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1. ANDORRA NO TEATRO OFICINA* Andorra, de Max Frisch, demonstragio do mecanismo psicol exemplificado ter sido exemplificado pelo preconceito contra os ho- ‘mens de cor ow os homens de pés chatos). A personagem principal da peca, Andri, ndo 6, de fato, judeu; mas os ci- dadéos de Andorra julgam-no judeu (¢ ele a si mesmo também). Filho natural de relages mantidas, na lentamente perseguidos, 6 apresentado pelo g: ‘mo filho adotivo, judeuzinho a quem teria salvo da mor- jarem judeu basta para adas, freqitentemente * Aigo publicado no jomal Crénica Inaeita, em 31 de outubro ae 1964 37 (das aos judeus, sc tornem de fato tragos do rapaz. A vitima se molda segundo a imagem que a maioria for- E essa imagem nio ¢ muito lisonjeira porque a maioria projeta nela todas as qualidades de que se en- vergonha, Um dos cidadios diz: “Os andorranos sio boa ‘mas quando sc trata de dinheiro sio como os ju- , 08 andorranos se livram da pecha da sovi- uindo-a por projegdo a0 “outro” (ao estranho).. Se sao generosos, 0 sto como andorranos, mas ganancio- do “como judeus”, Nao admira que Andri comece a 'alvez 0s outros tenham razao. Um olhar basta, ante 6 como dizem”. Todos os males da socieda- de vém sendo encarnados no bode expiat6rio (judeus, ‘negros etc.) a fim de que a sociedade, sentindo-se dessa forma libertada, possa viver em paz com sua consciéncia, Toda a pega ~ no seu didatismo e nos seus recursos influenciados por Brecht ~ uma prelegio sobre 0 me- canismo universal do preconceito e, principalmente, so- bre as funestas conseqiiéncias do preconceito. Todavia, esse assunto no ¢ demasiado insistente; a ligéo é realga- da, mas a0 mesmo tempo absorvida e neutralizada por uma agdo tensa ¢ trégica, de forte carga emocional, a que nio faltam elementos melodraméticos. ‘Um dos esterestipos mais caracteristicos acerca do do pais vizinho. No fundo, porém, é a pi de todos que € descarregada sobre 0s ombros do bode expi Percebemos logo que Andorra esté em ra so 0s “inocentes” que “colaboram”” por inércia, conformismo, covardia e egofsmo; que no i tudo vai bem para nés mes- mos”. Talvez a personagem mais trdgica ~ sendo a Gnica trdgica ~ soja a do mestre-escola, pai de Andri. Ele, que com grande brio combate 0 preconceito mobilizado con- 138 tra Andri, de fato provocou o terrivel destino do rapaz a0 capitular em face de outros preconceitos (os de uma so- ciedade hipécrita que condena o pai ilegal). Por isso traiu o filho e a lade, inventando o menino judeu. ‘medo de Andorra, porque eu era do 0 judeu, ele 0 inventou para Andorra que precisa do bode expiatério, ¢ que, se no ti- vesse 0 seu judeu, teria de inventé-lo de qualquer modo, é-se que a pega de Frisch, longe de ser apenas a anilise do efeito que o preconccito exerce sobre a vitima, € 20 mesmo tempo, ¢ antes de tudo, a andlise dos porta. dores do preconceito (entre estes encontram-se natural- ibém os préprios judeus); andlise da sua inér- cia e covardia morais que so causa de conseqiéncia do ificacdo, 0 auto- resultado € 0 oportunis- mo, conformismo, colaboracionismo e 0 “realismo” si- nistro daqueles que nada véem sendo a realidade do pré- prio quintal © W. C; a0 fim, a capitulaggo sem resistén- cia ante 0 invasor. Este, de fato, jéinvadira Andorra, an- wvés da quinta-coluna do preconceito afével e tra- dicional. Andorra, no fundo, nada tem a opor ao vizinho agressivo; estivera, no fundo, sempre de acordo com ele, or mais que parecesse opor-se ao preconceito violento do vizinko. Frisch néo tem muita fé na espécie humana. Isso torna a pega um tanto contradit6ria. Para que escrever essa pega forte e cheia de indignagao se o homem nada aprende ¢ logo esquece? Para lembrar-Ihe o que procura esquecer? Para que os espectadores ~ disse Frisch - “se “permanegam de noite acordados”. Talvez seja por isso que inseriu, entre a seqincia da acio, bre- ves conas (destacadas por um foco de luz, corn falas dir gidas a0 poblico) em que os cidadios culpados de An- dorra, diante da barra de um tribunal invistvel, lavam 139 frencticamente as méos ¢ justificam suas agées ¢ atitu- des. Seré que 0 pablico se reconheceré neles? “Os cule pados”, declarou Frisch, “encontram-sc na platéia (...] sto eles que se tornaram culpados, mas que no se tem culpados.” Nos? Nos todos? Ab! Nos néo temos na- da com isso! N6s néo temos preconecitos, gracas a Deus. Lavemos as nossas méos também! © ponto ambiguo da pega ¢ a pouca f6 que Frisch tem no homem. Apresentando 0 preconceito como um ‘mecanismo inerente a “natureza humana”, mecanismo i as condigdes hist6ricas sociais concretas que o determinam e que talvez.possam ser modificadas, ele apenas condena o Preconceito ¢ os portadores dele; mas no nos dé uma ide (por mais remota que seja) de su- ate, em termos sociais, A superacso, lo em termos to vigorosos e contundentes nao deixa de ser um grande mérito. © espetéculo do Teatro Oficina alcangou aquele agrau de perfcicao que, por assim dizer, apaga os vestigios do imenso trabalho dedicado a essa peca, de encenagio cxtremamente dificil, O ritmo répido da representagio rrompido por cenas de certo rallentis- te alongadas, quer para langar uma luz irénica no mundo escuro de Andorra, quer para satisfazer 0s olhos com uma bela composicdo (como a andlise cuidadosa do pensamento de Frisch. $6 assim se entende que esta peca nada facil se transmite de ime- diato ao péblico, com toda a energia da sua légica e do seu impacto emocional. Contribuigéo valiosa para o fun- E de nivel excelente 0 desempenho