsorial comenta, nesse rece outra interpretação: Deus demora porque
nº- 292

sentido, o levantar os olhos (Sl 121[120]). está dando chances para a gente se converter.

ano 54

2. Evangelho (Lc 18,1-8) 3. II leitura (2Tm 3,14-4,2)


No mesmo sentido, o evangelho narra uma A mensagem da 2ª leitura completa a das


Vida Pastoral

dessas parábolas provocantes bem ao gosto de duas outras. Não apenas nossa oração deve ser

58
insistente, não apenas devemos guardar a fé; de-
vemos insistir também na pregação da palavra
do Evangelho, oportuna ou inoportunamente! Jesus e as testemunhas oculares
Os Evangelhos como testemu-
A fé é uma graça de Deus, mas também algo nhos de testemunhas oculares
que a gente aprende, tanto o conteúdo quanto a
Richard Bauckham
atitude. Isso vale, sobretudo, para quem tem
responsabilidade na comunidade. Sua fé deve
crescer pela leitura da S. Escritura (2Tm 3,14-
16), pela experiência vital e pela desinteressada
transmissão da Palavra, traduzida novamente
para cada geração. A palavra de Deus atinge as
pessoas através dos seus semelhantes. Só o con-
victo consegue convencer. Daí a solene admoes-
tação dirigida a Timóteo (2Tm 4,1-2): “Eu te
peço com insistência: proclama a palavra, insis-
te oportuna ou inoportunamente...”.
Alguns anos atrás, na crise da seculariza-
ção, procurava-se não incomodar o homem 664 págs.
“urbano moderno” com a expressão franca da
identidade cristã. Se alguém, prudentemente,
expressasse uma exigência cristã, o interlocu-
tor respondia, com um sorriso de compaixão: Richard Bauckham demonstra que, sem
“Eu achava que o senhor fosse esclarecido!”. dúvida, os Evangelhos contêm evidências
de testemunhas oculares e que seus
Por isso tornou-se comum esconder a visão primeiros leitores as teriam certamente
cristã. Contudo, sobretudo agora, diante do reconhecido como tais. Este livro é um
trabalho investigativo, resultando em uma
sumiço da visão cristã, é melhor não ficar dan- abordagem inédita e vivida de vários
do voltas, mas insistir, mesmo inoportuna- e inúmeros problemas e de passagens
mente, naquilo que o evangelho diz ao mun- bem conhecidas.

do. O tempo é breve. Se julgamos dever res-


peitar o homem moderno por ser seculariza-
do, devemos também lembrar que ele é, so-
bretudo, objetivo e não gosta de rodeios, mas
Imagens meramente ilustrativas.

quer logo saber qual é o assunto! Por isso, se-


jamos claros. Não se trata de fanatismo (que é
disfarce da insegurança), mas de clareza e sa-
dia insistência. Paulo aconselha exteriorizar-
mos nossa convicção (2Tm 4,2), sobretudo
Vendas: (11) 3789-4000
porque o evangelho que ele propõe é o da
0800-164011
“graça e benignidade de Deus, nosso Salva- SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

dor” (Tt 3,4; cf. 2,11).


V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL
Para isso, é necessário que o evangeliza-

paulus.com.br
ano 54

dor “curta”, pessoalmente, toda a riqueza da


Palavra e a sua expressão nas Sagradas Escri-
turas – inclusive do Antigo Testamento – que

