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TRANSPORTE INFORMAL E VIDA METROPOLITANA:ESTUDO DO RIO

DE JANEIRO NOS ANOS 90

Hernán Armando Mamani

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do grau de
Doutor em Planejamento Urbano e Regional.

Orientadora: Prof. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro

Doutora em Ciências Humanas/

USP
2

Rio de Janeiro
2004
3

TRANSPORTE INFORMAL E VIDA METROPOLITANA:


ESTUDO DO RIO DE JANEIRO NOS ANOS 90

Hernán Armando Mamani

Tese submetida ao corpo docente Instituto de Pesquisa e Planejamento


Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.

Aprovado por:

____________________________________
Prof a. Ana Clara Torres Ribeiro – Orientadora
(Doutora em Ciências Humanas / USP)
_________________________________
Prof. Luiz Antonio Machado da Silva
(Ph D. / Rutger University)
_________________________________
Prof a.. Júlia Adão Bernardes
(Doutora em Geografia Humana/ Universidade de Barcelona)
_________________________________
Pof. Carlos Bernardo Vainer
(Doutor em Desenvolvimento econômico e Social / Paris I)
_________________________________
Prof. Mauro Kleiman
(Doutor em Planejamento Urbano / USP)

Rio de Janeiro
4

2004
5

Mamani, Hernán Armando

Transporte Informal e Vida Metropolitana: estudo do Rio de Janeiro nos anos


90. – Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 2004.

Xxx p.

Orientadora: Ana Clara Torres Ribeiro


Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2001.
Bibliografia: p.

1. Transporte-Economia Informal 1.– Metropolitzação. I. Ana


Clara Torres Ribeiro, orient. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional.
III. Título.I
Dedicado a la memoria de mi abuelo Gregório
y a mis padres Norma y Armando.
Agradecimentos

Devo agradecer primeiro a minha companheira que entre momentos de paciência e


impaciência acompanhou o árduo processo produtivo. Também a Ana Clara Torres
Ribeiro sem cujo estímulo, crítica e direção esta empreitada não poderia ter
chegado a feliz término. Agradeço a cada um dos professores do IPPUR, que me
apresentaram caminhos abertos para o conhecimento e o debate de idéias mais
além das barreira disciplinares. Também aos colegas de doutorado Cleide, Mauro,
Leonardo, Carmen, Teresa Cristina, Geovânia, Miriam, Cristina, Rosângela e,
especialmente, a Rosalinda que, numa conversa informal, chamou-me a atenção
para importância do tema aqui tratado.
Quanto aos amigos agradeço a Helena, Duda, Nora, Xavier, Lia, Asunción, Silvia e
aos mais distantes, que apesar de terem ficado no nosso pais natal sempre
acompanharam com interesse meus progressos e retrocessos pessoais e
intelectuais: el gordo Granata, Bruno, Pichu e Lorenzo.

Agradeço também às instituições nas ocorreu a minha formação anterior, IFCS,


FGV. E, dentre antigos professores, especialmente a Luiz Antonio Machado da
Silva, que despertou em mim inquietações que me movem e moverão por muito
tempo. E aos professores que me ensinaram a pesquisar. E às instituições que me
financiaram, apesar dos entraves e complicações burocráticas às que me
submeteram e continuarão submetendo.
Resumo

A Tese busca compreender os motivos da emergência, expansão e consolidação


dos transportes informais na metrópole do Rio de Janeiro durante a década de
1990. Estuda-se um caso particular de um fenômeno que afetou um grande número
de metrópoles e cidades brasileiras e continua a crescer. A pesquisa revelou que
antes que resultar de uma política de desregulamentação e do desemprego, o
fenômeno se insere num processo de involução metropolitana num contexto de
modernização que teve entre outros fatores a reestruturação da indústria
automobilística e do mercado de trabalho, bem como , o processo de expansão
metropolitana tanto segundo novos padrões, quanto pela continuidade da
expansão periférica. A expansão ocorre numa escala maior que a conhecida pelo
termo região metropolitana do Rio de Janeiro. Existe um processo de urbanização
difusa que demarca os contornos de uma megalópole.
A mesma análise requer que se reveja a expectativa do Estado como instrumento
da regulamentação e controle social das relações econômicas. A pesquisa o revela
como palco complexo do jogo político e executor de uma racionalizar e
ordenamento urbano, sempre limitado. As regulamentações a que procede, são,
ademais, ocasião de contornação. A regularidade resultante de ambos fatos parece
conjugar – quanto aos transportes - os problemas do livre mercado e da
intervenção estatal.
A soma dos aspectos subjetivos àquelas dimensões objetivas permite identificar
nas estratégias econômica dos trabalhadores e empreendedores urbanos, aspectos
culturais que alteraram a estrutura do mercado de trabalho e à expansão do
transporte como recurso para auferir uma renda. A participação de setores de
classe média neste processo permite entender, não apenas a introdução de novos
veículos, senão a luta pela legalização a construção de um movimento que logrou a
regularização parcial do transporte informal.
Abstract

The Thesis looks for to understand the reasons of the emergency, expansion and
consolidation of the informal transports in the metropolis of Rio de Janeiro during
the decade of 1990. A case peculiar of a phenomenon is studied that affected a
great number of metropolises and Brazilian cities and it continues to grow. The
research revealed that before to result of a deregulation politics and of the
unemployment, the phenomenon interferes in a process of metropolitan involution
in a modernization context that had among other factors the restructuring of the
automobile industry and of the job market, as well as, the process of metropolitan
expansion so much second new patterns, as for the continuity of the outlying
expansion. The expansion happens in a larger scale than the acquaintance for the
term metropolitan area of Rio de Janeiro. It exists a process of diffuse urbanization
that demarcates the contours of a megalopolis.
The same analysis requests that the expectation of the State is reviewed as
instrument of the regulation and social control of the economical relationships.
The research he reveals as complex stage of the political and executive game of a
to rationalize and urban arrangement, always limited. The regulations the one that
proceeds, they are, too, default’s occasion. The resulting regularity of both facts
seems to conjugate - with relationship to the transports - the problems of the free
market and of the state intervention.
The sum of the subjective aspects the those objective dimensions allow to identify
in the strategies economical of the workers and enterprising urban, cultural aspects
that altered the structure of the job market and to the expansion of the transport as
resource to gain an income. The participation of middle class sections in this
process allows to understand, not just the introduction of new vehicles, except the
fight for the legalization the construction of a movement that achieved the partial
regulation of the informal transport.
SUMÁRIO

Dedicatória 1
Resumo 3
Abstract 4
Sumário 6
Tabelas 15
Gráficos 18
Siglas 19
Apresentação 20

Capítulo 1 25
Introdução
I. Introdução 25
II. Justificativa 26
III. Contexto 26
IV. Primeira Abordagem Teórica 32
IV. 1 Reestruturação Produtiva, Crise do trabalho e Sujeitos Sociais 32
IV. 2. Metropolização e Fragmentação socio-espacial 35
IV. 3. Mobilidade, Integração e Acumulação Flexível 37
V. Hipóteses 40
VI. Método 41
VI. 1. Dados e tratamento dos dados 42
VII. Os capítulos 43

Capítulo 2 45
Circulação, Urbanização e Sujeitos Sociais – considerações teóricas da
multidimensionalidade do objeto urbano
I. Introdução 45
II. Urbanização e ordem urbana: integração mundial, fragmentação
metropolitana e exclusão social 47
II.1 Urbanização, modernidade e industrialização 48
II.1 Da Ordem Social à Morfologia Social 49
II.1.2. Modernização e Urbanização na Ecologia Humana 52
II.1.2.a Supostos Ecológicos 55
II.1.2.b. Aplicação ao Urbano 56
II.1.2.c Morfologia Intra-metropolitana 57
II.1.3 A Reformulação do Saber Urbano nos Anos 70: a crítica 58
marxista
II.1.3.a. A Crítica de Castells 59
II.1.3.a.1. A Reconstrução Teórica da Sociologia Urbana 60
II.1.3.b.1. A Segregação 63
II.1.4. A crítica da Crítica 64
I.1.4.a.1 A política, o Estado e a Urbanização 65
I.1.4.a.2. O Lugar do Planejamento 68
I.1.4.a.3 Conclusões Parciais 69
I.1.4.b.1 O Urbano, o Espaço e as Práticas 72
I.1.4.b.2. O Alcance das Ações 77
I.1.4.b.3. O Saber Sobre o Urbano 78
I. 1.4.b.4 O urbano como Locus de Acumulação do Capital 80
I.1.4.b.5. Segregação e Fragmentação 82
I.1.5. Conclusões e Hipótese 83
III. Mobilidade e Circulação 85
III. 1. Mobilidade e Circulação na Vida Metropolitna 86
III. 2. Circulação de Bens, Pessoas e Dinheiro como Estruturador do 91
Social
III.2.a. Circulação, Mobilidades e Acessibilidade 93
III. 3. Território, Metrópole e Circulação 94
III. 3. a. Metrópole e Território 95
III. 3. b. Metrópole e Circulação 96
III. 3.c. Circulação, Acessibilidade e Apropriação 98
III. 4. Conclusão e Hipótese 100
IV. Espaço, Sujeitos e Cotidiano 100
IV. 1. O espaço em Geografia e em Sociologia 102
IV. 1. a. Espaço e Ação em Milton Santos 103
IV.1. b. O Espaço e o Simbólico: escala e dimensões da ação 107
IV. 2. Sujeitos, Atores e Agentes: obstáculos conceituais 115
IV.2.a. A teoria da estruturação 117
IV.2.b. A Praxiologia 120
III. 3.c. Conclusão e hipótese 123

Capítulo 3 125
Vivências e percepções do transporte informal
I. Introdução 125
II. O transporte Informal desde Perspectiva da Grande Imprensa
do Rio de Janeiro 126
II. 1. Primeiras Abordagens 128
II. 1.a. A oposição e a Mudança de Perfil 129
II. 1.b. Inflexões e Períodos 131
II. 2. O Segundo Mmento – 1997 131
II. 2. a. O Conflito 132
II. 3. A Expansão Mrginal – 1998 -1999 134
II. 4. Quarto período – a regulamentação da lotada 135
III Conclusão 136

Capítulo 4 138
A Metrópole e os Problema do Trânsito e dos Transportes: registro das concepções
utilizados na avaliação
I. Introdução 138
II. Quem Participa 138
III. O Período e seus Movimentos 140
III. a. Primeiro Momento 1993-1996 142
III. b Segundo Momento 1996 – 1999 143
III. b.1. O lugar dos informais no debate 146
III. b. 2. Objetivos do Planejar e do ordenar 147
III. b. 3. Fim do Segundo Momento 148
III. c. Terceiro Período: legalização das vans 149
IV. Conclusões 150

Capítulo 5 152
O Campo dos Transportes
I Introdução 152
II. O Transporte e seus Desafios Segundo a ANTP 153
II. 1. O diagnóstico 153
II. 2. Propostas 155
II. 3. Mediadas a Implementar 158
II.4. Promoção da Mobilidade e da Competitividade urbana:
modelo proposto 159
III. O Transporte Informal 160
III.1. A Definição de Transporte Informal 160
III. 2. Regulamentar X Desregulamentar 162
III.3. Alcance do Fenômeno: distribuição à escala nacional e 164
composição
III.4. Causas da expansão do transporte informal 167
III.4. a. Causas referentes à Deficiências dos Sistemas de Transporte
Público Regular 167
III. 4. a 1. Alteração do uso e ocupação do solo das cidades 167
III. 4. a 2 Peculiaridades regionais 168
III. 4. a.3. Agravantes 168
III. 4 b. Causas Econômicas 169
III. 4.c. Fatores sócio-econômicos 169
III.4. d. Fatores político-institucionais 170
III.4. e. Causas e fatores? 170
III.4.f. Conseqüências do transporte informal 171
III.4.g. Transportes Informais e Modelo Rodoviarista 172
IV A Crítica 173
IV. 1. Composição do Campo 174
IV. 2. Principais Metas Sugeridas 178
IV. 3. Limites à compreensão do fenômeno 179
V. Conclusões 180
Capítulo 6 182
Morfologia Metropolitana e os Transportes Informais
I. Introdução 182
II. Relevância Teórica 183
III. Vetores de Urbanização 187
IV. Crescimento Metropolitano e Transportes Informais 189
IV. 1. Antecedentes históricos 189
IV. 1.a. As Necessidades e Carências 192
IV. 1. b. O Estado da Urbanização 200
IV. 1. c. Trabalho de campo 200
IV.1.d Cronologia do Novo Informal 203
IV.1.e. Formas de Circulação 206
IV.1.f. Linhas e Cooperativas 211
V Transformações no padrão de expansão 213
V.1. A Barra da Tijuca e outras centralidades 214
V.2. Novas Áreas Urbanizadas para Além da Região
Metropolitana 217
V.3. Municípios Mais Distantes 218
VI. Conclusões 220

Capítulo 7 222
Os Transportes o Estado e a Política

I. Introdução 222
II. Regulamentação: texto e contexto 223
II.1. Apresentação 223
II.2.a. Regulação como Relação Entre empresas e Estado: situação 228
precedente
II. 2. b. Transporte Informal: cronologia das regulamentações 232
II. 3 Modalidades de Transporte Informal Regulamentado 233
II. 3 a. No Estado 233
II.3.b. No Município 234
II. 4 Regulamentação da “lotada” 235
II. 4. a. Legislação Estadual 235
II. 4. b. Legislação Municipal 240
II.4. c Organizar verus Ordenar 244
II. 5. Racionalizar versus Ordenar 245
II. 5. a No estado 246
II. 5. b. No município 247
II. 5. c. Política, técnica e interesses desencontrados 247
II. 6. Objetivos da institucionalização do sistema 248
II. 6. a. No Estado 249
II. 6.b. No Município 251
II. 7. Efeitos esperados 253
II. 7. a. No Estado 253
II. 7.b. No Município 254
II. 8. Política, Fins e Efeitos Durandouros 258
III. Regulação, Planejamento e Política Urbana:
desenhos da escala metropolitana 259
III. 1. A Prerrogativa Municipal 261
III. 2. Municípios e Jogo Político 262
III. 3. Autonomia municipal: mercados de terras e de 264

transporte
III. 4. Conclusão Parcial 265
IV. Irregularidade e Crime nos transportes informais 266
IV 1. Tipos de Contornamento da Norma 267
IV. 1. a. Lobby na conquista de “direitos” e privilégios 270
IV. 1. b. Corrupção de Funcionários Públicos 268
IV. 1. c. Controle territorial: concorrência e rentabilidade 270
IV.2. Espacialização dos fatos. 275
IV.3. Conclusão Parcial 278
V. Conclusões 279

Capítulo 8 281
Transporte Informal e Mercados Metropolitanos de Trabalho
I. Introdução 281
II. Perspectiva Geo-econômica 284
II. 1. a. Modernização e diferenciação metropolitana: a 284

teoria dos circuitos


II. 1. b. Circuitos Superior, Inferior e Superior Marginal 287
II. 2. a. Teoria dos Circuitos e Transportes 291
II. 2. b. Indústria Automobilística e transporte : conjuntura 284

de uma modernização
II. 2. b. 1 Histórico 298
II. 2. c. O transporte Urbano como Circuito superior 300

Marginal
II. 3 Conclusões 308
III - Práticas econômicas e lugares sociais 310
III. 1. Introdução 310
III. 2 Antecedentes Teóricos 312
III. 3. Considerações sobre as entrevistas e o uso da base 317

de dados
III. 3. a. Diferenciação e cronologia das formas de circulação 319
III. 3. b. Causas da emergência nos anos 90 321
III. 3. c. Quem são: perfil dos operadores 324
III. 4. Trajetória Profissional dos Operadores 330
III. 4. a. Nas Kombis 330
III. 4. b.. Nas Vans 334
III. 5. A ética 339
III. 5. a. Deveres para com o dinheiro 339
III. 5. b.. Meios e fins: o lugar das estratégias 342
III. 5. b. 1. Estratégias intergneracionais 343
III. 5.b.2 A rede: a família e os amigos 346
III.5.c. É possível falar em ética 347
III. 6. a. Relações de trabalho: redes e cooperativas 348
III. 6. b. Relações da rede não cooperativada 355
IV. Conclusão 357

Capítulo 9 360
A Problemática do Transporte e os Movimentos Sociais
I. Introdução 360
II. 1. Sentidos do Transporte Alternativo 361
II. 1. a. Os problemas dos transportes como contradição do
capitalismo 361
II. 1. b. Antecedentes 362
II. 1. b. Críticas Posteriores 364
II. 2. Transporte Alternativo como Proposta Institucional 365
II. 3. Transporte Alternativo nos Anos 90 366
III. Causas do movimento 368
III. 1. Transformações do Mercado de Trabalho como 368

Causa
III. 2. Práticas e situações das quais emerge o transporte 369

alternativo
III. 2.a. A promoção do pequeno negócio - Manipulação 369

subjetiva
III. 2.b. Empreendedorismo Lazer e Classe Média 371
III. 2.c. A Inflexão: a classe média recupera a lotada 375
III. 2. d. Repressão e mudança do discurso 376
III.2.d.1. A Descrição dos Fatos 360
III.2.d.2. A medição de forças 377
III.2. d.3. O conflito entre poderes 379
III.2.d.4. O silêncio pós derrota 382
III.2.d. 5. Rumo à regulamentação 383
IV. Conclusão 386

Capítulo 10 373
Conclusão

Referência Bibliográfica 399

Anexos 412

Participação dos transportes e as comunicações na PEA do Estado e a 413

Região Metropolitana do Rio de Janeiro - 1988 – 1999


Taxa Anual de Desemprego Aberto, por Ramos de Atividade Região 413

Metropolitana do Rio de Janeiro – 1983 –1997


Quem Participa do Debate Promovido pela Grande Imprensa 414
Trânsito e Transportes nas Propostas de Campanha dos Candidatos à 415

Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de 2000


Principais metas sugeridas 416
Municípios do Estado do Rio de janeiro com Presença de Transporte 417

Informal Intermunicipal– 2000 –2002


Linhas Intermunicipais Extrametropolitanas com destino ao Centro do Rio 418
de Janeiro – Estado Do Rio de Janeiro
Vetores de expansão na Região Metropolitana do Tio de Janeiro -1987 419
Vetores de expansão na Região Metropolitana do Tio de Janeiro –2000 - 419

2002
Diagnóstico de Altos Funcionários dos Governos Municipais e Estadual 420

Sobre Origem e Condições do Surgimento e Expansão do Transporte


Informal
Anúncio Cursos de Qualificação para Motoristas de Transporte Informal 426
Conjuntura política em 2003: a Inflexão 427
Kombis Durante as Greves de Ônibus de 1990 429
Lotações na Rocinha – 1977 430
Promoção do Transporte Informal 431
Quadros e Tabelas

Profissões dos Debatedores 139


Tipos de Propostas dos Candidatos à Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro - 2000 149
Principais Metas Sugeridas 158
Critérios Utilizados pela NTU 161
Denominação do Transporte Informal 161
Capitais e Cidades de Porte Médio -Transporte Informal: Ocorrência e Legalidade por Tipos (Maio /
1997)
166
Instituições Membros da ANTP Segundo o Tipo de Atividade que Exercem no
Sistema de Transporte 177
Caracterização das Medidas Propostas 178
Presença de Transporte Informal - RMRJ – 1990 -1991 196
Queixas do Sistema de Transportes Segundo vetores de Expansão 193
Incidência de Queixas N Zona Oeste 193
Queixas do Sistema de Transportes – 1990 – junho de 1991 194
Queixas Referentes ao Crescimento Metropolitano– RMRJ - 1990 – jun 1991

195
Incidência de Queixas por Bairros do Rio de Janeiro e Municípios da Região Metropolitana- 1990 –
Jun 1991
196
Queixas sobre o sistema de transportes por vetores – RMRJ – 1996
-2002 197
Deficiências do Transporte no Final dos Anos 1990 199

Localização dos Transporte Informal entre – RMRJ - 1994 e 1997 204

Municípios com presença de Transporte Informal – Estado do Rio de


Janeiro – 2000 - 2002 205
Cooperativas e Linhas de Transporte Informal - Estado do Rio de Janeiro 206
– 2000- 2002
Formas de Circulação por Vans e Kombis – Município do Rio de Janeiro 207
– 2000 - 2003
Preço das Passagens – RMRJ - setembro de 2003 208
Linhas que Integram Bairros a Subcentros – Município do Rio de Janeiro – 2000 - 2002 210
Linhas por Município– Estado do Rio de Janeiro – 200 – 2002 211
Linhas que operam com destino ao Centro da Cidade Rio de Janeiro- Estado do Rio
de Janeiro – 2000 - 2002 (Cooperativas por Linha) 212

Cooperativas e Linhas de vans por vetores – RMRJ 2000 - 2002 213

Linhas de Transporte Informal – Barra da Tijuca – 2000 – 2002 215

Linhas de transporte Informal que operam a partir de Alcântara- 2000 – 2002

216
Presença de Transporte Informal por Bairros e Municípios Periféricos da Região
metropolitana do Rio de Janeiro- 2000 - 2002 217
Municípios não Metropolitano com Transporte Informal em Direção ao Rio de
Janeiro – 2000-2002 (Cooperativas por município) 219
Relação de Leis que Regulamentam o Transporte Urbano por Ônibus – 1953 – 2003

226
Número de Operadores de Transporte Complementar no Município do Rio de Janeiro
por Tipo de Permissão- 2001 232
Número de Operadores de Transporte Complementar no Município do Rio de Janeiro
por Tipo de Permissão 2001 235
Decreto Nº 25955 238
Decreto Municipal Nº 19951 242
Características dos Circuitos da Economia Urbana dos Países subdesenvolvidos 288
Propriedades distintivas dos transportes urbanos 292
Sistema de Transportes na Avaliação dos Usuários 293
Principal Transporte Usado 294
Participação das montadoras por tipo de veículo na produção nacional – Brasil - 2002 296
Veículos usados para o transporte de passageiros por modelo, montadora e país de
origem 297
Características dos dois circuitos do transportes urbano por tipo de veículo 301
Preços de veículos utilizados no transporte informal: novos e usado por ano de fabricação

306
Caracterização dos Entrevistados 318
Experiência Anterior 326
Propriedade do Veículo 326
Experiência Anterior 327

Ocupação Anterior por Tipo de Veículo 328

Características Distintivas dos Transporte Informais 329


Participação dos transportes e as comunicações na PEA do Estado e a 413

Região Metropolitana do Rio de Janeiro - 1988 – 1999


Taxa Anual de Desemprego Aberto, por Ramos de Atividade Região 413

Metropolitana do Rio de Janeiro – 1983 –1997


Quem Participa do Debate Promovido pela Grande Imprensa 414
Trânsito e Transportes nas Propostas de Campanha dos Candidatos à 415

Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de 2000


Principais metas sugeridas 416
Figuras e Gráficos

Incidência da temática das Vans no Debate Sobre o Trânsito e o Transporte


Metropolitanos – O Globo – Jornal do Brasil – 1996 a 2001 (Número de artigos 127
por Mês)

Insidência do Tema das Vans e das Kombis no Debate Sobre o Trânsito e


Transporte Metropolitano no Rio de Janeiro – 1993 – 2001 141

Membros da ANTP por Tipo de Instituição 175

Os Elementos dos Dois Circuitos 289

Anúncio da Chassis para microônibus da Chrysler 299

Localização dos Transportes nos Circuitos da Economia Urbana 302

Elementos dos circuitos do transporte com ênfase na revenda e circuito inferior 304

Organograma da Cooperativa da Grande Niterói 351

Organograma da Cooperativa da Zona Oeste 352

Anúncio de Curso de Qualificação para Motoristas de Transporte Informal

426
Siglas Utilizadas

UITP União Internacional de Transportes Públicos


NTU Associação Nacional de Empresários do Transportes Urbanos
ANTP Associação Nacional do Transporte Público
GEIPOT Empresa Brasileira d Planejamento em Transporte
OCERJ Organização das Cooperativas do Estado do Rio de Janeiro
FECOVAN Federação Nacional do transporte Alternativo
CONVAN Confederação nacional do transporte Alternativo
SINTRAL Sindicato do Transporte Alternativo
FETRAL- Rio Federação do Transporte Alternativo do Município do Rio de
Janeiro
CENTRALVAN Central de Presidentes de Cooperativas de Transporte
Alternativo
DETRO Departamento de Transportes Rodoviário do Estado do Rio de
Janeiro
DETRANRJ Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro
SMTU Superintendência Municipal de Transporte Urbano
SMT Secretaria Municipal de Transporte
STRJ Secretaria de transportes do Estado do Rio de Janeiro
Apresentação

Conheci, e me tornei usuário das vans em 1996. Participava, então, de uma


pesquisa sobre a reestruturação produtiva na indústria metalúrgicas do estado do
Rio de Janeiro0. Esse estudo requeria que, com freqüência, visitasse fábricas
distantes, na periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Efetuar a visita
constituía um longo e penoso trabalho anterior. Era necessário descobrir a
existência da fábrica, constatar o seu funcionamento, identificar o gerente ou
diretor capaz de autorizar a pesquisa e depois, insistir até que a visita fosse
agendada. Iniciava-se a seguir outra pesquisa: como chegar ao local e um cálculo
do tempo necessário de viagem de modo a não nos retardar.

A segunda visita foi traumática: era uma metalúrgica localizada no bairro de


Paciência, Z. Oeste do Rio, bem próxima da estação de trem Tancredo Neves.
Pareceu-nos que o trem era mais seguro. Saímos do centro com duas horas e meia
de antecipação, parecia razoável. Não foi: entre a demora dos trens na Central, a
baldeação e que por motivos técnicos não se realizou, passaram-se duas horas e
ainda estávamos em M. Hermes, no meio do caminho. Nervosos, pegamos um táxi
que apesar de custar, uma pequena fortuna, chegou à empresa quarenta e cinco
minutos depois do combinado. Realizou-se a entrevista mas foi tensa e marcada
pelo mau humor do diretor.

Algumas semanas depois, voltando de uma visita em Queimados, uma van nos
resgatou de um ponto ermo e quente, na rodovia Presidente Dutra, onde
esperávamos um ônibus por mais de uma hora. Levou-nos para o Centro do Rio,
em meia hora, a um preço pouco maior que o ônibus, com ar condiconado e nos
deixou a poucos metros do lugar de destino: como não gostar desse transporte?

A partir de então a prefêrencia foi sempre pelo “novo” transporte. Era mais fácil
voltar dos lugares. Nas estradas e acessos ao Rio “elas” ofereciam seus serviços
na Baixada, em Itaboraí e São Gonçalo. O transporte de vans, era então

0 Reestruturação produtiva trabalho e educação: os efeitos sociais da terceirização Industrial em


três regiões do país", CEDES/FINEP/CNPQ, coordenada por Alice Rangel de Paiva Abreu e José
Ricardo Ramalho (PPGS/IFCS/UFRJ), Leda Gitahy (DPCT/IG/UNICAMP) e Roberto Ruas
(PPGA - UFRGS), (RJ, SP, RS), 1995-97.
desconhecido da maioria dos moradores do Centro e da Zona Sul. Seus “pontos”
eram discretos, suas linhas e horários pouco conhecidos.

Nos meses seguintes pude observar a sua proliferação no Centro. Em1997 era
possível viajar com rapidez e comodidade a Campo Grande, Méier, Encantado ou
Ilha do Governandor sem ter que se preocupar em saber qual ônibus ia. Viajar em
van era infinitamente melhor, mais cômodo, mais rápido e agradável que qualquer
outro transporte. O Diálogo fluía entre os passageiros e entre estes e o motorista,
conversava-se - como ainda se conversa - sobre tudo: política, economia, negócios,
havendo, até, conselhos sentimentais. Os motoristas, proprietários na maior parte,
esmeravam-se em agradar. A diferença com os ônibus, metrô, trens e barcas era
abismal se comparados aos tratos e condições de viagem.

Em 1998, participando de outra pesquisa, cujo foco voltava-se sobre a trajetória


profissional de ex-bancários recentemente demitidos pela reestruturação dos
bancos, conheci vários proprietários de veículos. Saindo dos bancos voluntária ou
involuntariamente, contavam com algum capital e, em geral, evitavam um novo
emprego por considerarem que não haviam postos para pessoas dessa idade ou por
acreditarem na possibilidade de montar seu próprio negócio.

Recordo em particular o caso der um ex-funcionário da Caixa Econômica Federal.


Tendo chegado a gerente não suportou as exigências do cargo e abandonou 20
anos de banco com a perspectiva de fazer o seu próprio negócio. Fez vários cursos
no SEBRAE e pretendia montar uma sorveteria no bairro de Fátima (centro do
Rio). Uma vez “qualificado”, pronto para montar seu negócio perdeu a
oportunidade porque alguém chegou antes e abriu uma sorveteria no mesmo local
em que ele pretendia fazê-lo. Desesperado, comprou uma Van, porque “diziam que
era possível faturar R$ 4000,00 por mês”. No momento da entrevista trabalhava
com fretamento, excursões e serviços “by nigth”. Trabalhava muito mais do que no
banco e ganhava menos, para pagar a mensalidade, muitas vezes era obrigado a
fazer lotada. Arrependia-se de ter saído do banco.

Como ele conheci outros, alguns tinham optado pelo táxi, rádio táxi e alguns
outros por pequenos comércios. Essa experiência me levou, como a todos os que
se deparam com o fenômeno das vans a concluir que se relacionava às
transformações do “mercado de trabalho” Chamava-me a atenção a transformação
de grupos de assalariados – privilegiados até então – passando a atuar como
“pequenos” empresários ou autônomos em atividades informais”. Parecia que os
melhores sucedidos eram os que conseguiam capitalizar a experiência profissional
anterior. Nem todo mundo conseguia. Mas o sonho do próprio negócio, da
autonomia de trabalharem algo prazeroso, alimentava todas as expectativas.

Essas “esperanças” são bem compreensíveis para mim, fazem parte dos meus
próprios valores, das experiências e falas dos meus familiares mais próximos. Do
mesmo modo entendia a opção de trabalhar em transportes por referência a irmãos
e primos: o transporte enquanto negócio e patrimônio e dirigir como uma
possibilidade para os “momentos de aperto”.

Entre 1999 e início de 2000 deixei de dar atenção aos transportes, mesmo sendo
usuário preferencial das vans. Ao iniciar o doutorado, interessava-me muito mais o
mercado de trabalho as estratégias dos grupos “excluídos”. Os transportes
informais pareciam-me mais um fenômeno causado pela reestruturação
econômica. Entretanto, a proliferação de transporte por kombis expandindo-se por
toda a metrópole, despertou novamente a minha atenção.

Nas primeiras abordagens do assunto, a problemática do emprego, do desemprego


e do trabalho informal norteou a percepção. Mas pouco a pouco pude perceber que
o tema relacionava muitos mais aspectos que o mercado de trabalho. Teria a ver,
com a metrópole, com seu “funcionamento” e expansão, relacionava-se a mais
aspectos que os econômicos, político – administrativo (regulamentação,
planejamento e fiscalização).

Falar das vans requeriria mais reflexão sobre as pesquisas em que participei a
partir de 1995, já que aquelas experiências formaram a base da problemática dos
transportes informais na metrópole do Rio de Janeiro.

A minha primeira abordagem do trabalho informal e a problemática teórica que se


relaciona com ele foi resultante da pesquisa realizada para a Dissertação de
Mestrado. Estudei naquela oportunidade as práticas não formalizadas presentes na
construção de moradias na Metrópole do Rio de Janeiro. O importante naquele
momento foi ter abordado o informal num momento que o “empreendedorismo”
nele presente foi valorizado e a economia informal deixou de ser percebida como
um problema ocasionado pela falta de desenvolvimento econômico, do
subemprego, da falta de qualificação e da migração campo-cidade0 para ser
concebido como uma solução para o desemprego e a exclusão do mercado de
trabalho0.

A segunda pesquisa, na qual participei como pesquisador assistente, entre 1996 e


1997 estudava a reestruturação produtiva do Rio de Janeiro, focalizada sobre a
indústria de autopeças do Estado. O fenômeno mais vívido que pude perceber foi o
da desindustrialização, da decadência e mudança dos usos de muitas áreas da
metrópole. Das táticas e estratégias dos metalúrgicos qualificados ou não para
reciclar a sua experiência e capitalizar seus saberes na conjuntura dos anos 90.

Atitudes e problemas semelhantes presenciei entre os bancários0. Defrontados com


uma mutação das relações de trabalho – com enxugamento da estrutura funcional,
inovação tecnológica e alteração nos modos de gestão, estes assalariados temiam o
desemprego e eram levados a tornarem-se “competitivos”.

Em suma, presenciava as transformações das relações de produção desde uma


posição que me permitiria compreender as percepções e atitudes perante a
conjuntura que obrigava a reformular projetos e estratégias a grupos de
trabalhadores que – junto ao funcionalismo público - constituíram, até pouco
tempo atrás, a vanguarda dos assalariados do Rio de Janeiro não apenas pelo valor
de seus salários e condições de trabalho mas, principalmente, pela força de sua
organização sindical, cujo ápice em termos de mobilização e combatividade
ocorreu durante a ”Nova República”.

A observação sugeria que não havia uma transformação dos projetos e das
expectativas. Havia, outrossim, alteração dos meios, dos recursos e instâncias
necessários para lográ-los. O que percebia eram as tentativas de reprodução social
em novas condições. Essa percepção alimentava em mim a convicção de que há
uma “certa cultura” do trabalhador urbano que operava tanto nos trabalhadores da
construção quanto nos operários de grandes metalúrgicas”, que os
“administrativos” tiveram que a recriar para participar das atividades ditas
informais. Esta era a idéias principal que norteava o meu interesse no momento de
0 Dualismo ou exército industrial de reserva.
0 Tese intitulada “Construção de habitações: alguns aspectos esquecidos orientada pelo Prof.. Dr. Luis Antonio
Machado da Silva.
0 Projeto "Emprego Feminino no Brasil: Mudanças Institucionais e Novas Inserções no Mercado de Trabalho,
"Sub-Projeto 3 "Setor Bancário, Inovações Tecnológicas e Práticas de Estabilização do Emprego Feminino",
coordenado pela Professora Doutora Bila Sorj (PPGS/IFCS/UFRJ).
iniciar o doutorado em 1999. Os transportes informais possibilitariam retomar a
reflexão iniciada antes a partir de um objeto que articula também aspectos
recentemente incorporados por mim: a problemática urbana e a teorização sobre o
espaço.
1

Capítulo 1

Introdução

Um dos fatos mais marcantes da vida na metrópole do Rio de Janeiro, nos anos
90, foi o aparecimento e expansão do transportes informais realizado por vans e
kombis. Com eles, a problemática dos transportes metropolitanos parece mudar de
eixo e se concentrar sobre se estes novos meios devem ser legalizados e de que
modo; se são uma alternativa ao transporte por ônibus; se a concorrência vale a
pena; se constituem um transporte seguro. A polêmica tem ido muito além dos
gabinetes governamentais e dos encontros de especialistas. Nalguns momentos
ganhou a rua, a opinião pública e as manchetes dos jornais.

Durante a década de 90, além do grande crescimento do número de vans e kombis


em toda a Região Metropolitana, houve diversificação nas modalidades de
transporte informal e transformação das mais antigas. Os cabritinhos - kombis e
veículos particulares que operavam o transporte em favelas e bairros pobres, -
expandiram-se por toda a metrópole, atuando, agora, tanto no Centro quanto nas
áreas abastadas, adotando como as vans, a organização em cooperativas. Os
ônibus “piratas” - tradicionais no Rio de Janeiro - deixaram de ter como ponto
final a Central do Brasil para dirigir-se, cedo, à Zona Sul e à Barra da Tijuca. E
finalmente, proliferam por toda parte as mototaxis. O fato mais notável desta
transformação, entretanto, é o alto grau de organização, a capacidade de
mobilização e de articulação política e jurídica demonstrada pelos operadores do
transporte informal. Lutando na rua, nos tribunais, nos gabinetes, nas eleições, os
autodenominados transportes alternativos, abriram um espaço para si, obtendo
regulamentações municipais e estadual, que lhes concederam condições de
circulação bastante próximas às reivindicadas.

A complexidade e a dinâmica desse processo não se deixa apreender pelas


denominações correntes: transporte pirata, clandestino ou irregular; alternativo,
informal ou “paratransit”. Os três primeiros utilizados, principalmente, pelas
empresas de ônibus, destacam apenas os aspectos negativos, enquanto o termo
alternativo denota somente os aspectos positivos. Por outro lado os dois últimos
2

aludem tanto à problemática do trabalho informal urbano nos países do terceiro


mundo quanto a transportes que operam nos países desenvolvidos, sendo, então,
denominações imprecisas. Os termos comuns acionados para explicar um
fenômeno em curso em boa parte das metrópoles e capitais brasileiras são parciais
e limitados.

O nome dado não é uma questão menor. Expressa o status atribuído a estes
transportes e, em conseqüência, faz referência a um quadro ideal do que os
transportes deveriam ser, e as explicações de porque e como são o que são.
Abordado desde uma perspectiva empresarial, ou mesmo governamental, o
assunto é tratado tecnicamente num jargão bastante elaborado, próprio da
engenharia dos transportes, alinhando em lados opostos os argumentos favoráveis
e os desfavoráveis ao transporte informal. Todos concordam, entretanto, na
necessidade de ordenar o sistema, de modo a atender com eficiência as
necessidades dos habitantes e cumprir adequadamente as funções econômicas das
metrópoles contemporâneas: ser fator de eficiência e competitividade. Nas
análises mais apuradas, o fenômeno é associado à globalização, à inovação
tecnológica, à crise econômica, ao desemprego, à desregulamentação e à falta de
ação pública. Em suma, o tema desperta debate acalorado, sem que haja indícios
de solução nem elucidação.

Uma observação mais profunda dos fatos deverá ir, entretanto, para além dos
discursos e as concepções sobre o transporte para observar as práticas que o
produzem. Por tais razões, o objetivo desta tese é compreender o sentido da
irrupção de transportes informais na metrópole do Rio de Janeiro nos anos 1990,
articulando as dimensões econômicas, geográficas e sociais numa análise de
orientação sociológica.

II. Justificativa

A expansão dos transportes e a rede viária, tanto quanto os meios de comunicação,


são aspectos técnicos fundamentais para a formação e crescimento da cidade
moderna em seus desdobramentos presentes. Admite-se que os transportes
permitem a aglomeração e a integração funcional de uma metrópole, conformando
vetores de expansão. Rede viária e transportes possibilitam a vida econômica -
3

produção e consumo – e são, também, motivos de lutas sociais: por mobilidade e


acessibilidade, conforto e segurança.

Os transportes põem em contato os elementos - técnicos, econômicos, políticos,


geográficos e sociais - que conformam uma metrópole: objeto complexo
irredutível a suas partes. Abordar sociologicamente os transportes, então, significa
ir além da técnica, exige inscrever os meios técnicos numa estrutura social dada e
no jogo de interações que lhes da sentido.

No caso específico do objeto aqui estudado, chama a atenção a falta de


reconhecimento da complexidade do fenômeno. Mesmo quando, com freqüência,
abordam-se os transportes pela relação entre empresas, Estado e usuários,
negligencia-se a relação entre os transportes e a urbanização e, ainda, ente
transportes e movimento sociais; mantendo-se a análise restrita à esfera técnico-
institucional e econômica. Há, então, perda em compreensão do fenômeno, já que
a complexidade da vida metropolitana é reduzida a alguns dos seus aspectos.

Aspiro, então, contribuir para um conhecimento sociológico renovado sobre um


fenômeno complexo que relaciona os transportes, a urbanização e a vida social
nas metrópoles. Quer dizer, para além da relevância empírica do problema dos
transportes e das diferentes formas de mobilidade espacial, o tema reata um
diálogo pouco trabalhado atualmente pela sociologia, entre o urbano e a
circulação.

III. Contexto

O transporte por vans e kombis é, atualmente, uma prática banal presente em


grande parte dos municípios da Região Metropolitana e do Estado do Rio de
Janeiro, do mesmo modo que em boa parte das outras metrópoles brasileiras. As
opiniões ao seu respeito são desencontradas. Para alguns, constituem uma
alternativa de transporte em áreas pobres. Para outros, trata-se de um serviço
precário e problemático por que submete os usuários a péssimas condições de
transporte, pela má conservação dos veículos e pela desordem que provocam no
trânsito ao disputarem passageiros nos pontos dos ônibus e, ainda, por sua
condução perigosa. Existe, ainda, uma crítica mais grave. Estas modalidades de
transporte dão lugar a todo tipo de contravenção e crime na obtenção da
4

legalização ou no controle das as linhas, servindo à lavagem de dinheiro por


traficantes. Seriam, portanto uma máfia.

Tais opiniões generalizam aspectos verdadeiros, porém parciais, dos transportes


informais, desconhecendo a variação e diferenças de tipos, qualidades e preços
dos serviços oferecidos que abrangem tento transporte turístico, escolar,
fretamento quanto a “lotada” - serviços de linha regular com pontos fixos de
partida e chagada que, a diferença dos ônibus, não aceitam passageiros ao longo
do itinerário. Um simples passeio pelo Centro do Rio de Janeiro permite notar que
há, tanto, serviços especiais com ar-condicionado, confortáveis e bem cuidado que
partem com destino á Barra da Tijuca, Jacarepaguá, Recreio e outras áreas nobres
da metrópole, transportando nos horários de entrada e saída do trabalho,
funcionários administrativos e executivos, quanto outros, menos cuidados, com
destino à Baixada Fluminense, Grande Niterói e Zona Oeste. Existem também as
kombis, que a preço menores prestam serviços desde o Centro para áreas
próximas: Caju, Santa Teresa, Rio Comprido, Providência ou, até mesmo,
Laranjeiras. Resta, ainda, uma outra diferenciação que serve tanto para vans
quanto para kombis: os veículos legalizados têm placa vermelha, exibem as cores
da área em que atuam, o cadastro do motorista e possuem os selos dos SMTU ou
do DETRO. Além disso, é relevante recordar que, há menos de dez anos atrás,
estas modalidades de transporte, pouco usuais, foram bem recebidos pelos
usuários, despertando solidariedade nos momentos em que governos estaduais e
municipais as reprimiram.

A reflexão sobre os transportes informais constitui um desafio já que se trata de


um fenômeno empírico de grande visibilidade sobre o qual tudo se desconhece ou
se conhece muito pouco. A memória e a vivência pessoal indicam que se trata de
um fenômeno novo, surgido nos anos 90. Qualquer outra afirmação será uma
conjectura sem fundamento já que é impossível determinar os aspectos mais
básicos para uma pesquisa, como quantos são, quando, como surgiram, quem
participa, aonde se localizam.