dos tores, desde Renato Borghi (Andri) ¢ Miriam Mebler (Barblin), em papéis decisivos, de plexidade, até Oswaldo de Abreu (soldad (hospedeiro), Fuad idiota) ~ numa ponta = £ Wolfram A. Guenther, na pantomina ex um pouco :) Eugénio Kusnet (médico) destacam-se por caracterizagdes parti- cularmente flizes. Um caso & parte € o mestre-eseola de Fauci Arap. O desempenho € magistral na mas ¢ dificil concordar com essa lina. 0 Fauzi Arap, tornow-se um: uma triste figura. Mas dev trdgica — 0 que 6 uma encadeamento inexorével, conseqiiéncias terriveis que i 10 ¢ acabam expondo toda a sociedade a ‘uma provagio que revela o vazio moral de Andorra. Um vicio dos paleos. Longe de ser uma negagio do estético, a pega acaba sen- do uma negagio estética, isto é, a negagio, em termos estéticos, do que envilece a imagem huma dramética de um autor que ama o homem. dendncia 3. O TEATRO BRASILEIRO ATUAL* Duas “descobertas” foram em 1967 os acont tos mais marcantes da vida teatral brasileira primeira, um jovem dramaturgo de grande talento obte- ye repentina fama nacional (¢ agora jé internacional), depois de um esforgo de anos, longamente frustrado, pa +a conquistar o paleo. Duas pegas de um ato, Dois Perdi- dos numa Noite Suja ¢ Navatha na Came, Tota encarnigada com a censura, tr Marcos da noite para o dia em asstinto obrigatério. Os teatros do Rio de Janeiro ¢ de So Paulo, ¢ logo também de outros Estados, disputavam suas pecas. Durante me- ses se apresentavam ao mesmo tempo trés ou quatro pe- «as do antigo operério e palhago de circo (as menciona- * Amigo publicado na revista Comentrio ano x ~ wo. 10, ° 4 (40), 4° ein 1969, 19 das se actescontaram Homens de Papel e Quando as ‘Méquinas Param). Suas pegas de maior éxito sdo por ora aquelas que focalizam principalmente 0 submundo do Lumpenprole- tariat metropolitano - prostitutas, proxenetas, coletores de papel, desempregados crdnicos ete. Trata-sc, no caso, de obras cujo naturalismo, como estilo, 6 em si superado, Entretanto, o verismo radical, o dom{nio magistral do jargio dos “deserdados”, a agudez. © preciso da obser- vagdo e a forca elementar com que na sua cena se es- praia a vida tormentosa ¢ selvagem dos humilhados tor- ‘nam sua obra revelagéo num pals cujo teatro nunca pas- sou por uma fasc naturalista digna de ser levada a sério. £ verdade, todavia, que o estilo naturalista, na medida em que so observados seus limites ¢ limitagées, no permite ao autor ultrapassar 0 horizonte fechado de per- sonagens quase sempre primitivas. Sé6 elas podem mani- festar-se e essa manifestacao pode articular somente de forma obscura seu mundo opaco. Desse modo, 0 autor naturalsta se veda a possibilidade de uma interpretago ‘mais profunda da realidade e de um jogo mais livre da imaginago, Mas 0 talento de Plinio Marcos é suficien- temente rico para, ainda assim, sugerir as iniglidades da sociedade mais ampla ao apresentar os males e as misé- ras de suas existéncias marginais, Menor éxito de piblico obteve por ora com duas pe- {628 que enveredam por rumos diversos, indubitavelmente promissores. Dia Vird € uma pega interessante, de teor €pico, em que Plinio aborda a relagao entre Jesus ¢ Ju- das de uma forma ousada, completamente fora dos mol- des tradicionais (0 herbi verdadeiro, na pega, € Judas). Por sua vez, Jomada de um Imbecil aié o Entendimento, obra inteligente, de vivo jogo efnico, focaliza problemas atuais em termos que se afastam totalmente do estilo na- turalista, Essas pecas confirmam o grande talento de Plt. nio Marcos, demonstrando sua versatilidade © suas po- 150 tencialidades extraordindrias, de modo algum confinadas de dramaturgia, De ordem bem diversa 6 a segunda “descoberta” ue é, propriamente, uma redescoberta. Refere-se ela a obra dramética, até entio pouco conhecida, de Oswald de Andrade (1890-1954), a0 lado de Mério de Andrade 0 principal lider do mos de 1922. Sua obra dramética vem suscitando amplo interesse em vir- tude da revalorizagéo de sua obra geral pelo grupo pau- ‘ano Noigandres, eujos representantes, 0s poctas ¢ crt s do movimento concretista Décio Pignatari e Augus- to © Haroldo de Campos, gozam de elevado prestigio nos ternacional. As pecas de Oswald (0 do movimento modernista ¢ 0 Em O Rei da Vela, 0 Homem e 0 Cavalo ¢ A Monta ~ uma quarta peca é inédita -, Oswald assimilou ¢ re- formulou de modo criativo os experimentos do teatro smo até o surrealismo, ¢ de Pi- randello a Maia u empreendeu, de modo inde- endente, ensaios andlogos, Escritas na década de 1930, oucos anos apis os primeiros esbogos tebricos de Brecht (que sem divida eram desconhecidos a Oswald), as pe- as surpreendem por técenicas aparentadas com o “feito de distanciamento”. E nftida a aspiracio de obter novas al: $6 quem co- nhece 0 convencionalismo do teatro brasileiro daquele tempo pode avaliar 0 avango audacioso dessas obras, Entretanto, esse acontecimento, em si puramente li- terério, revestiu-se de importancia ainda maior gracas & encenagdo de uma das pecas mencionadas (até entio ne- nhuma fora apresentada) por José Celso Martinez rréa. A escolha recaiu sobre O Rei da Vela, peca cujo logo gil c preciso desde logo rompe com certa tra- ica do teatro brasileiro. Trata-se de uma sétira crassa & burguesia ¢ & aristocracia rural paulista, cfrculos ‘a que de resto pertencia 0 proprio autor. Ambas as clas- ses entram em relagdes duvidosas através de represen tantes tfpicos (ou como tais imaginados), 0 ususrio e in- dustrial Abelardo I (rei da indistria de velas) c a feudal Helofsa de Lesbos, membro da