Vida Pastoral

fornece a linguagem em que Jesus moldou

59
Roteiros Homiléticos

seu evangelho. Tudo isso é obra do Espírito conduz à salvação” (2Tm 3,15). A recomenda-
de Deus (2Tm 3,16). ção de Paulo a Timóteo para que leia as Escri-
turas refere-se ao Antigo Testamento, as Escri-
turas de Israel (pois o Novo ainda não tinha
III. Pistas para reflexão sido escrito); à luz de Cristo, essa leitura se
torna caminho de salvação. Quanto a nós, o
A Sagrada Escritura: a reflexão pode Novo Testamento nos fala de Jesus, e o Antigo
aprofundar o tema da 2ª leitura, que reforça o se torna leitura salvífica em Jesus, que, como
que o evangelho diz sobre a oração: a assidui- verdadeiro “filho de Israel”, mostrou a plenitu-
dade na leitura da Escritura (2Tm 3,14-16). de do Antigo e o levou à perfeição. Jesus usou
Antigamente, os protestantes se distinguiam as palavras do Antigo Testamento para rezar e
dos católicos porque, como se dizia, eles para anunciar a Boa-nova do Reino. Sem co-
“liam a Bíblia”. De uns tempos para cá, isso nhecer o Antigo Testamento, não entendemos
mudou. Agora, a Bíblia faz parte também do a mensagem de Jesus conservada no Novo.
lar católico, e isso não só para ficar exposta “Quem não conhece as Escrituras, não conhe-
sobre um belo suporte de madeira entalha- ce Cristo” (S. Jerônimo).
da... O Concílio Vaticano II nos exorta a ler a Jesus é a chave de leitura da Bíblia. Isso é
Sagrada Escritura, usando as mesmas pala- muito importante para não fazermos de qual-
vras de Paulo na 2ª leitura de hoje: a Escritura quer frase do Antigo (nem do Novo) Testa-
“comunica a sabedoria que conduz à salva- mento um dogma definitivo! A lei do sábado,
ção”, “é inspirada por Deus e pode servir para por exemplo, deve ser interpretada com esse
denunciar, corrigir, orientar”. E a recente profundo senso de humanidade que tem Je-
Exortação apostólica Verbum Domini do Papa sus: o sábado é para o homem, não o homem
Bento XVI diz que a leitura das Escrituras para o sábado. As ideias de vingança, no An-
deve ser a alma de toda a pastoral. tigo Testamento, à luz de Jesus, aparecem
Ora, essa recomendação de Paulo e do como atitudes provisórias e a serem supera-
Concílio deve ser interpretada como con- das. Todos os trechos da Bíblia, por exemplo,
vém. Não significa que cada palavrinha iso- as parábolas de Jesus, devem ser entendidos
lada da Sagrada Escritura seja um dogma. A dentro do seu contexto e conforme seu gêne-
Escritura é um conjunto de diversos livros e ro e intenção. Não devem ser tomados cega-
textos que devem ser interpretados à luz da- mente ao pé da letra. Muitas vezes apresen-
quilo que é mais central e decisivo, a saber: tam imagens que querem exemplificar um só
o exemplo de vida e o ensinamento de Jesus aspecto, mas não devem ser imitados em
– aquilo que faz Cristo crescer em nós e em tudo (cf. o administrador esperto, no 25º do-
nossa comunidade. mingo do tempo comum).
O centro e o ponto de referência de toda a Por outro lado, importa ler a Sagrada Es-
Sagrada Escritura são os quatro evangelhos. critura no horizonte do momento presente,
Em segundo lugar vêm os outros escritos do interpretá-la à luz daquilo que estamos viven-
Novo Testamento (as Cartas e os Atos dos do hoje. Sem explicação e interpretação, a Bí-
nº- 292

Apóstolos), que nos mostram a fé e a vida que blia é como faca em mão de criança, ou como
os discípulos de Jesus quiseram transmitir. A remédio vendido sem a bula: pode até matar!

ano 54

partir daí podemos compreender como deve Ora, a interpretação deve se relacionar com a
ser interpretada a Bíblia toda, com inclusão do vida do povo. Por isso, o próprio povo deve

Antigo Testamento, para que nos manifeste, ser o sujeito dessa interpretação, mediante
Vida Pastoral

mediante a fé em Jesus Cristo, a “sabedoria que círculos bíblicos e outros meios adequados.

60
30º DOMINGO DO TEMPO COMUM pelas coisas que lhe oferecemos, pois não neces-
27 de outubro sita de tudo isso. Deus é reto, ele atende os opri-
midos e necessitados. Ele nos considera justos,
amigos dele, quando lhe oferecemos um cora-

Deus justifica os ção contrito e humilde (Sl 51[50],18-19). Nesse


sentido, o salmo responsorial acentua: Deus

humildes e os pecadores atende ao justo e ao oprimido (Sl 34[33],2-


3.17-18.19+23).