De fato, resposta à primeira pergunta esbarra na ausência de qualquer base


estatística ou estimativa digna de confiança. Os jornais estão cheios de estimativas
sem nenhuma base objetiva. Mesmo os dados governamentais padecem da mesma
limitação. Os dados mais objetivos datam de fevereiro de 2001 quando a
5

prefeitura do Rio de Janeiro abriu o cadastro para todos os operadores de


transporte informal em operação regularizarem a sua situação. Apresentaram-se
9.014 proprietários dos quais foram autorizados 6.700. Já no Estado cadastraram-
se, durante o mesmo ano, 2629, sendo aprovados 1561 veículos até fevereiro de
2002. Contudo, o número resultante da soma de ambos cadastros - 11643
proprietários de veículos dispostos a se legalizar não permite inferir o número de
operadores já que além dos 3382 que não foram autorizados e os que não
buscaram se legalizar, não constam no registro os veículos que operam nos demais
municípios da região metropolitana sobre os que não há nenhum tipo de
informação.

Quanto à data de início, a certeza de que se trata de um fenômeno da década de 90


também pode ser desfeita rapidamente. Os “transportes informais” não são um
fenômeno novo no Rio de Janeiro. Existem antecedentes históricos que remontam
à terceira década do século XX.

De fato, durante as décadas de 1920 e 1930, a formação das primeiras companhias


de ônibus, introduziu a concorrência e o transporte ilegal contra o monopólio da
Light & Power nas áreas mais nobres da cidade. A concorrência dos, então,
chamados “faiscadores”, não se limitava aos bondes senão à própria companhia de
ônibus da Light, a Excelsior. O ponto principal de disputa era a Av. Central (Rio
Branco), antes, como hoje, lugar de convergência dos fluxos metropolitanos 0. Na
periferia, autobuses e táxis-coletivos transportavam carga e passageiros vizinhos
até o trem. Como hoje, houve conflito. A luta foi além das ruas, para continuar em
gabinetes ministeriais e nos tribunais. A própria organização sindical dos
empresários teve a sua origem nessas contendas, que foram diminuindo com as
sucessivas regulamentações até os anos 40, quando a Light desistiu de atuar em
transportes urbanos.

Nas décadas de 40 e 50, a situação se repetiu, com os auto-lotações que


concorriam com as empresas de ônibus. Os poucos dados históricos disponíveis
sobre os lotações no Rio de Janeiro revelam que foram proibidos em 1963 pelo
governador da Guanabara Carlos Lacerda e que, em 1958, transportavam um
volume equivalente a 61,3% dos passageiros dos ônibus convencionais A
legislação posterior incentivou a formação de grandes empresas que terminaram

0 Freire, 1992
6

concentrando em poucas mãos todo o transporte da cidade. E, ao que parece, os


transportes informais, teriam desaparecido progressivamente.

A tentativa de delimitar o momento exato do ressurgimento dos transportes


informais, agora efetuados por vans e kombis, organizados em cooperativas de
proprietários individuais, esbarra em certas dificuldades. Uma leitura superficial,
dos jornais dos anos 70 e 80 revela que, ao contrário do que se supõe, os
transportes informais continuaram a existir, ainda que restritos a certas áreas de
difícil acesso. Lotações na Rocinha, cabritinhos no morro de São Carlos, o grande
número de kombis a cada greve de ônibus ou ferroviária, os ônibus piratas que
transportavam passageiros da periferia ao centro 0. O transporte informal existia
mas, permanecia marginal e oculto.

Entre os motivos alegados para explicar as novas modalidades de transporte


informal, a imprensa e as autoridades destacam: o mau serviço das empresas de
ônibus que, - pela falta de investimento em transporte de massa e sucateamento do
sistema público de transportes (Trens, Metrô, Barcas e CTC) - tornam-se
responsáveis, no início da década de 1990, por 90% das viagens em transporte
coletivo da metrópole. A isto, há que agregar o estímulo das empresa
automobilísticas que colocaram à venda veículos baratos e de baixo custo
operacional, além do desemprego e os programas de demissão voluntária iniciados
em 1994 - ano de início do Plano Real, indicado também como a data de
nascimento das atividades.

A expansão do transporte informal por vans e kombis teria surgido como opção de
trabalho, atendendo uma demanda do crescimento urbano, do mesmo modo que
um sem fim de outras atividades informais nos 90, correspondendo a duas
tendências da transformação metropolitana: por um lado, o crescimento periférico
pobre, ocorrido sem planejamento e fornecimento de infra-estrutura e, por outro, o
crescimento e diferenciação das áreas nobres, onde novas classes médias e centros
comerciais demandam serviços que não podem ser atendidos pelo transporte
individual.

Seja como for, o aspecto distintivo do transporte informal nos anos 1990 é, sem
dúvida, ser capaz de se organizar local, estadual e nacionalmente, e de liderar
lutas que, ao exigir a legalização do serviço, puseram em questão as práticas e os
0 Ver anexo.
7

discursos legítimos sobre o transporte, obtendo a solidariedade ativa dos usuários,


conquistando, até 2002, formas diversas e heterogêneas de regulamentação.

Os fatos apresentados mostram as dificuldades existentes no alcance de uma


explicação simples na compreensão do surgimento, crescimento e legalização do
transporte de passageiros por vans. As práticas que o produzem devem ser
estudadas de acordo a vários níveis analíticos.

Desde o ponto de vista sócio-econômico, se bem que seja possível identificar


entre as causas o crescimento do desemprego originado pelas grandes
transformações ocorridas na organização produtiva e do mercado de trabalho
nacional e internacional, no que se refere à metrópole do Rio de Janeiro, nos anos
90, o crescimento do transporte informal parece combinar-se a outros aspectos
específicos. Os anos 90 começaram com o sistema de transportes público
deteriorado (Ferrovias, metrô barcas e CTC). Simultaneamente, as empresas de
ônibus tornaram-se responsáveis absolutas pelo transporte coletivo. Nesse quadro,
a proliferação de pequenos empreendedores no transporte reintroduziu a
concorrência no sistema e pôs em evidência a sua diversidade interna, defendo a
livre iniciativa e do valor do empreendedorismo.

A partir de uma perspectiva sócio-política, percebe-se uma mudança nas relações


entre Estado e agentes privados. A privatização do sistema de transportes
estabelece um divisor de águas, que não vem acompanhado de uma nova forma
específica de gestão do sistema operado por empresas privadas. Por outro lado,
não há indícios de mudança em formas de organização e de pressão na relação
entre Estado e empresas. Estas se reproduzem e se regeneram nos transportes
alternativos. Refiro-me à prática do Lobby, aos compromissos de campanha, à
corrupção e ao patrimonialismo. De todo modo, nalguns momentos da luta, os
auto-denominados transportes alternativos, foram capazes de pôr em questão e de
disputar a circulação legítima, fora dos gabinetes e das instituições responsáveis
pela organização do sistema de transporte.

Desde o ponto de vista sócio-cultural, além da relação entre o aparecimento do


transporte por vans e kombis ao crescimento do desemprego, podemos relacioná-
lo ao investimento em pequenos negócios com recursos oriundos de indenizações.
Há razões para sugerir que, no caso específico dos transportes ocorre a reprodução
8

de uma tradição econômica comum aos bairros populares: a lotada, seja realizada
por táxis, cabritinhos ou ônibus-pirata, existe há muito tempo. Da mesma forma,
são tradicionais, também as práticas comercias do tipo “dar dinheiro a quem se
conhece”, com quem se compartilha modos de vida e valores, que os operadores
denominam de personalizado. Quer dizer, os transportes alternativos apontariam
para a persistência de referências culturais tradicionais nas novas modalidades de
circulação.

Quanto à dimensão espacial destas transformações, parece haver tanto rupturas


quanto continuidades. Por um lado, há proliferação de condomínios fechados em
torno das grandes áreas valorizadas (Barra e Niterói), onde se estabelecem
shoppings, supermercados e parques de diversões suscitando, o aumento e a
ampliação da rede viária e criando um permanente déficit de transporte. Enquanto
por outro lado, persiste o crescimento dos bairros populares periféricos. Nestes,
podem ser observadas modalidades de urbanização que não se diferenciam
basicamente daquelas das décadas de 30 a 80 - ocupação de lugares de difícil
acesso e precária infra-estrutura. Outras áreas mudaram de uso. As antigas áreas
industriais e cercanias estão deterioradas e decadentes. Em compensação, as áreas
onde se localizaram as indústrias das décadas de 50 e 60 são hoje lugares da
modernização.

IV. Primeira Abordagem Teórica

A problemática sócio-espacial tomada a partir dos “transportes informais” requer


uma abordagem interdisciplinar, já que se trata de um fenômeno complexo no
qual se conjugam aspectos econômicos, sócio-culturais, políticos e espaciais, e
demanda do cruzamento de três eixos analíticos que permitam interpretar de
forma articulada as transformações no mundo do trabalho, na metropolização e
nos modos de circulação. Estes são:

 reestruturação produtiva, crise do trabalho e sujeitos sociais;

 metropolização e fragmentação socio-espacial;

 mobilidade, integração e acumulação flexível.


9

IV. 1. Reestruturação Produtiva, Crise do trabalho e Sujeitos Sociais

O tema pode ser abordado a partir da problemática da reestruturação produtiva,


que designa um vasto processo de mudança nas relações de produção, de
redefinição dos papéis dos Estados nacionais e das instituições financeiras, cujas
conseqüências para o mundo social ainda constituem em grande parte uma
incógnita. Nas empresas, compreende inovação tecnológica, reorganização da
produção e da organização produtiva e ainda, nas formas de gestão, tais como:
produção enxuta e especialização flexível. Nestes dois âmbitos, o fim da grande
empresa produtora de bens e serviços standartizados, para um mercado de massas
(empresa fordista) 0.

Alteram-se, assim, tanto o perfil do trabalhador-empregado quanto a relação entre


empresas e mercado consumidor. O termo flexibilidade expressa bem algumas
características centrais deste fenômeno. A produção deve alterar-se junto com as
flutuações do mercado, o que requer trabalhadores polivalentes, com formação
não convencional. Exige, além disso, que a própria regulação do trabalho seja
adequada, para permitir variações no volume e na qualidade do trabalho utilizado.
A organização das empresas em rede, sem que dependam, como outrora, da
proximidade, permite uma participação ágil no mercado internacional mas
acarreta a perda da centralidade da grande cidade industrial do passado devido à
relocalização das empresas entre regiões e países. Estas transformações -
abordadas usualmente como representativas de uma mudança no regime de
acumulação ou uma clivagem no paradigma industrial0 - implicam em mudanças
na estrutura social, de dimensões e profundidade pouco conhecidas.

As alterações na produção conduzem à diminuição do número total de


trabalhadores industriais, assim como, da sua representatividade na composição da
força de trabalho. Fala-se, então, do fim da “sociedade do trabalho” ou do fim da
“sociedade salarial” mas, o sentido atribuído à noção de “fim” não é unívoco.
Pode ser compreendido como esgotamento da capacidade explicativa da categoria
sociológica trabalho e, portanto, como limitação da teoria social, tal como
proposto por Offe (1989), ou como abandono do trabalho industrial como
parâmetro nivelador das diferenças sociais e condição de cidadania, como

0 Ver Kern & Schuman,(1991) e Piore e Sabel (1984).


0 Ver respectivamente Harvey (1998) e Piore & Sabel (1984)
10

formulado por Castel (1998).

No primeiro caso, a crescente heterogeneidade do mercado de trabalho tornaria


duvidosa a importância do trabalho “na percepção dos interesses sociais, na
autoconsciência, no comportamento organizacional e político dos trabalhadores”
Quer dizer, na medida em que o trabalho não é mais capaz de propiciar a
formação de sujeitos coletivos, teria se “tornado abstrato” - surgindo, apenas, uma
categoria estatística descritiva e não mais “uma categoria analítica capaz de
explicar estruturas, e conflitos e ações sociais” 0.

No segundo caso, o decréscimo da oferta de trabalho industrial inviabilizaria que


este seja visto como meta e solução para a integração social e garantia da
igualdade, não apenas porque os trabalhadores não se identificam com a sua
atividade mas, também, porque o desemprego e a diminuição do salariado
industrial limitam os fundos disponíveis para programas de proteção social e de
renda mínima, típico do estado de Bem-Estar. Nesta perspectiva, o desemprego e a
impossibilidade de incorporar os “excluídos” do mundo industrial trazem
novamente à tona a questão social, já que ameaçam a coesão social ao
reestabelecerem a tensão e a anomia na relação economia-sociedade.

Na tentativa de encontrar algum arranjo institucional que permita gerir o problema


da “exclusão” decorrente do desemprego, entrecruzam-se várias linhas de
pesquisa e frentes de ação. Assim, por exemplo, o setor ou a economia informal
deixam de ser pensados como fenômenos próprios da marginalidade urbana -
resquícios da economia tradicional devido aos limites da modernização e à falta
de desenvolvimento - para serem percebidos como uma maneira de lutar contra a
pobreza0.

Ainda mais, nesta nova visão, promovida principalmente desde os modernos


meios de comunicação, o pequeno empresário aparece como um ator portador de
um projeto próprio, “com vontade de atingir o correto empreendimento”, sendo
capaz “de aderir a novos campos de atividades sem protecionismos ou subsídios”.
A figura do pequeno empresário abrange por igual “iniciativas precárias” e grupos
de elite. Seus empreendimentos constituiriam “não apenas um celeiro de idéias e

0 Offe,1989, p.21
0 Ver De Soto (1987).
11

de lucros mas de empregos0“. Quer dizer, a pequena empresa contemporânea seria


um fator de desenvolvimento.

A promoção da pequena empresa como solução econômica e social para o


desemprego ocorrendo simultaneamente à informalização da atividade econômica
permite a relação da informalização com a dominação social. Isto é, mediante a
desregulação não se busca apenas a super-exploração mas, sim, também garantir a
subordinação social. Esta concepção fundamenta-se na idéia de que os
trabalhadores informais enfrentam obstáculos para sua organização, sendo
incapazes, portanto, de se auto-construírem como sujeitos coletivos 0.. Assim,
Castel (1998) avalia ser impossível que os desempregados e os informais lutem e
conquistem novas formas de cidadania e de participação. Igualmente Touraine
(S.D.), sustenta que os informais, na América Latina, são incapazes de se
organizar: tendem à passividade e se envolvem, apenas, com movimentos de
cunho clientelista.

Quando é formulada a questão da crise do trabalho, problematiza-se o poder


explicativo das relações de trabalho como principal âmbito estruturante do social.
O enfraquecimento do vínculo de emprego desperta temor quanto às suas
conseqüências para a de coesão social. A mesma levaria, também, a que
desapareça a expectativa de que uma classe ou um grupo social venha a tornar-se
um sujeito coletivo, com força suficiente para ocupar o espaço social, político e
utópico deixado pela classe operária e pela indústria.

IV. 2. Metropolização e Fragmentação socio-espacial

Desde o ponto de vista espacial, estes processos têm como cenário privilegiado as
grandes regiões metropolitanas, que “tendem a recuperar protagonismo e
constituir-se nos espaços da crise global e na forma central de organização
territorial do capitalismo0.”. Nos grandes centros urbanos, espaços especializados
pela gestão econômica articulariam-se além da esfera local e nacional numa “rede
solidária” de cidades globais. Neste contexto, a metropolização impulsionada pela
industrialização, pareceria, nas últimas décadas, estar mais vinculada “ao
aparecimento e difusão espacial de grandes equipamentos de consumo, à

0 Ribeiro, 1995
0 Morice, 1994
0 Ciccolella, 1999
12

formação e revitalização de distritos de comando e à difusão de novas tipologias


de espaço residencial de classes médias altas”. A “ordem territorial taylorista-
fordista, estaria, assim, sendo substituída por uma ordem territorial pós-fordista,
pós-social e pós-moderna0”, na qual a informação e o conhecimento têm um papel
central.

A cidade fratura-se, então, “em setores, bairros, municípios escassamente


integrados, não rentáveis ou deprimidos e em fragmentos urbanos modernos,
globalizados, especializados e competitivos”. Cristaliza-se em certos pontos do
território “uma lógica correspondente ao novo momento histórico” em que certos
espaços são capazes de conferir valor a atividades, pessoas e mercadorias.
“Confluem os resultados contraditórios de um processo de modernização que
impõe novas formas de atraso”, configurando um processo que Santos (1990a. p.
28) denominou “involução urbana” e, anos depois, de flexibilidade tropical” 0.

Desde esta perspectiva, a segregação espacial típica da cidade latino-americana


não se aproxima ao processo de exclusão social concebido por Castel. Ocorreriam,
aqui, dois processos simultâneos: junto à modernização de atividades haveria
expansão da pobreza e dos empregos mal remunerados. Uma “proliferação de
atividades com diferentes níveis de capital, trabalho, organização e tecnologia,
menores que no setor moderno que surgem como uma forma de suprir a demanda
de empregos e serviços (...) que a economia monopolista não consegue atender”.
Estes serviços suprem uma população ‘marginalizada’ e, com isto, desenvolve-se
“uma vasta classe média e pobre”. São atividades econômicas que se inserem em
“diversos circuitos de circulação, distribuição e consumo que lhes permite
trabalhar segundo diversas taxas de lucro0”.

“O tamanho da cidade dá novas dimensões à segregação espacial,


criando um número maior de áreas relativamente homogêneas (níveis
de renda da estrutura sócio-profissional, da variação de consumo)
(...) que induzem à instalação de uma certa tipologia de produção de
bens, serviços e comércio. Cada sub-área age desse modo(...) dessa
forma a cidade admite e cria ( enquanto meio geográfico) formas
produtivas variadas e diversas”(Santos, 1990a. p. 45).
A segregação espacial e a superposição de lugares novos – modernos lado a lado
dos antigos - apresenta-se, mediante a combinação da perspectiva sociológica e
0 Ciccolella, 1999
0 Santos, 1999.p. 260.
0 Santos , 1990a p. 28
13

geográfica, como configuração de uma urbanização de base pobre. Deste ângulo,


é possível pensar que, antes que exclusão, existe reclassificação dos espaços e das
relações sociais comandada pelas práticas hegemônicas0. A segregação sócio-
espacial pode ser interpretada, assim, como fator de dinamismo econômico - tal
como apontado antes - e talvez social/político se refletida à luz da experiência
histórica, quando, nos anos 70, àquela urbanização deu base a vigorosos
movimentos sociais0.

IV. 3. Mobilidade, Integração e Acumulação Flexível

Desde a perspectiva da engenharia, os transportes seriam uma função da


comunicação própria da administração da sociedade; quer dizer, atendem à
necessidade humana de comunicação. Até a revolução industrial, esta necessidade
teria sido satisfeita mediante práticas racionalizadoras pouco científicas que não
maximizariam os recursos disponíveis. “As técnicas modernas possibilitaram o
crescimento vertiginoso das cidades”0, ocasionando novas necessidades. Haveria,
assim, tensão permanente entre crescimento das necessidades humanas e respostas
técnicas, gerando perda da qualidade de vida nas cidades. A partir desta
concepção, afirmam-se duas óticas. A primeira, expressa-se no ideal
desenvolvimentista0 e, a segunda, corresponde à sua crítica, atribuindo o problema
da ineficiência dos transportes aos equívocos do modelo de desenvolvimento
anteriormente adotado0.

O problema técnico nos transportes consistiria na sub-utilização do transporte de


massas, principalmente nos países que optaram por um “modo de vida” pautado -
como o norte-americano - no transporte individual. Se bem que não se trata de
uma tendência nova, este fenômeno teria adquirido novas formas de manifestação.
A mobilidade permitida pelo automóvel contribuiria para a formação de uma
0 Santos, 1999. p. 218
0 Ver Moisés & Allier (1978).
0 Branco, 1980
0 Este tipo de problema é exposto na apresentado no Estudo Preliminar do Transporte da Região Metropolitana
da Cidade de Buenos Aires (1972, p. 2). Nele, o transporte é considerado um dos grandes problemas da grandes
áreas metropolitanas do mundo. “A falta de serviços de transporte de passageiros e de bens adequados,
modernos e regulares e velozes constitui um fator de atraso no desenvolvimento dos povos. A sua insuficiência
e desorganização eqüivalem ao desperdiço de tempo e energias, à insegurança na comunicação dos indivíduos
com implicações de ordem econômicas e sociais”. (..) Como, por outro lado, a ordenação e atualização desses
serviços, para mantê-los à altura imposta pelo contínuo aperfeiçoamento técnico e as necessidades sempre
crescentes da população, requerem investimentos sumamente quantiosos, é preciso e conveniente prever com a
devida antecipação as futuras necessidades em matéria de obras e serviços públicos de transporte.
0 ANTP, 2002. P. 1
14

“urbanização dispersa” ou “urbanização em rede”0, na qual o centro histórico


perde importância. A metrópole expande-se por uma ampla região, transformando
os usos do solo e tornando ineficazes as formas habituais de gestão urbana: tratar-
se-ia de “um desafio ao conhecimento urbano”0, já que estariam sendo
configuradas novas relações entre sociedade e território.

Esta última perspectiva é enfatizada pela Geografia. Desde uma “postura teórico-
metodológica neo-marxista”0, a compreensão do transporte incorpora uma outra
dimensão, considerada até então ausente. Tem uma “participação fundamental na
organização do território” já, que corresponde a um “momento de circulação no
espaço”, funcional ao padrão de acumulação “próprio da estrutura de poder
dominante0”. Para a análise crítica trata-se, então, de um fator crucial na
segregação sócio-espacial.

Como processo de trabalho, o transporte “articula território e sociedade, mudando


a localização de bens e pessoas com o propósito de superar a distância física que
separa os locais de produção e consumo, resultado da divisão territorial do
trabalho. O modo em que está organizada a produção define o tipo, dimensão e
freqüência da circulação0”. Isto é, o transporte “viabiliza a concentração e
espacialização de atividades e a expansão territorial0”. A estratégia expansionista
manifesta-se através da aceleração dos tempos de circulação de bens e pessoas,
possibilitando a integração de “novos espaços ao sistema econômico 0”. Esta
especificidade do transporte urbano - que permanece constante em todas as
escalas - permite compreendê-lo como uma ferramenta da produção do espaço. É
portanto, “objeto de conflito de interesses sociais0”.

Mas no mundo moderno, e hoje de maneira mais radicalizada, aumentaria “a


exigência de fluidez para a circulação de idéias, mensagens, produtos e dinheiro
interessando aos atores hegemônicos”0. “Fluidez e racionalidade são os axiomas

0 Castells, 1999
0 Gottdiner, M. 1993. p. 15
0 González, 1998, p. 4
0 Escolar, 1989, apud, Gutiérrez, 1998.
0 Gutiérrez, 1998. p.13
0 Gutiérrez, 1998. p.13
0 Gutiérrez, 1998. p.13.
0 Martins e Sequeira Santos, 1991, apud Gutiérrez, 1998. p. 11
0 Santos, 1999 p. 218
15

fundamentais da realidade mundial”, pelos quais “gera-se um território global


onde os fluxos mundiais encontram suporte em certos pontos do espaço 0”. A
incorporação à rede global de fluxos (re)significa os lugares, redefinindo a cidade
e a rede nacional e internacional na qual se insere. Certos lugares tornam-se zonas
de rentabilidade “luminosas” e outras “zonas opacas”0.

Esta conjunção de processos explica, então que a cidade decline em seu papel
industrial e de âmbito vivencial de encontro e de sociabilidade, ao mesmo tempo
que amplia a sua função como “espaço de valorização do capital, como locus de
competitividade”0. Radicaliza-se então a segregação sócio-espacial. Emerge a
denominada dualização urbana, já que junto a “novas classes médias apareceria
uma multidão de gente pobre0”, sem que exista a possibilidade de convivência e
integração nem na urbe nem na esfera política.

Quer dizer, a reestruturação do capitalismo, antes descrita como reestruturação


produtiva, teria levado à redefinição do espaço urbano, transformando a
circulação. Há uma demanda incessante de mobilidade que se manifesta nas novas
modalidades de transporte, “no volume e direcionamento dos fluxos, orientados
no sentido de aprofundar a dicotomia entre transporte público e transporte
privado0”. Haveria, assim, uma “reestruturação desde a oferta”, não comandada
pelo consenso ou pelas carências, possível pelo abandono da “concepção do
transporte como serviço público”0, própria do denominado estado interventor. A
subordinação de políticas de transporte público de acordo à rentabilidade das
empresas contribui, então, para aprofundar a dualidade da cidade, aprofundando
os fenômenos da marginalidade e da exclusão sócio-territorial por diferenças de
oferta, qualidade e preço”0.
Assim, a fragmentação a que me referi acima como uma ruptura do tecido urbano,
do contínuo da cidade, pode tornar-se, também, perda de urbanidade, na medida
em que, ao dificultar a convivência entre diversos, gera perda de dinamismo e
produtividade mental. Quer dizer, ao dificultar a mobilidade espacial e o contato

0 Santos, M. Apud. Gutiérrez, 1998. p. 5


0 Santos, 1999. p. 246
0 Ciccolella, 1999. p. 2
0 Santos, 1990a 13
0 Gutiérrez, 2000.p. 5
0 Gutiérrez, 1999. p. 15
0 Gutiérrez, 1998. p. 16
16

entre as diversas formas de ser e de viver na metrópole, ameaçaria o seu próprio


dinamismo. Enfim, existe risco para a cidade enquanto como espaço da liberdade e
da criatividade, fundamentos do cosmopolitismo e do convívio dos diversos. A
cidade que emerge é vista com desconcerto por muitos. Parafraseando Touraine:
um emaranhado de auto-estradas e de tribos urbanas que não se relacionam não
constitui uma sociedade.

V. Hipóteses
A primeira abordagem teórica do problema tratado expõe os obstáculos
encontrados na compreensão do fenômeno. A dicotomia regulação versus
desregulação, mediante a qual são abordadas tanto as relações de trabalho quanto
as estruturação sócio-espacial da cidade, elimina a riqueza sociológica da
reflexão. Antes que uma mera desregulação, as transformações do trabalho bem
como a emergência dos transportes informais, corresponderiam à consolidação de
um novo marco institucional destinado a promover a fluidez e a racionalização do
espaço urbano em concomitância com as necessidades econômicas num do regime
de acumulação flexível.

Mas, os novos transportes escapam à concentração econômica que ônibus, trens e


metrôs tenderam a acentuar nos anos 90. São ocasião de uma luta em que os
grandes capitalistas ainda não triunfaram. Nessas modalidades, podem ser
identificadas formas de resistência social e econômica que frustram ou dão outro
sentido às necessidades do capital.

Os transportes informais estariam, então, no centro de um conflito pela definição


do agente legítimo da nova ordem urbana. Assim, se os agentes envolvidos no
transporte alternativo reivindicam, se organizam e conseguem um lugar na cidade,
isto contraria a noção de que, nas atuais condições, os trabalhadores isolados e
pequenos patrões não conseguem agir como sujeitos coletivos autônomos,
indicando, ademais, a existência de tendências contrárias à fragmentação
promovida pelos atores hegemônicos.

Igualmente, a contradição entre a promoção do empreendedorismo e a sua


repressão, sugere que o pequeno empreendedor urbano não se integra com
facilidade às necessidades do capital manifestando a continuidade de práticas que
não se adequam docilmente aos modismos da indústria cultural. Quer dizer, no
17

surgimento e desenvolvimento dos transportes informais, evidenciar-se-ia a


existência de um ethos do trabalhador autônomo, próprio da cidade latino-
americana; de uma cultura do trabalho sui generis que permanece viva. De
maneira que o fenômeno estudado não seria um resultado mecânico do aumento
do desemprego nem das necessidades do capital.

VI. Método
Provar ou refutar as hipóteses exige a obtenção de dados específicos, difíceis de
conseguir na medida em que se trata de constatar, através das alterações nas
condições de circulação, outras transformações morfológicas, sociais e econômicas
em curso, a determinação conflitos e de resistências. Estes propósitos exigem,
primeiro, que se localize e caracterize a formação e a expansão do transporte
informal por vans através do debate e ações que visem promover a fluidez e a
competitividade urbana, considerando como se inserem e o lugar social em que
ocorrem.

Num segundo momento, verificar a hipótese de que os transportes informais


afirmam uma tendência contrária à fragmentação, supõe, não apenas mapear os
lugares interconectados e sua freqüência mas, também, identificar a rede de
relações sociais e econômicas estabelecidas e, principalmente, determinar seus
vínculos com a esfera política, suas organizações e capacidade de mobilização e
luta.

Finalmente, provar que existe um ethos do trabalhador autônomo implica em


verificar as práticas novas à luz do conhecimento já alcançado sobre os mercados
não formalizados de trabalho nas metrópoles brasileiras, a fim de constatar
rupturas e continuidades nas transformações econômicas mas, sobretudo, nos
projetos, estratégias, concepções e percepções, experiências de crenças e valores
coletivos que pautam ações econômicas, tornando-as regularidades sociais.

Dada a falta de informações estatísticas que permitam estabelecer uma amostra e


um recorte significativo do universo estudado e considerando as várias dimensões
envolvidas na análise pretendida, busquei construir a pesquisa mediante estudo
crítico das concepções mobilizadas para explicar, combater ou defender os
transportes informais, explorando a distância entre fatos e discursos. O principal
método acionado nesta tese, foi então, a análise de discurso: apontando quem e o
18

que assinala e, distinguindo, analiticamente, os elementos discursivos, a disputa e


os aspectos factuais destacados na escala metropolitana.
VI.1. Os dados e o seu tratamento
O trabalho de pesquisa funda-se em várias bases de dados que possibilitam
encontrar pistas e indícios capazes de explicar os fenômenos para além das
controvérsias mais usuais. Utilizei para tanto vários procedimentos de coleta e
análise que inventario à continuação.
1) Pesquisa em jornais: a) Foi realizado levantamento de todos os artigos e notícias
publicados no jornal O Dia, entre 1990 e Junho de 1991 com o propósito de
estabelecer a situação existente antes do surgimento do transporte informal,
realizado por vans e kombis.
b) Foi organizada base de dados semelhante, com artigos do Jornais do Brasil e O
Globo entre 1993 e 2002 e um levantamento, menos sistemático, no jornal O Dia,
dada a falta de disponibilidade de bases informatizadas.
c) Foram pesquisados, noutros periódicos, também, todos os artigos, sobre os que
tive informação, especialmente na revista Veja.
d) Foi realizado levantamento na revista Pequenas Empresas Grandes Negócios,
buscando identificar os registros do transporte informal.

2) Complementarmente, realizei trabalho de observação do transporte na


Metrópole do Rio de Janeiro, mapeando e sistematizando informações relativas a
sua qualidade e linhas na mancha urbana. Registrei, também, as áreas de maior
incidência destes tipos de transporte, a presença de cooperativas, suas linhas e
características.

3) Visitei cinco cooperativas e entrevistei doze operadores de transporte informal,


quatro lideranças da categoria de três organizações diferentes: uma municipal e
duas estaduais.

4) Entrevistei, também, os funcionários do SMTU e do DETRO, responsáveis


pela regulamentação e regularização do transporte informal.

5) Paralelamente efetuei levantamento de publicações, sobre o tema, da


Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), da Associação Nacional de
Empresas de Transporte Urbano (NTU) e de pesquisas realizadas pelo Laboratório
de Engenheiros de Transporte (LET/PET/COPPE/UFRJ).
19

6) Por último efetuei pesquisa direta com 93 usuários, alunos de uma faculdade
privada e outra pública, avaliando as condições do transporte informal no Rio de
Janeiro.

VII. Os capítulos

Abordar o tema da metrópole, o ordenamento intra-metropolitano e a formação de


laços sócio-culturais entre os habitantes, a partir dos meios de circulação para
saber como, quando e quem altera as práticas de circulação e quais são as suas
conseqüências para a vida urbana, como foi proposto, neste primeiro capítulo,
remete a um complexo arcabouço teórico. Portanto, no segundo capítulo, abordo
esta problemática desde uma perspectiva teórica, reformulada e aprofundada em
relação à já esboçada, pautada, agora, sobre dois eixos analíticos: urbanização e
ordem urbana e práticas, cotidiano e sujeitos sociais. No primeiro eixo, os
problemas contemporâneos da urbanização - integração mundial, fragmentação
metropolitana e exclusão - são cotejados à luz da tradição acumulada pelas
Ciências Sociais (Sociologia Urbana) que relaciona modernidade, industrialização
e urbanização estabelecendo um vínculo analítico entre a circulação e ordem
urbana. No segundo, eixo analítico, busco relacionar aquele conhecimento a um
saber sociológico focalizado sobre a ação, nas práticas e no cotidiano
metropolitano, de modo a complementar um saber mais geral com outros mais
específicos, referentes à vida urbana e sua experiência.

O restante dos capítulos está organizado segundo critérios que, a partir do


reconhecimento da percepção social do transporte informal, buscam a
identificação dos lugares e das concepções dominantes com que se procura
esclarecer a questão para submetê-la à crítica.

O terceiro capítulo, então, é uma tentativa de determinar a percepção social do


fenômeno tal como registrada na grande imprensa. Como terei ocasião de
demonstrar, a abordagem do tema não é unívoca nem estável, alterando-se com a
conjuntura política e com a própria luta pela legalização. De fato, os transportes
informais - fenômeno anterior à sua descoberta pela imprensa - apenas quando
tratados por esta tornam-se uma questão relevante. Foram tomados, primeiro,
como uma solução aos problemas de transporte e do trânsito, sendo condenados
20

ou silenciados. Esta inflexão revela não apenas os interesses em jogo, mas a


tentativa de enquadrar as práticas sócias emergentes em determinados cânones.

De como se produz este enquadramento, trato no capítulo quarto. Mesmo que não
seja na imprensa que se tomem as decisões e se estabeleçam os critérios para a
ação institucional, encontra-se nela um registro das concepções que orientam o
poder público. Nesse capítulo, delimito as concepções e critérios que auxiliam a
avaliação dos problemas e permitem prescrever os parâmetros dominantes da
circulação na metrópole.

No capítulo quito exponho os principais argumentos e concepções mobilizados na


explicação dos transportes, pelas associações empresariais e instituições técnicas
articuladas na ANTP, NTU, assim como estudos técnicos menos desfavoráveis aos
transportes informais, buscando identificar as linhas mestras que organizam
análises, diagnósticos e intervenções. Da crítica aos limites e omissões da visão
técnica, depreendem-se os capítulos seguintes.

No capítulo sexto abordo, então, a relação entre os transportes e transformações


na morfologia metropolitana. No capítulo sétimo incorporo dimensões políticas
presentes na regulamentação e formulação de políticas metropolitanas de
transporte.

No capítulo oitavo trato a problemática do setor informal partindo da contribuição


da teoria dos circuitos da economia metropolitana de Milton Santos
complementando-a com uma abordagem sócio-antropológica para trazer à baila os
aspectos culturais que pautam o comportamento econômico dos agentes
diretamente envolvidos na produção do transporte informal. E, finalmente, no
capítulo nove, abordo as lutas pela legalização desde o ponto de vista dos
movimentos sociais.
1

Capítulo 2
Urbanização e Circulação, Espaço e Ação Social: estudo dos conceitos

I. Introdução

Abordar os transportes urbanos implica considerar, pelo menos, três conjuntos de


fenômenos e de saberes: o urbano, a circulação e a hierarquia de lugares
conformada pelos meios de circulação. Estes objetos e fatos empíricos - tratados
por diversas práticas e disciplinas que e interferem no urbano – constituem um
campo particularmente difícil formado numa encruzilhada, científica e empírica.

O conhecimento científico sobre o urbano compreende um conjunto de saberes


parciais0 e díspares, não organizados num único corpo de conhecimento, cujo
estatuto científico é amiúde posto em questão já que não possui um objeto teórico,
epistemologicamente fundado, sendo lugar de operação entrecruzada de diversas
disciplinas aplicadas. Até o momento, inúmeras tentativas de solução foram
efetuadas, mas nenhuma foi capaz de estabelecer um paradigma capaz de unificar
o campo0.

Parte do problema funda-se em dilemas científicos, porque o urbano manifesta de


modo singular a irredutibilidade do social: o cultural, o econômico, o político e o
espacial, numa realidade sui generis e complexa, cuja dinâmica plena escapa à
compreensão e aos instrumentos da ciência moderna, dada sua tendência à
redução analítica, à hiper-especialização e ao imperialismo disciplinar0.

Problemas de origem são agravados quando é considerado o processo de


urbanização contemporâneo, dada a sua dimensão e intensidade, de modo que os
conceitos que caracterizam a vida urbana apresentam a cidade como uma forma
de assentamento - uma concentração humana em áreas limitadas onde é possível
observar um ‘modo urbano de vida’ diferenciado do ‘modo rural de vida’ –

0 O objeto urbano comporta, entre outras, contribuições econômicas, arquitetónicas, sociológics, antropológicas,
geográficas, demográficas, etc. Estes saberes, ao debruçar-se sobe o objeto estão sujeitos à super especialização e
recomposição sobre outras formas mais específicas tais como as engenharias de tráfego e transportes e o próprio
planejamento urbano.
0 As várias tentativas de solução teórica do problema apontam para além do exclusivamente urbano: para uma
teoria crítica do planejamento (Castells, 1978) ou para uma teoria do espaço (Lefebvre, 1974; Santos, 1978;
1996, Harvey, 1991; Gottdiner, 1993 etc.). De todo é bom frisar que a urgência e valor do saber sobre o urbano
radica na sua relevância empírica como fenômeno e como processo (Lefebvre, 2002).
0 Ver Morin (1998) e Léfèbvre (1974; 2001).
2

conduzem a uma descrição inadequada das cidades atuais que "a partir de 1960
conformam áreas metropolitanas polinucleadas fora da cidade central. Isto é,
regiões urbanizadas não mais organizadas pelas atividades de um centro
histórico”0.

Este fato autoriza muitos autores a falar de urbanização mundial ou mesmo de


megalópoles. Trata-se de uma urbanização dispersa em grandes extensões
geográficas, articulada em torno de uma pluralidade de centros integrados a redes
nacionais e globais de circulação de bens, pessoas, dinheiro e informação cujos
efeitos intrametropolitanos permitem falar, também, de metrópoles globais e, ao
mesmo tempo, fragmentadas. Nelas alguns lugares integram-se diretamente à rede
econômica e técnica mundial, dando ocasião a vidas e estilos de vida em padrões
internacionais, enquanto outras áreas são relegadas a uma situação marginal,
mediante uma re-hierarquização de lugares, de grupos e práticas sociais .

Muitos afirmam que, contraditoriamente, enquanto a urbanização se acelera, o


significado “dos lugares (...) tende a desaparecer (...) varrido pela intensificação
dos fluxos econômicos e principalmente pelos fluxos, nos quais repousa a nova
fonte de poder, os espaços dissolvem-se”0. Com isto, perder-se-ia em urbanidade,
em riqueza intelectual e em dinamismo, aspectos que pareceriam caracterizar a
metrópole moderna, já que grupos diversos deixam de conviver e conformar uma
sociabilidade comum. Violência, crime e informalização são fenômenos
associados à modernização técnica, econômica, e sócio-cultural, que transforma às
cidades em “acampamentos de guerra patrulhados por satélites computadorizados
e resistidos por populações clandestinas”0.

Entre nós, a problemática das metrópoles contemporâneas apresenta-se com a


aparência de “uma dualização”0 ou, em verdade, como a superposição de uma
urbanização fragmentada a um tecido social formado no passado e caracterizado
pela relação centro – periferia. Esta urbanização superposta agrava o quadro
precedente de marginalização e precariedade social, econômica e espacial.

Abordar, a temática da metrópole, o ordenamento intra-metropolitano e a


formação de laços sócio-culturais a partir dos meios de circulação, impõe o
0Gottdiner, 1993. p. 15
0 Castells, 1997, pp.41-42
0 Castells, 1997. p. 51
0 Cardoso & Ribeiro, 1996
3

recurso a orientação teórica referida ao transporte e à informalidade. Melhor


dizendo, torna-se necessário refletir como, quando e quem altera as práticas de
circulação e quais são as suas conseqüências sobre a experiência urbana.
Abordarei esta problemática mediante dois eixos analíticos: urbanização e ordem
urbana; e práticas, o cotidiano e sujeitos sociais. No primeiro, os problemas
contemporâneos da urbanização, (integração mundial, fragmentação
metropolitana e exclusão) são cotejados à luz da tradição acumulada. Saber que
relaciona modernidade, industrialização e urbanização, que alcançou reconhecer
vínculos analíticos entre a urbanização e a circulação, com capacidade permitir a
caracterização da ordem ou organização urbana. No segundo, buscarei relacionar
aquele conhecimento a um saber sociológico focalizado na ação, nas práticas e no
cotidiano metropolitano de modo a complementar um saber mais geral com outros
mais específicos, relativos à vida urbana.

II. Urbanização e Ordem Urbana: integração mundial, fragmentação


metropolitana e exclusão social

De maneia geral, a abordagem da urbanização é acompanhada pela avaliação do


próprio termo, o que significa a atribuição de vários sentidos ao conceito: trata-se
de uma aglomeração com uma certa densidade populacional ou trata-se de um
estilo de vida? Aponta-se, também, para a insuficiência da definições 0. Outrossim,
inequívocos são os vínculos do fenômeno com a vida moderna, de forma que a
cada transformação desta, altera-se, também, sua configuração, organização e
relevância cultural.

Nas atuais condições de modernidade radicalizada ou pós-modernidade0, a


urbanização assumiria um caráter específico e próprio. Assim, se até pouco tempo
atrás era lícito falar de uma cidade industrial, agora, considerando-se as
transformações sócio-econômicas - aludidas pelo conceito de globalização –
poder-se-ia afirmar o caráter difuso e fragmentado da urbanização, fundada sobre
bases técnicas e econômicas diferentes, como ilustra a citação a seguir: a “ordem
territorial taylorista-fordista, estaria, assim, sendo substituída por uma ordem
territorial pós-fordista, pós-social e pós-moderna”0.

0 Ver Germani (1971) e Castells (1969).


0 Giddens (1991) e Harvey (1989) respectivamente
0 Ciccolella, 1999
4

Na citação, o vínculo entre urbanização, industrialização e modernidade se dá


diretamente. O território das metrópoles transforma-se por efeito da ação das
empresas, em função das características técnicas e sociais que demandam,
hierarquizando e destacando os lugares acessíveis. Isto significa, atualmente, que
áreas que permitem a circulação e a aceleração dos fluxos de bens, informações e
pessoas são hierarquizadas “já que hoje a informação e o conhecimento têm um
papel central”0.

O pensamento contemporâneo sobre o urbano valoriza a conexão em redes


técnicas articuladas mundialmente e reconhece que esta integração fragmenta as
cidades, incluindo e excluindo lugares segundo as possibilidades de interconexão.
Entretanto, estas afirmações, não vêm, em geral acompanhadas de remetimentos
aos conceitos de ordem e de circulação, nem de uma avaliação do papel da
economia e da técnica na consolidação de uma nova ordem urbana. Em
conseqüência disto, parece-me prudente e necessário estabelecer a relação entre os
conceitos de ordem urbana, modernização e economia (industrialização) em
articulação com noções de circulação, mobilidade e acessibilidade. Conceitos
inter-relacionados que remetem à própria formação da sociologia urbana e que
denotam aspectos diferentes daqueles valorizados pela economia ou pelo
pensamento técnico.