aristocracia do café, pau- lista de quatrocentos anos. Essas relagdes deverdo ser coroadas por um contrato, o do matriménio, quer para sanar a situagdo econdmica abalada de uma, quer para clevar o status social do outro. Os nomes dos dignos par- ceiros desde logo sugerem o carster satirico da obra. Abclard ¢ Heloise, herdis de um dos grandes dramas de amor da hist6ria universal, encontram-se aqui rebaixados a s6cios comerciais. Nisso sobretudo e em variadas per- vvers6es sexuais destas e de outras personagens (0 nome Lesbos revela a intencio) reflete-se a coisificagdo cor- rupgio das relagdes humanas de um modo que lembra por vezes a arte do dramaturgo expressi heim. Num estilo extremamente grotese: ‘gens desmascaram com drasticidade explo de dignidade, Como Alfred Jarry nas suas pecas em tor- ‘no do Rei Ubu, o autor despreza todas as delongas dos os processos do realismo psicol6gico. Nao se impor- tando com as exigéncias sagradas da verossimilbanga, funcionando como comentador invistvel, mas onipresen € onisciente, Oswald de Andrade transforma as per ‘gens em mensageiros indecentes das suas (autor) opi niges pouco alentadoras sobre elas, atribuindo-lhes um cinismo que indubitavelmente poderia ser delas, a0 ‘mesmo tempo, porém, uma inteligéncia que certamente s6 pode ser do autor. ‘Como rei da vela Abelardo & parasita das massas que sem dévida podem viver sem velas, mas sem elas no + (0 simbolo, reforcado pela encenacéo, su- ‘agdo). Mas 0 rei € por sua vez explorado € emasculado por Mister Jones. E possivel que o autor aluda, no caso, ao triste destino do Abelardo histérico. Trago eurioso, aliés também da obra de Brecht e da van- 152 guarda atual, é a duplificagio do “herdi", no caso di (Abelardo 1) e “sucessor” (Abelardo Il). A relacio entre “senhor” ¢ “servo”, que lembra um pouco a andlise de Hegel, reencontramos sobretudo também em Beckett. O Servo aqui se toma ao fim earrasco de quem fora antes circular como boa parte da dramaturgia atu: troca 0 s6cio, mas no 0 dono, Mister Jones. Na sua encenagio audaz (apresentada também na Franga), José Celso acentua a montagem de estilos hete- rogéne0s, als, sugerida pelo texto. O primeiro ato lem- bra o mundo circense de Wed irmaos Marx. No segundo provocar indigestdes nao apenas estomacais. O terceiro, enfim, parodia a grande Opera ¢ a reduz a menos de Trés Vinténs. No anul i de recursos te trigées impostas pela tradicional “imitagio da realidade”, ‘a encenagdo foi das mais avangadas ¢ a0 mesmo tempo violentas j& ousadas nos palcos brasileiros. José Celso ‘exagerou conscientemente os aspectos obscenos da pega ¢ manipulou, nfo sem bom gosto, o kitsch € 0 mau gosto. itromper no mundo empirico da platéia, por © mediante um balango que atira, de modo angustiante, uma das personagens adentro. O feito lembra os tiros com que Meyerhold atacou seu piblico, José Celso sem dvida conseguia impedir 0 “agrado desinteressado” da estética cléssica. A encenagdo visava a el que, tornando-se freqiientemente de pro} gradavel” ¢ “venenosa” ¢ embora talvez no produzisse, segundo as teses de Antonin Artaud (¢ Nelson Rodri- gues), nem tifo, nem a ou peste, no deixava de esforgar-se honestamente, conforme a palavra do diretor, 153 de distribuir bofetadas entre 0 pblico ¢ fazé-lo “engolir sapos” ¢ até “Jibéias”. Tendéncias semelhantes de “tra- tamento de choque” sdo hoje corriqueiras em boa parte do mundo. Envolver o piblico e fazé-lo participar num plano que ultrapassa o da mera identificagio imaginativa 6 j6 hd varios lustros uma das metas do Living Theatre e de um diretor como Jerzy Grotowski e do seu Teatro- Laboratério. 3.1. Critica Social e de Costumes A importincia dessa redescoberta pode ser avaliada pelo fato de ela exigir uma revisio da historia teatral brasileira. Até entdo era costume considerar Nelson Ro- drigues (1912) como pioneiro do teatro brasileiro mo- demo. Sua pega Vestido de Noiva de fato inaugurou uma nova fase cénica, na década de 1940, aliés também gracas a encenacio expressionista do diretor Ziembinski, So- mente agora se torna claro que Oswald de Andrade se antecipou como dramaturgo a Nelson Rodri a ndo exercesse nenhuma influéncia por ter-se antecipa- do demais em relagio as possibilidades teatrais do teatro brasileiro da década de 1930. Somente no sentido do eco imediato pode-se manter atualmente a tese de que a es- tréia de Vestido de Noiva em 1943 teria sido o aconteci- mento decisivo do teatro brasileiro contemporiineo, em ‘consequéncia do impulso desencadeador ¢ libertador que dela se irradiou (¢ verdade que a encenagéo de Zicm- binski como tal, independentemente da peca, enquanto obra literéria, continua sendo um marco decisivo). A pega de Nelson segue a linha de um expressionis- ‘mo que torna 0 paleo “espaco interno” de uma conscién- cia a fim de sondar-Ihe os planos mais profundos. O dif- logo racional, convencdo bisica do teatro tradicional, 6 por defini¢éo inadequado para representar o inconscien- te, Tomou-se impositive 0 uso de novos recursos para 154 dar vida cénica aos planos menos articulados da mente. Inspirados por Strindberg, os expressionistas projetaram no paleo imagens ontricas, visdes ou alucinagées, desti- nadas a revelarem realidades mais profundas, enquanto ‘a0 mesmo tempo sc iam decompondo as unidades cléssi- cas de espaco, tempo e ago — formas ¢ categorias, me- diante as quais a consciéncia racional procura organizar a realidade (ou os fendmenos considerados reais). Ne!