2. Evangelho (Lc 18,9-14)


I. Introdução geral
Deus nos considera justos, ou seja, amigos
Neste domingo destacam-se, nas leituras, dele, quando lhe oferecemos um coração con-
dois temas principais: a oração e a “justificação” trito e humilde. Por isso, engana-se completa-
do humilde e do pecador (1ª leitura e evange- mente o fariseu de quem Jesus fala no evange-
lho) e a entrega da vida de Paulo no fim de seu lho: acha que pode impressionar Deus com suas
percurso (2ª leitura). Esse último texto é, antes qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas
de mais, um testemunho que contemplamos obras puramente formais, sem extirpar de seu
com admiração e gratidão. O primeiro tema tem coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
um peso pastoral muito grande e merece reter No tempo de Jesus, os fariseus, e, hoje, os
nossa atenção especial. “bons cristãos” usurpam a religião para se con-
vencer a si mesmos e aos outros de sua justiça;
desprezam os outros e querem negociar com
II. Comentário dos textos Deus na base de suas “boas obras”. Porém, é a
bíblicos atitude contrária que encontra aceitação junto a
Deus: a humilde confissão de ser pecador (cf. Sl
51[50],3). Quem já se declarou justo a si mes-
1. I leitura (Eclo 35,15b-17.20-22a) mo, como o fariseu, não mais pode ser justifica-
do por Deus. O publicano, porém, que reza de
A 1ª leitura (que poderia ser estendida um coração contrito, se reconhece pecador e se con-
pouco mais, para que melhor apareça seu senti- fia à misericórdia de Deus, este é considerado
do) fala que Deus não conhece acepção de pes- justo e volta para casa “justificado”.
soas e faz justiça aos pequenos (pobres, órfãos, Lucas acrescenta uma lição moral: “Quem
viúvas, aflitos, necessitados). Deus toma partido se enaltece, será humilhado; quem se humilha,
pelos pobres e oprimidos, porque é o Deus da será enaltecido” (Lc 18,14). Mais profunda
justiça: não conhece acepção de pessoas, esco- ainda é a lição propriamente teológica, refrão
lhe o lado dos oprimidos. Em matéria de ofer- da teologia de São Paulo: quem se declara justo
tas, não é a grandeza ou riqueza do dom que a si mesmo com base em suas obras rituais –
importa, mas a atitude de quem o oferece e a como faziam os fariseus, convencidos de que a
nº- 292

disposição em ajudar os necessitados (35,1-5). observância da Lei lhes dava “direitos” perante
Isso é dito em oposição à maneira dos pode- Deus – não é declarado justo por Deus, pois

ano 54

rosos, que querem agradar a Deus por meio de Deus é “inegociável” e declara alguém justo
sacrifícios perversos (Eclo 35,14-15a[11]). Ofe- (reconciliado) com base na sua misericórdia e

recer a Deus o fruto da exploração é tentativa de amor gratuitos. A justificação é de graça, para
Vida Pastoral

suborno (35,14)! Deus não se deixa comprar quem entra na órbita do amor de Deus, pon-