II.1. Urbanização, Modernidade e Industrialização

Os debates e interrogações sobre o fenômeno urbano, sobre o seu


desenvolvimento ou involução e sobre sua globalização ou fragmentação, erguem-
se a partir de uma base comum às Ciências Sociais que relaciona, de modo
indissolúvel, urbanização, industrialização e modernidade a tal ponto, que na
América Latina os três termos foram definidos como quase sinônimos, servindo
de parâmetro à análise dos processos de modernização0. O alinhamento analítico
desses elementos remonta aos clássicos das Ciências Sociais, consolidando um
saber sobre o urbano e o ordenamento do espaço intra-metropolitano ou ordem
sócio-espacial metropolitana.

0 Ciccolella, 1999
0 Assim, Germani, em 1971, tratava a urbanização como uma “concentração ecológica, relacionada (entre outros
aspectos) com o desenvolvimento econômico e a modernização social”. A urbanização era o processo tendente a
alcançar a “sociedade industrial moderna”, na qual entrelaçam-se aspectos econômicos culturais e sociais
dinâmicos, de tal modo que as sociedades buscam e tolerem a mudança. Isto é, processos tendentes a criar
sociedades em que a mudança seja legítima, rompendo radicalmente o tradicionalismo.
5

Mas a clássica noção sociológica de ordem, antes que descrever a morfologia da


cidade, toma a urbanização como processo geral tendente a atingir a totalidade da
experiência social. O sentido que se pode inferir de uma noção de ordem urbana,
neste caso, é proveniente do conceito weberiano de ordem vigente (vigência de
uma ordem): um tipo de regularidade social produzida pela crença, individual ou
coletiva, na “existência de uma ordem legítima” 0. Isto é, ações e relações sociais
pautadas em algum “regulamento de serviço” que é obedecido pela existência de
um “sentimento de dever” que vige tanto quando é obedecido, como quando é
contornado e que requer algum tipo de institucionalização que permita reprimir
e/ou convencer0.

Tal noção é análoga à concepção do funcionalismo de “ordem moral0”, composta


dos mesmos elementos que, no segundo caso, integram o grupo e que, no
pensamento marxista - não sendo uma reflexão da ordem - será denunciada como
estruturada certas relações sociais de produção que favorecem certas classes e
seus interesses encobertos por ideologias0, sendo assim, uma ordem de classes.

II.1.1 Da Ordem Social à Morfologia

Os elementos que compõem o conceito de ordem, na tradição sociológica são


sociais e culturais. Estão orientados pela tentativa de estabelecer a dimensão e o
alcance das sociedades modernas demarcando as unidades mínimas de análise
sociológica, de modo a relacionar ações e interações concretas entre indivíduos e
grupos, com características estáveis, relações que se reproduzem no tempo e no
espaço, estabelecendo o sentido objetivo das ações. Essa concepção não permite,
entretanto, aproximação direta, com o que os geógrafos denominam ordem
territorial urbana, apoiada no uso, diferenciação e hierarquização dos lugares e em
práticas que sustentam a morfologia sócio-espacial.

É bom recordar que a Morfologia Social0, que os funcionalistas franceses


conceberam e principiaram a desenvolver, relacionava aspectos geográficos dos
0 Weber, 1991. p. 19
0 Essa concepção é bem ilustrada pelo tipo psíquico do homem metropolitano descrito por Simmel (1973), que
se distingue de todo e qualquer outro tipo histórico, pelo predomínio do intelectualismo e da individuação.
Ambos elementos, dessa ordem social, explicam-se pelo fato da metrópole ter como instituição predominante a
própria economia capitalista.
0 Para Durkheim (1990. p. 10), as regras sociais, a divisão social do trabalho, e representações coletivas são
fenômenos morais na medida que produzem solidariedade social.
0 Marx, 1964. p 104
0 Durkheim, 1990. p. 70.
6

tipos sociais aos aspectos morais e culturais. Segundo Mauss (2001. p. 37), entre
as rubricas da Sociologia, a Morfologia, era quase uma metade primordial, “e uma
das mais independentes”. Deveria ser isolada e mesmo abstraída de outras partes
da sociologia, dedicadas à Fisiologia social. Desde essa perspectiva, por exemplo,
seria pouco interessante o estudo da distribuição da divisão do trabalho. Era
preciso estabelecer um quadro geral das morfologias humanas aliando a
demografia e antropogeografia.

A Morfologia era definida, assim, como uma

“(...) ciência que estuda, não apenas para descrevê-lo, como também
para explicá-lo, o substrato material das sociedades, isto é, a forma
que elas assumem ao estabelecerem-se no solo, o volume e a
densidade da população, a maneira como esta se distribui, bem como
o conjunto de coisas em que se assenta vida coletiva” (Mauss, 1974.
p. 237).
A abstração dos outros aspectos sociológicos, na própria análise, permite articular
os elementos que configuram o social. de modo a permitir conceber que a forma
material dos agrupamentos humanos resulta da relação, mediada pela técnica,
entre os meios necessários à vida - existentes num dado território ou lugar - e os
grupos0. A técnica, entretanto não determina totalmente a forma que se explica
relacionando-a a outras características de cada civilização. Porém, as técnicas
fincam as bases objetivas da morfologia: quando esta muda, muda também a
religião, o direito, a moral que, concomitantemente, transformam-se 0. Esta
proposta que buscava a elaboração de uma morfologia geral poderia ser abordada
também de uma outra maneira.

Durkheim, em As Regras do Método sociológico estabeleceu que a morfologia


seria a “a parte da sociologia que tem por tarefa constituir e classificar os tipos
sociais”0. Tratava-se de identificar as partes mais simples do social que sendo da
mesma natureza que os fenômenos da fisiologia, variariam de acordo com “as
formas de associação” entre as partes0”.

Mas a morfologia não se constituiria, para esta corrente de pensamento, apenas


pela identificação da distribuição e da densidade das coisas. Estas são “matéria
0 Mauss, 1974. p. 326
0 Inaugura-se aqui a noção de determinação relativa, e a expectativa da modernização como ajuste técnico,
econômico e comportamental.
0 Durkheim, 1970. p. 70
0 Durkheim, 1990. p. 98
7

sobre a qual se aplicam forças vivas da sociedade” que “não desprendem por si
mesmas nenhuma força viva0. Mas “possuem, outrossim (..) propriedades (...)
suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos sociais” 0., dispostos
segundo duas características: o volume da sociedade e o grau de concentração de
massa ou intensidade dinâmica (grau de concentração), equivaleria ao
estreitamento moral (densidade moral). Com isto afirma-se um hiato entre o
crescimento da colaboração econômica, e mesmo inovações técnicas que
intensificam tal integração e a totalidade social. Para que exista sociedade, seria
indispensável o aumento da densidade moral. Ou seja, “o estreitamento moral não
corresponde às meras relações comerciais mas morais”. É necessário que, mais
além da concorrência econômica, exista vida em comum. Mais que o comércio e a
vida econômica, as transformações no meio são socialmente impactantes. O meio
físico humano possui força específica (é primário) “pois as transformações que se
produzem em tal meio (...) se repercutem em todas as direções do organismo
social”. Assim, por exemplo, “o desenvolvimento de vias de comunicação e
transmissão caminha habitualmente no mesmo ritmo que a densidade dinâmica e,
em geral, pode servir para medi-la0”.

O campo da morfologia, nos estudos sociológicos, por motivos pouco claros,


permaneceu restrito a esta proposta, sem desenvolvimento ulterior e sem maior
envolvimento com o urbano e a urbanização. Mauss (1974. p. 258), comenta, no
entanto, de relance - ao tratar dos esquimós, que estabeleceram vínculos
comerciais com europeus - o fato do assentamento ocidental ser extenso e
tendente à concentração, independentemente das características do meio físico. Ao
colocar em evidência a especificidade do assentamento moderno, afirma o
embasamento dessa forma social nas técnicas, sobre as que repousaria uma
superestrutura institucional e cultural. Tal esquema é solidário, em essência, à
concepção de Marx. Afirma, como este, que a cidade possui a propriedade de
concentrar recursos, mas a alusão à urbanização, em Mauss, termina neste ponto.

Esta referência serve para recordar que, em verdade, manifestou-se nos clássicos,
um universalismo que permitiu estabelecer noções duradouras para a compreensão
da morfologia da sociedade moderna e da urbanização, sem que tenham ocorrido

0 Durkheim, 1990. p. 98
0 Durkheim, 1990. p. 99
0 Durkheim, 1990. p. 99
8

maiores investimentos na reflexão do ordenamento intra-metropolitano. Essa


preocupação foi inaugurada pela Ecologia Humana que, apesar das grandes
críticas recebidas, incorporou a metrópole como objeto da sociologia.

II.1.2. - Modernização e Urbanização na Ecologia Humana

Para os fundadores da Ecologia ou Sociologia Urbana, a característica especifica


mais marcante da civilização moderna é a dimensão, dinamismo e alcance do
processo de urbanização0. Resulta do abandono paulatino da vida em pequenos
“grupos isolados, espalhados num vasto território” que passam a viver
concentrados num mundo “artificial”, no habitat do homem civilizado 0. As
metrópoles constituiriam um laboratório sociológico, uma vez que nelas estão
contidas todos os aspectos e processos relevantes à análise das sociedades
modernas.

A relação entre urbanização e modernização sustentava-se na percepção de que a


formação da nova paisagem era simultânea à alteração da natureza das relações
sociais: a substituição de contatos interpessoais de tipo primário - fundados em
laços de parentesco - decorrentes do significado social da família, do
desaparecimento da vizinhança e da corrosão da base tradicional da solidariedade
social”0, – pela expansão dos vínculos de tipo secundários, fundados em relações
de interesse, racionalizadas e mais distantes0.

Como toda sociedade – a urbana - é configurada por “um corpo de tradições,


sentimentos e atitudes organizadas, interesses e costumes transmitidos por essa
tradição0”, mas tal “corpo”, na cidade moderna, apresenta-se como “um mosaico
de mundos, de áreas morais distintas, assim como um padrão de crescimento e
distribuição dos grupos próprios de cada uma delas” 0 Essa diversidade - segundo
Park 0- seria determinada pela relação entre a complexa divisão das tarefas
originadas da vida econômica e tamanho da aglomeração que esta divisão
propicia. Do mesmo modo que para Simmel, neste caso, a individuação, forçada

0 Wirth 1973, p 26. e Park, 1973. p. 90


0 A relação entre sociedade moderna e capitalista era também apontado por Marx e Weber.
0 Isto é apontado por Wirth (1938 p. 109) na realidade, não espera o total desaparecimento das relações
primárias. Existiria um reordenamento destas sem que desapareçam por completo.
0 Park, 1973. p. 29.
0 Park, 1973. p. 27
0 Park, 1973. p. 63
0 Park, 1936. p. 128
9

pela exigência de especialização econômica e a cooperação a que a mesma obriga,


conduz ao florescimento da vida intelectual. Por outras palavras, há uma
correlação entre tamanho, diversidade e heterogeneidade da aglomeração. A
conjugação desses elementos seria responsável pelo seu dinamismo, como
definido por Wirth0.

A dinâmica e grande complexidade da metrópole moderna - que lhe emprestam


uma aparência, simultaneamente, organizada e caótica - e, além disso, o fato de
sua influência se expandir “em ondas para um vasto território nacional e
internacional”0 apresentam, ao pesquisador, dificuldades metodológicas, uma vez
que o tamanho e a diferenciação interna de uma metrópole não se cingem ao
recorte administrativo institucional das cidades e áreas metropolitanas 0, nem
podem ser definidas segundo critérios arquitetônicos e, nem se desenvolvem
segundo padrões planejados0. O seu crescimento, e, portanto, a decadência das
tradições e dos lugares e a anomia simultânea à prosperidade econômica, assim
como, a expansão da vida urbana para além de suas fronteiras são a tônica da
urbanização, do mesmo modo que a sucessão de momentos de estabilidade
relativa e de alteração da vida social. O estudo do urbano exigiria, portanto,
abordagens que ultrapassem a dimensão adminstrativo-institucional e a concepção
da cidade como um todo composto de partes interdependentes.

Para esta corrente de pensamento, a cidade moderna é um objeto de difícil


concepção, como uma unidade, segundo qualquer critério sempre simplificador. A
unidade urbana seria delimitada, então, pela superposição de três unidades
diferentes: uma unidade geográfica, uma unidade ecológica e uma unidade
econômica0 sobre as quais emerge uma superestrutura cultural que expressa a sua
personalidade.

O reconhecimento desta personalidade permitiu a Wirth caracterizar o urbanismo


como um modo de vida, que não se esgotava, porém, nos aspectos culturais:

“(...) pode ser abordado empiricamente desde três perspectivas inter-


relacionadas 1) como um estrutura física consistindo numa bases de
0 Wirth, 1973. p.98
0 Simmel, 1973. p.21
0 Uma análise pautada em recortes municipais ou de regiões administrativos pouco poderá revelar a da
disposição morfológica de uma metrópole de sua dinâmica e processos.
0 Nem por ser um centro político.
0 Park, 1973. p. 27 ou 28
10

população, uma tecnologia e uma ordem ecológica; 2) como um


sistema de organização social envolvendo uma estrutura social
característica de uma série de instituições sociais e um modelo típico
de relações sociais; 3) como um conjunto de atitudes, de idéias e uma
constelação de personalidades dedicadas a formas típicas de
comportamento coletivo e sujeitas a mecanismos característicos de
controle social” (Wirth, 1973. p.1070)
O “problema central do sociólogo urbano é tentar descobrir as formas de ação e
organização social que emergem em agrupamentos compactos, relativamente
permanentes, de grande número de indivíduos heterogêneos”0. Essa problemática
específica funda-se na definição do objeto teórico da sociologia urbana, como
proposta por Park “ (...) a ecologia humana (...) não se identifica com a geografia,
nem mesmo a humana. Não se trata do homem e sim da comunidade; não é a
relação do homem com a terra em que vive, o que mais nos preocupa são as suas
relações com outros homens”0.

Um exame cuidadoso dos termos utilizados, nesta proposta, permite identificar a


correspondência à da sociologia Durkeimiana: seu objeto é a solidariedade social.
A comunidade concebida como unidade mínima de solidariedade social
geograficamente localizada constitui um núcleo de integração cujas características
essenciais são ser uma 1) territorialidade organizada, 2) enraizamento no solo que
ocupa, 3) com suas unidades individuais vivendo em relação de interdependência
mútua, simbiótica e não social0.

0 É a Wirth que pode se direcionar mais corretamente a crítica de Castells.


0 Wirth, 1973. p. 98.
0 Incorpora-se com isto um leitura relacional da sociedade. É. Assim, uma problemática sociológica. (Park,
1949. p. 127).
0 Park, 1970. p. 24
11

II.1.2.a. - Supostos Ecológicos

A inspiração orgânica, na interpretação da urbanização 0, permite esperar que todo


processo de crescimento produza um re-ordenamento da organização social,
implicando tanto o desenvolvimento de certas práticas, como a decadência de
outras, em concordância com a orientação fornecida pelos conceitos biológicos de
catabolismo e anabolismo, que conduzem o crescimento, plenitude e
envelhecimento de um organismo.

Os critérios que explicam tal organização partiam das seguintes premissas


ecológicas, segundo os quais:

1 ) Existe interdependência ou inter-relações das espécies com seu habitat.

2) Esta relação tende, naturalmente, ao equilíbrio. Quando o equilíbrio é rompido,


a competição a reestabelece. E nas áreas nas quais a competição declina, forma-se
uma sociedade ecológica ou uma ordem de espécies em relação simbiótica.

3) Como na ecologia, nas comunidades humanas rege também o princípio da


dominância, segundo o qual a espécie vitoriosa na competição impõe a hierarquia
de ocupação do solo. No caso humano - sendo a competição sublimada - o
princípio de dominância estabelece-se pelo valor do solo. Dominantes são as
atividades e grupos capazes de usar as áreas valorizadas, expulsando grupos e
relocalizando-os em outras áreas.

4) Se a competição assume entre os homens a forma de luta por poder e prestígio,


a sucessão permite descrever mudanças no desenvolvimento ecológico das
comunidades.

5) Na natureza, a invasão de espécies ocasiona a competição, já entre os homens o


aumento demográfico tem o mesmo efeito mas, termina por acentuar e fortalecer a
complementaridade entre os diversos territórios, uma vez que propicia a divisão
do trabalho e leva á interdependência.

Mas, o crescimento das aglomerações humanas não ocorre independentemente da


técnica. Esta permitem reagir com maior presteza às transformações e “refazer seu
habitat e o seu mundo”. Isto é, a troca e as técnicas permitem aos homens
estabelecerem relações ecológicas de outro padrão: “sobre a base biótica emergiu
0 Park levou a metáfora biológica de corpo social de Durkheim muito além, mesclando a metáfora a supostos
ontológicos que apesar de questionáveis forma úteis para a construção da hipótese.
12

uma estrutura institucional enraizada no costume e na tradição 0”. Os homens


formam uma estrutura resistente às mudanças externas que, entretanto, as acumula
no interior do seu próprio meio. Posteriormente, dos costumes emergem as
instituições.

A sociedade une dois elementos: o biótico (seres vivos e habitat) e o cultural.


Neste caso, a superestrutura cultural repousa sobre uma base simbiótica e as
energias emergentes manifestam-se no nível biótico em movimentos e ações que
revelam no social, níveis mais ou menos sublimados. De modo que ordens sociais
dispõem-se numa pirâmide cuja base é ecológica e o ápice a “ordem moral”. Quer
dizer, a sociedade, tal como os ecólogos a concebem, é conformada por uma
população estabelecida em um habitat. Os laços que articulam as unidades são de
uma economia livre e natural, baseada numa divisão natural do trabalho. Tais
unidades são territorialmente organizadas e seus laços “são antes físicos e vitais
do que costumeiros e morais”: “a superestrutura cultural impõe-se como um
instrumento de direção e controle sobre a base biótica”0.

II.1.2.b. Aplicação ao Urbano

Os hábitats recriados no interior de uma metrópole estão compostos de “uma


organização moral, bem como uma organização física, e estas, dispõem-se de
modos típicos moldando-se e modificando-se mutuamente”0. A metrópole
possuiria, portanto, uma dimensão social total. Maior e mais significativa que seu
patrimônio arquitetônico ou fator geográfico, constitui “um fenômeno vital”, que
origina enorme organização, emergida “em resposta às necessidades de seus
habitantes e, uma vez formada, impõe-se a eles como um fato externo bruto que,
por sua vez, os forma de acordo com o projeto e interesses neles incorporados”0.

Como estrutura física, cada aglomeração apresenta formas típicas, padrões


morfológicos que podem ser identificados e mapeados. Relacionam aspectos
físicos a aspectos, econômicos, sociais e culturais. Sem dúvida, pode ser
questionada a fácil relação entre estes elementos mas a ênfase na existência de
uma morfologia da vida coletiva, destacada por Park e Burgess, é relevante, na
medida que dela surgiram os modelos de distribuição espacial e a tentativa de
0 Park, 1970. p. 36
0 Os supostos ontológicos de Park são uma espécie de Jus-naturalismo cultural.
0 Park, 1973. p. 28
0 Park, 1973. p. 28.
13

identificar padrões típicos de expansão que auxiliaram não apenas a sociologia


urbana mas também a geografia e o planejamento urbano, inspirando os debates
sobre as mudanças em curso na sociedade ocidental.

II.1.2.c. A Morfologia Intra-metropolitana

A modelagem da morfologia intra-metropolitana da cidade de Chicago - típica da


urbanização norte-americana no início do século XX - foi efetuada por Burgess
em 1936. Nela concebeu as cidades norte-americanas como ordenadas numa
sucessão de círculos concêntricos que se distanciavam a partir do centro da
cidade. Para além dos limites da explicação permitida por este modelo e dos
vários que posteriormente o substituíram, cabe reconhecer aos ecólogos, o alcance
de uma definição da dinâmica expansiva do assentamento urbano. O seu fascínio
advém da sua simplicidade e poder explicativo justificando-se pelos remetimentos
teóricos de Park.

“A cidade moderna tende a ser o centro de uma região de produção altamente


especializada, com uma área de comércio largamente extensa”0. A localização
destas áreas é determinada pelas características geográficas do território em que se
assenta a cidade e pela disposição das vias de transporte. Isto é, a geografia,
modificada pelas estradas de ferro e meios de transporte ligados às maiores
indústrias, forma a estrutura da cidade. Sobre essa estrutura física, ocorre a
distribuição populacional (habitação) articulada em torno do comércio varejista0.

Nessas cidades a “sucessão” populacional parte das áreas centrais (interior) para o
exterior da zona próxima num movimento que se irradia do centro para os
subúrbios, onde mora a população integrada, que corresponde apenas a uma parte
do processo de expansão. O conceito de expansão engloba tanto o crescimento
populacional quanto a “extensão de serviços técnicos que tornam a cidade não só
habitável mas confortável e até luxuosa0”.

Poderia alongar-me ainda nos detalhes da chamada Escola de Chicago,


principalmente no referente ao conceito de mobilidade por ela cunhado. Deixo,
entretanto, esta tarefa para mais tarde quando me dedique com cuidado a explorar

0 Park, 1949. p. 134


0 Toda comunidade tende a assumir algum padrão de áreas urbanas típicas geograficamente localizadas e
espacialmente diferenciadas. Áreas Naturais contêm grupos naturais enquanto estes, tenderiam a formar áreas
naturais. (Park, 1949. p. 134).
0 Burgess, 1970. p. 359
14

seu conteúdo. Finalizando, a partir destes estudos pioneiros, o ordenamento e a


intervenção devem levar em conta a existência de formas e dinâmicas intrínsecas
da metrópole moderna, conjugam aspectos geográficos, econômicos, sociais e
culturais que emprestam à cidade o aspecto de um todo orgânico vital. Apesar de
que seus modelos morfológicos tenham sido questionados e substituídos,
forneceram conceitos e instrumentos de pesquisa que permanecem válidos. Por
outro lado, estes mesmos conceitos, e principalmente seus supostos, permanecem,
ativos nas disciplinas técnicas que se originaram da institucionalização de sua
contribuição0.

II.1.3. A Reformulação do Saber Urbano nos Anos 70: a crítica marxista

Então, no que concerne à concepção e determinação da cidade moderna como


objeto sociológico, é preciso reconhecer o lugar pioneiro e fundamental da
Ecologia Humana, que foi capaz de trazer noções e orientações conceituais
constituídas pela teoria social para a análise intra-metrópolitana. Esta corrente de
pensamento considerava, também, a técnica e a divisão social do trabalho, mas ao
contrário da perspectiva marxista ou dos funcionalistas franceses, antes que
determinadas materialmente, a técnica, seria conseqüência da sedimentação das
características culturais (morais) dos grupos, e a divisão do trabalho, uma
conseqüência daquela diferenciação e não sua causa.

Apesar do caráter precursor da Ecologia Humana no desenvolvimento de um


saber sociológico específico sobre a cidade, responsável pela formação de um
pensamento coeso sobre a experiência urbana e recursos técnicos especializados
na influentes na América Latina, e na própria Europa, a contribuição da Ecologia
Humana fechou-se rapidamente separando a reflexão sociológica das técnicas
específicas da gestão urbana.

Do embate entre as tradições científicas européias, principalmente a francesa,


surgiu um marco analítico renovado, particularmente influenciado pela
contribuição do marxismo. Originada na reflexão crítica, dos postulados e práticas
do “urbanismo” de inspiração norte-americana na França, esta contribuição teve
no Brasil uma importância decisiva a partir dos anos 70.

Segundo Preteceille, esta contribuição,


0 Refiro-me às engenharias urbanas que instumentalizam muitas noções daquela tradição. Contudo, a noção de
totalidade integrada e correlacionada parece desaparecer e seus conceitos perderam o referencial sociológico
15

“(...) para além da problemática herdada da Escola de Chicago(...)


esboça um elo com a estratificação social produzida pelas relações de
classe. (...) Isto que permitiu ir além de uma visão tecnocrática de
cidade que se esgotava em uma psico-sociometria do citadino, que
presumivelmente viria a enriquecer e prolongar a visão do homo
oeconômicus dentro de uma concepção de cidade como conjunto de
mercados inter-ajustados” (Preteceille, 1986; p 8-9).

Além disso – o que é extremamente relevante no Brasil -, “a análise dos


problemas sociais urbanos mostra que estes são, ao menos em parte, resultado da
ação do Estado”0. Assim, o debate francês contribuiu à consolidação novas bases
para a compreensão da intervenção do Estado na dinâmica urbana. Estas bases
expressam a desnaturalização dos fatores econômicos e a incorporação da
problemática das classes e suas lutas. Parece-me de fundamental importância,
então, retratar a crítica marxista e social urbana e sua contribuição ao estudo da
metrópole com apoio nas obras de Castells (1968; 1978) e Lojkine (1981), além
de Léfèbvre (1969; 1970 e 1974) e Gottdiner (1993).

II.1.3.a. A Crítica de Castells

Na Sociologia, a crítica de Castells à ecologia urbana permanece ainda hoje como


um exercício magistral de análise crítica. Este autor inscreveu o urbano em termos
teóricos rigorosos, questionando a cientificidade da Ecologia Humana e
derrubando suas pretensões de fundar uma disciplina científica autônoma.
Segundo este autor, tratava-se de uma teoria

“(...) ingênua mas explicativa de uma urbanização específica. Trata-


se da evolução de uma aglomeração em rápido crescimento,
determinada por uma industrialização capitalista, inteiramente
dirigida pela lógica do benefício e que parte da existência de um
núcleo urbano inicial de escasso valor simbólico e debilmente
constituído social e arquitetonicamente” ( Castells, 1978. p.142).
Afirmou assim, no seu primeiro texto sobre o tema0, que o problema da Ecologia
Humana era, de início, de ordem teórica. O fato de tomar como objeto a cultura
urbana (urbanidade ou urbanismo) não lhe permitiria fundar uma disciplina
autônoma, já que a cidade não é um objeto teórico, não gozando da autonomia que
pretendida, sendo, apenas, uma ciência aplicada a problemas urbanos. Seu objeto
0 Preteceille, 1986. p. 8
0 Castells, 1968. p. 54
16

científico trataria, em verdade, “o processo de aculturação à sociedade moderna” 0,


na medida em que a aplicação e foco dos estudos visavam estabelecer padrões de
assimilação dos imigrantes à sociedade norte-americana. Com isto, ao invés de ser
uma sociologia aplicada ao urbano, seria, de fato, “uma sociologia da
integração0”.

A teoria do crescimento apresentava, em segundo lugar, limites metodológicos.


Para Castells, a sua “vigência explica-se pelo esforço teórico feito coletivamente”.
Apesar disso, encontrava limites pelo fato de ser uma investigação definida por
sua formulação concreta e não teórica. Na base dessas análises espaciais, existiria
uma teoria geral da organização social, dirigida por dois princípios essenciais: a
interdependência e a função central que hierarquiza posições no sistema e suas
relações de domínio (dominância). Mas “esta construção permanece num nível
formal já que os processos ecológicos explicativos da configuração urbana apenas
se explicam aludindo ás leis econômicas gerais0.

II.1.3.a.1. A Reconstrução Teórica da Sociologia Urbana

A reconstrução teórica da experiência urbana pelo conhecimento sociológico,


deveria considerar o espaço0. E abordar o espaço urbano – como qualquer outro -
significaria remetê-lo a teoria social geral já que

“(...) as relações entre sistema urbano e sistema de atores, constituem


a expressão específica das relações entre diferentes sistemas globais
da sociedade concreta que se está a estudar. O estado da estrutura
social é a causa estrutural, não aparente, das relações entre os dois
sistemas” (Castells, 1968. p. 80).
O sistema urbano seria, neste caso, uma expressão específica “dos elementos
fundamentais da estrutura social” numa unidade definida 0. A estrutura urbana
surgiria, para o autor, da cristalização daquela articulação específica entre os
sistemas econômico, político e ideológico, segundo a distribuição espacial da
produção (de bens, serviços e informações), do consumo (apropriação individual e

0 Castells, 1968. p. 30
0 Castells, 1968. p. 30.
0 Castells, 1978. p. 146
0 Espaço é um produto natural em relação com outros elementos , entre eles os homens que constróem
determinadas relações sociais, que dão forma, função e significado social ao espaço. Para ele assim como para
qualquer outro objeto real há que estabelecer as leis estruturais e conjunturais que regem a sua existência e
transformação, assim como a sua específica articulação com outros elementos da realidade histórica.
0 Castells, 1978. p. 278
17

coletiva), de troca e dos processos de gestão (processos e regulação) 0, em contínua


transformação pela luta de classes.

Analiticamente, cada um desses sistemas pode ser tratado a parte, revelando


diferentes modos de localização e uso do território, que raramente coincidem com
uma unidade urbana. Assim, por exemplo, se pensado como lugar da produção, o
urbano não constituiria uma unidade. Esta seria a região e, não, o urbano. Se
refletido desde o político, também ocorreria o mesmo, já que na modernidade, a
cidade não mais constitui uma unidade político-jurídica, como no passado. A
ideologia, por outro lado, enquanto sistema localizado, corresponderia às formas
espaciais que a representam e que definiriam a cidade, para a Sociologia Urbana,
como “forma específica de civilização” ou cultura urbana0, tampouco serviria para
determinar a estrutura, sendo esta uma das mais incisivas críticas de Castells à
escola norte-americana.

A procura pela definição de uma unidade urbana não é um despropósito, obedece


à necessidade analítica de diferenciar os aspectos que caracterizam as relações
intra-urbanas e as externas ou inter-urbanas. A esta chega, o autor, por sucessivos
descartes analíticos. Para ele, o urbano poderia ser considerado uma unidade se
levada em consideração a força de trabalho, já que esta comporta um mercado de
trabalho e uma unidade (relativa) de existência cotidiana. Assim, então, o urbano
apareceria, para Castells, como lugar e unidade da “contradição do processo de
reprodução da força de trabalho”0, na medida que

“(...) em sociedades Capitalistas avançadas, o processo que estrutura


o espaço é referente à reprodução simples e ampliada da força de
trabalho; o conjunto das práticas chamadas urbanas conotam a
articulação do processo com o conjunto da estrutura social” (Castells,
1978. p. 280).
Essa articulação específica entre instâncias gerais da estrutura social cristalizadas
num ponto em particular (interno) permite caracterizar o urbano como unidade
responsável pela reprodução da força de trabalho. “As “unidades urbanas” seriam,
no processo de reprodução, o que as empresas são no processo de produção, desde

0 Castells, 1969. p.76; 1977. p. 155


0 Castells, 1978. p. 278
0 Castells, 1978. p. 279
18

que não pensadas tão somente como lugares, senão como causa de efeitos
específicos sobre a estrutura social”0.

A determinação da unidade urbana como fecho analítico privilegiado da


sociologia urbana corresponderia à afirmação, em Castells, da necessidade de sua
reformulação teórica. Aponta, assim, para um novo objeto de estudo empírico: o
planejamento. Isto se deve ao fato do planejamento urbano ter-se tornado a
modalidade predominante de intervenção do sistema político sobre o sistema
econômico, de modo a resolver ou atenuar as contradições oriundas da reprodução
da força de trabalho e da garantia das condições de produção que se expressam
principalmente no urbano.

Nesta abordagem, a problemática urbana central teria o seu cerne no acesso aos
meios de consumo coletivo0, na distribuição desigual dos recursos necessários à
reprodução da força de trabalho e à promoção das condições gerais de produção.
A contradição entre as necessidades da reprodução da vida e da ampliação do
capital requeririam, a partir de um certo momento, a intervenção do Estado, na
forma de planejamento, sem que este, contudo, alcançasse a eliminar as
contradições urbanas.

Para Castells, as tensões ocasionadas pela tentativa de atender ambas


necessidades, num contexto de progressiva diminuição da taxa de lucro, daria
lugar a lutas sociais, não restritas apenas aos trabalhadores, quer dizer,
policlassitas. Estas lutas poderiam dar ocasião a movimentos sociais, cujo
desenvolvimento – de uma perspectiva político-revolucionária - tenderia à
transformação do sistema urbano0. Assim, a estratégia de Castells revela-se dupla
pois, visa aumentar o conhecimento e ao mesmo tempo possibilitar a
transformação sócio-espacial. Isto explica o recurso à identificação das
contradições, que deu lugar a análises detalhadas do sistemas produtivo, do de
troca, do ideológico e do de gestão.

Neste momento, tendo já esboçado as críticas à ideologia e o lugar ocupado pela


gestão, na perspectiva do autor,parece-me importante chamar a atenção para a
problemática da segregação urbana, deixando, para um momento posterior a
0 Castells, 1978. p. 280
0 Castells, 1978. p. 475
0 Por sistema Urbano Castells (1978. p. 280), entende o conjunto de relações internas de uma unidade urbana,
articulada ao conjunto da estrutura.
19

abordagem do sistema de troca, isto é, do transporte enquanto fenômeno


integrante deste sistema.

II.1.3.b.1. A Segregação

A segregação, seria para Castells, resultado do acesso social diferenciado ao


produto imobiliário, não a expressão espacial direta e sem intermediações da
estratificação social0 conforme pensavam os ecólogos. A distribuição residencial,
na cidade capitalista, seria marcada pela separação entre trabalho manual e
intelectual, mediada pela produção de moradias e sua distribuição social 0. A
oferta do produto e as possibilidades de consumo determinadas pela renda
incidiriam sobre a distribuição residencial na metrópole.

“A distribuição dos lugares de residência segue as leis gerais da


distribuição dos produtos e produz reagrupações em função da
capacidade social dos sujeitos no sistema capitalista, derivado das
rendas, do seu estatuto profissional, nível de instrução, do
pertencimento étnico, da fase do ciclo de vida, etc.” (Castells, 1978.
p. 203-4).
O conceito de segregação caracterizaria a tendência à consolidação, no interior da
cidade, de áreas de grande homogeneidade social, contrastando com a
heterogeneidade e a diferenciação dos espaços na metrópole, sem que tal
significasse, automaticamente, a sua fragmentação. Ou seja, uma situação em que
a própria diferenciação poria em evidência os antagonismos sociais, já que “a
segregação social no espaço é, pois, a expressão específica dos processos
tendentes à reprodução simples da força de trabalho, mas estes processos estão
sempre em articulação inseparável com o conjunto das instâncias da estrutura
social”0.

O determinante fundamental da segregação corresponderia ao nível econômico


mas exerceria uma influência é indireta. A diferenciação relacionar-se-ia de forma
decisiva às possibilidades de deslocamento que o lugar de residência proporciona
permitindo o acesso a pontos estratégicos. Com isto, a infra-estrutra existente,
assim como a divisão política do território, seriam fatores responsáveis pela
acentuação da diferenciação da paisagem.

0 Uso estratificação mas para Park, trata-se da estrutura.


0 Castells, 1978. p.207
0 Castells, 1978. p. 221
20

É, entretanto, no nível simbólico - ideológico para Castells - que a diferenciação


completa-se: na representação subjetiva que anima os habitantes em sua relação
com vizinhos e estranhos; no sentido da desejabilidade ou repulsa a certos lugares
e suas diversas possibilidades de uso, construção e manipulação dos sentidos dos
lugares pelas empresas.

As formas e os ritmos da segregação seriam, também, influenciados pela luta de


classes. Quando esta não se manifesta claramente no social, a diferenciação
espacial, tampouco, se acentuaria. Portanto, quanto mais aumenta o conflito,
maior seria a segregação0 e, em casos extremos, a própria diferenciação espacial
poderia acentuar as contradições. “A segregação pode favorecer a constituição de
comunidades que, de um lado reforcem ainda mais as distâncias sociais e
espaciais e, de outro, dêem um sentido dinâmico transformando a diferença em
contradição”0

Nesse ultimo caso, há duas possibilidades de configuração e ação. Quando a luta


aberta reforça a fragmentação espacial, é possível a consolidação de guetos, de
zonas dos grupos sociais subordinados, claramente diferenciadas dos locais de
residência da elite e de outros segmentos sociais. A possibilidade de conflito
poderia levar à intervenção estatal segundo estratégias de classe que tanto podem
buscar a integração quanto serem repressivas.

Finalizando, é importante destacar que, aqui, a relação entre segregação e divisão


social do trabalho seria inversa à sugerida pela Ecologia Urbana: não causa, mas,
a “expressão no nível da força de trabalho, das relações que a determinam”0.

II. 1.4. A Crítica da Crítica

As concepções de Castells politizaram a sociologia urbana, tornado-a uma


sociologia do planejamento urbano0. O autor logrou, com este instrumento, não
apenas introduzir novos temas, abordagens e questões, senão, também, ampliar o
debate e reconhecer dimensões cognitivas que apontam para além do
planejamento. Estimulara a descoberta de outros aspectos não tratados ou

0 Neste ponto o raciocínio é análogo e explica o exemplo da diferenciação das cidades norte-americanas descrito
pela Ecologia Humana.
0 Castells, 1978. p. 217
0 Ídem, 1977. p. 474
0 É bom lembrar que isto não obedece meramente a estratégias cognitivas e sim a estratégias políticas num
contexto histórico específico.
21

limitados. A partir desta perspectiva e no esteio inaugurado por Léfèbvre


questiona-se Castells não ter buscado desenvolver uma teoria do espaço, apesar de
ter apontado essa necessidade teórica, abandonando esse propósito ao enfatizar a
cidade como unidade de reprodução da força de trabalho 0. Por outro lado,
detectam-se falhas na teorização da ação e, com isto, aponta-se para a necessidade
de estender, ampliar e aprofundar o conhecimento ou teoria da ação social.

A crítica mais recente circunscreve historicamente a contribuição de Castells 0,


mas a relativização histórica não traz contribuições teóricas gerais para a análise
do fenômeno da urbanização, uma vez que continua definindo o urbano como
unidade de reprodução da força de trabalho0. Quanto ao planejamento e à ação do
Estado, convêm considerar as críticas de Lojkine 0que aprofundam uma visão
marxista (estrita) da problemática urbana (sem considerar o urbano uma
superestrutura).

I. 1.4. a.1. -A Política, o Estado e a Urbanização

Segundo Lojkine (1981. p. 320), a abordagem estruturalista, da urbanização (ou da cidade)


seria formalista, não obedecendo ao método marxista por excelência: o materialismo
dialético. O autor, reconhecia a relevância da tentativa da “escola althusseriana de

questionar o papel determinante da estrutura econômica e sobretudo de fazer da


esfera “política” a esfera dominante”0. Essa empreitada mostrava-se, entretanto,
limitada pois

“(...) a determinação da superestrutura ideológica, política, etc., pela


base econômica é substituída pela combinação formal, infinita, chã

0 Gottdiner (1993. p. 123), Lojkine, (1981) entre outros.


0 Como Souza, (2000. p. 44) para quem “a problemática urbana apresentada por Castells é datada e
localizada geograficamente no contexto da realidade européia da década de 70” na medida que o
estado interventor alivia o capital de alguns custos de reprodução e cria oportunidade econômicas.
Mas no mesmo movimento “elimina-se a riqueza da construção (inter) subjetiva do espaço urbano e
das micro-políticas e micro-estratégias “infra políticas” ou não políticas de resistência; em detrimento
das identidades, da cultura da “bairrofilia”; perde-se de vista assim “a riqueza de papéis e mesmo das
contradições que tornam um morador pobre muito mais que um simples trabalhador explorado”.
0 Parece-me que esta é tem sido a concepção dominante no Brasil, começando por Moises & Allier,(1978),
Oliveira (1986), Souza. (2000). Adotarei aqui o urbano como forma, isto é como estrutura estruturante e
estrutura estruturada, porém não (apenas) simbólica. Jus-natureza humana, cuja propriedade é a junção do
diverso e sua unidade é fenômeno da visão do que um mera unidade funcional.
0 Segundo Lojkine (1981. p. 57-59).
As aporias funcionalistas como as estruturalista são incapazes de propor uma teoria da mudança (...) Para o
estruturalismo marxista a “história é um processo sem sujeito”(...) “O indivíduo ou ator social fica reduzido a
suporte de uma função econômica. Impede explicar o papel dos indivíduos na história, sobretudo o fenômeno de
tomada de consciência revolucionária e de luta de classes”.
0 Lojkine, 1981. p. 63
22

entre várias estruturas, sistemas instâncias ou regiões, cujas relações


podem variar de acordo com a mesma lógica das relações entre
elementos da “estrutura” econômica” (Lojkine, 1981. p. 63 - 64).
Segundo Lojkine, no caso específico da tentativa de Castells, a teoria altusseriana,
encontrava seu limite no fato de não considerar a importância econômica da
cidade, para além da reprodução da força de trabalho. Confundiria os processos
técnicos de trabalho e o processo social de produção, não diferenciando o
desenvolvimento das forças produtivas das relações capitalistas de produção
social (economia e sociedade). Traduzir-se-ia na oposição entre trabalho produtivo
e consumo, sem diferenciar os processos de índole técnica (inerentes à empresa)
dos sociais0.

“Não considerar a urbanização como elemento chave das relações de


produção (..) é retornar a um dos termos dominantes da ideologia
burguesa, segundo a qual só é produtiva atividade produtiva de mais-
valia”. (...) A urbanização (...), longe de ser um fenômeno menor
desempenha um papel tão importante quanto a multiplicação da
potência mecânica do trabalho na unidade de produção”.(Lojkine,
1981. p. 122)
Lojkine recorda que para “Marx a socialização da produção não se limita ao local
de produção”. A cooperação social estimulada pela revolução industrial cujos
benéficos eram (e são) apropriados de forma privada - abrange tanto a divisão
técnica quanto a divisão social do trabalho (exterior à empresa), incorporando os
mercados, as famílias e o consumo. A acumulação requer transformações “nas
condições gerais do processo de produção social” quanto: a) aos “meios de
consumo coletivos”; b) aos “meios de circulação material ( meios de comunicação
e transportes); e c) a concentração espacial dos meios de reprodução0.

Essa necessidade explicariam a formação “um novo modo de vida” e,


consequentemente, a centralização dos meios de consumo e uma aglomeração
específica do conjunto dos meios de reprodução, que correspondem à
concentração e à disposição física específica que proporciona a cidade 0. Esta
propriedade da cidade gera, entretanto, contradições decorrentes da socialização
capitalista das condições de produção0. A socialização resultante é também

0 Lojkine, 1981. p. 141 - 142


0 Lojkine, 1981. p.123
0 Lojkine, 1981. p. 129
0 Socialização dos custos e privatização dos benefícios.
23

contraditória pois, submete os meios de consumo coletivo a critérios de


rentabilidade, de concorrência e obsolescência dos meios.

Se a cidade capitalista não pode ser definida sem referência aos


meios de consumo coletivos e os meios de circulação material estes
(...) não podem especificá-la enquanto não determinarmos o vínculo
que liga esses diferentes modos de socialização com o espaço. A
cidade não é um fenômeno autônomo, sujeita a leis de
desenvolvimento totalmente distintas das leis da acumulação
capitalista. A autonomia aparente se explica pela divisão do trabalho
na sociedade. Essa mediação pode ser realizada pelo conceito
marxista de cooperação. (Lojkine, 1981. p. 137).
Lojkine, questiona, portanto, a proposta de Castells de que a cidade seria uma
unidade de reprodução da força de trabalho, enfatizando o urbano como locus de
realização da acumulação. Para ele, o seu desenvolvimento é determinado pela
necessidade de diminuir o tempo de produção e o tempo de circulação 0. A cidade
capitalista seria então, o resultado de uma dupla socialização: das condições gerais
de produção e do espaço, cujos efeitos são a concentração dos meios de circulação
e consumo0.