- son Rodrigues radi aplicando técnicas cinematogrificas © 0 pi neo. Indubitavelmente ampliou as recursos eénicos do seu mestre Eugene O'Neill ¢ precedeu Arthur Miller (Mone de wm Caiteiro-Viajante) no uso de certos proces- 08 e&nicos. Entretanto, deve ser acentuado que 0 expressionis- mo de Nelson representa apenas uma solugdo técnica motivada por cogitagdes realistas. No caso da pega em © estilo expressionista decorre da agonia da prota- Buscando inconscientemente a morte, cla é atropelada e sua vida psiquica profunda € em seguida re- velada durante a narcose pela projeci athos, desejos ¢ angistias. Semelhante no filme O Gabinete do Dr. Cali visdes sio, no fim, racionalmente as de um louco. Nao se trata, portanto, de um expressio- nismo “estrutural”, que tende a ontologizar 0 mundo Projetado, por mais subjetivo que pareca ser, mas do cemprego de novos recursos c&nicos a fim de, pela intros- peecdo, aprofundar a tradicional peca de costumes de feitio realista. Mesmo a tendéncia violentamente erética das obras de Nelson Rodrigues, tendéncia de fundo por vezes mistico, assim como a descida para o mundo infero dos arquétipos miticos, néo negam, de modo algum, essa vvocagio para a peca de costumes. Isso, aliés, corresponde 10 de Nelson, baseado em iiltima andlise em concepgées judaico-cristas. Como muito bem viu Sébato 155, Bi ct 2 eee ee Tea mal, na obra de Nelson, provém no fundo la paradisfaca, Sua andlise da realidade ta-se quase sempre a investigacio critica de itudes morais, a sintomas, portanto, Semethante visio ‘mantém-se mesmo na pega em que mais avanca no ca- minho da critica social, Bonitinha, mas Ordindria, not vel, como a maioria de suas obras, pelo magnifico didlo- g0 € pela grande fantasia cénica. O ricago da pega, com lho “Eu pago”, 6 uma personagem muito bem claborada. Mas a corrupgio da familia burguesa, suas re- lagdes rebaixadas a neg6cio, nio so ponto de partida de uma interpretagdo mais profunda da realidade social € das causas dessa decomposigéo, como teria correspon: dido as exigéncias da consciéncia atu: son nem sequer atinge a agudez da mos em Le Faiseur, peca escrita hé mais de cem anos por Balzac. A critica social, mais ou menos manifesta, mais ou i Sigueira e na cenografia de Armando Ferrara, obteve resultados noté- veis, com repercussio internacional, quando da mise-en- seéne do auto de natal Morte ¢ Vida Severina, pocma dramatico de Jodo Cabral de Melo Neto (primeiro pré- tio no Festival de Nancy, 1966). Severino, nome do pro- tagonista, designa, no uso adjetivo, o “severo destin an6nimo e coletivo, a vida e a morte dolorosas das pop lagdes nordestinas. Como auto de natal, a pega tem, evi- dentemente, um desfecho otimista, fortemente contido pela linguagem seca, dura e por vezes amargamente irdnica do grande poeta. A miisica de Francisco Buarque de Holanda a encenagio deveu efei- tos magistras. Em seguida, o grupo obteve éxito signifi- cativo com a pantomima musical O & A, produto cara- 156 teristico de um teatro “desenfrea cipalmente nesse sentido, mas também no de um protes- to contra as geragdes mais velhas, esse “mimodrama” de Roberto Freire (com mtisica de Chico Buarque), em que © coro dos velhos se exprime exclusivamente pela vogal “0”, ao passo que ao canto da juventude 6 reservada a vogal aberta “A”, pertence integralmente ao teatro con- tempordnco. © protesto mormente da juventude estu- dantil contra as geragées mais velhas 6 fendmeno carac- se, enfim, de um fendmeno universal e jf no tio recente assim, &s vezes agucado em paises em desenvolvimento. Bem antes de ter assumido a diregio artstica do TUCA, Roberto Freire se projetou como dramaturgo (c, ‘mais recentemente, como narrador). Em pegas como Gente como a Gente © Quarto de Empregada, mostra 0 que obteve da, Nenhuma is obras ~ comédias, farsas, autos de tradigéo medieval ~ "te semelhante (0 fato € que os textos si mencionada, cuja versio cinematogréfica foi bem recebi- da, apbiav igo cat6lico-didatica dos fins da Tda- , se dos famosos autos de Gil Vi- cente. E a essa tradigdo principalmente, nio tanto a in- fluéncia de Claudel e ainda menos de Brecht, que a pega cortamente deve seu caréter épico ¢ o jogo dirigido 20 iblico, jogo acentuado pela intervengéo de um comen- tador c pelos aspectos fortemente circenses e populares. Uma grande cena, que representa o tribunal celeste ¢ na qual a Virgem Maria se compadece dos pecadores, re- 157 toma uma velha tradigio do teatro cri tica na pega, com humor saboroso, pecados do clero, partindo de uma posigdo decididamen- te religiosa. Tanto em A Compadecida como em 0 pecas conseguiu fundir, de um modo extremamen 6 legado eat6lico, os intutos de eritica social e folelore nordestino. 3.2. 0 Misticismo e Fanatismo Religioso A.esse mundo nordestino flagelado pelas secas e pe~ lo subdesenvolvimento € também dedicada parte das pe- ‘gas de Dias Gomes, principalmente O Pagador de Pro- messas, do qual € extrafdo 0 argumento do excelente fil- me de Anselmo Duarte, que conquistou em Cannes a Palma de Ouro. O misticismo popular é também o tema de outra pega do mesmo autor, A Revolucao dos Beatos. Na primeira, Dias Gomes conse cujo pensamento e agio sio ainda de- terminados por imagens e padres miticos, debalde pro- cura compreender e ser compreendido pela cidade, cuja vida € dirigida por conceitos abstratos e impessoais. O conflito trégico decorre do fato de nao lhe ser dada a permissio de cumprir sua promessa, depositando na es- pléndida igreja da capital uma enorme cruz que earregou nos ombros, através do sertio, para consagré-la & Sa quem deve a salvacdo do seu burro. Nesse conflito nao