61
Roteiros Homiléticos

do-lhe em mãos a vida inteira, com pecados e em dívida com tantas coisas que se dão mais
fraquezas. Diante de Deus, todos ficamos de- facilmente conta de serem devedores. Ora, pe-
vendo (cf. Sl 51[50],7). Os que se justificam a cador não é apenas aquele que transgride ex-
si mesmos, além de serem orgulhosos, são pressamente a Lei, mas todo aquele que não rea-
pouco lúcidos! Portanto, melhor é fazer como liza o bem que Deus lhe confia. Pensando nisso,
o publicano: apresentarmo-nos a Deus cons- reconheceremos mais facilmente que temos “dí-
cientes de lhe estar devendo, e pedir que nos
vidas”, como se rezava na versão antiga (e mais
perdoe e nos dê novas chances de viver diante
literal) do Pai-Nosso. Por isso, a liturgia começa
de sua face, pois sabemos que Deus não quer a
morte do pecador, mas sim que ele se converta com o ato penitencial. Antigamente, primeiro
e viva (Ez 18,23). recitava-o o padre, depois os fiéis – não se sabe
Esse pensamento deve extirpar a mania de por que a nova liturgia suprimiu esse costume...
se achar o tal e de condenar os outros: a autos- Em consonância com o evangelho, aconse-
suficiência. Mas, para afastar a autossuficiên- lha-se o prefácio IV dos domingos do tempo
cia, é preciso, antes, outra coisa: a consciência comum: Cristo nos justificou por sua morte.
de sermos pecadores. Ora, isso se torna cada
vez mais difícil na atual civilização da sem-
-vergonhice. O ambiente em que vivemos trata
3. II leitura (2Tm 4,6-8.16-18)
de esconder a culpabilidade e, inclusive, con- Neste domingo, termina a lectio continua
dena-a como desvio psicológico. Que a culpa- da Segunda Carta a Timóteo, que é o emocio-
bilidade neurótica passe do confessionário nante testamento espiritual de Paulo. No fim
para o divã do psicanalista é coisa boa, mas de seu percurso, Paulo abre seu coração: “Es-
não convém encobrir o pecado real. Tal enco-
tou para ser oferecido em sacrifício; aproxima-
brimento do pecado acontece tanto no nível
-se o momento de minha partida. Combati o
do indivíduo quanto no da sociedade: oficiali-
zação de práticas opressoras e exploradoras bom combate, guardei a fé” (4,6). O exemplo
nas próprias estruturas da sociedade, leis feitas vale mais que as palavras. Paulo não só pregou;
em função de uns poucos etc. trabalhou com suas próprias mãos. No fim de
Para sermos lúcidos quanto a isso, cabe sua vida, ele tem as mãos amarradas, e outros
observar que a autojustificação, entre nós, já escrevem por ele. Mas ele não fica amargurado.
não acontece ao modo do fariseu, que se gaba- Suas palavras revelam gratidão e esperança.
va das obras da Lei de Moisés. Agora acontece Ele ficou fiel a seu Senhor e aguarda agora o
ao modo do executivo eficiente, que tem justi- encontro com ele (4,5).
ficativa para tudo: para as trapaças financeiras, Paulo sabia-se pecador, pecador salvo pela
a necessidade da indústria e do desenvolvi- graça de Deus (1Tm 1,13; cf. Gl 1,11-16a; 1Cor
mento nacional; e para as trapaças na vida pes- 15,8-10). Na base dessa experiência, anela pelo
soal, o estresse e a necessidade de variação...
momento de se encontrar com Aquele que, por
Hoje, já não são os fariseus que se autojustifi-
mera graça, o tornou justo, o “Justo Juiz”, que o
cam, mas os novos publicanos, que dizem:
nº- 292

“Graças a Deus eu sou autêntico, eu não escon- justificará para sempre, enquanto diante do tri-
do o que faço, não sou um fariseu hipócrita bunal dos homens ninguém tomou sua defesa

ano 54

como aquele catolicão ali na frente do altar”! (2Tm 4,16). O mistério desta vida de apóstolo
Seja como for, saber-se pecador é o início da era a caridade, mistério de toda vida fecunda.

salvação. Isso vale para todos, ricos e pobres, Ela não tem fim (1Cor 13,8) e completa-se no
Vida Pastoral

mas para os pobres é mais fácil, porque estão oferecimento da própria vida (cf. Rm 1,9; 12,1).

62
III. Pistas para reflexão
A oração do pecador: será preciso ser san- A glória de Deus
to ou beato para rezar a Deus? Será que os sim- é o homem vivo
a profissão de fé de santo Irineu
ples pecadores precisam “delegar” as monjas ou
algum padre muito santo para rezar por suas Donna Singles

intenções?
O Antigo Testamento ensinava que “a prece
do humilde atravessa as nuvens” (1ª leitura). Je-
sus, no evangelho, faz desse humilde um peca-
dor. Enquanto, na frente de todos, um fariseu se
gloria de suas boas obras, um publicano – cole-
tor de taxas a serviço do imperialismo estrangei-
ro – reza, a distância, com humildade e com-
punção. Jesus conclui: este foi, por Deus, decla-
rado justo e absolvido, mas o fariseu, não.
O mais importante na avaliação geral de
nossa vida não é o número e o tamanho de 208 págs.
nossos pecados, mas nossa amizade com Deus.
Como no caso do fariseu e da pecadora (Lc
7,36-50), alguém pode ter pouco pecado e
pouquíssimo amor, e outra pessoa pode ter Os capítulos do livro simplesmente se
dispõem de acordo com os artigos do
grandes pecados e imenso amor. Quem nada
Credo, o símbolo dos apóstolos, sendo
faz não peca por infração. Só por desamor... e a fé de Irineu interrogada sobre cada um
para essa falta não existe remédio. Quem só desses artigos. Como consequência disso,
podemos encontrar uma apresentação clara
pensa em si mesmo – como o fariseu –, como e acessível.
Deus pode ser amigo dele?
É muito importante os pecadores mante-
rem o costume de conversar com Deus, na ora-
ção. E que saibam que Deus os escuta. Isso faz
parte integrante da Boa-nova de Cristo e da
Igreja. A rejeição moralista dos pecadores é an-
Imagens meramente ilustrativas.