Assim, a cidade, a região e os diversos tipos de aglomeração atuais seriam a


combinação de infra-estruturas, em parte, indissociáveis, estreitamente
complementares, que fornecem a base indispensável a diferentes atividades.
Nesses termos, se “a cidade desempenha um papel econômico fundamental no
desenvolvimento do capitalismo (...) a urbanização é modelada de acordo com as
necessidades de acumulação capitalista”0.

No caso particular da urbanização monopolista, a divisão do trabalho seria


marcada pela apropriação privada de meios de consumo coletivos, concentrados
nos grandes centros urbanos que formam no seu entorno, um sub-mercado
imobiliário que conduz, quase automaticamente, à segregação econômica e social.

Neste caso, ao contrário das leituras precedentes, a segregação não expressaria a


estratificação social, nem mesmo através da intermediação da produção
residencial e a ideologia, como propôs Castells. Ao contrário, a estratificação seria
produzida pela segregação, de modo que, na cidade monopolista, reproduzia-se a
divisão do trabalho, própria da empresa, entre trabalhadores manuais e

0 Lojkine, 1981. p. 150


0 Lojkine, 1981. p. 152
0 Lojkine, 1981, p 163
24

trabalhadores intelectuais. Enquanto os primeiros tendiam a ocupar


paulatinamente a periferia, os segundos concentravam-se nas áreas centrais das
cidade.

A segregação poderia ser tipificada, portanto, pela combinação de três critérios: o


valor do solo; a localização da moradia de elite e da moradia popular. E, em
terceiro lugar, o autor propôs a observação do acesso às funções urbanas que, pela
especialização e zoneamento, esfacelam-se. Para Lojkine, a segregação não
resulta da oposição entre “estratos de consumidores”. Relaciona-se diretamente ao
uso monopolista ou não monopolista do solo, que se manifesta no desigual acesso
aos bens de consumo coletivos. Nesse processo, a política urbana, que Castells
confundia com planejamento, tem como efeito a exacerbação a longo prazo da
segregação social pela própria distribuição espacial dos equipamentos coletivos. A
urbanização atual seria, assim, a forma mais acabada da divisão entre trabalho
material e intelectual.

I.1.4.a.2. O Lugar do Planejamento

Lojkine critica, por último, a idéia de que o planejamento surja nas contradições
entre reprodução da força de trabalho e meios de produção. O planejamento seria
vitima das próprias contradições e, portanto, deveria ser objeto de estudo
privilegiado por uma sociologia urbana renovada, a política urbana: produto das
“relações entre diversas forças sociais opostas quanto ao modo de ocupação ou
produção do espaço urbano”0

“A unidade e coerência – supostas – residem nos efeitos do par


plano/ operação de urbanismo sobre o conjunto da organização
social, conjunto cuja unidade espacial , geográfica , está contida não
só no espaço de reprodução da força de trabalho (..) mas também na
unidade de aglomeração espacial dos meios de produção, de troca e
dos meios de reprodução da força de trabalho (...) Fundamental é a
ausência total de relações entre uma política e os critérios decisórios
ou ideológicos” (Lojkine, 1981p. 181).
As incoerências permanentes das políticas públicas e de seus critérios decisórios
põem em evidência que o texto urbano, oriundo do planejamento, teria uma
função meramente ideológica. Mais influentes seriamo as “operações isoladas de
renovação da cidade que permanecem sujeitas à prática jurídica do alvará e que
fazem parte da política urbana”.

0 Lojkine, 1981. p. 180


25

Para Lojkine, o planejamento passa por cortes entre plano, planificação e


implementação. Se a política urbana capitalista não é planificação, nem por isso
deixa de obedecer a uma lógica: a da segregação social. Os planos não são,
portanto, menos segregadores que as práticas, principalmente as financeiras. A
política financeira mostra “a continuidade e a coerência de um processo de
seleção urbana que privilegia o equipamento de algumas zonas urbanas das que se
apropriará a fração de classe dominante”0.

Concluindo, da crítica de Lojkine, ao estruturalismo marxista - que inclui ainda a


acusação de abordar a problemática urbana sem tratar ou considerar a formação da
consciência – surgem instrumento analíticos refinados para a compreensão da
política urbana e regional sem avançar muito na teorização do fenômeno urbano
que aparece como lugar de concentração industrial e conseqüentemente de
reprodução da força de trabalho; destacando-a, principalmente, como lugar de
acumulação do capital0.

II.1.4.a.3. Conclusões Parciais

Os primeiros cientistas sociais vislumbraram uma morfologia geral, deixando de


lado a metrópole e suas particularidades ou fixando-se sobre seus aspectos não
morfológicos. Alcançaram estabelecer, porém, os parâmetros que norteiam a
compreensão do fenômeno urbano e a urbanização. Quando a chamada Escola de
Chicago retomou esta contribuição o faz naturalizando “leis econômicas”
específicas do mundo moderno e da sociedade burguesa. Contudo, e apesar dos
limites de seus préssupostos, permitiram uma compreensão mais profunda do
fenômeno espacial. Seus princípios ecológicos servem de referência obrigatória
aos teóricos do espaço: a interdependência ou cooperação; a função central ou
dominância; a invasão e sucessão; a concentração e a dispersão foram retomadas
posteriormente em teorias das formas espaciais.

A Escola estabeleceu, também que as áreas naturais - áreas residenciais,


industriais e comerciais - são consolidadas pelo uso diferenciado do solo e sua

0 Lojkine, 1981. p. 219


0 Na medida em que não se pode separar a análise do Estado capitalista e divisão técnica do trabalho, “a
definição de Estado deve ser vinculada às principais características da atual socialização das forças produtivas
humanas e materiais não se limita mais à unidade física da fábrica, mas atinge, através da empresa conjugada do
grupo monopolista, o conjunto do território nacional, e depois, dos conjuntos multi-nacinais, não se pode mais
separara a concentração dos homens e das máquinas, os lugares de reprodução da força de trabalho e os lugares
da acumulação do capital” (Lojkine, 1981. p. 321)..
26

consequênte valorização econômica, são determinando a dinâmica do mercado


imobiliário. A segregação originada nesse movimento (seleção) pode dar lugar à
formação de subjetividades coletivas, diferentes de outras da mesma cidade.
Formariam espaços sociais onde forma, função e significado coincidem. Portanto,
a Ecologia Humana reconheceu as técnicas da vida - na sua configuração
econômica atual – troca, divisão do trabalho, vínculos entre humanidade e
natureza determinam um novo habitat.

A crítica marxista denunciou a ideologia da Escola de Chicago mas, reconheceu as


contribuições quanto à organização ou ordem intrametropolitnana. Esta crítica,
introduz, principalmente, a dimensão política, para além da econômica e da
cultural na análise do urbano. A política urbana, como complexo arcabouço
jurídico e financeiro, estende sua prática para muito além do planejamento e da
gestão. A fragmentação administrativa e a distribuição desigual dos equipamentos
coletivos produzem resultados úteis à rentabilidade privada e à apropriação desses
recursos pelos segmentos dominantes.

A segregação que, para muitos autores, se dá sobretudo pelo acesso diferencial à


habitação (produto imobiliário) - sendo portanto um efeito da má distribuição ou
da distribuição socialmente diferenciada - surge não apenas na paisagem, mas
também na composição social dos lugares (DST). Constituiria um dos
instrumentos da estratificação social produzida pela distribuição desigual de
equipamentos coletivos, resultado da ação do mercado e da política urbana (e não
do planejamento) como elucidado pela crítica de Lojkine a Castells.

É curioso que para Lojkine, como para a Escola de Chicago, a distribuição das dos
objetos urbanos precede a estratificação social, sem que haja, entretanto,
naturalização do econômico. Quer dizer, sem aceitar os padrões de uso capitalista
da metrópole como expressão de uma economia livre natural 0. Para este autor, o
econômico pauta a dinâmica e as características da metrópole mas, ao enfatizar a
subordinação da metrópole às necessidades da acumulação do capital, arrisca-se a
cair no determinismo econômico direto0. De maneira que o desenvolvimento da
urbanização seria determinado diretamente pelas necessidades do capital
(concorrencial, monopolista ou pós-fordista) ou, o que é análogo, pelas

0 Como feito pela Ecologia Humana.


0 Que critiquei no início deste capítulo.
27

necessidades de acumulação. Como terei oportunidade de demonstrar, nos


próximos capítulos, esta explicação difundida e aceita mostra-se insuficiente para
a compreensão do problema desta tese. Ao reduzir a complexidade do fenômeno a
explicações teóricas abstratas perdem-se de vista as mediações as práticas e as
ações que conformam a metrópole. Limitando, também, a compreensão das
inúmeras contradições enfrentadas nelas.

Quanto à relação entre industrialização, ordem urbana e modernidade, discutida


nesta sessão, é possível perceber que o alinhamento entre os três termos mantêm-
se inalterado na reflexão de todos os autores. Considero, então, que se trata de
uma relação não somente paradigmática senão, também, sintagmática, já que
sustenta a explicação do fenômeno urbano e também alicerça as práticas
fundamentais ao planejamento, ao urbanismo e às políticas sociais que procuram
modernizar e ordenar a metrópole, de modo a atrair investimentos e garantir a
rentabilidade urbana.

É importante advertir, no entanto, que o alinhamento daqueles três termos vem


sendo problematizado. Com efeito, nas investidas mais recentes de Castells (1990
e S. D.) é apontado o fato de que as mudanças técnicas e econômicas alterarem
não apenas as sociedades e as cidades, produzindo uma urbanização generalizada
(urbanização em rede), senão que tais mudanças inviabilizam o planejamento.
Este autor aponta para os riscos 0 e, também, para as oportunidades abertas por tais
condições. Retoma, assim, em outros temos, e com outros objetivos, a
caracterização hipotética do urbano realizada a por Léfèbvre mais de 20 anos
antes: a urbanização generalizada e mundial, a crise da racionalidade industrial e,
conseqüentemente, do planejamento. No mesmo movimento, Léfèbvre apresentou
elementos teóricos e esboçou instrumentos que, ao meu ver, permitem ir além do
determinismo diretamente econômico além de estender o conhecimento às
práticas e aos processos que mediam a determinação econômica e marcam seus
limites.

II.1.4.b.1. O Urbano, o Espaço e as Práticas

Entre os muitos autores que, desde a década de 60 apontam para a reconfiguração


das cidades e do alcance inusitado do fenômeno urbano foi sem dúvida, Léfèbvre
quem formulou a problemática em termos mais desafiadores e instigantes, ao
0 Castells, 1990. p. 2
28

indicar a possibilidade da urbanização mundial e da formação de uma sociedade


plenamente urbana. Tal momento da humanidade manifesta-se como possibilidade
e fato; possibilidade de superação das contradições e limites da sociedade
moderna e fato porque surge como corolário da industrialização e da integração
econômica mundial. Qualquer que seja o nome dado a essa urbanização extensa e
interligada, a constatação de sua existência põe em evidência não somente a
limitação das antigas formas de definir o fenômeno urbano como, também, aponta
para a desconfiguração dos aspectos e elementos que a precisam, considerando-se
os limites das concepções clássicas. Nas cidades, a decadência dos antigos centros
e fuga de seus habitantes, bem como a periferização, o adensamento e a
conurbação das vilas e pequenas cidades autorizam falar de um duplo movimento
do urbano: implosão e explosão, provocados pelo crescimento e fortalecimento da
cidade industrial e no, mesmo movimento, de toda sorte de problemas decorrentes
do mesmo processo. De modo que “a problemática urbana impõe-se a escala
mundial”0.

A alteração e dinâmica desse movimento permitem perceber que desaparece uma


das mais antigas características definidoras do urbano: a oposição entre cidade e
campo. Todos os espaços subordinam-se e integram-se aos centros econômicos
(urbanos) e o isolamento e abandono, outrora típicos do campo, são reproduzidos
no interior do urbano. “A linha de fronteira não passa entre cidade e campo, mas
sim no interior do fenômeno urbano entre a periferia dominada e o centro
dominador”0. É por isto que a urbanização mundial ou sociedade urbana
manifesta-se como problema urbano, cuja compreensão escapa às técnicas e aos
técnicos, questionando também os limites do saber científico, demonstrando que
“não há nessa perspectiva, uma ciência da cidade mas um conhecimento em
formação do processo global, assim como de seu fim”0

“O fenômeno urbano surpreende por sua enormidade; sua


complexidade ultrapassa os meios de conhecimento e os instrumentos
da ação prática. Ela torna quase evidente a teoria da
complexificação, segundo a qual os fenômenos sociais vão de uma

0 Léfèbvre, 2002. p. 26
0 Léfèbvre, 2002. p. 107
0 Léfèbvre, 2002. p. 28
29

certa complexidade (relativa) a uma complexidade maior” (Léfèbvre,


2002. p. 51).

Toda tentativa de abordar cientificamente o tema esbarra em limites teóricos,


metodológicos e epistemológicos, que impedem às disciplinas científicas e
práticas (e a seus instrumentos) alcançarem uma compreensão do conjunto e da
complexidade do fenômeno. Em tais condições, Léfèvbre, ao invés de propor a
construção de uma sociologia urbana que tome como objeto o planejamento ou
empenhar-se em enquadrar a questão no dogma marxista (acionado
paradigmaticamente)0 enfrenta os obstáculos teóricos, institucionais e
epistemológicos que impedem uma abordagem rigorosa e adequada do urbano.

Em seu livro “A Revolução Urbana”, Léfèbvre (2002) estabelece, como primeira


tarefa do pensamento crítico, proceder ao questionamento dos saberes já
constituídos, não para abandoná-los e, sim, para superar suas limitações
disciplinares: o seu imperialismo, o reducionismo científico e a divisão acadêmica
do trabalho que são, em si, o principal obstáculo para a compreensão do urbano.

Os saberes parcelares sobre o urbano, moldados na (e pela) racionalidade


industrial e pelo empirismo (ecologia, fenomenologia, planejamento e urbanismo)
contribuíram com um vasto conhecimento que, entretanto, consolidam um campo
cego - o desconhecimento e mal-conhecimento do fenômeno como um todo.

“A cegueira consiste no “fato de olharmos atentamente o campo novo


– o urbano, vendo-o, porém, com os olhos e com os conceitos
formados pela prática e teoria da industrialização, com um
pensamento analítico fragmentário, logo, redutor da realidade em
formação. Desde então, não vemos essa realidade. Opomo-nos a ela,
a afastamos, a combatemos; impedindo-a de nascer e de se
desenvolver” (Léfèbvre, 2002. p. 36).

Em tais circunstâncias, o urbano, antes de ser abordado como objeto teórico, é


percebido como problema, caos e desordem de todo tipo, cuja ordem e princípios
de ordem são desconhecidos, devendo ser descobertos. De acordo à tradição
marxista, nessas circunstâncias é preciso desinverter o mundo dos discursos, no

0 Como Castells e Lojkine, respectivamente.


30

qual, discursos e percursos, o dito e o feito, raramente coincidem e o primeiro é


tomado pelo segundo.

“Para explorá-lo, para poder vê-lo é necessário uma conversão que


abandone a ótica e a perspectiva anteriores. Nessa nova época, as
diferenças são conhecidas e reconhecidas, e ganham significados.
Essas diferenças mentais e sociais, espaciais e temporais, destacadas
da natureza, são retomadas num plano mais elevado: o do
pensamento que considera todos os elementos. (...) A reflexão sobre a
sociedade urbana reúne dados estabelecidos e separados pela
história. Sua fonte, a sua origem, seu ponto forte, não se encontram
mais na empresa” (Léfèbvre, 2002. p. 44).

A superação dos limites teórico-metodológicos e práticos, reclamados pela


complexificação do urbano, implica em que ”o esquema cartesiano da
simplicidade originária e da complicação obtida pela combinação dos elementos
simples, deve ser abandonado”0. Nesse sentido, o aprofundamento do saber não
poderá ser logrado nem pela descrição empírica, nem pela abordagem
interdisciplinar de uma problemática urbana. O acesso à totalidade dar-se-á “não
pela soma ou justaposição dos resultados positivos dessas ciências. Tomada
isoladamente, cada uma delas se perde na fragmentação ou na confusão, no
dogmatismo ou no niilismo”0.

Na proposta aqui rapidamente esboçada, são necessários instrumentos, teorias e


métodos capazes de abordar a totalidade. Esta deve ser alcançada pela renúncia
aos conceitos, pela crítica da filosofia, situada além da filosofia, numa
metafilosofia. Esta estratégia permitiria a libertação do “discurso institucional
vinculado à filosofia como instituição (universitária, cultural)”0, aproveitando seus
conceitos - “teoria e prática, sistema e totalidade, elemento e conjunto, alienação e
desalienação” - para construir um novo humanismo0.

Munido destes instrumentos, Léfèbvre (2002) aponta para o objeto mediante o


qual o urbano (objeto empírico) poderá ser abordado: o espaço.

0 Léfèbvre, 2002. p. 51
0 Léfèbvre, 2002. p. 125
0 Léfèbvre, 2002. p. 67
0 Léfèbvre, 2002. p. 67
31

“O espaço é tão somente um medium, meio e mediação, instrumento e


intermediário, mais ou menos apropriado, ou seja favorável. Ele
jamais tem existência em si, mas remete à alguma outra coisa: ao
tempo(..) A articulação tempo-espaço torna-se objeto de
conhecimento. (..) A relação entre tempo e espaço, conferindo
absoluta prioridade ao espaço, revela-se relação social inerente a
uma sociedade na qual predomina uma certa forma de racionalidade
governando a duração. Assim, a ideologia e a ciência se confundem”
(Léfèbvre, 2002. p. 74).

Esta articulação, mais plenamente desenvolvida por Léfèbvre em obras


posteriores0, permite conceber o urbano como uma relação tempo-espaço
específica. O espaço como meio e duração não apenas na distribuição territorial
das coisas, a uma morfologia. Mas, sim, também numa relação social pela qual
um certo tipo de prática e pensamento vive e se realiza: o espaço abstrato e a
racionalidade industrial0.

Assim, ocorre com as

“(...) representações do espaço econômico e do planejamento que


fazem o espaço urbano desaparecer ao assimilar o desenvolvimento
social ao crescimento industrial, ao subordinar a realidade urbana à
planificação geral. Tal representação fundamenta-se numa logística
de uma racionalidade limitada, e motiva uma estratégia que destrói,
reduzindo-os, os espaços diferenciais do urbano e do habitar”
(Léfèbvre, 2002. p. 53).
É precisamente essa inversão que o pensamento crítico deve combater “para
reencontrar o habitar e o seu sentido0”

A hegemonia dos discursos legitimadores e construtores do espaço abstrato


garantem, no urbano, o silêncio do usuário (e a ignorância do valor de uso) ao
atribuir desde o alto, um sentido às práticas e ao cotidiano, servindo,
estrategicamente, à supremacia de uma ordem geral.

“Esse nível global é o das relações mais gerais, portanto as mais


abstratas e, no entanto essenciais: mercado de capitais, política do
0 Léfèbvre, 1974
0 Na concepção de Léfébvre, (1974, PP 41-43) – como terei oportunidade de mostrar detalhadamente depois -, o
espaço reúne, comporta, uma prática tríplice que engloba a produção e reprodução de lugares específicos e
conjuntos espaciais, que atuam como princípios da formação social dando-lhe coesão. assim como, a
representação do espaço (dimensão ideológica) e os espaços representados ( o significante)
0 Léfèbvre, 2002. p. 81
32

espaço. Ele não deixa de reagir, mas é melhor no prático sensível e no


imediato. Esse nível global é ao mesmo tempo social ( política) e
mental ( lógica e estratégia) projeta-se, numa parte, no domínio
edificado (..). Projeta-se também, no domínio não edificado... (...) É o
nível do espaço institucional. O que supõe senão um sistema, ou
sistemas de ações bem explícitos ao menos uma ação sistematizada.
(..) A divisão social do trabalho, a que passa pelo mercado ( de
capitais, de produtos e de trabalho), não parece mais funcionar
espontaneamente. Ele invoca o controle de uma potência superior de
organização: o Estado( Inversamente, essa potência tende a
perpetuar suas próprias condições) (..) O Estado organizaria, assim
para utilizá-lo - ao território – o desenvolvimento desigual num
esforço em direção à homogeneidade global” (Léfèbvre, 2002. p. 78).
O Estado, o planejamento e a política urbana, para de Léfèbvre, constituem uma
dimensão imaterial do espaço: o espaço institucionalizado, responsável por
garantir, organizar e estimular a divisão social do trabalho 0. Mas, no espaço
urbano, esse nível geral realiza-se num nível intermediário do próprio urbano, o
“domínio edificado” onde o urbano apresenta-se como uma unidade: um
agrupamento com forma, função e estrutura.

Mas, no próprio fundamento de ambos níveis anteriores, encontra-se no habitar


(P.), a experiência vital urbana que o saber já constituído do urbano detectou como
sendo “a diversidade de maneiras de viver, dos tipos urbanos, dos ‘patterns’,
modelos culturais e valores vinculados a modalidades ou modulações da vida
cotidiana”0.

“Para reencontrar o habitar e seu sentido, para exprimí-los, é preciso


utilizar conceitos e categorias capazes de ir aquém do vivido do
habitante, em direção ao não conhecido e ao desconhecido da
cotidianidade (...) A relação do ser humano com a natureza e com a
sua própria natureza, como o ser e seu próprio ser, reside no habitar,
nele se realiza e nele se lê. (...) O ser humano não pode deixar de
edificar e morar, ou seja ter uma morada onde vive sem algo a mais
ou a menos que ele próprio: sua relação com o possível como com o
imaginário. (...) A casa e a linguagem são os dois aspectos
complementares do ser humano” (Léfèbvre,2002. p. 81).

0 Note-se que Léfèbvre não fala de contradição e muito menos da contradição como ocasião da intervenção
estatal. A falta de espontaneidade da Divisão Social do Trabalho exige a intervenção.
0 Léfèbvre, 2002. p. 81
33

Em última instância, inverter o pensamento implica reencontrar o sentido do


habitar ou quiçá o sentido das ações relativas ao habitar.

Ao afirmar o primado do espaço como objeto teórico da problemática urbana,


Léfèbvre sugere uma via não apenas empírica de abordagem do urbano e
possibilita a formação e acumulação de um saber, simultaneamente mais geral e
específico. Muito além do que o economicismo marxista (e do próprio
estruturalismo marxista) permite aprender, de um lado a relação entre significado
e significante, pela qual estabelece-se a ordem legítima das coisas e ações
características dos grupos humanos (padrões e regularidades sociais e as práticas
que os formam e os mantêm). Isto é, que configuram “um sistema de ações e
decisões”0.

I.1.4.b.2. O Alcance das Ações

Noutras palavras, todo espaço comporta ritmos ritos e mitos; paradigmas e


sintagmas. Quer dizer:

“(...) reencontra-se aqui a análise da dimensão simbólica que em


geral se refere aos monumentos e, por conseguinte, às ideologias e
instituições presentes ou passadas; a paradigmática, conjunto ou
sistema de oposições e a sintagmática, encadeamentos ou percursos”
(Léfèbvre, 2002. p. 86).
Entretanto, na cidade e no fenômeno urbano, não existe um único sistema de
signos e significações do habitar e do “habitat”. Se algum termo caracteriza o
espaço urbano atual este será “espaço contraditório 0” contra o qual, Léfèbvre,
opõe, como projeto, o espaço diferencial. O espaço urbano atual constitui, então,
uma contradição concreta, já que o sentido das ações é disputado entre os “atores
hegemônicos” capazes de determinar o discurso legítimo, porque “as idéias,
representações e valores que não chegam a inscrever-se no espaço, engendrando
uma morfologia apropriada, se dessecam em signos, convertem-se em falas
abstratas, tornam-se fantasmas”0.

O sentido pleno não está totalmente limitado, encontra-se em disputa, apesar da


supremacia histórica das dimensões mais gerais, Estado, técnica e economia na
medida que

0 Léfèbvre, 2002. p. 92
0 Léfèbvre, 2002. p. 46; 1974. p. 337
0 Léfèbvre, 1974. p. 479
34

“(...) no nível global se exerce o poder, o Estado, como vontade e


representação. Como vontade: o poder do Estado e os homens que
detêm esse poder tem uma estratégia ou estratégias políticas. Como
representação: os homens de Estado tem uma concepção política
ideologicamente justificada do espaço0.(Léfèbvre, 2004. p. 76 –77).

Mas, o urbano, de acordo à representação dominante é, apenas

“(...) uma cidade fantasma, um sombra de realidade urbana, uma


análise espectral de elementos dispersos exteriores reunidos pela
coação. Várias lógicas se confrontam e por vezes se chocam: a da
mercadoria; a do Estado e da lei; a da organização espacial; a do
objeto; a da vida cotidiana; à qual se pretende extrair da linguagem
da informação e da comunicação, etc. Cada lógica, podendo ser, ao
mesmo tempo, restritiva e completa, eliminando o que não lhe
convém, declarando que vai e quer governar o resto do mundo,
converte-se em tautologia vazia” (Léfèbvre, 2004. p. 43).
Se a organização geral da cidade moderna tem a aparência de uma racionalidade
completa0, essa aparência advém da tentativa, jamais realizada plenamente, de
estender à divisão do trabalho a eficácia da divisão manufatureira, constituída por
ordens e coações0, de um trabalho de racionalização.

I.1.4.b.3. O Saber Sobre o Urbano

A definição do urbano, em Léfèbvre, questiona radicalmente a noção de unidade


ou subsistema urbano sugerida por Castells.

“Não existe um sistema urbano, nem inserção do urbano num sistema


unitário de formas em razão de sua independência (relativa) entre
forma e conteúdo. Isso impede definir o fenômeno urbano por um
sistema ou como um sistema. Trata-se de uma forma, daí a tendência
à centralidade e à policentralidade” (Léfèbvre, 2002. p. 102)

A unidade é muito mais ilusória do que verdadeira, uma aparência do olhar: o


urbano define-se pela forma e seus atributos. Trata-se de uma abstração concreta
que possui valor de uso: a capacidade de reunir e por em contato, não apenas a

0 Em outro texto, Léfèbvre (1974) esclarece que Estado e empresa participam de um divisão do trabalho
específica na institucionalização da relação tempo espaço dominante. Enquanto o estado ocupa-se do espacial
(território e fronteiras) a empresa, ocupa-se do tempo.
0 Tempo espaço homogêneo (Léfèbvre, 2002. p. 42)
0 Léfèbvre, 2002. p. 42
35

população, senão todas as atividades e objetos conhecidos pela humanidade, este é


o seu conteúdo0.

Esta utilidade seria, para o autor, irrecusável.

“Não se pode deixar de defender a concentração urbana, com seus


riscos de saturação, de desordem e suas oportunidades de encontros,
de informações, de convergências. Atacá-la, destruí-la é próprio de
um empirismo que de antemão destrói o pensamento. (..)não existem
lugares de lazer, de festa, de saber, de transmissão oral ou escrita, de
invenção e de criação sem centralidade” (Léfèbvre, 2002. p. 94).

Encontra-se, então, o “essencial do fenômeno urbano na centralidade. Mas


considerada como o movimento dialético que a constitui e a destrói, que a cria ou
a estilhaça0”. “O urbano é uma forma pura: o ponto de encontro, o lugar de uma
reunião, a simultaneidade”, que exige, conteúdo0. Esta essência0 não
necessariamente manifesta-se num mesmo lugar nem está restrito a um único
ponto.

Os critérios tradicionais de definição do urbano destacam suas funções e


estruturas conforme o método dialético que aspira apreender a totalidade das
relações e a unidade no movimento0, Léfèbvre considera o seu reconhecimento
insuficiente, porém, necessário para a análise. Estruturas e funções são sempre
duplas0. Assim, as funções política, administrativa e comercial precisam ser
discernidas e reunidas com a organização e controle de “funções internas e
externas da cidade” posto que o espaço urbano situa-se a meio caminho entre as
relações sociais gerais e o habitar. O mesmo ocorre com as estruturas que são, ao
mesmo tempo, morfológicas e sociológicas.

Um terceiro elemento da definição do urbano, igualmente duplo, é conformado


pelas redes.

“Para poder compreender as leis dos objetos e dos signos na


realidade urbana, é preciso acrescentar conceitos específicos, tais

0 Ver Léfèbvre (1995. Pp. 175- 179).


0 Léfèbvre, 2002. p. 110
0 Léfèbvre, 2002. p. 110
0 Para aprofundar conceito de essência ver Léfèbvre (1995. pp. 216 – 222).
0 Léfèbvre, 1995, pp. 220 e238
0 Segundo a lei da dialética da unidade dos contraditórios (Léfèbvre, 1995. p.338)
36

como rede (de troca e de comunicação), aos conceitos que a eles


referem ( sistema , conjunto, recorte, arranjo, sociologia dos grupos,
agrupamento) O urbano define-se também como justaposição e
superposições de redes, acúmulo e reunião dessas redes, constituídas
umas em função do território, outras em função da indústria, outras
ainda em função de outros centros no tecido urbano” (Léfebvre,
2002. p. 114).
Por outro lado, e recordando a noção de ordem0 tipicamente sociológica, a urbana
compreende, também, coerção.

“Até nova ordem, ao urbano nunca falta um lado repressivo, que


provêm do que nele se esconde, assim como a vontade de manter os
dramas velados, as violências latentes, a morte e a cotidianidade. Esse
lado expressivo incorpora-se nas concepções de espaço. Ele nutre a
transgressão. (..) se a verdade se esconde e perde seu sentido, o sentido
da verdade pode irromper a qualquer instante. Até explodir” (Léfèbvre,
2002. pp. 113-114).
Em suma, a unidade aparente do urbano se desfaz pelo método dialético,
revelando-se uma unidade contraditória de ordem e desordem, que pode ser
analisada pelos conceitos tradicionais de forma, estrutura e rede, cuja essência é a
centralidade e policentralidade que dão à cidade sua propriedade fundamental: a
comutatividade ou acumulação de valor.

I. 1.4.b.4. O Urbano Como Locus de Acumulação do Capital

Léfèbre propoõe que uma das propriedades fundamentais da cidade, a


centralidade, é cumulativa. Entretanto, esta propriedade não pode ser reduzida à
acumulação de capital0. Constitui uma propriedade que precede a industrialização,
da qual esta última, oportunamente, aproveitou-se e ainda continua tirando
proveito.

“A cidade (com a indústria) torna-se produtiva (meio de produção),


inicialmente, aproximando os elementos da produção uns dos outros.
Ela reúne todos os mercados (...). A cidade atrai para si tudo o que
nasce, da natureza e do trabalho, noutros lugares: frutos e objetos,
produtos e produtores, obras e criações, atividades e situações. O que
cria? Nada, centraliza as criações. E no, entanto, ela cria tudo. Nada
existe sem troca, sem aproximação, sem proximidade. Isto é, sem
relações, ela cria uma situação, a situação urbana onde as coisas
diferentes advêm umas das outras e não existem separadamente, mas
segundo as diferenças” (Léfébvre, 2002. p. 111).

0 recordar o conceito de vigência da ordem webweriano do que falei no início


0 Léfèbvre, 2002. p. 112
37

Além de proporcionar ganhos de aglomeração, a cidade tem um papel


fundamental na distribuição do excedente, do qual os industriais, financistas ou
comerciantes não seriam, absolutamente, os únicos beneficiados. O Estado e os
políticos exigem seu quinhão.

“Na sua distribuição, os mestres das cidades sempre tentaram dela


reter uma grande parte(maior que o lucro médio de seus
investimentos). Nos três aspectos da mais-valia, o centro urbano
desempenha um papel cada vez mais importante. O que define uma
função essencial, e no entanto desconhecida ( despercebida), da
centralidade urbana no modo de produção capitalista” (Léfèbvre,
2002. p. 34).

A cidade constitui, então, um “órgão” realizador da mais-valia que, como a


ciência, modifica as relações de produção, tornando-se força produtiva0. Contudo
o próprio desenvolvimento do urbano, estimulado pelas forças centrípetas da
centralidade, tende a torna-se, contraditoriamente, um obstáculo. A função central,
nesses casos, deve ser preservada para os fins da acumulação mesmo que às custas
da militarização do centro0.

Como a centralidade, o seu desaparecimento não constitui um aspecto recente. No


curso da história, a centralidade tem sido atingida, sempre, por deslocamentos de
funções e atividades que – fogem da saturação do antigo centro-, pela
fragmentação provocada pela militarização ou, aida, pela subverção, ocorrida
quando esta é rechaçada. Os centros têm perdido, historicamente as suas
propriedades por excesso de saturação e por suas falhas, entre as quais a principal
é a de expulsar os refratários à ordem, ou pelo assalto das periferias.

Por outro lado, a centralidade, ou centralização, propriedade constante e


contraditória do urbano, não muda ao sabor das inovações tecnológicas ou das
relações técnicas de produção nas empresas nem pelas alterações econômicas, que

0 Léfèbvre, 2002. p. 26
0 “(..) dans la societé contemporaine (...) la centralité se veut superior. A ce tiltre elle prétend (imlicitement ou
non) definir une relatinalité superieur, politique – étatique, “urbaine”. Ce que tentent ensuite de justifier les gens
de la technostructure, les planificateurs. Ils font fi da la dialectique; cette centralité expulse , avec une violence
inhérente à l’ espace lui-meme, des elementes périphériques. La centralité, ou plutôt la centralisation, se veut et
se fait « totalisante » sans autre philosophie qu’ une stratégie, consciente ou non. Malgré les tendances adverses,
les unes subversives, les autres tolerés, le centre condense les richesses, les moyens d’ action, les connaisances, l’
information, la «culture».(Léfèbvre, 1974, pp. 383 –384).
38

parecem eliminar, hoje, a relevância da indústria no denominado pós-fordismo ou


acumulação flexível.

“A realização da mais-valia se desterritorializa. Desde quanto espaço


urbano tenha perdido seu papel antigo na realização da mais-valia,
continua, entretanto a assegurar a correspondência entre fluxos: de
energia, de mão-de-obra, das mercadorias e dos capitais. A economia
se define praticamente como uma conexão de fluxos e de redes
relação mais ou menos assegurada institucionalmente e programada
no quadro espacial onde as instituições tem um alcance operatório.
Em efeito, cada fluxo se define por uma origem, um terminal e um
percurso. Se cada fluxo pode definir-se por ele mesmo não há efeito
mais que o reportado aos outros fluxos, assim a utilização de um fluxo
de energia exige um fluxo de matérias primas. Os fluxos se
coordenam num espaço. Quanto à repartição da mais-valia se faz
espacialmente, territorialmente, segundo relações de força: aqueles
países e setores, segundo as estratégias e o saber fazer dos
dirigentes” (Léfèbvre, 1974. p. 401).

Em suma, as propriedades da cidade são anteriores à industrialização e tornaram-


na, desde os primórdios do capitalismo, lugar de realização e distribuição da mais
valia. A cidade, não é apenas o lugar onde se localizam os mercados e as finanças,
mas o local de distribuição do excedente em que os dominantes disputam seu
quinhão. Contudo, nas atuais condições, a centralidade do capital torna-se
absoluta, sobrepondo-se à cidade e subordinando-a. Mesmo assim, a cidade
continua sendo o ponto de correspondência de mão-de-obra, energia, capitais,
mercadorias; lugar de interconexão e coordenação de fluxos.

I.1.4.b.5. Segregação e Fragmentação

Para Léfèbvre, ao contrário de muitos outros pensadores, a centralidade não se


define, necessariamente, como segregação. Isto é, a diferenciação, não pode ser
caracterizada, para este autor, por aquele conceito. Em verdade, a segregação não
é concebida à maneira da Ecologia Humana como uma diferenciação sócio-
espacial, decorrente do acesso à terra, posteriormente transformado em moral nem
à maneira de Castells, como distribuição desigual do produto imobiliário.
39

Léfèbvre reconhece e identifica a produção capitalista da cidade – produção


imobiliária - como um dos determinantes da explosão do urbano e a propriedade
monopolista do solo como uma das causas de hierarquização urbana. Mas, estes
fenômenos não são analisados, pelo autor, mediante o recurso ao conceito de
segregação.

Por segregação, entende incapacidade de comunicação e enriquecimento mútuo


através da diferença posta em contato.

“Quem diz diferença, diz relação, portanto proximidade-relações,


percebidas e concebidas, portanto, inserção numa ordem espaço
temporal dupla: próxima e distante. A separação e a segregação
rompem a relação. A segregação complica e destrói a complexidade”
(Léfèbvre, 2002. p.124).

Nesse sentido, segregação é sinônimo do que hoje é denominado fragmentação:


processo pelo qual recorta-se o tecido urbano, hierarquizando, incluindo e
excluindo os lugares segundo as possibilidades de interconexão e vinculação a
redes técnicas articuladas mundialmente. Para Léfèbvre, a segregação, parece
provocar o enfraquecimento do centro e da centralidade urbana como lugar de
encontro, troca e comunicação.

Então, segregação não corresponderia à diferenciação da paisagem: equivale à


criação de obstáculos à comunicação, à troca e ao acesso à centralidade. Portanto,
segregação não se assemelha à noção de ordem urbana e nem mesmo de ordem
territorial urbana. Não se refere ao espaço construído, tampouco ao social, mas
aos efeitos da forma urbana que propicia ou dificulta a comunicação. De modo
que ordem ou organização urbana são neste caso, simultaneamente, ordem e
desordem, fatos conhecidos e uma sucessão de fatos desconhecidos ou
conhecidos.

Resultado da complexificação do social, o urbano dele reapresenta a racionalidade


prática, o laço entre a forma e a informação. Contudo, o planejamento urbano, ao
invés de estofar os aspectos dinâmicos ou “aventurosos” da cidade, fomentando e
enriquecendo a comunicação e centralidade – um valor de uso humanamente
enriquecedor – fragmenta-a e empobrece-a, ao aplicar “um racionalismo limitado,
industrial ou estatista” que “ mutila o urbano dissociando-o: projetando no terreno
40

sua “análise espectral”, de elementos disjuntos, cuja informação recíproca torna-se


impossível0”. Esta prática técnica resume-se, segundo Léfèbvre, na noção de
equipamentos. Segundo esta

“(...) a vida urbana localizar-se-ia nos diversos e diversificados


equipamentos que correspondem a todos os problemas. Provoca a
segregação pela projeção, separadamente, no terreno de todos os
elementos isolados do todo” (Léfèbvre, 2002. p. 170).
A fragmentação sócio-espacial da cidade seria fruto, então, da racionalidade e da
ação técnica limitada e limitante que, ao planejar, perde de vista a totalidade ou o
conjunto. Na qual, o urbanista e o arquiteto são instrumentos de uma política do
espaço que se recobre de moralidade e cientificidade0 mas que deixa as relações
sociais intactas.

I.1.5. Conclusões e Hipótese

Permanece válida a relação, clássica, entre industrialização, urbanização e


modernidade (ou pós modernidade) que norteou a reflexão e a pesquisa sobre o
fenômeno urbano. Questiono, contudo, a expectativa de alinhamento direto e
imediato entre técnica, economia e urbanização e, portanto, a interpretação de
toda transformação urbana como subordinada às necessidades do capital, numa
conjuntura histórica ou econômica, específica, denominada pós-modernidade ou
regime de acumulação flexível. A urbanização não se manifesta, segundo os
mesmos termos, como correlação direta e imediata entre aglomeração e modo de
vida urbano. Essa orientação analítica seria correta, se o urbano fosse pensado
como uma sociedade ou um sistema social particular. Na metrópoles, a
urbanização, pode ser concebida como concretização de múltiplas determinações,
e ademais, um fenômeno mundial: associado e multi-escalar.

Por ordem ou organização urbana entendo, então, a distribuição espacial das


relações sociais e dos objetos que lhe servem de suporte na modernidade - a
distribuição de coisas, grupos sociais, pessoas e atividades tanto - na escala intra-
metropolitana quanto na inter-metropolitana. Trata-se de uma organização social
específica, complexa e multifacetada. um fenômeno vital do qual emerge todo tipo
de fenômenos sociais, em que ordem e desordem coexistem numa unidade

0 Léfèbvre, 2002. p. 124


0 Léfèbvre, 2002. p. 94
41

complexa, que escapa ao racionalismo científico clássico 0 cujo reducionismo


conduziu a ciência à hiper-especialização do saber e das técnicas – e deve ser
superado.

Falar, então, de transformações na metrópole ou nas metrópoles é legítimo e


evidente. Entretanto, não se deve esperar que tais transformações se ajustem
imediata, direta e coerentemente às transformações econômicas, sem
intermediação da política urbana, sem conflitos e resistências, já que as relações
capitalistas de produção.

“Não se refletem diretamente no espaço. (...) Ao contrário, é o


desenvolvimento contínuo desse sistema que vem a ser materializado
no espaço em qualquer tempo dado, de tal modo que padrões
observáveis de organização sócio-espacial são formas fenomenais.
Assim, os traços distintivos da morfologia espacial estão
dialeticamente relacionados com as mudanças estruturais na
organização social. (...) Os padrões sócio-espaciais são mais o
produto de processos contraditórios contenciosos, do
desenvolvimento capitalista que necessariamente funcionais para o
capitalismo ou determinados por uma lógica de acumulação do
capital. O significativo deste processo, é o desenvolvimento continuo
das forças de produção (..) e o conflito dessas forças com as relações
vigentes de produção, especialmente o papel do Estado
intervencionista e da acumulação do capital na medida em que se
articulam com o espaço. (Gottdiner, 1993. p.267-8)
Quer dizer, se bem que as mudanças sócio-espaciais sejam determinadas por
relações capitalistas de produção, estas não são únicas, nem diretas e nem
automáticas. As transformações urbanas são tanto funcionais quanto desfuncionais
ao capitalismo, já que a metrópole, e especialmente a centralidade é o lugar da
rentabilidade mas, também, o lugar ameaçado e permanentemente ordenado e
reordenado, mais que pelo planejamento, pela operação de infindáveis e contínuas
políticas urbanas.

Segundo esta orientação analítica, a emergência de transportes informais,


atribuída, por muitos, à formação de um novo marco institucional destinado a
promover a fluidez e a racionalização do espaço urbano – às necessidades do
capital num regime de acumulação flexível, constitui, contraditoriamente, uma
forma de resistência social e econômica que frustra, ou dá um outro sentido, às

0 Segundo Morin (1998. p. 267), a incompatibilidade entre ordem e desordem pode ser superada se em lugar da
ordem, valoriza-se o conceito de organização, que expressa a “gestão” da ordem e, da desordem, inter-relações
de caráter sistêmico
42

necessidades dos agentes econômicos. Constituiria, assim, uma forma de


apropriação da cidade por seus habitantes.