sé sucumbe 0 her6i, mas seu proprio conceito se decompée. ‘no sentido auténtico, somente como perso- Ses rare yey eerie are inadaptada. Na segunda pega, uma farsa popular, é tratado, den- tro de uma esfera semelhante, o tema da “conscienti- zagio”, da desmi encontramos a “personagem” hist6rica do Boi Santo gue no inicio deste século galvanizou as esperancas cas de fandticos religiosos do Nordeste. O “hert rnuo dessa farsa liberta-se ao fim da superstigio dos bea- tos que idolatravam o famoso animal. O fanatismo religioso, ao qual se devem carn horripilantes, € tema importante da litera Assim também Jorge Andrade (1922-1984) de de suas obras - Veredas de Salvacao - 20 motivo do nismo, apoiado num fato real acontecido ei ‘Apesar de a ideol6gica, mantendo-s ta uma acusagio irrupgo nos eventos dramatizados fim sangrentamente sufocada pela intervengio da polica Somente nesse drama Jorge Andrade focaliza a vida da populacio rural a partir da perspectiva dos dominados. Em geral o foco da sua obra, que cada ver mais se revela como uma das mais importantes do teatro brasileiro, € a aristocracia rural paulista a que 0 autor pertence pela sua ascendéncia. © grande ciclo de suas pecas, de Pedreira das Almas 159 € 0 Telescdpio 4 A Moratéria © Rasto Atrés, constitu: como um todo uma epopéia poderosa da ascensio e decadéncia ¢ dissolugio de toda uma camada social des- de a crise de 1929, epopéia narrada com a participagao {intima de quem pessoalmente viveu a decomposigio de sua classe. Em pegas mais recentes, ainda nio publicadas ou encenadas, 0 autor retrocedcu até a origem do uni- verso bandeirante (4s Confrarias, O Sumidouro), anali- sando, a base do uma visio critica de honestidade As ve~ 2zes cruel, mas, ainda assim de simpatia humana, as grandezas ¢ misérias da historia paulista. Os mitos so dissecados, sem que seus portadores percam a releviincia ‘humana, num processo de au idade ps cidade na observacio dos fendmenos s0% nessa dramaturgia que, renovando-se sempre e manten- do-se aberta A pesquisa, recusa 0 excesso permanece ficl a um alto padrio de nobreza literéria. A obra de Jor- ge Andrade foi escrita para durar. 3.3. Mitsica e Show « barroca. Traa-se dete >mente pelo teor de grande ‘speticul, mas também pelo fato de of grupos se subordinate, de lw modo livre, a um “enredo”, uma “hist ria”, uma “acdo ov iia 160 atitudes mudaram. A partir dos inicios da década de 1960 ‘8 songs se radicalizaram freqUentemente para se torna- rem cantos de protesto, que, ultrapassando a critica pu- ramente moralista das revistas mais antigas, se mostram influenciados, em grau mais alto, por idéias politicas. Es- se teatro musical politizante foi freqientemente ironiza- do como expresso da chamada “esquerda festiva”. Sem ‘comparar os respectivos méritos artisticas, pode-se dizer que a critica festivamente musical tem um grande prede- cessor que pertencia A “dircita festiva’ trata-se do maior comediégrafo de todos os tempos ~ Arist6fanes. Tornou-se particularmente conhecido 0 Show Opi- nido, que difundiu as composigSes do nordestino Joéo do Vale © cujo éxito se deve em parte a intérpretes famosos da mésica popular como Zé Keti ¢ Nara Leo, Dentro desse movimento obteve ampla repercussio o show Li- berdade, Liberdade, de Millér Fernandes. Muito ativo nesse campo ¢ também Oduvaldo Vianna Filho, rebento spiritual do Teatro de Arena, Amplos comentirios provocou em 1968 a revista musical Roda-Viva, de Chico Buarque de Holanda, O compositor e poeta ataca nessa obra, de forma veemente, os mecanismos ¢ manipulagées da inddstria cultural, so- bretudo seu método de fabricar a consumir astros ¢ ido- los miticos, adorados pelas massas. O autor aborda esse tema, freqientemente apresentado em filmes, de modo original e & base da propria experigncia. A encenagio de José Celso foi a mais agressiva ¢ violenta que 0 piblico brasileiro chegou a suportar. Certo parentesco com esses shows musicais se nota no “teatro antolégico”. Bxito particular nos moldes desse géncro teve O Homem do Principio ao Fim, de Millor Fermandes, montagem inteligente de cenas ¢ textos da li- teratura universal que apresentam 0 ser bumano em central refletda nas fantasias magnificas, nos cantos, dang ¢ figuras legorcas dos carve ricamente omados. s situagdes “existenciais”. As cenas nio sio liga- das por uma ago una, mas apenas pelo ie aventura da existéncia humana, por uma Portanto, que € exposta a dialética de situagées- contrastes emocionais extremos. Nessa colagem, impreg- nada de anedotas © piadas politicas atuais, chamam a atengio certos tragos do cabaret literério europeu que até agora nio encontrou representantes no Brasil, Nesse género teatral “aberto” & digna de nota a falta de uma ago dramtica, Por isso mesmo ele exige atores excelen- {es como, no caso, Fernanda Montenegro ¢ Fernando Torres. Ao menos no momento a fabula logicamente es- ada, com sua seqiléncia causal de cenas, nio parece facilitar a apreenséo de uma realidade que se afigura demasiado multivoca ¢ fragmentéria para se integrar uma a¢do em si conclusa. 