ticristã e contradiz o espírito da Igreja, que ofe-


rece o sacramento da penitência para marcar
com sua garantia o pedido de reconciliação do
pecador penitente. O sacramento da penitência
é, jocosamente falando, um sinal de que se pode
pecar... pois senão, nem deveria existir! Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
Importa anunciar isso a quantos estão
SAC: (11) 3789-4119
nº- 292

“afastados” por diversas razões (situação ma-


trimonial irregular, vida sexual não conforme V i s i te n os s a l oj a V i rtu aL

paulus.com.br
ano 54

as normas, pertença à maçonaria, rejeição de


alguns dogmas ou posicionamentos da Igreja
etc.). Em alguns casos, essas pessoas pode-

Vida Pastoral

riam, mediante devida informação e diálogo,

63
ser plenamente reintegradas (declaração de Importa anunciar isso, sobretudo, ao
nulidade de um casamento que na realidade povo simples, marcado por séculos de des-
não existiu etc.). Em outros casos, a plena prezo e discriminação, falta de instrução,
vida sacramental continuará impossível, mas, missas ouvidas na porta do templo... Suas
mesmo assim, essas pessoas devem saber que preces “a distância”, como a do publicano, se-
Deus é maior que os sacramentos e presta ou- rão certamente atendidas! Hoje, muitos deles
vido à oração de quem entrega sua vida que- já podem avançar até perto do altar; oxalá não
brantada nas mãos dele. se tornem fariseus!

Diretrizes para autores


A Vida Pastoral recebe artigos de mestres e doutores. Os textos devem ser:

• Inéditos e não enviados a outras revistas;


• Em linguagem pastoral, acessível, sem prejuízo da profundidade do texto;
• Com tamanho de 15 a 20 mil caracteres (contando os espaços);
• Subdivididos em subtítulos, para facilitar a leitura.
• Evitar notas de rodapé em grande quantidade e tamanho; as informações julgadas
importantes devem ser postas no corpo do texto, fazendo notas explicativas apenas
quando isso não for possível;
• Usar o recurso a notas apenas em casos de notas explicativas;
• As referências bibliográficas de citações deverão ser inseridas no corpo do artigo, entre
parêntesis, seguindo o padrão: sobrenome, ano da publicação, número da página;
• A bibliografia deverá estar disposta no final do artigo. As obras, em ordem alfabética,
devem obedecer à seguinte sequência: autor (sobrenome em caixa alta, seguido pelo
nome). Título em itálico. Edição. Cidade: Editora, data da publicação. Para outros itens
não exemplificados aqui, seguir as normas da ABNT, citação dos elementos essen-
ciais (NBR 6023, facilmente localizável na internet);
• Evitar lista bibliográfica muito extensa, incluindo apenas o fundamental;
• Enviar os arquivos em documento do Word, simples, sem formatação, fonte Times
New Roman, espaçamento de 1,5, tamanho 12;
• Citações maiores que três linhas devem ser destacadas do corpo do texto, com recuo
maior e tamanho das letras 11, sem necessidade de aspas ou itálico;
• Inserir no início, em itálico, pequeno resumo de 3 a 4 linhas;
nº- 292

• Incluir no final do artigo pequeno texto de 3 linhas com informações biográficas do


autor e e-mail para contato;

ano 54

• Traduzir todas as citações em língua estrangeira;


• Enviar anexo ao e-mail do editor (vidapastoral@paulus.com.br).

Vida Pastoral

64
de Jerusalém
FORMATO A Bíblia
agora em GRANDE

O novo formato da Bíblia de Jerusalém realça


a dignidade da Sagrada Escritura. Trata-se da
edição mais respeitada nas comunidades e
no meio acadêmico, pois se baseia em dados
recentes da pesquisa bíblica. Além das notas
explicativas no rodapé, a Bíblia de Jerusalém
possui referências nas margens que explicitam
a relação entre diversas passagens da Bíblia.

Páginas: 2208
Dimensões (cm): 18.5 (larg) x 27 (alt)

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(11) 0800-164011 (outras localidades)
SAC: (11) 3789.4119

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