III. Mobilidade e Circulação

Mas, tratar transportes e a sua contribuição para a constituição de uma ordem ou


organização urbana demanda que se defina os conceitos de mobilidade, circulação
e acessibilidade. Estes, conforme tratados pela sociologia urbana, mostram-se
cruciais para o estudo da morfologia e da integração funcional, da riqueza cultural
intrametropolitana, do grau e condições de participação dos habitantes na vida
urbana. O uso de tais conceitos justifica-se pela convicção de que o crescimento
de população, a integração das diversas atividades econômicas e sociais e o
enriquecimento sócio-cultural, originado do aumento de comunicação, estariam
ligados às possibilidades abertas pelas modernas técnicas de transportes.

Em tais termos, o transporte pode ser concebido como instrumento de


comunicação, como um meio de circulação articulado ao processo de produção ou
como um momento específico da divisão social e territorial do trabalho. As várias
interpretações denotam, em primeiro lugar, que o conceito de mobilidade é
polissêmico. Sendo assim, é preciso esclarecer o seu estatuto teórico e dos
conceitos de acessibilidade e circulação, os significados e implicações destes
conceitos e suas conseqüências cognitivas.

Proceder a tal esclarecimento é importante, já que vivemos um período histórico


em que as possibilidades técnicas de circulação econômica e/ ou de comunicação
atingem patamares nunca antes experimentados, que possibilitam uma
“colaboração em tempo real” na escala planetária. Termos como globalização,
sociedade da informação ou sociedade em rede, pretendem definir este “estágio”
do capitalismo. Em todos, manifesta-se a existência de possibilidades técnicas
para a redução de distâncias físicas e temporais num processo conceituado como
compressão espaço-temporal0, que Santos (1999), denominou de aceleração
contemporânea.

Desde uma perspectiva econômica, é possível entender tal aceleração como


aumento da velocidade e do volume de fluxos monetários, de mercadorias e
informação0, de modo que comunicação, mobilidade e circulação podem ser
0 Ver Giddens, 1991; Santos , 1999.
0 Lojkine (1981. p. 195) refere-se à mobilidade social, mobilidade temporal, por exemplo.
43

considerados sinônimos. Mas, são inúmeros os usos do conceito de mobilidade. 0.


O que entender por estes termos? Existe, de fato, uma tensão analítica entre
mobilidade social e mobilidade espacial, que estimula a sua ágil substituição de
um pelo outro. É necessário, então, esclarecer os seus supostos comuns, seus
limites e possibilidades explicativas.

III. 1. Mobilidade e Circulação na Vida Metropolitana

O conceito de mobilidade, tal como proposto pela ecologia urbana, possuía grande
importância heurística na determinação de tendências da urbanização, abrangendo
e mensurando vários processos: do estado da comunicação social, à mobilidade
residencial e profissional. A mobilidade, em verdade, apenas possuía valor
explicativo quando relacionada ou concebida como uma “mudança com reação a
um novo estímulo ou situação”0, servindo de índice do metabolismo urbano, isto
é, das transformações decorrentes da expansão ou crescimento urbano, da ordem e
da desordem por ela provocadas.

A expansão, concebida como aumento populacional acompanhado de processo de


concentração e desconcentração, é simultânea a mudanças físicas na metrópole,
originadas da demolição de certas áreas e do aumento dos fluxos e, ainda, de
mudanças no uso do solo, alterando, por esta via, as áreas morais e as áreas
naturais0 já consolidadas; redistribuindo-as. Tais transformações alteram a relação
das pessoas com os objetos, e com grupos locais e o teor dos laços sociais,
tendendo a enfraquecer vínculos primários (mores), de modo que o aumento dos
contatos e dos estímulos provocados levaria à degradação física e moral dos
lugares e das pessoas sem capacidade de se adaptar as transformações em curso.
Este aspecto negativo do aumento da mobilidade teria como contrapartida o
enriquecimento e o dinamismo originados do aumento dos contatos e da
comunicação.

0 Germani (1971), por exemplo, abordava a mobilidade como mudança no status dos indivíduos, isto é como
mudança de posição social,. Na fórmulação da sociologia americana. Burgess (1925) e Park (1925), por sua vez,
além de adotarem a noção anterior, de mobilidade socio-espacial, a relacionavam, também, à comunicação, com
estímulos capazes de enriquecer ou “degenerar” a vida dos indivíduos, diferenciando mobilidade dos
movimentos quotidianos e rotineiros Do mesmo modo que Léfèbvre(1984).
0 Burgess, 1936. p. 365.
0Conceitos tratados anteriormente.
44

A mobilidade seria, então, como o “pulso da cidade”, permitindo reconhecer seu


grau de mudança e desorganização0. O conceito assim concebido torna-se um
instrumento para o reconhecimento e a mensuração, dos benefícios ou patologias
gerados no processo de crescimento urbano, através dos movimentos da
comunicação e dos preços dos terrenos.

Essa concepção foi fortalecida por Park (1936), para quem o conceito de
mobilidade adquire um estatuto teórico equivalente ao de estrutura social 0, se por
esta se entender a hierarquia de posições sociais. Isto é, se por relações humanas,
em sesu vínculos com a estrutura social, entende-se um compósito entre
proximidade e distanciamento, refletido espacialmente. Esta conexão permitiria,
por um lado, mensurar a distância social e proceder à sua descrição mediante
fórmulas matemáticas0 e, por outro lado, observar e compreender as
transformações na estrutura social, através da mobilidade, supondo que “toda
mudança social compreende mudança de posições no espaço” 0. O conceito de
segregação resume este aspecto da noção de mobilidade e exprime a expectativa
de que toda alteração na distribuição física das atividades, grupos e indivíduos
seja indicativa de alterações na ordem urbana mais geral, na medida em que a
mudança da parte afeta o todo.

Como foi visto, Park atribuia a configuração das posições sócio-culturais na


cidade à luta por status, de acordo com supostos ecológicos que autorizavam
pensar o espaço como projeção direta das relações sociais no território. A
vinculação direta entre mobilidade social e espacial, que está na base da teoria do
espaço da Escola de Chicago, foi duramente criticada por Castells. Este afirma
que o espaço não é um dado externo, nem um “terreno” vazio sobre o qual as
relações se projetam: uma teoria do espaço não poderia ser concebida à margem
de uma teoria social geral. Haveria, assim, relação entre “o espaço e o resto dos
elementos materiais da organização social”, que precisaria ser explicada “no

0 Park, 1970. p.135


0 Park, 1970. p. 136
0 Park (1925. p. 137). É porque a geografia, ocupação e todos as outros fatores que determinam a distribuição da
população, determinam tão irresistível e fatalmente o lugar, o grupo e os associados com os quais cada um está
obrigado a viver, que as relações espaciais vêm a ter para o estudo da sociedades e da natureza humana a
importância que elas têm”. (Park, 1925. p. 140).
0 Park, 1925. p. 134
45

quadro de uma coerência conceitual teórica que consiga dar conta das conjunturas
e dos processos que é necessário explicar”0

“O espaço é um produto natural em relação com outros elementos,


entre eles os homens que constróem determinadas relações sociais,
que dão forma, função e significado social ao espaço. Para ele assim
como para qualquer outro objeto real há que estabelecer as leis
estruturais e conjunturais que regem a sua existência e
transformação, assim como a sua específica articulação com outros
elementos da realidade histórica.(....) O espaço urbano estrutura-se
segundo o tipo e período da organização social” (Castells, 1978.
p.141).
O sub-sistema urbano constituiria, então, uma expressão específica “dos
elementos fundamentais da estrutura social”. A estrutura urbana surgiria da
cristalização da articulação dos sistemas econômico, político e ideológico de um
modo específico, conforme a distribuição espacial da produção (de bens, serviços
e informações), do consumo (apropriação individual e coletiva), do intercâmbio e
dos processos de gestão (processos e regulação) das atividades anteriormente
citadas 0.

Não tenho a pretensão de reconstruir debates internos à teoria do espaço mas


considerar o modo em que a caracterização dos transportes ajusta-se à definição
do urbano. No pensamento de Castells, os transportes conformam o substrato
técnico da troca, sendo, portanto, tributários de uma teoria mais geral da troca e,
não, da mobilidade. Entretanto, e apesar das suas grandes diferenças teóricas com
a Ecologia Humana, os transportes foram considerados, por Castells, igualmente
fundamentais para a compreensão do urbano. “Considerar a circulação de uma
aglomeração, como expressão de seus fluxos e, conseqüentemente, de sua
estrutura e, ainda, como elemento essencial para determinar a sua evolução" 0. O
estudo dos transportes também apresentaria, então, um grande valor heurístico. A
abordagem efetua-se, entretanto, em outros termos e com outros objetivos
teóricos.

“Um estudo sociológico dos transportes funda-se sobre a análise das


contradições entre a lógica interna de um sistema de circulação e as
condições históricas dos meios de transporte através dos quais deva
realizar-se. Finalmente, estas contradições se articulam em
contradições sociais gerais” (Castells, 1978. p.241).
0 Castells, 1969. p. 6
0 Castells, 1969. p.76 ; 1977. p. 155
0 Castells, 1978 . p. 229
46

Metodologicamente, este objetivo deveria ser atingido por identificação e


mapeamento de cada um dos “elementos da estrutura urbana entre os que atuam e
segundo a direção, intensidade e conjuntura que a caracterizam”. Assim sendo, ao
estudar a circulação pela análise de cada um dos elementos relacionados, suas
necessidades e dificuldades de interconexão, poderia-se estabelecer “as relações
entre o conjunto dos elementos da estrutura urbana (...) que coroa, sintetiza tal
esforço mais que precedê-lo”.

Essa abordagem permitiria entender

“(...) as possibilidades de transferência no interior da estrutura


urbana e mostrar as diferentes formas de realização espacial segundo
a interação do conteúdo estrutural de cada transferência, a
especificidade histórica do espaço onde se realiza a diferenciação
social do processo em questão” (Castells, 1978. p. 230).
Com esta obscura frase, busca-se explicar que a análise deverá tomar os
diferentes sistemas que coexistem e se relacionam no urbano, isoladamente, para
identificar limites e possibilidades relacionadas às exigências técnicas e sociais
de cada transferência (“condições de realização espacial”). O procedimento
revelaria as “necessidades” e a conjuntura espacial de modo a explicar
preferências e condições de deslocamento expressivas de leis estruturais.

O pequeno capítulo no qual Castells expõe sua proposta, é seguida de uma breve
análise, a modo de exemplo. Através dele o autor, revela, em relação ao transporte
de passageiros, que o maior número de movimentos urbanos corresponde às
viagens casa-trabalho, havendo, em proporção, menos viagens para compras e
escolares, enquanto deslocamentos destinados ao lazer ocorreriam de forma
esporádica. Com base nessa informação, o autor avalia, de início, o transporte
ferroviário. A primeira contradição revelada por esta análise relaciona-se á
extensão da metrópole e à concentração geográfica dos empregos. Quanto mais se
estende a urbanização e concentra-se o emprego, menores serão a comodidade, a
velocidade, aumentando as distâncias. Em segundo lugar, a rede viária é
estritamente radio-cêntrica, enquanto o padrão de viagens é radial, impondo a
combinação de meios de transportes e, conseqüentemente, a esperas e demoras.
Em decorrência, implanta-se o transporte privado (por ônibus), mais caro, e
difunde-se o uso do automóvel, contribuindo, ambos, para fortalecer a
diferenciação social fundada na renda. Em terceiro lugar, a rede de transportes
47

reflete a segregação social e a reforça, na medida em que a rede de transportes e


vias não facilita a integração das áreas mais populosas, principalmente quando
estas são de baixa renda e integram-se ao mercado de trabalho manual. Em quarto
lugar, verifica-se que não existem transportes para outras práticas que não sejam o
deslocamento casa-trabalho. Por outro lado, há uma tendência à paralisação do
centro (queda da velocidade média), em função do aumento da frota automotiva
(carros e ônibus), apesar dos esforços de ordenação. E finalmente, o automóvel
acentua diferenças de acessibilidade, de modo que os proprietários têm muito
mais acesso ao trabalho, ao comércio e ao lazer.

As contradições levam, então, a diversas formas de intervenção política: medidas


financeiras para rentabilizar as operações, o que conduz ao constante aumento das
passagens; criação de novos meios de circulação, dando prioridade às vias
expressas e acentuando, assim, o uso do automóvel que agrava a diferenciação
social e, a médio prazo, provoca a diminuição da velocidade média;
desembocando, também, em lutas e movimentos sociais0.

O quadro apresentado por Castells constitui uma explicação geral dos problemas
de transportes na urbanização monopolista. Delineia seus traços objetivos
recordando a necessidade de proceder estudos comparativos para que seja possível
reconhecer a especificidade de cada “sistema urbano de transporte”. No Brasil,
foram realizados estudos que levaram à identificação de aspectos específicos da
urbanização – o uso predatório da força de trabalho – mas, não foram além de
Castells0 na proposta dos conceitos de mobilidade e circulação.

A análise de Castells conseguiu revelar aspectos omitidos pela sociologia urbana


norte-americana. Mas, o uso dos transportes como instrumento de avaliação das
contradições urbanas iguala a contribuição à da Ecologia Humana. Ambas
fundamentam-se no suposto comum da importância da comunicação, não
esclarecido no caso de Castells. A denúncia do caráter ideológico do princípio da
“luta pela vida”, como motor da mobilidade residencial urbana, deixa incompleta
a explicação do conceito de mobilidade, sem que o valor atribuído às lutas sociais
e aos movimentos decorrentes do transporte supra tal deficiência. Restringindo a
mobilidade aos movimentos diários, tratados pelos mesmos procedimentos da

0 Recordar os movimentos sociais constituía o centro da análise de Castells naquele período.


0 Ver no caso do Brasil, Moises & Allier (1978).
48

sociologia urbana norte-americana - a pesquisa de origem-destino – a proposta do


autor revela-se incapaz de abordar aspectos qualitativos dos conflitos, sobretudo
quando estes mantêm-se latentes. Considero, contudo, que Castells contribui
positivamente para a análise dos transportes na metrópole ao relacioná-los não
com a mobilidade e sim com a circulação, com a troca, ou a colaboração humana,
trazendo a questão para o âmbito do pensamento sociológico clássico.

III.2. Circulação de Bens, Pessoas e Dinheiro: estrutura e ação no social

A separação, puramente analítica, entre “natureza” e natureza humana foi


reificada pelos pensadores norte-americanos mesmo quando, tanto Marx quanto
Mauss advertiram que não existe na realidade concreta. Ambas conjugam-se,
indissociavelmente, na humanidade (uma nova natureza). Sendo assim, o poder
explicativo do “princípio” da luta pela vida, sublimada pela cultura – articulação
capaz de correlacionar a hierarquia social, a distribuição espacial e as mudanças
urbanas - perde todo poder explicativo, mostrando-se como ideologia da vida
econômica burguesa. Entretanto, permanece a mobilidade (das pessoas e das
coisas) como fenômeno integrador do social. Trata-se, sem dúvida, de uma noção
clássica.

Mauss (1974), por exemplo, no célebre “Ensaio sobre a dádiva e a obrigação de


retribuir presentes” aponta para o fato de que, historicamente, a circulação de
bens, pessoas e dinheiro pode ser entendida desde um recorte mais significativo
que o meramente economicista, se acrescida da troca e circulação de ”gentilezas,
banquetes, serviços, mulheres, crianças, danças, festas”, já que, nas feiras, “o
mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui
apenas um dos termos do contrato”. Tais movimentos fizeram parte, nas
sociedades primitivas, do Sistema de Prestações Totais 0: instituição de trocas e
circulação das coisas não conformada como um sistema econômico autônomo.

Entre muitos povos arcaicos, a troca assumiu a forma de movimento incessante,


“tudo vai e vem como se existisse uma troca constante entre os clãs e os
indivíduos, como se existisse uma matéria espiritual que compreende coisas e
homens, repartidas nas diversas categorias, sexos e gerações”0 A troca permitia a

0 Mauss, 1974 p. 42.


0 Mauss, 1974. p. 59
49

comunicação, segundo critérios de distinção e hierarquização estabelecidos


culturalmente, estruturando o social.

“A finalidade da troca aqui é fundamentalmente moral: busca


produzir amizade entre as pessoas em jogo. No fundo tudo é uma
combinação onde se misturam as coisas com as almas e ao revés.
Misturam-se as vidas e precisamente como as pessoas e as coisas que
se misturam saem cada um da sua esfera e tornam a misturar-se no
que consiste o contrato e a troca” (Mauss, 1974. p.70).
O movimento incessante de bens, pessoas e símbolos produz solidariedade entre
povos e no âmago de cada povo. Mas, esta troca não se dá, ou não é representada
no direito primitivo como ocorrendo entre indivíduos livres. São troca coletivas,
entre grupos e seus chefes.

De modo semelhante, para Marx (1964), a circulação integra partes e instâncias


separadas da sociedade. Assim, quando uma parte permanecia isolada ocorreria
um empobrecimento A impossibilidade de participar da cooperação, constituía
para Marx, a chave explicativa da oposição entre cidade e campo,

“(...) na cidade, a concentração dos instrumentos de produção, do


capital, dos prazeres e das necessidades, enquanto o campo põe em
evidência uma realidade contrária, isolamento e pobreza. (...) É a
expressão mais flagrante da submissão do indivíduo à divisão do
trabalho , de sua submissão a uma determinada atividade que lhe é
imposta” (Marx 1964. p.50).
A integração promovida pela circulação ocorre, hoje, em outras condições sociais,
em outra escala. Na atual sociedade burguesa, a escala de circulação é mundial e
seus pontos de concentração são as cidades.

“Com o dinheiro toda forma de circulação e a circulação mesma


apresenta-se para os indivíduos como contingente. É portanto a
natureza mesma do dinheiro que todas as relações (...) não sejam
senão relações de indivíduos em condições determinadas, e não de
indivíduos como tal. Essas condições se reduzem agora a apenas
duas: o trabalho acumulado ou propriedade privada de um lado, e
trabalho acumulado efetivo de outro. Se uma dessas condições
desaparece , a circulação é interrompida” (Marx, 1964. p.70).
A circulação, nesta orientação analítica, é apenas um momento determinado da
troca e a troca é um ato compreendido na produção, não na produção num sentido
estrito e convencional mas, na produção num sentido amplo, que os filósofos
denominam autopoese 0.

0 Ver Morin, 1998.


50

“Não devemos considerar esse modo de produção exclusivamente


sobre tal ponto de vista, ou seja, considerar como reprodução da
existência física dos indivíduos, mas sim como representando, já uma
forma determinada de atividade dessas pessoas, uma forma precisa
de manifestar a vida, um modo de vida determinado. O modo pelo
qual as pessoas manifestam a sua vida reflete muito o que elas são.
Tal modo de ser coincide, portanto, com sua produção, tanto com o
que produzem, quanto com o modo pelo qual produzem. O que as
pessoas são depende , portanto, das condições materiais de sua
produção” (Marx, 1964. p. 15).
Concebo, então, a circulação, em sua forma determinada, como circulação de
capital, como fluxo monetário que movimenta incessantemente a produção e o
consumo. Em sua forma geral, como momento que integra indivíduos e grupos na
divisão social do trabalho, isto é como elemento constitutivo da sociabilidade 0,
sem que a segunda possa ser reduzida à primeira.

III.2.a. Circulação Mobilidade e Acessibilidade

Deste ponto de vista, a noção de mobilidade não adquire o sentido e as dimensões


propostas pela sociologia norte-americana. Se é relacionada à noção de luta pela
vida, como um motor da mobilidade, vale a pena recordar que, para Marx, a
história sempre registrou movimentos desse tipo: estratégias individuais para o
alcance de uma melhor posição na divisão social do trabalho ou libertarção de
relações de classe. A falta de ênfase em movimentos deste tipo, por parte de Marx,
não se deve à falta de conhecimento mas, ao fato de mostrarem-se infrutíferos
para a construção do comunismo0. Por outro lado, o objetivo da sociologia norte-
americana era, expressamente, a integração de imigrantes a uma certa sociedade e,
portanto, a eliminação das classes estava fora de questão. Uma diferença teórioc-
analítica semelhante é identificável no que concerne ao conceito de acessibilidade.

Quanto a acessibilidade, Marx parte do reconhecimento da desigualdade de


condições no acesso aos bens, riqueza e prodígios criados pelo trabalho coletivo
(divisão social do trabalho). Enquanto a produção tendia a ser socializada, o
desfrute do trabalho coletivo era privatizado. E a “apropriação dessas forças não é
outra coisa (...) que o desenvolvimento das faculdades individuais, correspondente
aos instrumentos materiais da produção”0. Sustento, então, que a noção de acesso,
que os norte-americanos chamaram de acessibilidade - inscrevendo o sentido da
0 Recordar que para Marx antes que um ser social, o homens é um ser sociável.
0 Uma vez que o seu “projeto de sujeito” (o proletariado) deveria eliminar a sociedade de classes.
0 Marx, 1964. p. 71
51

mobilidade do funcionalismo - tem um significado próximo ao conceito de


apropriação mas, com implicações diferentes. Pois, no segundo caso, não se trata
de estar submetido a estímulos mas, de conquistar, na produção do sujeito
(construção social da pessoa), meios e recursos que permitam ao indivíduo ser
senhor de si0. No projeto marxista, a libertação poderia ocorrer tão somente sobre
novas bases e estruturas sociais, nas quais a apropriação se desse sobre bases
coletivas, de modo que cada qual pudesse receber conforme sua necessidade e
desenvolver-se livremente conforme suas possibilidades0.

III. 3. Metrópole, Território e Circulação

Mas esta fórmula geral apresenta-se desterritorializada 0 e, assim, ainda não é


suficiente para esclarecer o vínculo entre território e circulação. Se a circulação
constitui um momento integrador dos grupos humanos – metaforicamente falando,
“o seu pulso” - a escala de circulação determinará o alcance das sociedades. A
dimensão dessa circulação na modernidade permitiu a Braudel diferenciar as
‘economias mundo’ (do mediterrâneo antigo e medieval, por exemplo) da
‘economia mundial’, uma economia cujo escala de circulação é global. Isto é, a
sociedade burguesa, tal como reconhecida por Marx e Durkheim ainda no século
XIX, é uma sociedade mundial e organizada em Estados.

Porém, este saber adquirido sobre a organização econômica e política é


insuficiente para os propósitos da tese, já que não permite estabelecer mediações
entre a escala mundial da circulação, as metrópoles e o território. Considero que
para estabelecer o nexo entre metrópole e circulação será preciso estabelecer sua
relação com o território, como proposto por Santos (1978).

III. 3.a. Metrópole e Território

Se, como foi visto, as metrópoles não podem ser definidas apenas
demograficamente ou pela sua função industrial, comercial ou administrativa,
desde um ponto de vista morfológico (geográfico) podem ser classificadas e
hierarquizadas, como propõe Santos (1978. p. 223), pela sua capacidade de
organizar o território.

0 Isto é sujeito no sentido filosófico clássico, capaz de ser senhor do destino.


0 Marx & Engels, 1891
0 Lojkine, retomou esta perspectiva e a aplicou à cidade, como já foi visto.
52

De fato, para este autor, as metrópoles são “grandes cidades que se irradiam sobre
um vasto território”, estando “dotadas de grande número de atividades destinadas
à satisfação das necessidades da vida cotidiana da totalidade da população nelas
contidas, tanto a serviço das massas como das classes privilegiadas” 0. O aumento
das necessidades - tanto na escala das relações internacionais quanto na escala
individual – ampliam a dimensão das cidades, permitindo a diversificação 0. Então,
como centros responsáveis pela organização do território, expressariam a
hierarquia que corresponde à abrangência de sua capacidade organizativa segundo
uma escala local, regional, e nacional e mundial.

No caso das metrópoles periféricas, a função metropolitana seria exercida em dois


níveis: “a metrópole completa, capaz de responder a amplas necessidades
econômicas e sociais com meios segregados por ela própria”, que dizer, são pólos
econômicos0, e as metrópoles incompletas, cidades que orbitam em torno dos
pólos de crescimento econômico, devido ao atraso na industrialização ou as
formas que a industrialização assume quando ocorre. Já nos países desenvolvidos
seria difícil falar de uma metrópole completa pois todas são incompletas e
internacionais0.

A cidade moderna, como fenômeno econômico e geográfico, conforma redes


urbanas integradas nacional e internacionalmente: “a concentração de atividades e
recursos na cidades faz com que esta detenha o papel de centro da vida nacional.
“A aglomeração (..) é o principal emissor de regras, ordens e inovações do ponto
de vista econômico, social, cultural e mesmo político” 0. Ao exercer estas funções,
as cidades organizam territórios.

Por outras palavras, “as cidades exercem o comando (técnico) das redes
integrando os territórios entre os quais divide-se o trabalho (o controle da divisão
territorial do trabalho). São as cidades superiores – hoje denominadas cidades
mundiais – que “tem o comando político da movimentação” que “guia a
circulação, a distribuição e a regulação (...) mediante ordens e a disposição da
mais-valia” Este “controle distante da produção” é feita por cidades mundiais e

0 Santos, 1978. p.222


0 Santos, 1978. p. 223
0 Santos, 1978. p. 223
0 Santos, 1978. p. 224
0 Santos, 1978. p. 227
53

seus relés, nos territórios diversos0. Sendo assim, “a fluidez para a circulação (...)
de idéias, mensagens, produtos ou dinheiro”, constituíndo, atualmente, um aspecto
que interessa sobremaneira aos atores hegemônicos e apresenta-se como “uma
exigência para as cidades”0.

III. 3.b. Metrópole e Circulação

Se em termos macro-escalares, a circulação se dá globalmente, definindo o escopo


da sociedade contemporânea, a metrópole jamais poderá ser concebida como uma
sociedade, à maneira norte-americana, mas, como um momento numa rede de
circulação, tal como proposto por Santos (1978). Ao caracterizar a metrópole
através da consideração de suas dimensões econômicas e geográficas este,
enfatiza a importância das redes que a constituem.

Por redes compreende, desde o ponto-de-vista material, “toda infra-estrutura que


permita o transporte (...) e que se insere num território caracterizado pela
topologia do seu ponto de acesso”0. A configuração de redes caracterizou o
processo de urbanização moderno, na medida que

“(...) arranjos espaciais não se dão apenas através de figuras


formadas de pontos contínuos e contíguos. (..) Ao lado dessas
manchas, ou por sobre as manchas há também constelações de pontos
descontínuos mas interligados, que definem um espaço de fluxos
reguladores” (Santos,1999. p. 225).

Entretanto, nas atuais condições, além da noção de rede, a de fluxo revela-se


também importante, na medida em que “a circulação (...) conforma a produção, a
fluidez mostra-se não como uma categoria técnica mas como uma entidade sócio-
técnica - exigência social por meios técnicos - em virtude da qual hierarquizam-se
as cidades, de acordo com “sua densidade técnica e funcional (ou informacional)”,
cuja produção “é um empreendimento conjunto dos setores público e privados”0.

Este ajustamento permanente das redes, ao mesmo tempo que viabiliza uma
ordem eficaz, desordena “o território, já que as redes integram e desintegram,

0 Ver Santos (1999. p. 218) e Santos (1978. p. 216-7). Quanto ao conceito de controle distante, recordar que
Durkheim o identificou, nestes termos.
0Santos, 1999. Pp..218 -220.
0 Santos, 1999. p. 209
0 Santos, 1999. p. 220
54

destróem velhos recortes espaciais e criam outros”0. Os espaços definidos por


estes fluxos são horizontais - “extensões de pontos que se agregam sem
descontinuidade, como na definição tradicional de região - ou verticais - pontos no
espaço que, separados, uns dos outros , asseguram o funcionamento global da
sociedade e da economia” 0.

Para o autor, sendo a urbanização um fenômeno associado à divisão social do


trabalho, não é possível a sua análise numa única metrópole já que as suas
características e dinâmica encontram-se relacionadas à organização sócio-espacial
do globo. A metrópoles articula-se numa escala macro, com inflexões e
composições diversas nas escalas inferiores, até o local e o singular, de modo que,
em seu interior, as sucessivas modernizações desenham um espaço hierarquizado
com rentabilidades diferenciadas, nos quais convivem circuitos econômicos
diferentes. A urbanização e a distribuição diferencial dos espaços assume, entre
cidades, uma organização vertical, enquanto que no espaço intra-urbano, existem
relações centro-periferia, estabelecidas pelas diferentes condições de acesso:
equipamentos e recursos. A “ordem” é então fragmentada0 .

Neste contexto, a separação entre campo e cidade - recordada, anteriormente, com


referência a Marx – não mais se justifica. A conexão ou desconexão aos fluxos
ocorre, também, no território urbano0, na medida que a

“(...) tendência atual é no sentido da união vertical dos lugares.(...)


Nesta união os vetores de modernização são entrôpicos. Eles trazem
desordem aos sub-espaços em que se instalam e a ordem que criam é
em seu próprio benefício.(...) Mas os lugares também podem
fortalecer-se horizontalmente, reconstruindo , a partir das ações
localmente construídas, uma base de vida que amplie a coesão da
sociedade civil, a serviço do interesse coletivo” (Santos, 1999. p.
228).

0 Santos, 1999. p. 197


0 Santos, 1999. p. 225.
0 Santos, 1999. p. 252
0 Santos, 1999. p.245
55

Desde uma perspectiva geo-econômica, estes outros circuitos,


subordinados, foram caracterizados por Santos (1978) como circuito marginal e
0
circuito marginal superior e como elementos típicos da flexibilidade tropical.
Porém, desde um ponto-de-vista sócio-espacial, constituem fenômenos mais
gerais.

“Os guetos urbanos comparados a outras áreas da cidade, tenderiam


a dar às relações de proximidade um conteúdo comunicacional ainda
maior e isto se deve a um percepção mais clara das situações
pessoais ou de grupo e à afinidade de destino, afinidade econômica e
cultural” ( Santos, 1999. p. 260).
“Pela estruturação do seu território e de seu mercado - uno e
múltiplo - as cidades atuais e sobretudo as metrópoles, abertas a todo
os ventos do mundo, não são menos individualizadas. Esses lugares,
com sua gama infinita de situações, são a fábrica de situações
numerosas” (Ídem, 255).

“Nelas a co-presença e o intercâmbio são condicionados pela infra-


estrutura presente e as suas normas de utilização, pelo mercado
territorialmente delimitado e pelas possibilidades da vida cultural
localmente oferecidas pelos equipamentos existentes” (Ídem, 256).

Por estas características e potencialidades, o local, o território de convivência,


permite recuperar aquilo que a ordem vertical dos lugares perde: o sentido das
ações. “A mescla de pragmatismo e emoção produzida na base das sociedades”,
nos “espaços banais”, recupera o sentido das ações e das coisas. Por meio de
encontros e desencontros, recria-se a política, o que autoriza Santos a formular a
possibilidade de que possa ser construída uma outra globalização a partir dos
lugares e da experiência plena de sentido e não conduzida por uma racionalização
instrumental alienante.

III. 3.c. Circulação, Acessibilidade e Apropriação

0 “Nas grandes cidades , sobre tudo do terceiro mundo, a precariedade da existência de um parcela importante
(...)ás vezes a maioria da população não exclui a produção de necessidades, calcadas no consumo das classes
mais abastadas. Como resposta, uma divisão do trabalho imitativa, talvez caricatural, encontra as razões para se
instalar e se reproduzir. Mas aqui o quadro ocupacional não é fixo é muito móvel, podendo sem trauma exercer
atividades diversas ao sabor da conjuntura. Essas metamorfoses do trabalho dos pobres nas grande cidades cria o
que chama “flexibilidade tropical”. Há uma variedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de combinações em
movimento permanente, dotadas de grande capacidades de adaptação, e sustentadas no seu próprio meio
geográfico, este sendo tomado como uma forma-conteúdo, um híbrido de materialidade e relações sociais”
(Santos,1999. pp.259-60).
56

Chega-se aqui, novamente, à temática da apropriação e da reapropriação das


condições da existência que pode ser lida – com inspiração em Santos – por sua
expressão espacial, já que, nas relações de proximidade, demarcadas pelas
sucessivas espacializações, as ações econômicas desenham novas solidariedades
enraizadas no território0.

Caberia perguntar, neste ponto, sobre o papel dos transportes urbanos na


produção social de territorialidades. Para além das definição geral – pela qual os
transportes distribuem espacialmente as relações sociais – o conhecimento
acumulado permite caracterizar uma distribuição desigual das condições de
mobilidade (e portanto de acesso), relacionada diretamente com a renda. Os
pobres urbanos viveriam, nas metrópoles brasileiras, em condições de imobilidade
relativa0, agravada, ademais, por clivagens de gênero e idade.

Esta condição é associada, por outro lado, a periferização das metrópoles,


chegando a consolidar um modo particularmente grave de uso predatório da força
de trabalho0, não apenas por sua submissão ao prolongamento da jornada de
trabalho - ao aumento das distâncias e à diminuição da velocidade de circulação -
como também pela deterioração das condições de transporte, expondo-a ao
desconforto e, amiúde, aos riscos de insalubridade e morte.

Foi visto anteriormente que a distribuição desigual da “mobilidade” é causa e não


conseqüência da segregação, levando à fragmentação da comunicação humana
(fragmentação sócio-espacial) e restringindo o denominado por Léfèbvre direito à
cidade. Santos, por outro lado, permite entender que a reapropriação das
condições econômicas excludentes, nos circuitos marginal e marginal superior, da
economia urbana pode ser vista de forma positiva como forma de resistência.

Interpreto tal movimento como integrante da reapropriação no seu sentido clássico


tal como pensado por Weber (1982. p. 102), quando afirma que a maior parte da
evolução moderna, tanto na política quanto na economia, foi marcada pela
tentativa de estabelecer expropriar o expropriador dos meios políticos e, portanto,
do poder político. Esta experiência histórica confirmar-se-ia também nas relações
sócio-espaciais: na reapropriação da circulação, trocas e produção (mesmo

0 Santos,1999. p. 254.
0 Santos, 1990. p. 89
0 Moisés & Alier, 1978, p. 21
57

limitadas) geram-se novas sociabilidades, caracterizando a luta de classes numa


escala micro denominada, por alguns autores, guerra civil molecular.

III. 4. Conclusão e Hipótese

A tradição sociológica estabelece uma relação analítica ampla entre circulação e


integração social. A circulação de bens e pessoas, ao propiciar a comunicação e a
troca, é considerada um aspecto essencial e universal da solidariedade social. Nas
sociedades modernas, a circulação assume a forma predominantemente monetária,
contribuindo ativamente para construir a sociedade burguesa e a divisão social do
trabalho, que implica comunicação – através dos mercados – como um dos
momentos do trabalho coletivo.

Quanto a dimensão espacial dessa circulação, é preciso diferenciar a circulação


econômica ou monetária que requer centralidade para realizar-se, da circulação de
pessoas ou mobilidade urbana que se refere aos movimentos rotineiros cotidianos
da metrópole. Concebo a mobilidade, então, como condição de acesso ao uso das
propriedades sociais do espaço e a distribuição do mesmo como segregação.

Po outro lado, se através de uma ótica econômica e morfológica é possível falar de


fragmentação ou segregação, como incomunicação provocada ou agravada pela
atual reconfiguração da divisão do trabalho sócio-espacial, nada autoriza a dizer
que a fragmentação é um fato consumado. Devem ser consideradas tendências
que, na escala intra-metropolitana, significam resistências.

Sendo assim, a emergência de transportes informais teria implicações mais


profundas e significativas do que a mera formação de um circuito marginal
superior e/ou o crescimento do marginal. Seriam indícios da existência de
tendências contrárias à fragmentação, tribalização e perda de urbanidade, que
contribuiriam para subverter a segregação promovida pelos atores hegemônicos.

Estudar a estruturação sócio-espacial metropolitana implica – para mim – em


indagar sobre as maneiras de pensar as práticas, as ações sociais: qual é o justo
limite da liberdade e da determinação dos sujeitos sociais?

IV. Espaço, Sujeitos, e Cotidiano

É cada vez mais evidente a impossibilidade de refletir o urbano como uma


sociedade isolada ou como uma sociedade em si: a urbanização é um fenômeno
58

mundial associado0. Ao estudar qualquer aspecto particular do urbano ou de uma


metrópole é indispensável a referência uma escala mais geral do que aquela
estritamente intraurbana ou regional. A extensão e a complexidade do fenômeno
urbano não altera, contudo, o fato da vida urbana constituir uma experiência vital
da modernidade. Esta experiência, entretanto, não se manifesta
contemporaneamente, como esperado no passado, como urbanidade, aumento da
racionalidade e refinamento humano, nem autoriza a pensar que esta experiência
conduza à sociedade moderna ou industrial. A urbanização contemporânea parece
romper aquelas expectativas, manifestando-se mais complexa, mais ambígua e
caótica.

Em verdade, a proliferação, a superposição, a rivalidade e o encontro de modos de


vida diferentes, que caracterizaram as metrópoles no passado, parecem ameaçados
pela ausência de centros e ocasiões de troca e comunicação entre os diversos
grupos e tipos humanos. Em conseqüência, destacam-se “urbanidades” díspares e
dispersas, racionalidades distintas, e não uma única racionalidade de referência ou
uma cultura urbana.

Além daquelas ressalvas, apoiadas nos conceitos de globalização e fragmentação,


a longa polêmica sobre o estatuto teórico e científico do urbano conduziu à
aceitação de que é indispensável abordar, com a orientação da teoria do espaço, a
relação entre objetos e ações. Entretanto, este é um saber em construção e um
lugar de disputas que mobiliza várias disciplinas sociais.

A relação entre teorias do espaço e teorias sociais constitui uma tarefa em aberto
apenas esboçada e inconclusa, que não autoriza a falar de paradigma
principalmente face à chamada crise das ciências sociais e da disputa científica em
torno de sínteses que assentem a “ciência normal” 0. A polêmica manifesta a
preocupação contemporânea com o estatuto ontológico do espaço. Contudo, o fato
de inexistir uma teoria modelar, que permita a dedução e a indução cumulativas
no padrão das ciências naturais, não inviabiliza a expansão do conhecimento.
Considero válidas, neste caso, as ressalvas feitas por Bourdieu quanto à falta de
“paradigmas sintéticos” e, portanto, à aparente pouca cientificidade da sociologia.

0 Santos, 1978. p. 222


0 Léfèbvre, 1974; Gottdiner, 1993; Harvey, 1992 , Soja, 1993; Santos, 1980; 1996
59

“(...) por razões sociológicas (..) é uma disciplina muito dispersa ( no


sentido estatístico do termo) e isto sob diferentes pontos de vista. O
que explica porque tem uma aparência de disciplina dividida, mais
próxima da filosofia que de outras ciências. (...) O conjunto de
sociólogos admitem um capital comum de aquisições, conceitos,
métodos, procedimentos, de verificação” (Bourdieu, 1983. p. 16).
Por outro lado, abordar o espaço desde a perspectiva de uma teoria social geral
requer esforços que permitam evitar o “fetichismo” dos conceitos pelo qual a
terminologia objetiva que nomeia às relações sociais, “dão a impressão que
relações sociais são coisas da mesma natureza que as pedras, as árvores 0”, capazes
de vontade, ação e interação. Elimina-se, por esse movimento, os sujeitos
individuais e coletivos reproduzindo, por esse intermédio, o mundo invertido que
as ciências sociais, desde seus primórdios, buscam eliminar.

Nesses termos, creio ser necessário abordar o espaço do modo a relacioná-lo com
uma teoria social, buscando relacioná-lo à ação, às continuidades e às rupturas
sociais, quais sejam, às práticas, ao cotidiano e à cotidianidade, sondando as
dimensões do que Léfèbvre0 denominou “habitar” e buscando afirmar o primado
da ação, na transformação e na manutenção das estruturas.

IV. a. O Espaço em Geografia e em Sociologia

É difícil encontrar uma definição unitária de espaço, apesar do reconhecimento da


sua relevância nas últimas décadas, dando ocasião a inúmeros estudos,
principalmente no campo geográfico. Neste último caso, o empenho justifica-se
na busca de um objeto teórico no marco da, chamada crise das ciências sociais.
que não implica, apenas, em obstáculos cognitivos originados dos limites teóricos
e metodológicos oriundos da tradição de cada disciplina, para conhecer o novo 0.
Significa que o imbricamento e a complexidade do social evidenciam os limites
da divisão epistemológica do trabalho científico concebida no século XIX, que
sustentou a formação das disciplinas contemporâneas.

O espaço encontra-se no centro dessa crise, dando ocasião a uma disputa ferrenha
entre as disciplinas sociais que, apesar de reconhecerem a impossibilidade de sua
separação, oferecem obstáculos às possibilidade de esclarecimento. Opõem-se,
novamente concepções materialistas e idealistas, objetivistas e subjetivistas dando

0 Elias, 1970. p.7


0 Léfèbvre, 2002. p. 88
0 Como posto por Santos, 1980. p. 2
60

ênfase, no momento de construir objetos para a prática científica ou na análise


empírica, às formas físicas, territoriais e arquitetônicas; às formas sociais ou às
formas mentais (a priori ou a posteriori).

A questão se agrava, ainda mais, quando se busca articular espaço, ação e sujeitos
sociais0. Abordarei essa problemática, primeiramente, através de um cotejamento
crítico do pensamento de Milton Santos e de Léfèbvre para, depois, relacionar
suas contribuições à problemática da ação, do agent e do sujeito.

IV. a. 1. Espaço e Ação em Milton Santos

Ao enfrentar a tarefa de construir um objeto teórico para a geografia humana,


Santos destaca a importância ontológica do espaço. Para defini-lo, abre mão de
vários termos e definições, de modo a mostrar seus limites e riquezas. Pode ser
compreendido como a relação entre fixos e fluxos 0, como a relação entre forças
produtivas e relações sociais de produção0, como formada por elemento da tecno-
esfera e da psico-esfera0 ou como relação entre sistema de objetos e sistema de
ações0. Com os termos fluxos e fixos, o autor alude ao fato dos objetos serem
substratos da ação humana. A ação transforma-os, ocasionando a mudança do
sentido e das possibilidades de sua própria ação. Se concebido como conformado
pela configuração territorial e pelas relações sociais, o espaço resultaria da
conjunção dos “sistemas naturais”, dos objetos criados pelos homens e da vida
social. Por último, como forças produtivas e relações sociais de produção,
alinham-se, lado a lado, potenciais da natureza e as relações humanas que juntos
conformam a sociedade como a concebemos.

Todas as definições oferecidas por Milton Santos, fazem referência à relação entre
as coisas e os homens, isto é, à natureza e objetos criados historicamente e a
humanidade contemporânea, aludindo a uma ontologia que, contudo, não define
em si um objeto teórico nem sociológico nem geográfico, já que Santos 0 afirma
que ambos objetos são inseparáveis, caracterizando o espaço como um híbrido0.