34. Paixdo e Distanciamento Grande papel no movimento teatral ligado a misica Popular desempenha o jd mencionado Teatro de Arena de Sio Paulo, dirigido por Augusto Boal (1928; diretor e autor) ¢, até hé alguns anos, também por Gianfrancesco Guarnieri (1936; ator ¢ autor). Trata-se, sem divida, do teatro brasileiro que se costuma engajar com maior con- seqiténcia e continuidade numa clara linha de compro misso politico-social, visando “humanizar 0 homem” no todo de uma sociedade que “procura libertar-se nagio, quer de forma progressiva, quer aos saltos” (Boal, introdugao & pega Arena Conta Tiradentes). Boal, a quem © Arena deve sua teoria ou po volvimento, aspira a um teatro municacéo deverd realizar-se tanto no plano critico-ra- cional como intensamente emocional, tanto com os re~ cursos do distanciamento - mediante comentadores, 162 narradores e desempenho com diregdo ao piiblico ~ co- ‘mo também com os da empatia, mediante uma perso Ses € Os even- tos. Essa participagdo emocional, ao lado da distincia ¢ necesséria, segundo Boal, a fim de que do espectad ¢ traduza em impulsos ativos. Pela mesma razdo considera indispensével a re- ctiagéo do grande her6i, numa época em que o teatro a produzir sobretudo personagens negativas. A mi- do her6i nio Ihe parece incluir necessariamente fcacéo (Boal parece imaginar algo como um “mi- to correto”). O problema do her6i jé foi sugerido quando da abordagem de O Pagador de Promessas, de Dias Go- ‘mes; ao desmascaramento satirico do heréi, o mesmo au- tor dedicou depois uma peca especial, O Berco do Herbi. A problematizagio da personagem herdica ¢ a procura critica de um novo tipo de her6i, visivel também no ci- i a-se, a0 que tudo i com preocupagées atuais, tanto de ordem artistica como politico ds forte em muitos circulos teatrais brasileiros, convenceram-se 0s chefes do Arena da “amplitude e va riedade” do realismo (segundo um ensaio de Brecht, as- do). Sempre orientados pelo seu eng: (0, comecaram a devotar-se & experimentagio de varia- das formas novas de ordem dramstica e cénica, ocasio fem que a misica passou a exercer uma fungio cada vez mais acentuada, Um dos mais destacados autores brasileiros, Guar- nieri ~ que é também ator magistral ~ manifestou-se de como representante do realismo tradicional. Seu {alento se revelou com Eles Nao Usam Black-Tie (1958), 163 confirmando-se alguns anos depois com a.A Semente. Na primeira pega sao focalizados os conflitos de um jovem Proletério que vacila entre a solidariedade de classe © 0 anseio de ascensio social; na segunda, uma das melhores esas politicas brasileiras, sio analisadas as colisies ideolgicas dentro da esquerda. Eles Nao Usam Black- Tie desenrola-se no ambiente d rioca, ambiente em que Guarn topologia sociopoética talver seja interessante anotar que © baixo submundo carioca freqiientemente se situa na elevacdo dos morros ¢ que a descida a cidade, embora muitas vezes almejada como ascensio social, de outro lado também pode ser interpretada, em conexio mais oética, como “queda”, abandono das alturas nobres da pobreza solidéria e pura ¢ dos turumbambas mésculos e forozes, descida e d vardes exploradores ara o mundo maligno de co- Quanto a Boal, tende como autor mais para a farsa Popular. Sio dignas de mengio pecas como Revolucdo na América do Sul (1960), sétira as famosas revolugées latino-americanas, e José do Parto @ Sepultura, historia farsesca de um homem miido que socobra porque pre- tende viver, rigorosamente virtuoso, segundo os valores oficialmente consagrados - uma idéia bem brechtiana. Mais recentemente escreveu Tio Patinhas ¢ Arena Conta Bolivar, pegas que encenaré no exterior. Enquanto ainda parceiros, Boal e Guarnieri avanga- ram para o campo do teatro épico, com as pecas Arena Conta Zumbi (1965), obra que obteve grande éxito também nos Estados Unidos, na encenagio de Boal, © Arena Conta Tiradentes (1967). Em ambas as pecas, 0§ songs exercem funcéo importante, ¢ na tiltima Boal de- Wveu plenamente (e a0 mesmo tempo aplicou) as da sua poética do “curinga” 6 indicam que o Arena recorre aos métodos do teatro épi- 164 co, na medida em que narra como coletivo a histéria de heréis nacionais. O efeito épico (narrativo) ¢ intensifica- do pelo fato de um mimero pequeno de atores represen- todas as personagens; cada ator assume todos 0s papéis, néo se identificando com nenhum, com excegao do ator protaghnico que, em Tiradentes, desempenha ex- clusivamente 0 papel do herbi. A este se opée o Curinga, narrador e comentador ertico que assume, além disso, como os outros atores, diversos paps. Esse processo se destina a impedir - excetuando-se 0 her6i ~ a identifi- cagio do piblico com as personagens, acentuando a ati- ra ou épica: 0 coletivo do Arena “relata”, lustra” as personagens, nenhum dos atores, com excegao do ator protagénico, se transforma nelas, s Giltimos experimentos do Teatro de Arena par- tem sem davida das teorias de Brecht. Entretanto, con- duzem a solugdes aut6ctonas ¢ originais e a novas con- cepgées teatrais, atualmente desenvolvidas exclusivamen- te por Augusto Boal, j& que Guarnieri se afastou do Arena, tude narrs 3.5. A Safra dos Novissimos (© ano de 1969 provavelmente seré destacado, no fu- turo, como notabilissimo na hist6ria do teatro br: ‘gragas ao “estouro” de um nimero surpreendente de no- vos talentos, entre eles trés jovens dramaturgas ~ Leilah Assungdo, com a peca Fala Baixo Sendo Eu Grito, Isabel Camara, com As Mogas, ¢ Consuelo de Castro, com A Flor da Pele, esta titima, ali, jé antes notada pela peca A Prova de Fogo, pela censura, mas superior a apresentada. As trés autoras acrescenta-se o jovem José Vicente, com O Assaito, evja primeira pega Santidade, igualmente proibida pela censura, jé revelou seu talento excepcional. O Cao Siamés, de Antonio Bivar, enrique- ceu a excelente temporada paulistana de 1969. Esse au- 165 tor jé se tornara conhecido por duas pegas, Cordélia Bra- sil, eujo éxito em parte se deve ao magnifico desempenho de Norma Bengell,atriz de forca extraordindria, e Abre a Janela, obra em que se acentua, como traco caract: co de Bivar, a ruptura com o realismo mais estreito em busca de dimensdes imaginérias que invadem 0 Alls, nenhum dos autores mencionados se atém ao rea- 0 tradicional As cinco pegas mencionadas se assemelham pela es- trutura: duas personagens apenas, das quais uma, margi- nal ¢ outcast, andrquica, livre ou neurética ¢ inconforma- da, agride a outra, mais “quadrada”, de tendéncia mais conformista, assentada ¢ estabelecida, de mentalidade “burguesa”, embora nio pertenga necessar drdstica, eivada de palavrdes — linguagem sem divida fluenciada por Plinio Marcos -, avangam para uma ex- idade que, em muitos momentos, se abcira do ex- pressionismo confissional, do surrealismo e do absurdo. Nio 4, por ora, nenhum trabalho sério sobre o proble- ma do palavrio no teatro. Seu uso, além de ser pressu- posto para caracterizar realisticamente ambientes © comportamentos, visa romper a esfera puramente estéti- co-contemplativa pela agressio e pelo choque do obsce- no, além de certamente exercer fungées de descarga, de revelagio e de formula magica. O que talvez mais te parece ser o intuito de romper com todo um padréo de torncios eufemisticos e toda uma mascarada retérica tradicional, odiados pelas novas geragées por se afigura- rem representativos do conluio com uma cul dade consideradas falsas podres. Assim, 0 julgado uma espécie de contraveneno, de efeito catdrtico © putificador. Como ao jovem Brecht parcciam puros os criminosos, por no pactuarem com uma sociedade jul- ¢gada criminosa, assim o palavrio se afigura puro por néo 166 ppactuar com a semantica corrupta da linguagem corri- ucira c, principalmente, politica, autores mencionados parecem ter sofrido certa influéncia de Zoo Story, de Edward Albee: 0 encon- de duas solidées, uma consciente (a do marginal), ov- tra inconsciente (a do conformista), essa éltima em geral consciencializada pela agressio do outcast que abala 0 mundo aparentemente seguro do “burgués” © com isso também 0 do pablico, arraneado do seu conformismo ressuposto, Em todas as pegas € caracte em Zoo Story, 0 sentimento de depressio, “fossa” e de- sespero, associado a fortes impulsos sadomasoquistas € violentas atitudes anarquicas. As pecas sio documentos rriveis, mas, ainda assim, promissoras pela ide € pel ramente “documentério” ‘maior ou menor grat A supremacia feminina lecida pela obra teatral de Hilda Hilst. Embora nio per- tencendo A mesma geracio ¢ j4 consagrada como pocta, 86 recentemente invadiu o campo da dramaturgia. O tea- to de Hilda Hilst, cerca de oito pesas, nao se filia a ne- nhum grupo. A autora ¢ uma espécie de unic6rnio den- tro da dramaturgia brasileira. Suas pecas revelam acen- tuado teor poético e certas tendéncias mist conquanto fora dos padrées de qualquer 2. Segundo pesqusas do Ibope, opalavro ni parece exc fuéncia dcisva sobre © pibico que fequenta teats: 58% ni daram % afirmam que o palavrio ise deisivamente, ao pass vedo do que a dos naduros ¢ a dos estudantes € mais favorivel do que destavorével (0 eres de 20% au 3% diminuly um pouco, de 3% dim. icamente tendem a0 experessionismo, em certa abstragio que dé as personagens cunho ico. A despeito do que possa parecer & primeira vista, quase todas as suas pecas giram, pelo menos em varios de seus planos, em torno de questdes atuais, abor- dadas, no entanto, em termos simbélicos ou alegéricos. Ressurge, com insisténcia, 0 problema do sufocamento do individuo e do amor, do esmagamento da criatividade, da juventude, da justia, da lberdade, sob o peso das en- grenagens tradicionais ¢ dos podres anénimos do nosso rado” e teenicizado. Sao dignas de nota a alta qualidade literria dos seus it Embora pegas suas jé tenham sido encenadas com éxito por grupos amadores (0 Rato no Muro, O Visitante, 0 Novo Sistema), uma delas na Coldmbia, por ocasiéo de um festival, sua obra ainda néo encontrou 0 acolhi- mento das companhias profissionais. Estas certamente se interessardo mais pela sua dramaturgia depois de ela ter sido distinguida com 0 Prémio Anchieta de 1969, pe- la sua pega O Verdugo, focalizagio dramatica de proble- mas religiosos, morais e politicos do nosso ¢ de todos os tempos. 3.6. A Situagao Atual Esta répida visio panorémica evidentemente ¢ muito ‘omissa; numerosos autores ¢ diretores de qualidade néo foram tomados em consideragio. O intuito foi esbogar algumas das tendéncias mais importantes, tanto no que se refere a estilos © pesquisas c&nico-dramiticas como 05 interesses temiéticos, destacando-se em cada caso s6 pouecas personalidades entre as mais representativas. A situagio cronicamente precéria do teatro ro € por ora inevitével. Nao se ap6ia numa grande tra- 168 digo como a européia: falta-lhe 0 numeroso piblico de habitués, a organizagio de associagies de espectadores, a promogio de que dispiem as indéstrias culturais. Basta dizer que os atores ¢ astros estrangeiros sio favoreci \de muito maior nos jornais € nacionais, em parte, sem dGvida, mercé da facilidade com que as agéncias internacionais fornecem material abundante (pense-se, por exemplo, também na_pro- ‘mogdo de Hair que decerto nunca foi obtida, de forma to maciga e em escala tio ampla, por nenhuma pega na- ional) © niimero de atores altamente qualificados € ainda pequeno. Nao ha autores cléssicos, brasleiros ou port ‘Mesmo Shakespeare surge apenas ocasionalmente nos palcos do pafs. A encenagéo de pecas de Sofocles ou Eurfpides, Calder6n, Lope de Vega ou Molitre 6 em ge- ral quase sempre de grupos