0 Que remete a outra dimensão da “crise” na qual polemiza-se sobre a relação entre ação e estrutura.
0 Santos, 1999. p. 50
0 Santos, 1999. p. 52
0 Santos, 1999. p. 204
0 Santos, 1999. p. 51
0 Santos, 1999. p. 77
0 Santos, 1999. p. 81
61

Em suas primeiras abordagens sobre esta questão Santos destaca o caráter social e
indivisível do objeto da geografia: o espaço.

“Isto é, o espaço se define como um conjunto de formas


representativas de relações sociais do passado e do presente e por
uma estrutura representada por relações sociais que estão
acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de
processos e funções. O espaço é então um verdadeiro campo de forças
cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolução sócio-espacial não
se faz de forma idêntica em todos os lugares” (Santos, 1980. p. 122).
Esta compreensão permite considerar o espaço, como articulação entre formas
físicas (naturais e herdadas0) e relações sociais permanentemente expressas, em
processos e funções. O espaço é, portanto, fato e fator histórico:

“um elemento de um conjunto que realiza uma dupla função que lhe
assegura efetivamente, a condição de fato histórico, de um lado se
define por um conjunto mas também o define, ele é simultanemanete
produtor e produto; determinante e determinado; um revelador que
precisa ser decifrado por aqueles mesmos que revela; e, ao mesmo
tempo, em que adquire uma significação autêntica, atribui um sentido
a outras coisas. Segundo esta acepção o espaço é um fato, um fator e
uma instância social” (Santos, 1978. p. 130).
Como fato social condiciona ativamente a realização dos modos de produção.
Assim, a sua estrutura reflete a sociedade em geral. Como instância permite,
sugere ou proíbe ações. As qualidades sistêmicas do espaço condicionam, desta
maneira, a “evolução de outras estruturas sociais0”.

Todas as definições, anteriores, propostas pelo autor, conjugam-se na definição


mais recente, por ele proposta, do espaço como relação entre sistema de objetos e
sistema de ações. Objetos e ações (materialidade e evento) são categorias que não
podem ser tratadas separadamente0. Portanto, na geografia humana, proposta por
Santos, reconhece-se o primado do social. E, com isto, Sociologia e Geografia
mostram-se mais que disciplinas vizinhas, profundamente imbricadas. Este
imbricamento suscita novos problemas: podem coincidir os conceitos de ação de
ambas as disciplinas?

Segundo a tradição sociológica de inspiração weberiana, ações, relações e


instituições sociais devem ser abordadas com o objetivo de compreender o sentido
subjetivo da ação, para poder explicar os fenômenos sociais. Tal missão, assim
0 Às quais Santos (1999. p. 112) alude mediante a noção sartreana de prático inerte.
0 Santos, 1980. p. 144
0 Santos, 1999. p. 70
62

enunciada, parece simples e fácil. Entretanto, a história do desenvolvimento da


sociologia mostra, outrossim, que tal tarefa é de uma enorme dificuldade, já que
perde-se de vista, com freqüência, a interação social - por aquilo que Elias (1970)
chama fetichização dos conceitos - pela reificação das estruturas de pensamento.
Esta constitui, sem dúvida, uma crítica antiga, que aponta para o fato de tudo na
humanidade ser feito por homens e a pela ação humana, por sujeitos reais e
concretos, cujos atos têm sentido para si e fazem sentido para os outros. A ação,
antes de ser uma realidade na prática sociológica, enfrenta a oposição entre
compreensão objetiva e subjetiva, entre a valorização da ação ou da estrutura, a
valorização da transformação ou da permanência e da continuidade. De todo
modo, a expectativa de compreender a ação anima o fazer dos sociólogos.

Tendo em vista esse propósito, a questão que se coloca quanto à categoria espaço,
pode ser assim formulada: se o espaço não se limita às formas físicas, apesar de
poder ser descrito de maneira separada e sistemática, como construir um diálogo
entre as tradições da geografia e da sociologia? E, por outro lado, quais seriam os
objetos capazes de constituir sistemas?

Estas são também questões postas para a Geografia, como expõe Santos a
propósito da crítica à geografia da ação de Werlen 0, em que é possível entrever
que a problemática teórica irresoluta da disjuntiva teórica entre ação e estrutura
também permeia a Geografia, na qual a recusa à determinação estrutural da ação
pode levar a perder a dimensão ativa do espaço. Questiona-se, então, as razões
que levam o autor a não fazer bom proveito da solução oferecida por Durkheim
quando afirmou que o espaço é “como moldes nos quais somos forçados a incluir
nossas ações”, e ainda a compreensão durkheimiana dos objetos como meio para a
ação.

“As ações resultam de necessidades, naturais ou criadas. Essas


necessidades(...) é que conduzem os homens a agir e levam à função.
Essas funções, de uma forma ou de outra, vão desembocar em objetos”
( Santos, 1999. p. 67).

Esses objetos não nascem do nada. Tem história: as necessidades que através do
espaço tornou-se estrutura. Trata-se da história estruturada em formas 0 que afetam

0 Santos, 1999. p. 70
0 Daí a noção de prático inerte.
63

as ações. No cotidiano sa atualização da vida social se dá mediante a operação


conjunta de três ordens de formas sociais: a forma técnica, a forma jurídica e a
forma simbólica. As duas primeiras “impõem-se como dados” enquanto da
terceira advém a “transformação e mudança, a surpresa e a recusa ao passado”,
cuja força está na “afetividade, nos modelos de significação e representação”0.

Há, então, uma distância considerável nas abordagens da ação na sociologia e na


geografia como a proposta por Santos, que valoriza a ação a partir de uma
categoria geral: o próprio homem0. Esta ação diferencia-se no operar da natureza
porque apenas ela tem objetivo e finalidade0. Além da valorização da escala de
análise0, esta noção de ação difere da ação como unidade analítica da sociologia,
que considera que toda ação social tem um sentido atribuído pelos agentes, um
significado que não é, necessariamente racional. Por outro lado, a ação dotada de
sentido só existe na escala dos indivíduos, do comportamento de um ou vários
indivíduos0. As ações coletivas demandarão, necessidades, crenças comuns,
relações e instituições coletivas mais abrangentes0.

Em verdade, Santos reafirma a impossibilidade de conceitos comuns as


disciplinas, já que para este

“(...) conceitos de uma disciplina são freqüentemente metáforas nas


outras, por mais vizinhas que se encontrem. Metáforas são como
flashes, não se dão em sistemas e não permitem teorizações”.

E prossegue

“(..) uma definição consistente do espaço geográfico não pode ser


encontrada nas metáforas provindas de outras disciplinas. Nem os
conceitos de espaço que estas disciplinas estabelecem podem passar
automaticamente, para disciplina geográfica” (Santos, 1989. p. 70 e
71).

0 Santos, 1999. p. 67
0 Santos, 1999. p. 67
0 Quer dizer, a escala da ação será humanidade - que segundo critérios sociológicos é uma ação racional.
0 Macro, meso e micro.
0 Weber, 1982. p. 8
0 Weber, 1982. pp. 3 - 35
64

Assim, para Santos, o espaço social difere do geográfico porque nele, os


sociólogos privilegiam apenas uma parte0. O enfoque geográfico supõe a
existência dos objetos como sistemas e não como coleções: seu papel pode ser
simbólico, mas geralmente é funcional0.

“O significado geográfico dos objetos vem do papel que, pelo fato de


estarem em contiguidade, formando uma extensão contínua, e
sistematicamente interligados, eles desempenham no processo social”
(Santos, 1999. p. 63).

Isto explica, em primeiro lugar, a importância atribuída, pelo autor, à dimensão


técnica, à intencionalidade presente nos objetos e por que objetos e ações
relacionados são dispostos, para fins analíticos, como verticalidades e
horizontalidades. A distribuição horizontal dos objetos supõe a contiguidade e a
vizinhança, enquanto a sua distribuição vertical representa o seu ordenamento
hierárquico. O mesmo ocorre com a noção de ação. O seu permanece restrito â
relação entre hegemônicos e hegemonizados: existindo, entre estes, a
possibilidade de estabelecer vínculos horizontais0.

Reconheço a valia destes instrumentos conceituais, quando trata-se da distribuição


geograficamente diferenciada da capacidade de decisões - distante e próxima - e
da valorização das ações. Considero, entretanto, que o conteúdo do termo ação
não seja similar ao da sociologia. O diálogo entre sociologia e geografia exige a
construção de pontes teóricas e metodológicas.

Parece-me que o conceito de ação, acrescido da noção de escala, configura uma


contribuição importante para a Sociologia0, já que permite complexificar a
explicação sociológica0, relacionando âmbitos e contextos macro e micro sociais.
Enquanto, por outro lado, a valorização dos agentes e a dimensão simbólica da
ação, tal fato poderá fortalecer noções fundamentais do pensamento de Santos tais
como, o lugar, proximidade e co-presença de sujeitos em suas conseqüências para
a formação da consciência e de sujeitos coletivos.

0 Segundo Santos ( 1999. p. 234). Este espaço – o espaço geográfico - é mais que o espaço social dos
sociólogos, porque também inclui a materialidade. Ver também Santos (1999. p. 59).
0 Santos, 1999. p. 65
0 Escrevi sem entender muito aonde entra: o sentido e sua praxis e as condições históricas e geográficas em que
ocorre.
0 E sua dificuldade em articular a análise micro com a macro.
0 Conceitos de ação, relação e instituição social de Weber carecem de noção de escalas
65

IV.a.2. O Espaço e o Simbólico: escala e dimensões da ação

O espaço não pode ser pensado como um meio inerte em que as coisas e pessoas
organizam-se num esquema cartesiano. Para Léfèbvre, a dificuldade enfrentada no
estudo do espaço radica, em primeiro lugar, nos limites de orientação oferecidos
pelas ciências parcelares para o tratamento de questões complexas. E aborda-lo
implica, trata-lo teoricamente de forma unitária, reunindo num único campo o
físico, o mental e o social.

Como aspecto complexo do social, o espaço não se reduz a uma forma imposta
aos fenômenos0, pois

“(...) contêm objetos muito diversos, naturais e sociais. De redes e


fileiras, veículos de trocas materiais e de ‘informação. Não se reduz
aos objetos que contêm nem a sua soma. Estes “objetos” não são
apenas coisas mas relações. Em tanto que objetos, possuem
particularidades conhecíveis, contornos e formas. O trabalho social
os transforma; os situa de outro modo no conjunto espaço-temporal,
mesmo quando respeita a sua materialidade” (Léfèbvre, 1974. p. 94).
Assim, o espaço

“(...) não é uma coisa entre as coisas (..) envolve as coisas


produzidas, compreende as coisas na sua existência simultânea:
ordem (relativa) e desordem (relativa...) resulta de uma série e
conjunto de operações e não pode reduzir-se a um objeto simples”
(...) efeito de ações passadas, permite as ações sugerindo-as ou
interditadas” (Léfèbvre, 1974. pp. 88 -89).

De forma similar a Santos, para Léfèbvre, o espaço é ativo na reprodução social,


englobando não apenas as coisas mas, também, a ordem das coisas objetivas e
objetivadas, que servem à ação e à interação social e que, ao mesmo tempo, as
“canalizam”, num certo sentido (social e histórico)0, sem que possam ser tratadas
como sistema de objetos. Desta maneira, o caráter sistemático do espaço e das
práticas espaciais seria muito mais resultado de sistematizações que de sua
sistematicidade intrínseca0.

O espaço é um meio (ambiente) e uma mediação entre homens e entre homens e


coisas, sem ser, contudo, neutro: é instrumento carregado de objetivos: “um lugar
0 Léfèbvre, 1974. p. 36
0 O espaço constitui, desde este ponto de vista, tanto relações sociais de produção quanto forças produtivas.
0 Ver Lefebvre, 1974. p. 24
66

de recursos e de estratégias”. Quer dizer, todo espaço é útil, sem se restringir à sua
função.

Como toda realidade, o espaço social pode ser abordado, metodológica e


teoricamente, segundo os conceitos gerais de forma, estrutura e função. Léfèbvre
considera, contudo, estes termos obscuros e insuficientes. Para ele, desvendar sua
especificidade complexa requer que não se exclua nenhum saber acumulado. Seria
necessário incorporam à geografia, à economia e à história, aquisições da
lingüística, da sociologia e da antropologia. Destas últimas, advém a noção de que
o espaço natural é para os homens, natureza socializada0: natureza classificada e
ordenada segundo os princípios do grupo social, cultivada e preservada pelos
mitos e ritos, tornada forma mental - instrumento de percepção, classificação e
ação - sendo concebida como “ordem natural”0 das coisas.

“O espaço social contêm ‘traços’ distintos e distintivos se juntando à


forma mental ‘pura’ sem para tanto se separar como um conteúdo
exterior e sobre-agregado (surajouté)” (Ídem. p. 336).

Aquele espaço - denominado por Léfèbvre, espaço antropológico – enriquece-se


pela incorporação de saberes oriundos da lingüística, o que permite estender o
simbólico.

“O espaço social se expõe ou se explica parcialmente por um


processo significante intencional, uma seqüência ou superposição de
códigos, uma implicação de formas. Os movimentos dialéticos
sobreclassificam e sobrecodificam as codificações e classificações
modelando, as implicações lógicas” (Ídem. p. 270).

A codificação - ao contrário do Estruturalismo de Levi-Strauss 0 - não é imóvel ou


mutável em momentos específicos, alteradas por forças extra-humanas e
autocontidas, ao contrário, é permanente vivida onde “o simbólico e a práxis não
se separam”0.

O homem não deixa jamais de delimitar o seu espaço, de balizar, de


marcar com traços simbólicos e práticos; não pode deixar de figurar

0 Durkheim & Mauss, 2001. p. 425


0 Léfèbvre, 1974. p. 269
0 Levi-Strauss, 1968
0 Léfèbvre, 1974. p. 223
67

neste espaço as mudanças de direção, de rotações, seja por relação


ao seu próprio corpo considerado como centro, seja por relação a
outros corpos” (Léfèbvre, 1974. p. 223).

Se é aceito, com Léfèbvre que “todo espaço concreto se compõe de redes e


fronteiras”e “todo espaço social marcado e orientado implica relações que se
superpõem às redes de lugares ditos0”: relações demarcam o possível e o interdito,
permitem ou obstruem a linguagem e a comunicação.

A noção de codificação – ou melhor de código do espaço - conclui a analogia do


espaço com a linguagem e a leitura. O código supõe escrita e leitura, uma prática
espacial vivida, cujas concepções parciais são estudadas e aplicadas por vários
saberes teóricos e técnicos.

A teoria, produzida por uma ciência do espaço,

“(...) descreve e analisa as texturas.(...) Quem diz texturas diz também


sentido. Mas não para um leitor qualquer, senão para aquele que age
dentro do espaço considerado, sujeito, dotado de um corpo, sujeito
coletivo às vezes. Para este o agenciamento das formas e das
estruturas corresponde a funções e conjunto: tem um sentido vivido
que há que elevar ao concebido” (Léfèbre, 1974. p. 156).
Teorizar o espaço significa, então, estudar a açõe e seu sentido subjetivo e
objetivo, ou seja, sentido dado à ação e sua possibilidade ou proibição pelos
códigos do espaço. O código não é meramente normativo como no direito. Trata-
se de uma classificação e de uma codificação paradigmática, gramatical e
sintagmática, capaz de produzir práticas de sujeitos autônomos, o que implica que
o espaço é meio e recurso, mas, também, estratégia; logo, não é neutra. Em sua
aparente transparecia o espaço oculta objetivos que canalizam a ação, o que
possibilita, em certas ocasiões conhecê-lo0.

Assim concebido, o espaço pauta práticas, instaura atitudes e expectativas e


permite fazer e perceber. Portanto, o espaço social-mental vai muito além das
formas de classificação, entrelaça-se à subjetividade. Todo espaço um conjunto de
práticas adequadas, que os praticantes do espaço acionam. Supõe, então, a
existência de um grupo ou grupos sociais e de práticas específicas.

0 Léfèbvre, 1974. p. 224


0 Léfèbvre, 1974. p. 25
68

O espaço - ethos social contido em certas fronteiras - comporta ritmos e


regularidades produzidas e reproduzidas: uma certa temporalidade e uma duração.
Todo espaço é uma relação tempo-espaço, contém uma temporalidade, um ritmo 0
que lhe é particular, comporta tempos sociais e modos de viver e de ser
diferenciados. O espaço doméstico – a casa – contêm as relações familiares e uma
temporalidade cíclica, da reprodução, da sucessão das gerações, contrastando
como a temporalidade linear – e acelerante - dos espaços econômicos e estatais,
sem ser, no entanto, isolado e intransponível. Ao contrário, define-se um por
oposição ao outro, sendo ambos espaços vividos. Por outro lado, a passagem de
um para outro implicará alterações de comportamento, isto é, ritos ou gestos de
passagem e comportamentos adequados a cada lugar, como os relacionados à
vestimenta, e formalismos das mais diversas espécies, assim como momentos
ritualizados que a relação entre espaços altera e subverte, como exemplificam as
festas e as cerimônias0.

Principalmente, os espaços vividos, mais ou menos percebidos, e nem sempre


concebidos pelos participantes, são instâncias fundamentais de reprodução social,
já que seus objetivos implícitos, experimentados permanentemente nas ações, são
altamente naturalizados. E principalmente, propriedades do espaço são
apreendidas (apropriadas) vívidamente como recursos e possibilidade pelos
sujeitos. Incorporam-se a um habitus que, como veremos mais adiante, é
conformado pelo conjunto de disposições ativas (um modus operandi) definido
segundo o meio, a época e a posição social ocupada. O habitus manifesta-se como
reprodução dos espaços, das práticas e das condições de sua formação.

Fundado neste fato, Léfèbvre afirma que toda ideologia que não se materializa
torna-se uma fantasmagoria e desaparece. Quer dizer, todo projeto social, ou
ideologia (intuitus) - dominante ou não - para se perpetuar, deve se tornar um
modo de ser e de fazer (habitus) não meramente determinado, senão também
criativo.

Sendo tão estreita a relação entre espaço e práticas sociais, Léfèbvre afirmará que

0 Lefebve 1974, pp.139 e 392; Damatta, 1985.


0 Ao que Lefebre, (1974. p. 409) faz referência ao de referir à existência de um movimento “do quotidiano ao
não quotidiano através da festa”.
69

“(...) não há um espaço social, mas diversos espaços sociais, e mesmo


uma multiplicidade indefinida cujo nome, espaço social, denota um
conjunto não denominável (...) A implicação do espaço social é uma
lei. Tomado isoladamente cada um é uma abstração” (Léfèbvre,
1974. p. 102).

O espaço social

“(...) contêm em suas associações de lugares apropriados (mais ou


menos) as relações sociais de reprodução, a saber, a divisão social do
trabalho e sua organização por tanto (puis) as funções sociais
hieraquizadas” (Léfèbre, 1974. p. 41).

A pluralidade infindável de espaços e suas codificações inclui, entre outros: o


corpo, a família e o familiar, o econômico, o político. Estes dois últimos são
abstratos e hegemônicos na modernidade. No capitalismo, o espaço contém, de
forma contraditória e imbricada três “níveis” de reprodução: “o da biológia (a
família); o da força de trabalho; o das relações sociais de produção”0.

Este espaço, que atinge escala planetária e interpenetra todos os espaços sociais,
unifica e, simultaneamente, fragmenta0. Para Léfèbvre, este corte que, inicia no
plano da experiência a separação entre sujeito e objeto, é um processo que, uma
vez começado, não encontra fim0, e contribuiu diretamente à formação e
fortalecimento da economia capitalista. O espaço resultante, capaz de abrigar o
trabalho e a troca generalizada é o espaço da mercadoria no qual os objetos são
feitos para um sujeito abstrato: o consumidor.

“O espaço abstrato considerado como um instrumento e não somente


como aparência social é de início o lugar da natureza, a ferramenta
que quer dominá-la que visa nesse golpe destruí-la. Este imenso
espaço corresponde à ampliação da prática social que engendra
redes mais e mais vastas e densas, na superfície da terra, sobre e a
respeito desta superfície. Mas corresponde também ao trabalho
abstrato (...) que tem sua existência social como valor de troca e a
forma valor (...). Se se trata de enumerar as propriedades deste
espaço, será preciso considerá-lo como meio de troca tendente a
absorver o uso. Isto não exclui, em nada, ao contrário, o uso político:
o espaço da dominação estática, da violência, é também aquele onde
se desenvolvem as estratégias. Mas a sua racionalidade tem qualquer
0 Léfèbvre, 1974. p. 41
0 Léfèbre, 1974. p. 410
0 Léfèbre, 1974. p. 347
70

coisa a ver com a racionalidade da empresa. Em este espaço se


desenvolve o mundo da mercadoria, com suas implicações,
acumulação e crescimento, cálculo, previsão e programação”
(Léfèbre, 1974. p. 354).
O espaço abstrato contêm ao mesmo tempo o intelecto analítico
hipertrofiado, o Estado e a razão de Estado burocrático. O saber
“puro”, o discurso do poder. Implicando uma lógica que o dissimula
escondendo suas contradições. Este espaço abstrato da burocracia
reúne em si o espetáculo e a violência (Léfèbvre, 1974. p. 355).
A reprodução das práticas e a manutenção de uma ordem sócio-espacial relativa
demandam uma maior intervenção sobre os espaços: uma maior
institucionalização, vivificação e renovação das estratégias, alteração dos sentidos,
promoção e repressão de práticas.

“O espaço de objetos, e o espaço institucional divergem na sociedade


dita “moderna”. No limite esta sociedade , a burocracia se diz, se
quer e se exibe “legível” e transparente, enquanto é a opacidade, o
indecifrável, o ilegível” (Lefebvre, 1974. p. 174).

As estratégias instauradas no espaço conformam possibilidades que vão além das


culturais. Os sentidos da vida, presentes nas práticas cotidianas, que outrora
permitiram crer em seus poderes libertários, manipulados, produzem
cotidianidade, ou seja, um cotidiano planejado numa sociedade burocrática
consumo dirigido0. Isto ocorre porque o espaço permite integrar o econômico ao
político0.

Sendo o espaço um instrumento de poder, a análise de sua produção exige que se


atente para três níveis simultâneos: a prática espacial, as representações de espaço
e os espaços de representação.

A primeira

“(...) engloba produção e reprodução, lugares especificados e


conjuntos espaciais princípios de cada formação social que assegura
a continuidade dentro de uma relativa coesão. Esta coesão implica,
no que concerne ao espaço social, à relação no espaço de cada
membro dessa sociedade e ao mesmo tempo uma certa competência e
uma certa performance”(Léfèbvre,1974. p. 42).

0 Léfèbvre, 1974, 434 afirmará que o habitus forma espaços metamorfoseados segundo uma intelectualização
que constrói o espaço abstrato.
0 Léfèbvre, 1974. p. 370.
71

A segunda, corresponde ao espaço, conforme é representado, concebido


desenhado e pensado. Isto é, são “espaços ligados às relações de produção, à
‘ordem’ que impõem e, mais além, aos conhecimentos, aos signos, aos códigos, às
relações ‘frontais’”0.

Existem os espaços de representação: as coisas passíveis de serem representadas.

“A conexão entre as representações elaboradas do espaço e o espaço


de representação ( com seus suportes é incerta), conexões, fragmentos
e incerteza, tal é o objeto do conhecimento, objeto que implica-
explica um sujeito que o vive, o percebe, o concebe (...) se
reencontram numa prática social” (Léfèbvre, 1974. p. 266).
A codificação moderna do espaço supõe, então, práticas permanentes de
demarcação, imposição e manutenção de significados, de modo a ocultar seus
aspectos subterrâneos: o poder e os interesses que o conduzem. No entanto, a
dissimulação estratégica que o espaço abstrato permite, que fragmenta a
experiência, continuaria encontrando a resistência da contradição entre valor de
uso e valor de troca.

“O espaço do usuário é vivido, não representado (concebido). Por


relação ao espaço abstrato das competências ( arquitetos, urbanistas
e planificadores), o espaço das ‘performances’ completam
quotidianamente os usuários e um espaço concreto. Isto quer dizer
subjetivo. Espaço dos sujeitos e não dos cálculos, espaço de
representação, têm uma origem: a infância com suas experiências,
suas aquisições e suas faltas. O conflito entre a inevitável maturação,
longa e difícil e a imaturação que deixa intactos recursos e reservas
iniciais, marca o espaço vivido. O privado se afirma mais ou menos
conflitualmente , contra o público”( Léfèbvre, 1974. p. 418).

Assim, o conflito entre instâncias vividas e instâncias representadas, constrói um


espaço contraditório.

“A mobilização do espaço “privado” acompanharia a restituição dos


corpos e posta em jogo das contradições do espaço. Entanto que
lugar dos sujeitos, este espaço pode dizer-se situacional ou relacional
mas estas “definições” ou “determinações” levam em direção ao

0 Ídem. p. 1974. p. 43
72

conteúdo sociológico mais que ao caráter inerente ao espaço como


tal” (Léfèbvre, 1974. p. 419)

O significado, a classificação, a codificação e a sobrecodificação enraízam-se,


para Léfèbvre como para Santos, no lugar, no familiar ou no privado, retirando
dessa familiaridade a sua validade. A complexificação do social e, portanto do
espacial, e superposição a instâncias do habitar, das instâncias mistas e gerais,
corresponde a uma formalização (ou quiçá formatação) do espaço.

“(...) o espaço torna-se motivo (enjeu) principal de lutas e ações


visando um objetivo. Nunca cessou de ser lugar dos recursos, os
meios onde se defraudam as estratégias mas torna-se algo diferente
do teatro , a cena indiferente, o quadro dos atos.(...) O espaço não
pode ser considerado como uma essência, um objeto diferente para e
diante dos sujeitos, revelando uma lógica autônoma” (Léfèbvre,
1974. p. 471).

Resumindo, o conceito de espaço social indica uma pluralidade de espaços


interrelacionados física e simbolicamente, articulados às redes e estruturas que os
intercomunicam. As práticas sociais neles contidas, articulam- se, superpõem- se e
ordenam-se mais ou menos formalmente a vida coletiva. Estes espaços,
estabelecem e institucionalizam posições e condições sociais que reproduzem- se
no tempo (duração).

Pensado estruturalmente, o espaço duplo - material e significado – corresponde a


estruturas que depois abordaremos. Isto é, a elementos materiais e imateriais que
servem de recurso à ação ou que contribuem a naturalizar, regularizar ou
institucionalizar o seu sentido.

Pude articular ação e espaço, é compreender o espaço como uma estrutura dupla,
que produz e reproduz sujeitos sociais. Entretanto, esta compreensão, não permite
entrever como surgem novos sujeitos e nem a contradição entre valores de troca e
valores de uso. A própria oposição/articulação entre espaço abstrato e espaço
vivido é uma explicação insuficiente. Valorizar a ação para mim significa
focalizar a ação nos sujeitos da ação e nos sentidos que, estes, lhe atribuem.
Significa, no caso específico do urbano, apreender as dimensões do habitar, das
práticas conformadoras e conformadas dos espaços.
73

IV.2. Sujeitos, Atores e Agentes: obstáculos conceituais

Falar de sujeitos requer a especificação do sentido atribuído ao termo, já que a


noção de sujeito também é polissêmica. Pode ser usado como sinônimo de
indivíduo ou grupo, referir-se a questões sociológicas ou filosóficas. Como
categoria filosófica, remonta à tradição clássica e à problemática do Ser, estando
implícita – tal como apontado por Badiou (1994. p. 107), a propósito da luta
política pelos direitos humanos - nos supostos da Economia Política, da doutrina
política liberal, da pluralista e do Direito.

A emergência da reflexão sociológica – e de toda a tradição científica do século


XIX - rompeu com a noção de sujeito da filosofia, conflitando com esta, já que

“(...) ela descobre o arbitrário, a contingência ali onde as pessoas


gostam de ver a necessidade ou a natureza; e que descobre a
necessidade, a coação social, ali onde gostariam de ver a escolha, o
livre arbítrio” (Bourdieu, 1990. p. 27).

Na medida em que as Ciências Sociais firmaram-se como “ciências positivas”, a


problemática do sujeito tendeu a desaparecer sob a hegemonia do “paradigma
social estrural-funcionalista”, no qual havia lugar, apenas, para atores e papéis
sociais. Com a destituição teórica deste paradigma, ocorrida nos últimos trinta
anos0, a questão do sujeito reaparece, na teoria sociológica, com referência à
problemática da ação: na reformulação do conteúdo da noção de ator, na
valorização analítica das práticas, da escala micro, e na compreensão do sentido
subjetivo da ação.

No mesmo movimento, recrudesce o confronto entre correntes objetivista e


subjetivista, materialista e idealista. E, entre os que buscam a reconstrução teórica
e os que reivindicam uma mudança no caráter das ciências sociais, centrada no
indeterminado e na atenção aos limites0. De todo modo, a questão da ação,
reaparece com força renovada, na tentativa de articular os conceitos de ação e de

0 Touraine, 1998
0 Assim por exemplo Touraine, chega a sugerir a exclusão da noção de determinação para que na ação política
seja possível constituir uma “Democracia de sujeitos democráticos”. Considero, entretanto, não ser possível
eliminar a noção contingência da ciência sem abandonar a ciência tal como a conhecemos. Isto é, deixar a noção
de determinação em nome de possibilidades alvissareiras significaria dá-lhe um cunho liberal se por liberdade
entende-se fim das contingências, e ação voluntária livre de determinações. Liberdade, pode ser pensada,
também, como capacidade de tornar o limite possibilidade tal como caracterizado por Castoriadis (1998. p. 45).
Entrar neste terreno é, contudo, fugir da ciência e pensar seus supostos, o que não vem ao caso aqui.
74

estrutura e, assim como a articulação entre análise subjetiva e objetiva. Isto é, na


busca do que alguns autores denominam uma nova síntese ou novo paradigma 0
ou, ainda, uma tentativa de superar os impasses da teoria social. Tenta-se articular
dois caminhos que se desenvolveram de forma antagônica.

No primeiro caso, os investimentos alternam-se entre focalizar a análise na ação


para “entender e encontrar o seu sentido explicando a causa, o curso e os efeitos,
como proposto por Weber. No segundo caso, nas estruturas que cimentam o
conjunto; na coesão e nas coerências impostas externamente às ações; no modo de
produção ou no fato social, que determina o sentido da ação, imposto, aos
indivíduos ou sobre-determinado pela estrutura. A questão é alcançar a explicação
da ação dos indivíduos concretos, de modo que seja possível apreender padrões e
regularidades sociais sem cair no individualismo que torna o social uma
associação voluntarista de indivíduos ou no “coletivismo” em que o todo
determina a parte. Além disto, busca-se entender a mudança histórica como
processo configurado pelas ações e relações sociais e, não, pela relação entre
estruturas.

No segundo caso, portanto, busca-se articular a compreensão do sentido subjetivo


das ações e relações socias – das crenças, dos valores e significados ao seu sentido
objetivo. Assim, as representações emergem como epifenômenos das estruturas
objetivas.

Tais questões, que atravessam as ciências sociais como um todo, estão longe de
uma solução definitiva, embora tenham recebido contribuições e inovações
importantes nas últimas décadas. Assim, autores como Giddens (1989) e Bourdieu
(1989), ao invés de investir em uma presença politizada das Ciências Sociais,
buscam, respectivamente, reconstruir a teoria sociológica ou aprofundar o
conhecimento sem propor teorias totalizantes. Nesta empreitada, ambos focalizam
seus instrumentos analíticos nas práticas sociais.

II.2.a. A Teoria da Estruturação

Para Giddens, o objeto de estudo da Sociologia “não é a experiência do ator


individual nem a experiência de qualquer forma de totalidade social, mas as
práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo”, já que considera que “as

0 Ver Alexander (1987).


75

atividades sociais humanas (...) não são criadas por atores sociais, mas
continuamente recriadas por eles através dos seus próprios meios nos quais se
expressam como atores”0. Nestes termos a ação não é um mero ato: é “um
processo contínuo, um fluxo” vital, no qual o corpo é controlado no dia a dia por
uma “monitoração reflexiva” ou consciência prática0.

Esta consciência é uma experiência ativa sem ser um saber capaz de tornar-se
discurso, “envolve a recordação a que o agente tem acesso na durée da ação sem
ser capaz de expressar o que assim sabe”0. Por outras palavras, o sentido atribuído
à ação pelo indivíduo não é passível de ser expressado plenamente pelo discurso,
é implícito. Define-se no próprio devir dos acontecimentos pela aplicação ativa da
experiência. Os seus efeitos envolvem o agente de forma ativa, mesmo quando,
têm conseqüências incalculadas.

A capacidade dos indivíduos “de transformar as coisas mediante a ação, de criar


uma diferença em relação ao estado de coisas pré-existentes envolve poder” 0. Essa
potencialidade da ação é referida, por Giddens, mediante o conceito de agência: é
a “capacidade deles para realizar essas coisas (...) de “intervir no mundo, ou
abster-se de tal intervenção”0. Mas o poder, que liga, diretamente, agência e ação
“é anterior à subjetividade, à constituição da monitoração reflexiva da conduta”,
não é portanto, apenas, “intenção ou vontade ou capacidade de obter resultados”
nem uma “propriedade da sociedade” externa aos indivíduos. Não pode, então, ser
definida apenas por suas características subjetivas ou objetivas. Essa
contraposição, que perpetua a separação entre sujeito e objeto, expressa a
dualidade da estrutura de poder0

O poder não caracteriza tipos específicos de conduta entre dominados e


dominante, mas um uso diferenciado de recursos: “propriedades estruturadas de
sistemas sociais (focalizados via significação e legitimação), definidos e
reproduzidos por agentes dotados de capacidade cognoscitiva no decorrer da
interação (...) veículos através dos quais o poder é exercido” 0, A distribuição de

0 Giddens, 1989. p. 2
0 Giddens, 1989. p. 7
0 Giddens, 1989, p 39
0 Giddens, 1989. p. 11
0 Giddens, 1989. p. 9
0 Giddens, 1989. p.12
0 Giddens, 1989. p. 12
76

recursos de poder num sistema social estável supõe, então, a institucionalização


das relações possíveis, sem despojar os subordinados de poder.

Para Giddens, a estrutura de poder envolve a existência de uma dialética do


controle. Quer dizer,

“(...) o poder, em situações sociais que desfrutam de certa


continuidade no tempo e no espaço, pressupõe relações regularizadas
de autonomia e dependência. Mas, todas as formas de dependência
oferecem alguns recursos por meio dos quais os subordinados podem
influenciar as atividades de seus superiores (Giddens, 1989. p. 12).

Todavia, a capacidade de influenciar relaciona-se a capacidade de uso de recursos


dialética do controle em sistemas sociais e constitui um fator determinante na
conformação das subjetividades da ação e da agência.

A ação existe nesta teoria, mas não é totalmente livre. É estruturada nos princípios
ou “propriedades que possibilitam a existência de práticas sociais (...) semelhantes
por dimensões variáveis de tempo e de espaço e lhes emprestam forma sistêmica”
denominada pelo autor, estrutura0. Estas estruturas possuem as regras e recursos
da ação social que instauram padrões e regularidades sociais e operam como uma
“interseção de presença e ausência”0. São “princípios estruturais”, meios de
reprodução do sistema0, sem, contudo, serem imutáveis: são disputados na
agência. Portanto, o histórico e a historia caracterizam a disputa e correspondem à
estruturação, que o sistema expressa.

Resumindo, na teoria da estruturação social de Giddens, as sociedades se pautam


e se reproduzem numa “estrutura dual”. A sociedade e os atores se reproduzem
mediante a monitoração reflexiva; agem segundo uma racionalidade estratégica,
cujo horizonte é constituído próprias interações definidas pela co-presença
(relacionalmente) no tempo e no espaço. A racionalidade da ação ocorre no nível
das interações mais próximas (integração social) e não no nível mais sistêmico da
integração da sociedade, resultando em conseqüências imprevistas no próprio
nível da integração sistêmica.

0 Giddens, 1989. p. 13
0 Giddens, 1989. p. 13. Esta noção remete á concepção de espaço de Léfèbvre que, como estrutura pauta o dito
e o interdito.
0 Giddens, 1989. p. 15
77

IV. 2.b. A Praxiologia

Bourdieu (1994, p 46-7) enfrenta outra dicotomia característica das Ciências


Sociais, não a existente entre individualismo e coletivismo, como Giddens, mas a
dicotomia entre fenomenologia e objetivismo, à qual opõe o conhecimento
praxiológico “que tem como objeto não somente o sistema de relações objetivas
(...), mas também as relações dialéticas entre estruturas e as disposições
estruturadas nas quais se atualizam e que tendem a reproduzí-las”. De modo que a
problemática teórica deste autor, apesar de próxima da anterior, explica-se em
outros termos.

O autor destaca que a teoria da prática objetivista toma as ações e relações sociais,
enquanto execução, como um subproduto das estruturas ou pautada em papéis
sociais. Essa teoria reifica as abstrações construídas pela ciência tomando
“estruturas, classes sociais, os modos de produção, etc. – como realidades
autônomas, dotadas de eficácia social, capazes de agir enquanto sujeitos
responsáveis de atos históricos”0. Perde de vista “que o sentido (...) é um elemento
do contexto e da situação”, dado nas próprias práticas e no jogo social0.

Para escapar da reificação dos conceitos, não é necessário anular as “aquisições”


do objetivismo, como sugerido por Touraine. Trata-se, antes, de conservá-las e
ultrapassá-las, “integrando o que esse conhecimento teve que excluir para obtê-
las”: a reflexão “sobre as condições teóricas e sociais de produção, o sentido da
prática”0. Bourdieu salienta que a ciência é uma prática que se presta a ser um
instrumento da dominação social, já que é capaz de produzir o discurso legítimo e
os princípios autorizados de classificação das coisas, dos lugares, dos homens e do
tempo.

Constituir uma teoria das práticas requer, então, “ir da regularidade estatística (...)
ao princípio de produção dessa ordem”, no sentido de conhecer a “dialética da
interiorização e da exteriorização e da exteriorização das interioridades”. Para

0 Bourdieu, 1994. p. 56
0 Bourdieu (1994. p. 53) , não fala em copresença mas de um sentido construído relacionalmente. Entendo por
isto que o sentido das ações não está plenamente pré-determinado pela estrutura. E que as estruturas se atualizam
na conjuntura.
0 Bourdieu, 1994. p. 47
78

isto, Bourdieu reintroduz a noção de habitus que lhe permite “relacionar práticas e
estruturas, sem cair na filosofia do sujeito”0

O conceito de habitus seria um sistema de disposições para a prática,

“(...) um fundamento objetivo de condutas regulares, portanto, da


regularidade das condutas, que permite prever as práticas. (....) Na
maior parte das condutas comuns, somos guiados por esquemas
práticos, quer dizer “princípios que impõem a ordem da ação”. Estes
são princípios de casificação, princípios de hierarquização,
princípios de visão. Em breve, tudo aquilo que permite a cada um de
nós distinguir coisas que outros confundem”. (Bourdieu, 1986. p.41).
“Esquemas de pensamento e expressão que são a base não
intencional da improvisação reguada” (Bourdieu, 1977 p. 79, Apud
Sahlins, 1997. p. 75).

“O habitus está no princípio do desencadeamento das ações que são


objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum
produto de uma verdadeira ação estratégia” (Bourdieu, 1994. p. 61).

Por outras palavras, habitus denominaria um conjunto de atitudes dos agentes que
tomam sentido no jogo social, nas práticas; sentido cujos fins seriam, maioria das
vezes, implícitos (como a consciência prática para Giddens). O habitus ocasiona
comportamentos regulares, sem que correspondam a uma obediência cega a
regras. Trata-se de ethos sociais ativos (modus operandi), produzidos pelas
condições objetivas da existência, pela apropriação das condições de existência,
“tornados carne”.

O conceito de habitus incorpora, ao meu ver o sentido dos conceitos de agência e


monitoramento reflexivo da ação, mas, neste caso, a própria potencialidade da
ação é condicionada, não pela ausência de recursos mas, pela incapacidade de usá-
los. A noção de habitus tem, no meu entender, um sentido próximo ao de Marx
quando se refere à apropriação como o acesso a bens e meios na formação da
pessoa que permite o desenvolvimento de habilidades.

O que Bourdieu denomina senso prático corresponderia, então, à operação de


princípios ativos incorporados mediante socialização, que permitem comunicar e
agir, sem necessariamente abrir mão de discursos (logos)0. Essas disposições

0 Bourdieu, 1990. p. 21-22


0 Recusa-se, portanto a utilizar o termo consciência.
79

duráveis engendram, também, “aspirações e práticas, compatíveis com as


condições objetivas”, de modo que “todo cálculo de probabilidade” é bem
sucedido enquanto as condições de experiência não forem modificadas”. Neste
movimento, a necessidade é transformada em virtude0.

As condições de produção do ethos levam a que a subordinação seja ignorada.


Entretanto, quando mudam as condições de formação do habitus observa-se a
proliferação de estratégias - bem ou malsucedidas - tendentes a recuperar ou
manter a situação social experimentada. Os dominantes são os mais bem
preparados para adaptar-se à transformação, preservando a hegemonia mediante a
promoção da mudança.

Mas a mudança das condições objetivas da existência (sua “piora”, por exemplo)
não implica, necessariamente, na tomada de consciência de classe, tal como
esperavam alguns marxistas. Esta apenas ocorre pela ”posse de um discurso capaz
de assegurar o domínio simbólico dos princípios praticamente dominados do
habitus de classe”0. Corresponde a tornar explícito o que se encontra implícito.
Um ethos de classe é antes um inconsciente do que consciência ou identidade.

A questão da consciência remete, então, ao lugar ocupado no pensamento de


Bourdieu, pela luta simbólica. Para o autor, uma representação sociológica do
social deve ser concebida como um ”campo multidimensional de posições” 0 Nesse
quadro, os agentes distribuem-se segundo: volume e composição do capital que
possuem. Essas coordenadas permitem “recortar classes no sentido lógico do
termo”. Mas, estas são “classe no papel”, cuja existência teórica permite, apenas,
explicar e prever as práticas e as propriedades das coisas classificadas”: não
explicam o aparecimento concreto de classes mobilizadas e ativas.

Esta afirmação deve-se ao fato de que “o mundo social pode ser dito e construído
de diversas maneiras, segundo princípios de visão e divisão”. Nas condições
atuais, “grupos constituídos com base na distribuição do capital apresentam
maiores possibilidades de serem estáveis e duradouros”. Entretanto, a formação de
grupos pode ocorrer, de forma mais ou menos radical, sob outros princípios.

0 Bourdieu , 1994. p. 63
0 Bourdieu , 1994. p. 76
0 Bourdieu , 1994. p. 157
80

Na definição desses princípios ou critérios, verifica-se o “jogo de incerteza (...)


que dá fundamento à pluralidade das visões do mundo”. Uma luta simbólica “pela
produção e imposição da visão do mundo legítima”, pela que passam todas “as
estratégias cognitivas de preenchimento que produzem o sentido dos objetos do
mundo social ao irem para além dos atributos diretamente visíveis pela referência
ao futuro ou ao passado”0.