amadores. As companhias profissionais preferem apresentar quase exclusivamente especiais conce- & encenagio de tros estaduais, mu- oficiais, na medida em que so concedidas, ém certa ex- pressdo somente no Estado de Sio Paulo, devendo ser mencionada também a politica de apoio do Estado do Parand. Neste pais gigantesco de noventa milhdes de habi- tantes existe uma vida teatral de razodvel intensidade somente em So Paulo ¢ no Rio de Janci certa tradigdo cénica em algumas capitais nordestinas (Recife, Salvador) © s6 nos filtimos anos vio surgindo, timida- 169 mente, novos centros ~ Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre. Apesar de todas as dificuldades, tanto financeiras como de outra ordem, o teatro brasileiro mostra uma vi- talidade surpreendente. No desenvolvimento das dltimas décadas foi de grande importincia a fungdo das escolas de teatro, freqiientemente integradas nas universidades, Resultados exemplares, neste sentido, obteve a Escola de Arte Dramética de Sao Paulo, fundada hé cerca de vinte anos por Alfredo Mesquita. Entre as escolas de outros Estados merecem mencio as de Belém, Salvador e Porto Alegre, todas elas conhecidas pelo excelente nfvel alean- sado. Sintomas positivos sio também o interesse cres- cente da juventude estudantil e colegial, os numerosos rupos amadores, dentro e fora das universidades, a mul- icagdo de cursos conferéncias populares sobre as- Suntos teatrais © © nimero crescente de publicagées de pe¢as livros sobre teoria ¢ hist6ria do teatro, Se se fala do interesse erescente da ju re-se isso, obviamente, a uma pequena minoria da classe média til, devendo-se acrescentar que & em geral 86 a populagio de instrucéo superior que freqiienta tea- tros de um modo mais assiduo, Segundo um levantamen: to do Ibope feito recentemente em Sio Paulo (a pedido da CET), 1% da populagio de secunds sua folga ao teatro (a televisio, na mesma sequéncia, ‘57% 35% © 20%, a0 radio 10%, 7% © 6%, a0 cinema 4%, 5% © 8%, © A Ieitura de livros, 7%, 16% ¢ 28%). Tomando em conta 0 total (paulistano), 40% preferem a tclevisio, 15% a leitura de livros, 8% 0 radio, 7% passear de automével, 7% ouvir miisica, 6% praticar esportes, 5% is ao cinema, 4% freqiientar festas ¢ reunies, 3% assistir a esportes, 2% jogar cartas, 2% i ao teatro ¢ 1% freqientar bares c boaies. F evidente que a maioria esmagadora da juventude prefere, por razes econdmicas ¢ de formacio cultural, 170 em larga medida as indtstrias culturais. Para as camadas mais pobres até 0 cinema se tornou luxo. Bem mais que © teatro europeu, o brasileiro tem de enfrentar a supre- macia imensa das indGstrias culturais. Amplas massas analfabetas a quem até hd poucas décadas eram acess veis somente formas elementares de divertimento ¢ zer, mormente as festastradicionais, a daaga € 0 canto no mbito da comunidade imediata, por vezes o circo, fi- caram de stbito expostas aos meios de comunicago mo- dernos, sem que ja i e reflexiva de vefculos ¢ artes oe o teatro. Entre os homens de teatro que sentem de algum modo sua responsabilidade social e que, por isso mesmo, prefeririam dirigir-se, através de um teatro popu circulos mais populares, € i frustragio, As classes que alcangam so em geral preci- samente aquelas pelas quais mio morrem de amores (embora eles mesmos, homens de teatro, pertengam a las). Nao admira que o cinema, rédio c, principalmente, a tclevisio os atraiam fortemente: as massas a quem querem falar somente através desses ve atingit. E verdade, as razdes dessa atragéo, res s6 pode manter cert nas telenovelas ~ trabalho que Ihes prejudica a qui de do desempenho teatral, por thes mente os ensaios, para nio falar de outros danos causa- dos a sua vida © ao seu desenvolvimento a Também para os autores € grande a bbem que o nivel € quase sempre baixo, mas em compen sacdo as rendas sio altas. ‘Mesmo as companhias que realizam viagens exten- sas pelo , aleangam quase sempre exclusivamente a classe média, Ainda que houvesse a possibilidade de gir a5 massas analfabetas, néo seria sempre facil en- m contrar a lingu igo”, que thes transmitisse a freqiientemente a tal como faltou a Mario de Andrade, quando dese lar a0 seringueiro do Amazonas, ou como faltou a cida. de, quando, na pega de Dias Gomes, se dirige a Zé do Burro. O teatro do Brasil continua falando, hoje talvez mais do que nunca, a uma minoria proporcionalmente equena, que se recruta quase exclusivamente em. as classes remediadas e abastadas, de instrucio supe- . Conquanto esta minoria, em némeros absolutos, es. teja crescendo, gragas ao erescimento da classe média ¢ A \¢do dos quadros humanos com instrugdo secundé- © superior, a situagao se afigura altamente insati Precisamente em nossos dias, cm que o “suave ter- las indGstrias culturais e de divertim: 4. OBALCAO, DE GARCIA A csta altura choveré no molhado quem repetir que Victor Garcia usou o texto de Jean Genet apenas como io da sua © mesmo talvez se diga da sua encenagio de O Cemitério dos Automéveis, oca- sido em que fundiu quatro pecas de Arrabal num belis- simo espetéculo, com um desfecho que tanto tinha de ido © de sua parddia como de uma orgia dio- nisfaca inebriante. Entretanto, em ambas as encenagies, s6, nfo se pa- rece ter esforgado por transmitir os textos na sua di- mensio denotativa, enguanto discurso logico-referencal, 6 inegavel que Garcia procurou aproximar-se do “espiri- das obras, talvez se dissesse melhor do seu magma ainda inarticulado, ainda incandescente, ainda nao solidi- 173

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