“Se o modo de percepção legítimo é objeto de lutas tão importantes, é


porque, por um lado, a passagem do implícito para o explícito nada
tem de automático, podendo, a mesma experiência do social,
reconhecer-se em objetos muito diferentes; e por que as diferenças
objetivas mais acentuadas podem estar dissimuladas por diferenças
mais imediatamente visíveis” (Bourdieu, 1994. p.140).
A verdade do mundo social é o que está em jogo; numa luta entre agentes armados
de maneira muito desigual para chegarem à visão e à previsão absolutas: auto-
verificantes. “A política é o lugar por excelência da eficácia simbólica, ação que
se exerce por sinais capazes de produzir coisas sociais e , sobretudo, grupos” 0. “A
luta política é ao mesmo tempo teórica e prática, pelo poder de conservar ou
transformar o mundo social conservando ou transformando as categorias de
percepção desse mundo”0.

Conclusão e hipótese

Percorri um longo trajeto, buscando estender pontes entre categorias de espaço e


ação, não para chegar a síntese ou a uma solução da gigantesca problemática
teórica descoberta, senão para pôr em termos teóricos adequados, as questões
propostas pelo objeto empírico, aqui estudado, atendendo à exigência da prática
sociológica: de “pôr em jogo coisas teóricas muito importantes a respeito de
objetos, ditos empíricos, muito precisos freqüentemente menores na aparência, e
até mesmo um pouco irrisórios”0. Este é o caso dos transportes informais. A
pergunta que orienta esta reflexão é como surgem sujeitos econômicos que
operam na circulação urbana e que reivindicam a legitimidade de sua ação. A
resposta demanda, então, a articulação da reflexão teórica sobre o espaço e sobre a
ação já que o concreto articula aspectos que se encontram separados na teoria, de

0 Bourdieu , 1994. p. 140


0 Bourdieu , 1994. p. 160
0 Bourdieu , 1994. p. 140
0 Bourdieu, 2002. p. 20
81

acordo com um princípio cultural que separa as coisas das pessoas, os objetos dos
sujeitos, que se encontra na raiz do difícil diálogo entre geógrafos e sociólogos.

O surgimento de um sujeito coletivo corresponde, ainda, a um dos grandes


mistérios do conhecimento. Entretanto, nada autoriza a afirmar que estes surjam
das necessidades insatisfeitas, ou das promessas não realizadas ou, ainda, da
contradição entre valor de troca e valor de uso: são explicações insuficientes. Seu
aparecimento manifesta uma “magia social” onde todo mecanismo de explicação
torna-se ineficaz. Indica, segundo ensina Bourdieu, a existência de um trabalho
social pelo qual aspectos identitários, implícitos, tornam-se explícitos e com
capacidade de gerar a ação de classes, tais como grupos identitários, étnicos ou
regionais, mobilizados e “vivos”. Não pode, portanto, ser definido à priori, a não
ser como possibilidade.

A dimensão geográfica atravessa esta questão quando – como no caso estudado –


a emergência de sujeitos afeta ou indica alterações na morfologia espacial. A
promoção de certas áreas da metrópole como espaços de rentabilidade e fluidez,
transforma a hierarquia sócio-espacial, alterando e ameaçando os lugares. Tal
processo de involução metropolitana permite entender muitas das condições
objetivas que operam na formação e expansão dos transportes informais e
contribuíram para a mobilização e luta política. Entretanto, compreender o
surgimento desse sujeito social exige ir além, incorporando a dimensão subjetiva
do processo.

Todas as orientações teóricas recuperadas apontam na mesma e instigante direção:


para o cotidiano, para o vivido, como efetivador do sentido da ação. O espaço, a
ação e seu sentido não se distinguem no vivido. Este é um ponto de convergência.
Ao buscarem entender o senso prático ou a consciência prática, o habitar ou o
lugar, os autores efetuam um esforço cognitivo para esclarecer o desconhecido e o
indeterminado. Apontam para uma meta comum: que “as práticas ou ‘maneiras de
fazer’ cotidianas cessem de aparecer como fundo noturno da atividade social”0

A emersão pública e mobilizada de grupos sociais não pode ser explicada, então,
apenas, por suas condições: inovações tecnológicas, transformações políticas ou
econômicas. Toda a tradição sociológica, a partir de Weber, mostra que grupos e

0 De Certau, 1994. p. 37
82

práticas não nascem do nada. Isto é, se um modo de ser e de proceder coletivo


evidencia-se é porque há um “ethos social”, grupos e práticas precedentes.

No surgimento e desenvolvimento dos transportes, evidencia-se a existência de


um ethos, que provisoriamente denominarei ethos do trabalhador autônomo
urbano, característico de uma cultura do trabalho viva. De modo que a
proliferação do “informal” nos transportes, não é o resultado mecânico do
aumento do desemprego nem das necessidades do capital, como muitos
sustentam. Se há um ethos ou um habitus é preciso determinar as práticas de que
emergem os transportes informais, e as suas condições específicas, sociológicas e
geográficas: quais são suas “isotopias”, “heteronomias” e “utopias”.
83

Capítulo 3

Vivências e Percepções do Transporte Informal

I. Introdução

Estudar os transportes informais constitui um grande desafio pois, trata-se de um


fenômeno empírico de grande visibilidade sobre o qual tudo se desconhece ou se
conhece muito pouco. A memória e a vivência pessoal indicam que se trata de um
fenômeno dos anos 1990. Qualquer outra afirmação sobre sua natureza, causas e
conseqüências não seria mais que uma conjectura pois, é impossível determinar
seus aspectos mais básicos, tais como estabelecer números, origem, quem
participa e aonde manifestam-se0.

O título com que abro este capítulo faz referência às três instâncias do espaço
apontadas por Léfèbvre - o percebido o concebido e o vivido - que usarei como
parâmetro para a reflexão. O vivido (imponderável e infinito que quem busca o
conhecimento aspira determinar), não se mostra límpido e cristalino. É percebido
através de conceitos, noções e expectativas carregadas de sentidos, interesses e
pressuposições que remetem a concepções estabelecidas - dominantes ou não,
pois, como afirma Bourdieu0, não há imaculada percepção. Este limite, porém,
pode ser contornado pelo controle que demanda um exercício de sócio-análise
(objetivação participativa), que submeta concepções à crítica lógica e
epistemológica, identificando nos dados, o que eles mostram e o que ocultam.

Esse exercício, iniciado pela apresentação de minhas próprias percepções e


concepções, que levaram à escolha do tema e construção do objeto. Segue-se de
uma tentativa de estabelecer a percepção social do fenômeno, tal como registrado
na grande imprensa. Como terei ocasião de demonstrar, a abordagem do tema não
é unívoco nem permanente. Alterou-se com a conjuntura política e com a própria
luta pela legalização.

Se bem que transportes informais - principalmente os realizados por vans - sejam


anteriores à sua descoberta pela imprensa, apenas quando tratados por esta
tornam-se uma questão relevante. Tomados, primeiramente, como uma solução

0 Ver anexo tabela 1


0 Bourdieu, 1983, p. 19
84

aos problemas de transporte e do trânsito, condenando e, depois silenciando. A


inflexão revela não apenas os interesses em jogo mas, a tentativa de enquadrar as
práticas sociais emergentes em determinados cânones.

II. O Transporte Informal na Grande Imprensa do Rio de Janeiro

Os problemas de transporte e trânsito metropolitanos que são experimentados


cotidianamente, não aparecem com a mesma freqüência como tema de debate
público ou como problema coletivo a ser diagnosticado e solucionado.
Periodicamente, e com certa regularidade, a grande imprensa valoriza o tema,
propondo soluções que variam com a conjuntura.

Ao longo dos últimos trinta anos houveram vários momentos nos quais a imprensa
reconheceu o problema. Contudo, nunca antes de 1996, o transporte informal foi
relacionado às grandes questões dos transportes urbanos. A partir daquele ano -
com picos entre 1997 e 2000 – os transportes informais converteram-se num
ponto central da polêmica, permitindo que lutas, sua cronologia e dinâmica,
podem ser seguidas pelos jornais.

A distribuição cronológica dos artigos que tratam os problemas de trânsito e


transportes na metrópole do Rio de Janeiro e a discriminação do tema vans e
kombis - entre 1996 e 2001 – revelam a dominância do tema nesta discussão
( como ilustra o gráfico 1). Estes dados, demonstram, também, que o debate,
retratado, sofreu várias mudanças de perspectiva, ao sabor da conjuntura e dos
atores envolvidos. Considero, então, que grande imprensa constitui um recurso
privilegiado para o registro dos fatos e da sua dinâmica, assim como para a
identificação de conjunturas.
Gráfico I
Incidência da Temática das Vans no Debate Sobre o Trânsito e o Transporte Metropolitanos
1996 a 2001
(Número de Artigos por Mês)

30

25

20
19

17

15

12
11
10
8 8
7
6 6 6
5 5 5 5 5
4 4 4 4
3 3 3 3 3 3 3 3
2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

1996 1997 1998 1999 2000 2001

T rânsito e T ransporte Van

Fonte: O Globo e Jornal do Brasil, 1996 -2001


De fato, as vans ocuparam lugar central no debate sobre o problema dos trânsito e
os transportes durante aquele período. Dos 327 artigos publicados no O Globo e o
Jornal do Brasil, 208 (63,6 %) tratam da questão, tendo picos de incidência
nalgumas oportunidades, como pode ser observado no gráfico 1. Os picos
correspondem, primeiro, ao ápice de mobilização e luta pela legalização, que
ocorreram entre março e setembro de 1997, e em segundo lugar, a outubro de
2000, quando o candidato triunfante no segundo turno das eleições municipais –
César Maia - decidiu legalizar o transporte informal, cumprindo promessa de
campanha.

II. 1. Primeiras Abordagens

Entre 1993 e 1996 os jornais0 tratam as vans não como problema relacionado ao
transporte metropolitano senão em suplementos especializados na promoção de
veículos, na publicidade de atividades turísticas e em suplementos de negócios.
Quer dizer, as vans eram tratadas como oportunidade de negócios possibilitados
pela oferta de veículos asiáticos, num contexto de expectativa de crescimento da
demanda, estimulada pela estabilidade econômica e pelo aumento do poder de
compra das classes médias0.

Foi apenas no primeiro semestre de 1996, sob o título “lotações lucram com o
problema“ que ocorre a primeira referência ao transporte informal por vans 0 O
artigo comenta a falta de transportes, crônica, em Jacarepaguá e Barra da Tijuca,
no sentido Centro e Madureira. Algumas semanas depois, sob o título: “Piratas de
primeira classe tomam as ruas”0 veicula-se o transporte por vans com destino ao
Centro, partindo de Niterói, São Gonçalo, Santa Cruz, Barra, Recreio, Campo
Grande e Ilha do Governador.

Nestes primeiros artigos começou a moldar-se um perfil específico do usuário e


do operador destes transportes. Os usuários seriam trabalhadores administrativos e
donas-de-casa de classe média que encontram melhor tratamento, maior
comodidade e rapidez que nos transportes convencionais. Os operadores seriam
ex-bancários, empregados administrativos aposentados, advogados e engenheiros

0 Uso nesta caso, apenas o Jornal do Brasil como referência.


0 O Globo, 06/02/1997
0 Jornal do Brasil, 28/03/1996
0 Jornal do Brasil, 07/04/1996
que, desestimulados com seus baixos salários e as condições de trabalho, optaram
pelo próprio negócio, sendo animados por uma expectativa de renda elevada.
Artigos com títulos sugestivos - “Motoristas Refinados” ou uma “Pirataria que
deu certo”0 – reforçam a imagem do perfil dos motoristas, com trajetórias
profissionais, gostos e objetivos de classe média, capazes de satisfazer usuários
com a mesma expectativa.

Insiste-se, também, no fato de que “mesmo não legalizados o transporte por


furgões conquista passageiros na Barra e Jacarepaguá”0. Esta conquista era
apresentada como uma revolução: “a revolução das vans”. Outros títulos que,
além de elogiarem o sucesso dos transportes, prometem uma rápida legalização:
“Nova Febre entre Cariocas, os furgões para uso comercial são quase mil e em
breve serão regulamentadas pela prefeitura0”, ou ainda, “Clandestinas são um
sucesso na cidade0”.

Durante o seu primeiro ano de vida pública – quando descoberto pelos jornais e
revistas do Rio de Janeiro -, o transporte por vans foi saudado como positivo e
descrito como um transporte destinado a usuários de classe média, também
conduzida por proprietários de classe média, que atendendo, principalmente,
viagens da periferia com destino ao Centro.

II. 1.1. A oposição e a Mudança de Perfil

A mesma história, quando documentada pelo jornal O Dia, apresenta outros


aspectos. Este veículo focaliza sua atenção, desde o início de 1996, nos protestos
dos taxistas contra o transporte por vans e a organização dos operadores em
cooperativas. Num artigo intitulado: “Prefeitura vai multar ônibus piratas e Vans 0”
há uma referência ao crescimento do transporte ilegal originário dos municípios
da Baixada Fluminense com ponto final na Central do Brasil. Cinco dias depois,
afirma-se que “bestas piratas, invadem as ruas 0” revelando que “veículos
utilitários” fazem “lotadas”, transportando 20.000 pessoas por dia.

0 Veja – Rio ;01/05/96 2 19/03/97


0 Jornal do Brasil, 16/05/96
0 Ídem, .08/05/96
0 Veja - Rio 01/05/96.
0 O Dia, 26/03/96
0 O Dia, 31/03/96
Em verdade, a mobilização do Sindicato de Taxistas, liderada pela sua presidente,
Adriana Iório, com a consigna “os clandestinos (...) são o nosso inimigo número
um”, marcou – em março de 1996 – o início da repressão e, simultaneamente, das
lutas de rua pela regulamentação da lotada, a organização em cooperativas e, mais
tarde, a formação de federações e sindicatos. Essa inflexão caracterizou, pela
primeira vez, a atitude e a dinâmica que o movimento pela legalização da lotada
adotará, respondendo, a cada repressão, com grandes mobilizações0.

A repressão e a luta foram simultâneas à formação das primeiras cooperativas. A


Cooperilha foi a pioneira, seguida de uma “sessão regional, em Jacarepaguá que,
mais tarde, adotaria o nome de Cooperjacarepagua, seguida da Rio Van Cooper
Méier . Seus presidentes serão porta-vozes e lideranças do movimento pela
legalização da lotada e futuramente os articuladores de sua organização sindical.
Não é possível saber – pelos jornais - porque predominou a cooperativa, já que a
primeira regulamentação municipal permitia tanto a atuação de empresas quanto
de cooperativas. De todo modo, pertencer a uma cooperativa ou empresa foi o
primeiro requisito para a legalização.

O primeiro semestre de 1996 encerrou com um primeiro ensaio de


regulamentação municipal para o transporte por vans. Em 2 de julho de 1996, a
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro publicou no Diário Oficial do município a
resolução 14.917, suplementando a resolução 14.880, restringindo o uso de vans e
kombis ao “atendimento aos portadores de deficiência física, grupos de turistas,
escolares e empresas; e ainda os grupos Rio By Night ( para assistir Shows) e os
chamados “cabritinhos” que fazem o sobe-e-desce em morros0”. Esta
regulamentação, entretanto, apesar de anunciada e elogiada por autoridades
municipais como solução, não conseguiu ordenar e pôr fim ao crescimento do
transporte informal. Assim, alguns dias depois, denunciava-se que ”a
regulamentação da vans não acaba com a briga por passageiros no Rio0”.

Nos sete meses seguintes, o transporte por vans desapareceu dos jornais para
ressurgir, com grande força a partir de fevereiro e março de 1997. O ritmo da

0O Governo Municipal, pressionado pelos taxistas - únicos a autorizados a realizar lotadas - procede à repressão
e a uma regulamentação restritiva no intuito de ordenar o tráfego. Tratava-se - no jogo de palavras do Prefeito
César Maia em entrevista ao radialista Garotinho - de “domar as Bestas”( O Dia, 20/04/96)
0 O Dia, 11/07/96
0 O Dia, 11/07/96
campanha eleitoral de 1996 no município do Rio, dá, aos discursos sobre os
transportes e a urbanização, um conteúdo mais geral, voltado para os grandes
projetos e desafios do transporte, sem, necessariamente, abordar o tema das vans.

II. 3. Inflexões e Períodos

A observação e a sistematização de recortes de jornais permitem estabelecer ao


longo dos anos abordados pela pesquisa, pelo menos três períodos com dinâmicas
distintas e alteração do volume de veículos, da composição, da organização, do
caráter das reivindicações, da escala das lutas e do discurso legitimador. No
primeiro período, que vai de 1992 a 1996, antes que se difundisse e massifique o
transporte por vans, predominaram o discurso e a prática do empreendedor.
Cresceu como iniciativa privada: dispersa, desarticulada, com uma postura passiva
em relação à legalização. Os operadores esperam, das autoridades municipais,
bom senso e reconhecimento da legitimidade de seu empreendimento.

Esta propensão começaria a mudar somente quando sofreram a oposição do


Sindicato dos Taxistas e pela regulamentação municipal restritiva de suas
atividades. Por outro lado, as reivindicações permaneceram limitadas à escala
municipal mesmo quando abundaram indícios de que tratava-se de uma atividade
de maior envergadura com presença na escala metropolitana, como também, na
estadual0.

Mesmo assim, depois da regulamentação limitante da Prefeitura do Rio de Janeiro


em julho de 1996, a tônica manteve-se. Nos próximos meses, os jornais não
registram ‘blitz’, e nem nenhuma forma de reivindicação articulada. É possível
identificar, outrossim, um contínuo processo de crescimento e auto-organização,
em cooperativas e coletivos de diretores de cooperativas que, mais tarde, darão
origem a um movimento organizado em todas as escalas, mesmo a nacional.

II. 3.1. O segundo momento – 1997

No início de 1997, a Prefeitura estudava, ainda a possibilidade de estabelecer uma


regulamentação mais adequada: concedendo linhas específicas para vans ou
microônibus, principalmente, na área de Jacarpaguá e Barra da Tijuca, onde a
Associação Comercial reivindicava o transporte por vans 0. Mas, considerava que a

0 Em 06/02/97 O Globo informa em Cachoeira de Macacu a empresa de ônibus devolveu as linhas à prefeitura,
em protesto contra a concorrência das vans.
0 Ver O Globo, 30/01/97.
regulamentação não poderia ser precipitada já que - como afirmou o presidente da
SMTU Paulo Afonso Cunha - “para que os veículos possam oferecer um serviço
legal, a discussão deverá estender-se por todos os segmentos envolvidos, para
evitar que haja concorrência desleal”. A posição moderadora das autoridades
municipais esbarrava, contudo, na irredutibilidade do Sindicato dos Motoristas de
Táxi do Rio e do Sindicato das Empresas de Ônibus do Rio de Janeiro.

As condições institucionais que permitiram a expansão das vans sem grande


repressão desapareceram em fevereiro de 1997 quando o SMTU decidiu fiscalizar
os transportes escolares e os acessos ao centro do Rio, para reprimir a lotada.
Entre fevereiro e março daquele ano, ocorreram ‘blitz’ semanais em toda a
metrópole. Simultaneamente, aumenta a mobilização e a pressão dos operadores,
que buscam apoio de todos os poderes e autoridades. De igual modo, os usuários,
solidarizaram-se, condenando também a iniciativa do prefeito 0 já que, a cada
grande repressão, eram obrigados a voltar aos ônibus e trens e às suas conhecidas
más condições.

A inflexão da conjuntura detectada em março de 1997 foi simultânea à mudança


da magnitude das lutas e da escala da reivindicação: o principal interlocutor e alvo
principal passa a ser o governo estadual, responsável pela repressão às alternativas
de transporte0. Ao mesmo tempo, os operadores de vans organizam-se em duas
entidades representativas - a Confederação Nacional do Transporte por Vans
(CONVAN) e a Central de Presidentes de Cooperativas do Transporte Alternativo
(CENTRAL–Van)0 que apelam ao judiciário e pressionam o Poder Legislativo
estadual , além de, em certas ocasiões, buscarem o apoio federal, pelo o fim da
repressão e a regulamentação da lotada.

II. 3. 2.O Conflito

Na mesma conjuntura, altera-se, também, o discurso dos operadores de vans.


Entre os meses de maio e setembro de 1997 (como ilustra o gráfico I) verifica-se o
ponto mais alto do debate sobre a regulamentação dos transportes informais,
envolvendo todas as partes interessadas e o Estado.
0 Ídem
0 A cada grande blitz pode observar-se a ocorrência de grandes manifestações que além de tumultuarem o
trânsito da cidade (Além do Palácio Laranjeiras e a sede da Prefeitura, ocorrem na Presidente Vargas, no Aterro
do flamengo ou na ponte Rio - Niterói.
0 Que estimavam que o número de vans circulando no Estado alcançasse 12 mil ou 13 mil veículos,
transportando 450 mil pessoas por dia, apenas 15% operavam em forma legal.
Durante o mesmo período, constata-se uma outra alteração significativa no campo
de disputa: empresários de ônibus do Rio manifestam pela primeira vez, o seu
desagrado em relação ao transporte por vans, mobilizados e organizados. A sua
entidades de classe – o Sindicato de Empresas de Ônibus do Rio de Janeiro -
lidera o combate às vans, usando todos os recursos ao seu alcance.

Identificam-se, em seus discursos, os três registros com que o transporte por vans
será abordado daí por diante, pelos seus opositores. São ilegais, prejudiciais à
cidade e não respeitam leis. Em uma pequena frase: são uma máfia. No embate
vem à tona num antidiscurso, que usa os mesmos critérios contra os adversários.
As vans seriam uma alternativa contra o cartel dos ônibus que controla o poder
público, boicotando a constituição de um sistema de transporte, genuinamente de
massa: são alternativos. Os operadores de transporte informal não se apresentam
mais como empreendedores frustrados mas como trabalhadores excluídos do
mercado de trabalho, que descobriram uma alternativa para a decadência do
transporte de massas produzido pelo “cartel” das empresas0.

Além do discursivo, destinado a ganhar simpatizantes, um outro conjunto


importante de ações dirige-se aos tribunais travando uma verdadeira guerra
judicial. Em maio de 1997 o Juiz da 5ª Vara de Fazenda Pública, Luiz Felipe
Haddad, concede liminar proibindo a apreensão das vans até a decisão oficial dos
governos municipal e estadual0. Esta liminar foi sendo reeditada várias vezes,
transformando-se numa regulamentação provisória, válida por um ano, até que
Estado e Município regulamentassem definitivamente “o transporte alternativo de
passageiros0”.

0 Essa combinação de argumentos despertou a simpatia dos usuários. Na edição da revista de domingo de
17/08/97 publicaram-se doze cartas reconhecendo a correção dos argumentos, mesmo quando discordavam, por
princípio da lotada, e também deplorando a ação e o discurso dos empresários “Presentes na forma de cartas e m
várias pesquisas de opinião que as aprovam.
0 Jornal do Brasil, 18/05/97
0 A lotação foi autorizada somente através do sistema de ponto a ponto e itinerários certos com a
fiscalização do DETRO e da Secretaria Municipal de Transportes Urbanos, proibiu o
estacionamentos em pontos de ônibus e táxis para ``açambarcar (apropriar-se de) passageiros de
outros meios de transporte'' exigiu que apenas motoristas profissionais dirijam vans que estes
fossem trinados em direção defensiva, Além disso os operadores deveriam se organizar em
cooperativas.
O juiz Haddad justificou a sua atitude do seguinte modo: - “O Judiciário está tapando buraco deixado pelo
Executivo e pelo Legislativo. Procurei conciliar as normas vigentes com o interesse social e comunitário. As
conseqüências seriam sérias caso eu ficasse preso somente aos regulamentos. A repressão que viria, por certo,
causaria a expulsão das vans da cidade e, conseqüentemente, a revolta da população usuária do transporte
alternativo”
A medida foi recebida com perplexidade e descontentamento por parte das
autoridades, dando lugar à ação de inconstitucionalidade no Tribunal Superior de
Justiça que cassou a liminar por considerar que a regulamentação dos transportes
é uma atribuição do Poder Executivo e não do Judiciário. O parecer foi aceito pelo
STF ao julgar a liminar solicitada por várias organizações de transporte informal.

Com a derrota judicial e a Lei Municipal 2582 de 28/10/1997 - que regulamentou


o fretamento e excluiu a lotada; e pela Lei Estadual 2890 de janeiro de 1998 que
permitiu o fretamento proibindo expressamente a lotada, prevendo duras penas
para os infratores0 - encerrou-se o momento mais combativo da luta pela
regulamentação

II. 4. A expansão Marginal – 1998 -1999

Encerra-se o que considero o ápice do movimento sendo, por um período com


poucas notícias na imprensa. A derrota do movimento pela regulamentação da
lotada permite identificar um interregno, uma inflexão, em que o crescimento do
transporte informal continua, ocorrendo principalmente na Região dos Lagos e
Costa Verde. Prolifera o transporte por kombis, tornando certos bairros hiper
conectados, enquanto continua a repressão.

A sua ilegalidade, não eliminou o transporte. Ao contrário, estimulou a descoberta


e a comercialização de formas de contornar, a lei, beneficiando advogados que
solicitavam liminares para liberação dos carros; policiais que oferecem pontos no
centro da cidade a preços módicos e propinas semanais aos ”donos dos pontos”.
Em outras palavras, a ilegalidade favoreceu-se o achacamento dos operadores
pela polícia 0.

O transporte por vans existia, em 1998 em todos os municípios da Região


Metropolitana, com diferentes níveis de reconhecimento legal. No Estado e nos
municípios do Rio e Niterói eram ilegais, enquanto que em Nilópolis, São João
de Meriti, Magé e Queimados estava legalizada a lotada. Um outro grande número
de municípios sequer discutia a questão. Mesmo assim, esta modalidade de
transporte consolidava-se. Da Central, partiam veículos para São Gonçalo,
Alcântara e Itaboraí. Nos quarteirões próximos ao terminal Américo Fontenelle,

0 O Governador vetou, ademais, todos os pontos da lei que poderiam dar lugar a novas batalhas judiciais.
0 O Globo 31.08.1997; Jorge Moura, diretor técnico da Central Van, que congrega 32 cooperativas e cerca de
3.200 carros, diz que o mercado de vans se esgotou. Para ele, os associados terão que entrar em um novo estágio
garagens e postos de gasolina, transformaram-se em rodoviárias de onde partiam
vans para toda a Baixada.

Esta transformação não implica ausência de lutas durante esse período. Continuou
ocorrendo manifestações e batalhas judiciais mas, aparentemente parece não haver
unidade nem unidade nem consenso, principalmente no que concerne às
lideranças e formas de condução.

II. 5. Quarto período – a regulamentação da lotada

Um quarto momento pode ser reconhecido, claramente em 2000, quando a


Prefeitura decidiu regulamentar os transportes por vans e kombis, retomando o
processo abandonado quando da repressão. Contudo, a tendência de
regulamentação já estava pré figurada, desde o ano anterior, com a eleição do
governador Anthony Garotinho.

Em verdade, a primeira guinada favorável tinha ocorrido já em 3/11/1999, quando


houve uma anistia das multas. Entretanto, a liberação da lotada só ocorreu mais
tarde, em 10/12/2000, quando foi revogada a lei 2890, que a proibia. No entanto,
a tendência à regulamentação já estava definida desde 10 de janeiro de 2000,
época em que foram autorizadas as lotadas nas vias intermunicipais da região
metropolitana, por um período de 60 dias, através do decreto 25.955, reeditado em
4/03/20000.

Esse evento marcou uma aliança política entre o governador e a liderança mais
representativa das organizações dos operadores de vans e kombis do Estado.
Contudo, a legalização, prometida pelo governo estadual permaneceu insegura,
durante o ano 2000. Somente com a eleição de César Maia, em outubro do mesmo
ano, prosseguiu aceleradamente.

Nesta conjugação de interesses eleitorais e setoriais, revela-se um aspecto


relevante: o peso eleitoral dos operadores de transporte informal. O apoio eleitoral
do motoristas e proprietários de vans e kombis da Zona Oeste foi de fundamental
importância para que César Maia conquistasse a Prefeitura do Rio de Janeiro no
segundo turno das eleições municipais. No ápice da campanha a legalização das

0 Esse decreto não altera substancialmente a legislação anterior mas amplia a noção de pontos, um quilômetro
do ponto de partida e do ponto de chegada. E reduziu de 160 mil Ufir (R$ 160 mil) para R$ 80 mil Ufir (R$ 80
mil) o total do capital social das cooperativas e pôs fim à exigência de domicílio eleitoral no Rio para os donos
de vans.
vans transformou-se num tema dos candidatos, de modo que o próprio Luís Paulo
Conde, seu antecessor e candidato à reeleição – que comandava a constante
repressão ao transporte informal, prometeu a legalização da lotada.

As eleições municipais de outubro de 2000 demonstraram o peso político dos


operadores de vans e suas organizações. A participação nas campanhas eleitorais,
usada como estratégia de barganha na luta pela regulamentação, manifesta,
contudo, limites: o movimento fragmenta-se em várias federações segundo a
aliança política de que participem. Em janeiro de 2001 a FECOTRAL perde as
cooperativas do Rio, agrupadas na FERTAL-Rio, e sofre a deserção de 20
cooperativas do Estado, que apóiam a política do secretário de transportes,
formando a FECOVAN. Além disso, nas assembléias foi expulsa a CONVAN,
enquanto o SINTRAL permaneceu marginal.

O mesmo movimento permitiu que muitas organizações se tornassem máquina de


campanha e de apoio político do Prefeito e do Governador sendo os veículos
utilizados para autopromoção e propaganda dos principais políticos responsáveis
diretos pela regulamentação0.

Em suma, qarto momento iniciado em 1999, com a eleição do ex-governador


Anthony Garotinho que deu início à discriminalização do transporte informal. Foi,
acompanhado de uma legalização vacilante, realizada por decretos. Este processo
- que destruiu a unidade do movimento, fragmentado-o em 5 organizações com
diferentes padrinhos políticos - pode, ainda, ser revertido da mesma maneira com
que foi obtida, por uma transformação da conjuntura política e de alianças
eleitorais.

III.Conclusões

Do registro do percebido e registrado nos jornais, é possível extrair várias


considerações. Percebe-se, primeiramente, a concatenação dos fatos, como um
movimento de formação de grupos, sujeitos que se moldam no decorrer dos
acontecimentos, classes médias ou aspirantes a empresários, ou ainda,
desempregados de elite, saídos voluntária ou involuntariamente do mercado de
trabalho, buscam obter ou manter sua renda vendo-se como empreendedores.

0 Grande número de funcionários envolvidos na lgalização foram candidatos a Deputados Federal e Estadual,
usando o transporte informal como instrumento de campanha.
O crescimento do fenômeno revela a descoberta de necessidades desatendidas,
com características sociais e geográficas reconhecidas pelos próprios operadores.
Por serem moradores das áreas em que operam ou por conhecerem os lugares,
capitalizam a sua própria experiência e vivências geográficas. O mesmo
movimento explica a solidariedade dos usuários: a identificação social e a
formação de vínculos a partir da experiência compartilhada.

Apesar de sofrerem a oposição de taxistas e empresários de ônibus e padecerem as


conseqüências de uma postura vacilante das autoridades municipais e estaduais, os
operadores informais alcançaram um novo discurso e uma nova dinâmica,
articulada e organizada, que quanto mais se unifica mais contribui para o
fortalecimento da mobilização e da luta: criaram uma alternativa de trabalho e
para o transporte urbano.

A condição social ou o grau de organização atingido, permitem compreender que,


articulem-se em seu favor as brechas legais e a competição entre Poder Judiciário,
Legislativo e Executivo. Contudo, esta estratégia foi mal sucedida em decorrência
da formação de uma aliança contrária, proliferando a corrupção e o crime. Mais
tarde, a legalização, obtida por alianças políticas, reduz, parcialmente, os
problemas decorrentes da ilegalidade mas, neutraliza, também, o caráter
combativo do movimento.
1

Capítulo 4
A Metrópole e os Problemas do Trânsito e dos Transportes:
registro de concepções

I. Introdução
A história do surgimento e expansão dos transportes informais por vans e kombis
está inscrita nos editoriais, artigos assinados e opiniões de homens públicos, em
reportagens divulgadas pelos jornais, em sua tarefa de informar e formar a opinião
pública0. Estes artigos abordam os problemas do transporte e do tráfego
remetendo-o a uma esfera geral, conformada por práticas, discursos e saberes
técnicos, distante dos dizeres e opiniões dos agentes diretamente envolvidos:
operadores e usuários. Para além das concepções e visões de mundo que articulam
e constróem, apontam, ademais, os interlocutores considerados válidos e indicam
as inflexões conjunturais no enfrentamento das questões dos transportes.

Apesar de não ser na imprensa que se tomam as decisões e se estabelecem os


critérios de ação institucional, encontra-se nela um registro das concepções que as
orientam. Neste capítulo, interessa, então, delimitar tais concepções e critérios que
auxiliam na avaliação dos problemas e permitem prescrever os parâmetros da
circulação metropolitana.

A base de dados de que disponho para este exercício compõe-se de 40 editoriais,


reportagens e artigos assinados do Jornal do Brasil entre 93 e 2002 e o Globo
entre 1996 e 2002. Na documentação constam 12 editoriais e 16 artigos assinados,
além de 12 reportagens. Procedo, primeiro, à identificação dos interlocutores e,
em seguida, a uma periodização, reconhecendo os aspectos mutantes e invariáveis
encontrados. Finalmente, analiso os discursos mobilizados para identificar
supostos e concepções associadas pelos atores envolvidos.

II. Quem Participa


Como apontei no capítulo anterior, a problemática dos transportes e do tráfego
não é constantemente abordada pela imprensa. Discorre-se sobre o assunto em
certos momentos e com intensidade variada. Há ocasiões em que a problemática
metropolitana ultrapassa o mero registro de engarrafamentos, acidentes e tarifas,

0 Uso noção de opinião pública sem grande rigor, aceitando as críticas realizadas por Bourdieu ao conceito, pela
qual a opinião pública forma-se pela imposição da visão de mundo dos grupos dominantes. De todo modo a
imprensa tem um lugar de d estaque nesta operação. Ver Bourdieu, (!980).
2

inscritos nas sessões que abordam da vida da cidade, para dar-lhes um tratamento
mais profundo a través de reportagens. Nos momentos mais agudos do debate, as
questões são apresentadas nas páginas centrais dos jornais, via editoriais ou
artigos assinados ou, até mesmo, em cadernos especiais. Quando isto ocorre, as
matérias não mais informam aspectos da vivência dos usuários, ou relatos dos
testemunhas dos fatos ou providências das autoridades. Abrem-se para que
notáveis realizem diagnósticos e apontem soluções. Usuários e operadores diretos
estão excluídos desse processo, ocupam lugar privilegiado técnicos e gestores do
tráfego como ilustra a tabela 1

Tabela 1
Profissões dos Debatedores
Profissão Número
Sociólogo 1
Eng. Transporte 7
Engenheiro 1
Eng. Tráfego 1
Jornalista 3
Cargo eleito do poder executivo 4
Gestão de transporte 7
Instituição técnica 2
Docente Universitário 5
Empresário 1
Representante de entidade empresarial 1
Escritor 1
Fonte: Pesquisa para Tese
(OBS) A soma não totaliza 100%

De fato, nas 16 entrevistas e 12 reportagens sobre a problemática do transporte e


do tráfego, que abrangem aquele período, 25 notáveis são consultados em 36
oportunidades. Desse grupo, constituem a categoria mais citada os engenheiros de
transporte (4), participando em 14 matérias (ver anexo tabela 3).

Esta preferência explica-se pela valorização da perspectiva técnica e do


especialistas, o que não é sem conseqüência. Como será mostrado mais à frente
esta preferência molda a problemática da circulação metropolitana aos conceitos,
supostos e disputas da engenharia de transporte.
3

III.O período e seus movimentos


O período estudado abrange os anos de 1993 a 2002. Pode ser dividido em três
momentos que coincidem com os períodos de expansão dos transportes informais
desenhados no capítulo3, porém com outro conteúdo.

O primeiro abrange 1993 a 1995 durante os quais o problema dos transportes


discutido é o monopólio das empresas de ônibus e se afirma necessário permitir a
concorrência. O segundo, ocorre entre 1996 e 1999, quando se reconhece já o
transporte informal como problema, o congestionamento das ruas e avenidas da
metrópole abre o debate em torno da urgência de estabelecer ações e planos para
ordenar o tráfego, expandir a rede urbana, racionalizar e tornar eficiente o sistema
de transportes coletivos. Finalmente o terceiro entre 2000 –2002, por ocasião da
regulamentação do transporte informal discute-se como inseri-lo no sistema de
transportes coletivos.
Gráfico I
Incidência do Tema das Vans e das Kombis no Debate Sobre o Trânsito e o Transporte Metropolitano no Rio
de Janeiro - 1993 - 2001

4 4

3 3 33

2 2 2 2 2 2 2

1 1 1 1 1 1 11 1 11 1 1 1 1 1 1 1

0 0 00 00 0 00 00 00 00 0 00 00 00 00 00 0 00 00 00 0 0 00 00 00 0 00 0 0 00 00 0 00 00 00 00 00 0 00 00 00 00 0 00 00 00 0 00 0 00 00 0 0 0 00 0

-1

van Trânsito e transporte


Fonte: Jornal do Brasil e O GloboIII.1. Primeiro Momento -1993-1996

Este momento discursivo - reconstruído pelos editoriais do Jornal do Brasil –


inicia-se em 1993 quando, em conseqüência do projeto de lei federal referindo ao
fim do monopólio nos transportes inter-estaduais. Lamenta-se que a concorrência
não se aplique aos transportes inter-municipais e municipais: “sucessivos
monopólios provocaram o calamitoso sistema de transporte urbano que infelicita a
população brasileira”, tornando-a “refém de uma classe, dita empresarial, que põe
seus interesses pessoais acima de tudo, a serviço unicamente do lucro”0.

O Rio de Janeiro é tomado como um exemplo extremo dessa situação:


“empresários descomprometidos com a população montaram linhas servidas por
ônibus em péssimas condições que são o contrário do que deveria ser um serviço
público”0. “Boa parte dos cariocas viaja de pé, em ônibus cheios, espera
demasiado por sua condução e compromete uma parte significativa do seu salário
em transporte0”. Uma das principais causas desse quadro, seria “o poder público
submete-se à iniciativa privada0”.

A manutenção do monopólio é atribuída a “poderosas articulações na Assembléia


Legislativa, na Câmara dos Vereadores e no poderes executivos 0” provocando o
atraso do sistema de transportes e suscitando uma situação ímpar na qual, ao
contrário de “todos os outros países”, onde, ”ônibus constituem o braço auxiliar
do transporte de massa, aqui tornaram-se responsáveis por 90% do transporte
metropolitano0”.

“Diante da abdicação das autoridades de intervir no comando do transporte de


passageiros, os donos de frotas de ônibus, despreparados para a função
empresarial, aproveitam para desrespeitar as mais comezinhas regras de trânsito” 0,
quer dizer, à distorção dos transportes coletivos somar-se-ia, agora, o tráfego
caótico da metrópole, originado da falta de investimento em transporte de massa.

Aos maus empresários e ao descaso ou fraqueza das autoridades soma-se, para a

0 Jornal do Brasil, 8/09/1993


0 Jornal do Brasil, 8/09/1993
0 Jornal do Brasil, 29/07/1995
0 Jornal do Brasil, 8/09/1993
0 Jornal do Brasil, 29/07/1995
0 Idem.
0 Jornal do Brasil, 3/10/1993
imprensa, a falta de educação. A expansão do transporte individual por
automóvel, a partir da implantação da indústria automobilística, numa sociedade
“que não tinha base educacional capaz de adaptá-la ao choque cultural da
implantação da indústria automobilística”. Ter automóvel significou, a partir de
então, vencer na vida, surgindo “duas classes de brasileiros” 0: os bem sucedidos,
motorizados, e os pobres, dependentes do transporte coletivo.

No discurso reconstruído, identificam-se os problemas do tráfego e do transporte


como causados pelo atraso político, institucional, empresarial e cultural 0. Critica-
se o sistema de transportes por ônibus, instando aos governos que se afastem da
operação direta de trens e metrôs0, culminando com uma definição mais extensa
do problema: a metrópole vive uma crise de mobilidade que se manifesta na
desordem do tráfego0 e na diminuição da velocidade média de circulação 0. A
solução só poderia provir de um planejamento global, sério, em que todas as
alternativas e dimensões fossem levadas em consideração e que as autoridades
rompam com inércia, buscando um entendimento sólido entre municípios e
estado0 e estabelecendo uma política de tráfego e transportes efetivamente
metropolitana.

III.2. Segundo Momento 1996 – 1999

Neste segundo momento há continuidade de boa parte dos elementos discursivos.


Entretanto, há uma alteração da conjuntura, em 1996. Introduz-se a problemática
do transporte informal e ainda, neste momento, os governos federal e estadual
estabelecem um cronograma para a privatização dos trens urbanos e dos metrôs,
abandonando, de vez, a perspectiva de estatizar o sistema de transporte 0. Este fato
constituiu uma mudança significativa da concepção da gestão dos transportes
coletivos, assinalando a vitória daqueles que apontavam a inércia estatal como

0 Jornal do Brasil,3/10/1993
0 Sem faze referência ao transporte informal.
0 Jornal do Brasil 14/ 05/95
0 “O tráfego do Brasil e do Rio em particular mostra desajuste social pois: os povos com o
trânsito organizado em suas cidades são também os que apresentam melhor sentido de
organização da sociedade” ( Jornal do Brasil, 03/010/1993).
0 Estudo do Engenheiro de transporte. Fernando Mac Dowell, como mostrarei adiante, previa que a velocidade
média do tráfego chegaria a 10Km em 2007 (Jornal do Brasil, 22/10/1995).
0 Jornal do Brasil, 23/12/1995.
0 Ver Jornal do Brasil, 14/05/1996
causa dos problemas. Contudo, não é alterado o diagnóstico da crise de
mobilidade e de falta de planejamento.

Além da mudança estrutural no sistema de transporte produzida em escala


nacional, no caso específico do Rio de Janeiro ocorreu um fato marcante. Em
fevereiro de 1997, o Comitê Olímpico Internacional preteriu a cidade na disputa
por sediar as olimpíadas de 2004 por considerar deficiente o sistema de transporte
e problemático o tráfego0, o que provoca o arrefecimento da reflexão e da
polêmica que já estava em curso desde 1995.

Naquele ano, o Prof. Fernando Mac Dowell havia divulgado um estudo em que
previa para 2007, a redução da velocidade média de circulação na metrópole para
10 km/h, agregando que a situação só não era pior devido às crises dos anos 80 e
início de 900. No mesmo artigo, que divulgava a pesquisa, outros técnicos
propõem soluções0. Para Márcio Sequeira Santos, era necessário um planejamento
global do transporte de massa, sem o qual intervenções isoladas não seriam
efetivas. Já para o secretário especial de transportes do município, Márcio
Queiroz, o problema se originava na falta de uma malha viária adequada.

Ordenamento planejado dos transportes coletivos e do tráfego e abertura e


melhoria da rede viária são propostas de solução que nem sempre coadunam-se
nas avaliações subseqüentes do problema. As autoridades municipais
argumentavam favoravelmente à abertura e melhoria da rede viária. Seria preciso
a construção da Linha Amarela, da Linha Verde e da Linha Marrom, a do Anel
Viário, assim como a garantir a expansão do metrô e a recuperação da capacidade
do transporte por trens, transformando-os em metrô 0.

O planejamento dos transportes, esta é uma perspectiva aceita por todos. Diferem,
entretanto, quanto a alguns aspectos , já considerados na avaliação das causas da
crise. Assim, por exemplo, para Mac Dowell – defensor do transporte de massas
sobre trilhos - a atrofia do sistema de transportes “poderia ter sido evitada se, nos
últimos 20 anos, os governantes tivessem investido R$ 50 milhões por ano na
ampliação do metrô. Se isso tivesse sido feito, hoje o transporte mais seguro,

0 Ver O Globo, 23/02/1997


0 Ver Jornal do Brasil, 22/10/1995
0 Ambos pesquisadores do PET/COPPE/UFRJ
0 Ver CesarMaia e Paulo Afonso ( O Globo, 23/02/1997, 08/06/2000 e 20/08/2000)
barato e aprovado pela população estaria chegando à Barra da Tijuca” 0. Advertia,
inda, que os investimentos em transporte sobre trilhos não poderiam limitar-se ao
conserto de vagões e dormentes: “tudo deve ser repensado e reestruturado”0.

A reestruturação deveria partir da formulação de um plano “diretor de transportes


de toda a região metropolitana, com propostas efetivas quanto a novas ligações na
modalidade ferroviária, sensivelmente mais segura e de maior benefício/custo” 0,
sendo assim, evitada a repetição do tipo de planificação efetuado durante os
governos militares que adotou medidas isoladas e conflitantes entre si, terminando
por inviabilizar os objetivos do planejamento.

O quadro seria agravado pela existência de uma legislação confusa, aberta a


interpretações disparatadas. A omissão das autoridades facilitaria a concorrência
suicida entre motoristas, uma política tarifária demagógica e falta de planejamento
e, em suma, a distância entre “o discurso e a prática de nossas autoridades” 0. A
renovação do planejamento governamental – segundo Sérgio Balaussier0 - deveria
ser acompanhada por um “organismo independente”, que congregasse “as
comunidades acadêmica e técnica, sem que pressões de qualquer sorte viessem
alterar os rumos de um plano setorial de transportes”.

Esta última proposta deixa transparecer uma faceta importante do fenômeno que
está na raiz do distanciamento entre rodoviaristas e planejadores: o desprezo
comum,a boa parte dos discursos técnicos adotados pela gestão governamental – e
portanto política – do sistema, chegando-se a sugerir a fiscalização técnica da
política de transporte0.

Os artigos citados são unânimes ao estabelecer que a crise ou colapso do sistema


de transporte tem, nas empresas de ônibus e na omissão do “poder público, os
principais responsáveis”. Reconhece-se, também, a necessidade de organizar,
sobre novas bases, o sistema de transporte, defendendo a racionalização técnica, a
integração intermodal e metropolitana, é curioso perceber como o transporte
informal desperta pouca atenção, apesar de coincidir, temporalmente, com um

0 Jornal do Brasil 22/09/1996


0 Ver, também, O Globo, 28/10/1997; Jornal do Brasil, 05/11/1996
0 Jornal do Brasil, 05/11/1996b
0 O Globo 24/09/1997
0 O Globo 24/09/1997
0 Destaco que se fala de gestão técnica e não democrática.
pico nas lutas pela legalização dos serviços de vans entre agosto e outubro de
1997 (ver gráfico 1).

III.2.a. O Lugar do Transporte Informal

A primeira referência a vans encontrada em editoriais, artigos assinados e


reportagens a notáveis, data de 09/05/96, quando o presidente do Metrô, Álvaro
Santos, defendeu a legalização das vans como alternativa para melhorar o sistema
viário da cidade e propôs a integração do serviço com o metrô, sendo respaldado
pelo engenheiro Fernando Mac Dowell0, que se manifestou tecnicamente
favorável às vans “que, como o metrô, são um tipo de transporte que nivela por
cima. A única diferença é que os furgões não atingem a massa”0.

O uso de vans corresponde àquilo que parece ser desejável para o sistema de
transporte, a criação de um serviço intermediário entre ônibus e taxis, capaz de
atender à classe média0.

Dentre os maiores defensores do serviço por vans destaca-se Sérgio Blassiano 0.


Considera que a van ocupa um segmento intermediário entre ônibus e taxi. O seu
surgimento seria resultado da oferta de veículos importados que constitui uma
opção para mercado de trabalho; da péssima qualidade do serviço comercial e da
busca de uma alternativa por parte dos usuários. Seria importante que atuassem de
forma integrada e não concorressem com o sistema existente. Para isto “o poder
concedente deve planejar de forma estratégica os diferentes sistemas disponíveis”.

As vans mostrar-se-iam como alternativa potencial para o transporte casa-


trabalho-casa, como alimentadores de sistemas de maior capacidade e apresentam
vantagens para a metrópole e para os usuários já que diminuem o número de
carros; o tempo de viagem; o tempo de espera; o uso de combustível, diminuindo,
também, a poluição atmosférica e sonora.

O argumento contrário sustentou que as vans significariam livre concorrência e


deterioração do sistema, ao final. Alinham-se, nesta perspectiva, os governos
municipal e estadual e a equipe técnica da área de transporte. Assim Paulo Correia

0 Primeiro presidente do Metrô, nos anos 70 e professor da Escola de Guerra.


0 Diante dessas declarações o prefeito César Maia manifestou-se contra “Não se justifica a entrada das vans no
mercado de táxis (..) A cidade está bem servida”
0 Esta proposta estava posta já desde 1989.
0 Jornal do Brasil, 19/09/1997
da Rocha (Vice-governador do Estado)0 afirmava que os problemas introduzidos
pelas reivindicações da legalização do transporte informal - eram resultado da
“ausência de um plano racional capaz de suportar a demanda crescente que
privilegiou o transporte por ônibus”. O resultado seria “o seu crescimento
desorganizado, com a degradação do espaço público e de seu deficiente sistema de
transporte urbano”0.

A atividade de vans e kombis era associada, neste caso, ao crescimento periférico.


Seria uma reedição, sob novas bases técnicas, de antigos conhecidos dos cariocas:
“ônibus piratas” e “ táxis bandalhas”. A solução, como nos casos anteriores,
deveria passar0 pela: “retomada dos investimentos nos transportes coletivos de
grande capacidade com o chamamento à participação da iniciativa privada no
processo de concessão” e a “criação da Agência Metropolitana de Transportes”,
obtendo “um efetivo controle dos poderes concedentes, estadual e municipal,
sobre a frota de ônibus quanto a sua manutenção, principalmente (...) na
freqüência em horário noturno e finais de semana e feriados”. A agência
metropolitana, funcionaria como uma a ouvidora, promovendo uma
“regulamentação homogênea para toda a RMRJ”.

Mais uma vez percebe-se que é comum a todos os participantes do debate,


independentemente da posição tomada em relação ao transporte informal, a
afirmação de que é preciso o ordenamento do sistema, sua integração, bem como
o aumento da velocidade de circulação. Tudo isto, somente seria possível pela
renovação do planejamento de modo a dar limites ao crescimento desorganizado
da metrópole, reordenando-a.

III.2.b. Objetivos do Planejar e do Ordenar

Resta aprofundar um último ponto deste debate: qual é o objetivo do


ordenamento. Percebe-se que há sentidos implícitos mas à primeira vista, trata-se
de uma pergunta com resposta aparentemente óbvia, a análise permite identificar,
contudo, colocações significativas.

0 O Globo, 06/08/1997
0 O Globo, 28/10/1997
0 Alguns remetem-se, ainda, aos lotações, proibidos na década de 60.
Para o sociólogo Alberto Rabaça, o ordenamento seria necessário para alcançar o
0
desenvolvimento urbano. Já para o jornalista Sírio Boccanera o estímulo ao
transporte público significaria atingir o padrão de modernidade internacional 0. Já
para o escritor Ricardo Cravo Alvin era preciso atingir confiabilidade nos
transportes coletivos. Isto significa: limpeza, segurança, conforto e pontualidade,
que caracteriza os “países civilizados” e agrega, “isto é o que parecem não
entender os cabecinhas de bagre de nossos políticos0”.

Qual é o sentido da modernização ou da civilização ou mesmo do


desenvolvimento urbano? A única resposta é dada por Geddel Vieira Lima líder do
PMDB na Câmara dos Deputados(PMDB-BA) referindo-se ao transportes de
carga nacionais. Para ele, é “inadmissível que continuemos a descuidar de nossa
rede de transportes, se quisermos integrar o conjunto dos países desenvolvidos”.
“Em um mundo onde a eficiência é fundamental no processo competitivo, realizar
uma tarefa por um custo maior que o razoável onera diretamente o bolso do
contribuinte/consumidor”. O problema, no Brasil, consistiria, então, em que “os
custos de transporte são maiores do que o necessário”. Portanto, modernizar
significa eliminar o “custo Brasil”0.

Modernização, civilização e desenvolvimento urbano significam eficiência. E


eficiência quer dizer diminuir custos. Estendendo o reducionismo econômico,
significa ter confiabilidade, que em outros termos, significa diminuir o tempo de
circulação e de acesso0.

III.2.c. Fim do Segundo Momento


O segundo período parece encerrar-se com a apresentação pública do RioBus 0,
apresentado como um “ambicioso plano” para “reduzir o número de linhas em
operação, encurtar o tempo das viagens e tornar menos selvagens os
engarrafamentos”. O ordenamento seria obtido pela “ criação de corredores
expressos, pistas seletivas e vias segregadas” por onde circulariam linhas troncais
e pelo “fim da sobreposição de linhas com origens, destinos e trajetos

0 O Globo, 27/10/1997.
0 O Globo, 27/06/1998
0 O Globo, 16/04/1998
0 O Globo, 04/03/1999
0 Retomarei o sentido destes termos no próximo capítulo.
0 O Globo 06/06/1999
semelhantes. A partir das linhas troncais far-se-iam baldeações. Além disto previa-
se a utilização da catraca eletrônica nos veículos. A introdução de linhas
experimentais estava prevista para 2000 e a consolidação para o ano seguintes0 e
futura extensção à toda a região metropolitana.

Por dois motivos, é possível pensar que este período finda com as eleições
municipais de 2000. Primeiro, a partir de então o transporte informal passa a ser
legalizado sendo este, o único motivo de debate. E, segundo, a incorporação nos
discursos de campanha de vários aspectos, consensuais do debate anterior. O
ordenamento e racionalização do sistema, o planejamento e gestão metropolitana e
integração tarifária constituíam objetivos compartilhados pela maioria dos
candidatos (como ilustra o quadro 2)

Quadro 2

Tipos de Propostas dos Candidatos à Prefeitura Municipal


do Rio de Janeiro - 2000
Natureza da proposta Conde C. Maia Brizola Benedita R. C. Total
Coelho
Articulação metropolitana do planejamento 1 1 1 3
Ordenamento e racionalização do sistema, 1 1 2
Extensão do metrô 1 1 1 3
Tornar o trem metrô 1 1 2
Integração do sistema de transporte 1 1 1 3
(Metrô- (Tarifária)
ônibus)
Tarifa única 1 1
Novas Vias expressa 1 1
Transporte escolar Gratuito 1 1
Fim de pedágio 1 1
Transferência da rodoviária 1 1
Fonte: O Globo e Jornal do Brasil/ Elaboração própria

As coincidências vêm, contudo, marcadas de nuanças. Sendo possível, distinguir


os candidatos segundo seu empenho maior nas obras ou no ordenamento (para
aprofundar ver anexo quadro 1).

III.3. Terceiro Período: legalização das vans

Com o triunfo de César Maia no segundo turno das eleições municipais, houve
uma súbita reviravolta. As ações em torno da racionalização do sistema de
transportes perdem importância, juntamente com o seu projeto-símbolo: o

0 Em 2000 o subsecretário de transportes do Estado do Rio, Albuino Azevedo manifestou a necessidade de


estendê-lo à Região Metropolitana.
RioBus. As prioridades apontadas pelo Secretário Municipal de Transportes são:
sistema integrado com cartões interligados; melhoria do acesso à Barra da Tijuca e
diminuição do preço dos pedágios da Linha Amarela 0. Mas, o Prefeito, honrando
compromissos de campanha, não explicitados nas propostas, passa a legalizar,
com rapidez, o transporte por vans e kombis.

Essa atitude recebeu duras críticas. Em editorial, o Jornal do Brasil recorda que
são necessários transportes de massa e que a liberação das vans e das kombis
redundaria no aumento do tráfego nas ruas. Assim, não seriam uma solução, já
que nenhuma cidade civilizada do mundo têm 0. A outra crítica advém, meses mais
tarde, do Presidente do Sindicato das Empresas de Ônibus, advertindo que o
resultado da legalização será o colapso do sistema de ônibus0.

O esclarecimento do governo municipal foi no sentido de informar que não se


tratava de legalização e, sim, de um processo de ordenamento e de progressiva de
regularização, visando não apenas a integração de uma modalidade existente mas,
também, de eliminar a corrupção impedindo a sua operação e controle pela Polícia
Militar (desmilitarização)0

Independentemente das acusações de negligência empresarial havia uma


valorização – geral - do papel que vans e kombis desempenhavam no transporte.
Tratar-se-ia de uma alternativa para a classe média.

A partir daí os transportes saíram de cena, pelo menos em sua leitura como um
problema, retornando, apenas esporadicamente aos jornais, sem que seja pensado
o seu alcance metropolitano.

IV. Conclusões

A análise dos editoriais, dos artigos assinados e das reportagens com notáveis
debatendo a problemática do trânsito e dos transportes - tal como registrados nos
jornais, entre 1993 e 2001 - aponta para um fato singular: estão ausentes do debate
os principais agentes do drama urbano. Operadores de transporte, usuários
coletivo, motoristas de táxis, ônibus e automóveis desaparecem de cena, sendo

0 Jornal do Brasil, 12/11/2000


0 Jornal do Brasil, 12/12/200
0 O Globo, 02/06/2001
0 Jornal do Brasil, 13/12/2000
representados por técnicos que, como pesquisadores ou homens públicos,
interpretam, com termos próprios a vida e os problemas metropolitanos.
Por outro lado, a periodização dos debates revela que não é no foro formado pelos
jornais, que ocorrem as mudanças urbanas que constituem as agendas de
discussão político- administrativas. Os termos em que é formulado o problema
dos transpores, do tráfego obedecem a decisões de ordem política. A decisão de
privatizar o sistema de transporte federal e estadual, o surgimento do transporte
informal e sua legalização, o abandono do RioBus, o preterimento do Rio de
Janeiro como sede das Olimpíadas 2004 são fatos alheios à técnica e ao
planejamento.
Contudo, na concepção dos técnicos, todos os problemas explicam-se pela falta de
planejamento e de investimento, sendo a solução apontada é o ordenamento do
tráfego. Pode-se identificar diferenças no sentido do que seja planificar ou
planejar. Para alguns trata-se de planejamento estratégico, enquanto para outros,
de planejamento integrado de todo o sistema. Ainda outros, ainda, priorizam o
transporte de massas ou abertura de vias.
Em comum, nota-se um certo ressentimento dos técnicos em relação aos políticos,
que tomam, de fato, as decisões, desrespeitando a expectativa de pleno controle
técnico do sistema de transportes0. A tentativa de buscar o culpado estende-se bem
além de políticos (cabecinhas de bagre), seriam, também, os maus empresários, a
indústria automobilística e a deficiência cultural.
Tantos culpados são responsáveis pela crise de mobilidade da metrópole que
diminui os tempos de circulação. A solução e o objetivo comum compartilhado,
seria alcançar o ordenamento, de modo a aumentar a mobilidade e acessibilidade –
entendidos como diminuição dos tempos de viagem a certas áreas da metrópole,
especificamente à Barra da Tijuca. A promoção dessa mobilidade é concebida
como um ato modernizador cujo sentido último seria eliminar o custo Brasil.

0 Fato notório no caso da decisão de regulamentar o transporte informal. Os que regulamentaram o transporte
informal forma os mesmos que a meados dos 90 os reprimiram.
Capítulo 5
O Campo dos Transportes

I Introdução
Os editoriais e as opiniões de notáveis sobre o problema do transporte e o tráfego
no Rio de Janeiro, elevam a reflexão a um grau de sofisticação maior. Apresentam
a esfera técnica, do planejamento, da racionalização sistêmica, da proposição de
modelos de desenvolvimento e padrões de eficiência para os sistemas de
circulação (urbana e nacional), onde se produz o saber e o discurso sobre a
circulação legítima, e as necessidades dos atores hegemônicos são
instrumentalizadas e promovidas.

No Brasil, essa reflexão encontra-se institucionalizada na Associação Nacional de


Transportes Públicos (ANTP). Apresenta-se como uma “entidade civil criada em
1977, voltada ao setor de transporte público e do trânsito urbano do Brasil” com o
objetivo de “desenvolver e difundir conhecimentos visando seu contínuo
aprimoramento” e “possui mais de 270 associados, entre órgãos públicos -
gestores de transporte público e de trânsito -, empresas operadoras públicas e
privadas, sindicatos patronais e de empregados, fabricantes e prestadores de
serviço, consultores e universidades e representa, no Brasil, a União Internacional
de Transportes Públicos (UITP), órgão consultor das Organizações das Nações
Unidas (ONU), com sede em Bruxelas, na Bélgica”0.

Deste foro e da Associação Nacional de Empresários do Transportes Urbanos


(NTU) -, filiada à ANTP - parte o maior número de publicações que abordam a
problemática do transporte urbano, aprofundando e elaborando de forma
sistemática os diagnósticos e argumentos acionados pelos especialistas citados, no
capítulo anterior. Em tais estudos encontra–se, entretanto, pouca reflexão sobre os
transportes informais0, questão abordada, principalmente, pela NTU e por alguns
pesquisadores da Engenharia de Transportes. Mesmo assim, a ANTP desempenha
um importante papel na configuração do campo: fixa o horizonte da circulação
desejável e estabelece um consenso - mínimo - quanto aos problemas e soluções,
as metas e os ideais a atingir e os procedimentos adequados ao transporte e ao
tráfego.

0 ANTP, 2002. p. 1
0 Tendo produzido apenas um estudo sobre o tema em 1998, enquanto a NTU produz um relatório anual a partir
de 1996.
2

Neste capítulo procederei, então, à exposição dos principais argumentos acionados


em relação ao tema, para, num segundo momento, analisarei as informações,
buscando identificar as linhas mestras que organizam a análise, diagnósticos e
formas de intervenção, assim como verificarei o lugar e importância ocupada
nesta reflexão, pelos transportes informais.

II. O Transporte e seus Desafios

II. 1. O diagnóstico

Segundo o diagnóstico da ANTP, o problema atual do transporte, no Brasil,


decorre da adoção de um modelo inadequado, centrado no transporte rodoviário 0.
As políticas de estruturação urbana e regional, a partir da II Guerra Mundial,
teriam privilegiado a expansão rodoviária, o transporte individual e, em
conseqüência, a indústria automobilística, o que teria provocado o
“desbalanceamento no transporte de pessoas e mercadorias”0, condições desiguais
de acessibilidade e mobilidade e efeitos negativos “nos campos energético e
ambiental”. Afirma-se que o crescimento de transporte rodoviário encarece os
transportes, pelo uso de combustível fóssil, pelas oscilações do preço do petróleo,
pela diminuição da velocidade média de circulação - devido a saturação das vias -
e provoca o aumento da poluição atmosférica, sonora e visual0.

Apenas um artigo de Vasconcellos0(2000), permite reconhecer que se trata de uma


distribuição desigual e injusta – denominada pelo autor de iniqüidade - de
acessibilidade e mobilidade, cujas conseqüências e causas possuem dimensões
políticas, sociais, técnicas, tecnológicas, econômicas, operacionais e ambientais.

Iniqüidade Política: As decisões políticas que pesam no planejamento são


tomadas de acordo aos interesses da elite sem “garantir uma representatividade
democrática dos interesses conflitantes de classes, privilegiam as classes médias e
sua relação simbiótica com o automóvel”0.

Iniqüidade Social: Corresponde à distribuição desigual do tempo de acesso ao


transporte, do tempo de espera, do tempo no veículo, do tempo despendido até o

0 ANTP, 2000. p. 2. Agregar referências aos muitos outros autores que tocam nesse assunto
0 ANTP,, 2000. p.2
0 Quanto à distribuição desigual de mobilidade e acessibilidade de pessoas, os documentos não esclarecem um
sentido preciso além daquelas que os termos transparecem.
0 Vice-presidente adjunto da ANTP, entre 1998 -2000.
0 Vasconcellos, 1996. p. 155
3

destino final e das condições de conforto. Tudo isto, resulta na diminuição do


tempo para realização de outras atividades.

Iniqüidade Técnica: Refere-se á inadequação das técnicas com relação às


características locais.

Iniqüidade Tecnológica: Significa que a inovação tecnológica ocorre


comprometida com o automóvel.

Iniqüidade Econômica: A crise fiscal do Estado impossibilita o apoio aos


transportes públicos.

Iniqüidade lnstitucional: Conflito entre as agências encarregadas do transporte e


do trânsito nas escalas estadual e municipal.

Iniqüidade Operacional: Dificuldade de manter uma oferta regular de transporte


público capaz de atender a todas as necessidades da população.

Iniqüidade Ambiental: Trata-se da degradação da qualidade de vida, pelo uso de


combustíveis fósseis e perda de espaço para pedestres, pela poluição sonora e pela
congestão das ruas ocasionada por elevado número de automóveis.

As iniqüidades ou desigualdades provocadas pelo modelo rodoviarista surgem e


desenvolvem-se pela interação conjugada das elites, da indústria automobilística,
das empresas de transporte, da ação conflitante dos governos estaduais e
municipais e se traduzem na distribuição desigual da mobilidade e acessibilidade.
Correspondem à elite e às classes médias o maior conforto e o gasto de menor
tempo nas viagens e, aos pobres0, a menor disponibilidade de tempo livre e piores
condições de conforto e segurança.

A superação do modelo é crucial não apenas para o alcance de a justiça ou


equidade social, mas, também, para que o País acompanhe os patamares
contemporâneos de modernidade, na medida que o transporte urbano constituiria
um entrave ao desenvolvimento sócio-econômico. Os problemas de tráfego e
transportes impediriam as grandes cidades de cumprir os requisitos
contemporâneos “de eficiência e competitividade que caracterizam as mudanças

0 Uso o termo pobres por referência às classes médias e à elite. Mas os textos não falam de pobres se não de
classes conflitantes, conceito que não saberia definir.
4

econômicas regionais (Mercosul) e mundiais”, gerando “deseconomias de grande


impacto” e constituindo um “fator importante do custo Brasil”0.

A transformação da conjuntura atual deveria vir, então, pela “coordenação das


ações de planejamento urbano, transporte e trânsito e a constituição de uma
Política Nacional de Transporte Urbano, que atenda os requisitos de
descentralização, representatividade e abertura para a sociedade 0”, enfrentando: 1)
os conflitos de poder entre os três níveis de governo nas cidades e das áreas
metropolitanas; 2) a crise fiscal do Estado, o distanciamento do governo federal e
a precariedade financeira da maioria dos estados e municípios e 3) tendência de
reprodução dos mesmos problemas das metrópoles “nas cidades médias em prazo
relativamente curto”, o que conduziria a “congestionamentos crônicos, queda da
mobilidade e da acessibilidade, degradação das condições ambientais e altos
índices de acidentes de trânsito0”.

Em suma, os documentos da ANTP consideram que “a permanência do modelo


atual é incompatível não apenas com uma melhor qualidade de vida em uma
sociedade verdadeiramente democrática, mas como preparação do país para novas
condições de competição econômica em escala global”0. Estes documentos
apresentam como horizonte e meta uma sociedade capaz de conjugar, sem
conflitos, democracia, equidade social, eficiência e competitividade econômica.

II. 2. Propostas

Para além do diagnóstico, as considerações da ANTP destinam-se a “propor


medidas efetivas de reorganização de nossas cidades e dos seus sistemas de
transporte urbano”, de modo a “garantir melhores condições de deslocamento de
pessoas e mercadorias”, preparando as cidades brasileiras para um novo patamar
de eficiência “utilizando todos os recursos institucionais, técnicos e econômicos
disponíveis”0.

Tanto no plano estratégico quanto nos aspectos econômico e social, esta garantia
deveria, segundo a Associação, ser considerada um objetivo nacional 0 e pautar-se
nos seguintes princípios:
0 ANTP, 2000. p. 2
0 ANTP, 2000. p. 2
0 ANTP, 2000. p. 3
0 ANTP, 2000. p. 3
0 ANTP, 2000. p. 3
5

1) O transporte público e o trânsito devem ser de responsabilidade do Estado.


Numa sociedade democrática, requeriria “discussão transparente e ampla de
soluções”. Quer dizer, o Estado deveria abrir-se para a sociedade e usuários “para
discutir as leis e a tomada de decisões”, legitimando-as entre os "indivíduos e
entidades públicas e privadas”0.

2) A acessibilidade proporcionada pelos sistemas de transporte deveria ser


democrática, já que a cidade conforma um ambiente de uso coletivo. Portanto, o
sistema viário deveria priorizar a dimensão humana, em detrimento do transporte
individual motorizado, o que facilitaria a circulação de pedestres, de ciclistas e de
“meios de transporte público coletivo, especialmente os ônibus”.0

3) A formação de um novo modelo ou padrão de desenvolvimento deveria ser


participativo. Ou seja, o Estado precisaria incentivar novas formas de participação
da iniciativa privada e da sociedade no planejamento, financiamento e
acompanhamento dos projetos e investimentos.
Portanto, meios pautados nesses princípios, deveriam visar, ademais, 1) garantir
melhores condições de transporte, segurança e acessibilidade para realização das
atividades necessárias à vida moderna e a uma melhor qualidade de vida; 2)
alcançar uma rede de transportes integrada e eficiente, que priorize “os meios
coletivos no uso do sistema viário” e, com isso, “maior eficiência urbana”; 3) e
melhorar a qualidade ambiental.

A redução dos problemas e o desenho de um espaço de circulação com mais


qualidade e eficiência, requereriam a ação conjunta no desenvolvimento urbano,
transporte e trânsito0.

1) Quanto ao planejamento urbano (ou desenvolvimento urbano):

 os municípios deveriam controlar, efetivamente, o uso e a ocupação do


solo.

 Os projetos de desenvolvimento urbano, transporte e trânsito nos


municípios e nas regiões metropolitanas devem ser coordenados.

0 Neste sentido, a ANTP propôs, recentemente, o Projeto Transporte Humano, cujo objetivo principal é sugerir
formas de reorganização do espaço urbano e do transporte urbano no pais.(Lançado em solenidade no Palácio do
Planalto, com a presença do Presidente da República, em Maio de 1997).
0 ANTP, 2000. p.4
0 ANTP, 2000. p.4
0 ANTP, 2000. p.4
6

 Deveriam ser controlados os pólos geradores de tráfego mediante regras e


fiscalização em relação ao comércio e instalações que tenham efeitos sobre os
transportes e o tráfego.
Haveria que preservar o patrimônio histórico e arquitetônico das cidades:
2) Quanto ao transporte público0:
 o desenvolvimento futuro das cidades brasileiras deveria ter como única
alternativa o transporte público (coletivo, licitado e concedido pelo Estado). O que
exigiria políticas que lhe dêem prioridade à reconquista da confiança no sistema
de transporte público.

 Para isto, há que melhorar a qualidade dos serviços mediante


aprimoramento tecnológico dos veículos e da capacitação dos operadores no que
concerne ao gerenciamento e atendimento: cobertura física e temporal, integração,
e informação ao usuário.

 Seria preciso aumentar a eficiência da operação pela delimitação do espaço


viário e criação de condições adequadas de trânsito (adoção de faixas e vias
exclusivas, apoiadas por sistemas de sinalização e controle eficientes).

 Reduzir os custos e garantir de tarifas suportáveis.

 Conquistar novo público.

 Permitir a participação da iniciativa privada e a participação da sociedade.

3) Os grandes desafios do Trânsito

 A municipalização do trânsito, aparelhando as prefeituras para a


coordenação dos esforços para

 reduzir os acidentes de trânsito;

 diminuir os índices de poluição atmosférica;

 melhorar a qualidade de vida nas cidades, dando prioridade ao tráfego de


pedestres, ciclistas e transporte público, impondo de restrições à velocidade e ao
uso dos automóveis em áreas residenciais e de uso coletivo.

II.3. Medidas a Implementar

0 ANTP, 2000. p. 4
7

Essas propostas deveriam ser concretizadas através de uma série de medadas


específicas, que apresento de forma resumida no quadro 1

Quadro 1
Principais Metas Sugeridas

objetivo curto prazo (2 anos) medio prazo (5 anos)


qualidade  75% dos ônibus entre 20 e 25  95% dos ônibus entre 20 e 25 km/h
km/h
 75% dos usuários com tempo de  95% dos usuários com tempo de
acesso a pé até 5 minutos acesso a pé até 5 minutos
 75% dos usuários em  95% dos usuários em
ônibus/trem/metrô com máximo de 6 ônibus/trem/metrô com máximo de 6
pass/m2 no pico pass/m2 no pico
segurança  reduzir mortes no trânsito em  reduzir mortes no trânsito em 40%
25%
 implantar vistoria de segurança  implantar vistoria de segurança
em 80% da frota em 100% da frota
meio ambiente  reduzir emissão total de 10% para  reduzir emissão total de 25% para
co e de 25% para mp co e 40% para mp
 implantar vistoria de emissão em  implantar vistoria de emissão em
80% da frota 100% da frota
urbanismo  50% cidades medias e grandes  70% cidades medias e grandes
com leis de controle de pólos geradores com leis de controle de pólos geradores
circulação  reduzir 15% nível de  reduzir 25% nível de
congestionamento vias principais das congestionamento vias principais das
cidades grandes cidades grandes
energia  redução de 15% na energia  redução de 25% na energia
consumida nas viagens motorizadas consumida nas viagens motorizadas
gestão  capacitar 25% dos técnicos das  capacitar 40% dos técnicos das
cidades medias e grandes cidades médias e grandes
Fonte: ANTP, 2000. p. 13.

Como medidas relativas à melhoria da qualidade de vida, fixa-se, como metas


aumentar a velocidade média dos ônibus de 20 para 25Km/h; distribuir e
interconectar os serviços de modo a que não seja necessário caminhar mais que 5
minutos para chegar aos pontos de acesso, ou seja, promover a mobilidade e a
acessibilidade. Por outro lado, deveria-se reduzir a lotação média, nos horários de
pico, para 6 passageiros por metro quadrado. Quanto à segurança, cuidar-se-ia de
diminuir as mortes no trânsito, o que implicaria não só fiscalizar o cumprimento
do Código Brasileiro de Transito, quanto realizar intervenções urbanísticas que
melhorassem a sinalização, garantindo a circulação de pedestres e ciclistas. Em
8

relação ao meio ambiente, seria necessário minimizar a emissão de gás carbônico,


o que implicaria um crescente cuidado por parte das empresas, incorporando
técnicas não poluentes e o aumento da fiscalização. A respeito do urbanismo
objetiva-se legislar e fazer cumprir medidas que obriguem a levar em conta, na
fase do projeto, a localização de equipamentos coletivos e seus efeitos sobre o
tráfego, o transporte e o uso do solo. Quanto à circulação deveria-se de ampliar a
fluidez, reduzindo progressivamente o nível de congestionamento0. No que tange
à energia, busca-se restringir a quantidade gasta o que implicaria em avanços
tecnológicos. E finalmente, quanto à gestão, aspira-se à capacitação de técnicos da
administração municipal para que possam fiscalizar e planejar adequadamente.

II.4. Promoção da Mobilidade e da Competitividade Urbanas: modelo


proposto

A proposta da ANTP, tal como esboçada estabelece um quadro ideal que incorpora
todos os parâmetros contemporâneos para o alcance de modernidade: ideais
democráticos, competitividade e correção ambiental, atribuindo prioridade ao uso
do sistema viário à circulação de pedestres, aos ciclistas e aos meios de transporte
público coletivo, especialmente os ônibus. O modelo proposto, articulado em
torno de um projeto denominado Transporte Humano, busca conciliar eqüidade
social com requisitos econômicos exigidos das metrópoles e ainda, promover a
eficiência e a competitividade. Para atingir estes objetivos, deveria ser
implementada uma Política Nacional de Transporte Urbano capaz de superar os
obstáculos políticos, econômicos e urbanísticos. O Estado seria seu promotor.

Essa política fundar-se-ia em princípios que permitiriam afirmar que o trânsito e


os transportes são responsabilidade do Estado, cujas decisões devem ser tomadas
de forma democrática e participativa - com a anuência de usuários, entidades
públicas e empresas - visando promover a democratização do acesso. Para que
este propósito for atingido, medidas relativas ao planejamento, ao transporte e ao
trânsito deveriam der conjugadas. Primeiramente, teria que haver coordenação das
normas metropolitanas, eliminando conflitos entre governos municipais, estaduais
e o governo federal. No que se refere ao transportes público – concessão do poder
público - deveria se conquistar a confiança dos usuários diminuindo a presença do
transporte individual. Finalmente, quanto ao trânsito, tratar-se-ia da capacitação

0 Sem que seja possível identificar que medidas possibilitariam isto.


9

do corpo técnico das prefeituras para que, pudessem promover melhorias nas
condições de circulação.

Esta proposta0 alimenta a expectativa de que bastaria a adoção de um modelo


adequado, com uma boa base de sustentação, técnica e instrumental para
solucionar problemas, para alcançar justiça social e competitividade econômica A
associação não aborda, entretanto, a problemática do transporte informal nem
tampouco define o lugar que ocupariam na proposta de consenso ou
“concertación0” proposta. Mais ainda, não considera qualquer relacionamento
destes com a meta de aumentar e democratizar a acessibilidade e mobilidade.

III. O Transporte Informal

Como já foi dito, existem três fontes de estudos sobre o transporte informal: a
Associação Nacional de Empresários de Transporte Urbano (NTU), a Associação
Nacional de Transportes Públicos (ANTP), além da fonte representada por
trabalhos acadêmicos, dentre os quais destacarei os do Laboratório de Transportes
do PET/COPPE/UFRJ. Trato, antes, do lugar atribuído ao informal na questão dos
transportes, considerando o quadro de referência antes traçado. Em seguida,
abordo a solução institucional proposta0.

III.1. A Definição de Transporte Informal

Nos textos das associações usam-se indistintamente os termos informal, ilegal,


clandestino ou alternativo. Como adverti na introdução, não se trata de uma
conceituação neutra. O termo usado denota a postura favorável ou contrária do
autor ou autores. De todo modo, os textos começam, invariavelmente, pela
definição dos transportes.
Assim, por exemplo, o enquadramento realizado pela NTU toma, como referência
positiva os transportes regulares chamados convencionais. Contrapondo a estes o
transporte ilegal que, por sua vez, seria diferente dos alternativos regulamentados:
estes últimos, contudo, seriam informais. (Ver quadro 2). Já os estudos mais

0 A proposta responsabiliza as elites e as classes médias, pela consolidação de um padrão de estruturação urbana
injusto, que privilegia o transporte individual, beneficiando, principalmente a indústria automobilística e que, a
longo prazo, afetou a qualidade de vida urbana, diminuindo a mobilidade, tornando o conforto e a acessibilidade
um bem escasso.
0 Nome dado nos anos 80 às políticas de redemocratização que buscavam fundar-se no consenso negociado
entre facções políticas rivais.
0 Ver Balassiano, 1999a; 1999b; Barbosa, 2002, Ayres, 2002; NTU, 1999, 2000, 2002; ANTP, 1998; 2002; NTU
& ANTP, 1997.
10

favoráveis aos “alternativos” buscam racionalizar e explicar as diferentes


nomeações em voga (ver quadro 3). Todavia não atingem o objetivo de nomeá-los
em termos precisos e inequívocos, pois, consideram a ilegalidade como
denominador comum dos transportes informais.

Quadro 2
Critérios Utilizados pela NTU
Denominação Descrição
Transporte convencional Transporte regular, operado por empresas legalmente
constituídas, com controle e regulamentação pública.
Transporte ilegal Transporte de passageiros não autorizado ou não
regulamentado pelo poder público.
Transporte alternativo regulamentado Transporte de passageiros, não convencional, autorizado ou
regulamentado pelo poder público, operado geralmente por
autônomos
Transporte informal Transporte ilegal + transporte alternativo regulamentado.
Fonte: NTU, 2002

Quadro 3
Denominação do Transporte Informal
Elemento Referencial Léxico e Expressões Mais Significados e observações
utilizadas
Veículo Besta, Kombi.. Modelo de uso corrente
Perua, van, microônibus Categoria de veículo
Operação Alternativo, opcional, de Quando se trata de uma opção
vizinhança face o serviço regular
Gestão Informal Quando a atividade não é
registrada
Artesanal Quando o empreendedor
envolve-se
Clandestino, ilegal, Irregular, Pirata Quando é feito às ocultas
Regulamentação Desregulamentado, não Quando a atividade não
regulamnetado regulamentada ou não há
obrigação de serviço contínuo
Fonte: Santos, 2000 (apud. Araújo, 2001. p.39 e Barbosa, 2002. p.18)

Para os empresários, os informais “são um serviço de transporte coletivo de


passageiros em áreas urbanas, realizado sem autorização ou concessão dos
poderes concedentes locais”. A mesma definição aplica-se aos casos em que “o
Estado cria um sistema legal de exceção, através do qual um informal pode
continuar a desenvolver suas atividades, mesmo sem atingir um estatuto legal
equivalente ao dos que gozam da proteção e dos benefícios de todo o sistema
legal”, quando a regulamentação concede permissões a operadores individuais,
11

que inviabiliza, na prática, o princípio da concessão. São, portanto, “informais


regulamentados0”.
Já para Barboza (2002. p.2), os transportes em questão são alternativos ilegais.
Alternativos, por que podem tornar-se uma opção se adequadamente
regulamentados, e ilegais por encontrarem-se à margem do sistema vigente.
Contudo, esta modalidade não constitui um fenômeno novo. Existe em diversas
cidades brasileiras e em muitos países, sem estarem restritos aos em
desenvolvimento. Em verdade, o pomo da discórdia entre técnicos favoráveis à
regulamentação dos “alternativos” e as associações empresariais e técnicas é
constituído pelas medidas a tomar: regulamentá-los não seria um modo de
desregular? Qual medida seria mais eficaz: regulamentação ou repressão?

III.2.Regulamentar X Desregulamentar

Para a ANTP e a NTU, o sistema brasileiro de transporte urbano enquadra-se no


“regime de concorrência monopólica” - monopólio territorial do serviço - e no
princípio da concessão pública, devido à existência de “fortes externalidades que
não podem ser manejadas por mecanismos de mercado. Sendo assim, os processos
de desregulamentação dos transportes informais tenderão a formar lacunas (de
fiscalização e controle) e ao rebaixamento da qualidade do serviço” 0. Com a
desregulamentação arriscar-se-ia a perder as conquistas já alcançadas pelo sistema
de brasileiro, capaz de operar o transporte de massas com alto volume de
transporte0.

A irrupção do transporte informal introduziria a “concorrência desleal num regime


de mercado regulamentado”. Ou seja, a “presença do setor informal acentua as
pressões para que ocorra a desregulamentação do transporte público, (...) através
do apelo inicial de sua suposta eficiência e conveniência para os usuários”.
Portanto, a implementação de políticas favoráveis ao transporte informal teria
impacto negativo.
Já os defensores do transporte alternativo, observam a inadequação da oposição
regular x desregular. Restringiria a compreensão do tema, impedindo a
identificação de “elementos que possibilitam a entrada de novos operadores de

0 NTU, 1997: p. 19
0 ANTP, 2000. p. 17; NTU, 1997. p. 20
0 O que segundo o NTU provaria o elevado grau de eficiência no transporte coletivo por ônibus
12

transporte, elementos referentes à oferta dos serviços, tipos de equipamentos,


quantificação dos serviços0” e dificultando que a legislação incorpore
procedimentos e critérios que induzam à diminuição do custo e ao aumento da
qualidade e da produtividade0.

A polêmica em torno da desregulamentação esconderia, então, que “poder público


e operadores vivem em ambiente avesso à competição e habituado à eficiência e
qualidades limitadas”. E que as deficiências do sistema são anteriores à
“legislação e tendem a permanecer0”, na medida que a regulamentação brasileira
não teria instrumentos capazes de incorporar as especificidades locais e diferentes
formas de circular.

A confrontação de ambas as posturas mostra que a disputa não é, de fato, entre os


favoráveis à regulamentação contra os partidários da desregulamentação, senão
que se dividem entre os que defendem o critério do monopólio territorial e os que
sustentam que a concorrência, devidamente regulamentada, seria positiva para o
sistema de transportes. Todos concordam que “para que regulamentação tenha
sucesso deve-se buscar a máxima eficiência e bem-estar social” 0. Diferem,
entretanto, na concepção de como a legislação afeta o sistema de transportes. Para
uns a legislação deveria preservar o princípio da iniciativa estatal e o monopólio
territorial, o que significaria que cabe ao Estado descobrir as carências, licitar e
conceder linhas a uma empresa para operar determinado território, sem
concorrência. Enquanto, para outros, a legislação, além, de regulamentar, no
sentido anterior, deveria ser um instrumento de aperfeiçoamento, mediante
concorrência controlada e desestímulo ao monopólio.

III.3. Alcance do Fenômeno: distribuição à escala nacional e composição

Os estudos datados dos primeiros anos da década de 90 não consideram o


transporte informal como um real problema. Constatam o crescimento das
periferias nas várias cidades brasileiras e percebem o transporte por kombis como
alternativa de mobilidade para trabalhadores de baixa renda0. Anos mais tarde e
apesar do seu crescimento, o fenômeno continuou sendo visto como restrito a

0 Laboratório de Transportes Públicos, 2001


0 Barboza, 2002. p. 5
0 Barboza, 2002. p. 4
0 Orrico et Alii., 1996. p. 30
0 Santos,1993; Dourado,1995; NTU, 1993
13

alguns municípios brasileiros0 (como pode ser visto no quadro 4). Essa percepção
mudou, apenas, recentemente. De fato, no último estudo da NTU (2002),
constatou-se, com alarme, que o seu crescimento tinha atingido um terço dos
sistemas municipais de transportes, sendo, em muitos casos, legalizado. “A
proliferação do transporte informal de passageiros tornou-se um problema de
alcance nacional, independente do tamanho, características sócio-econômicas ou
localização geográfica das cidades0”. Quanto aos veículos, apontam que “as vans
e peruas são os veículos mais utilizados no transporte ilegal de passageiros nas
cidades brasileiras - atingindo metade das capitais - seguidas pelos mototáxis
(32%), ônibus piratas (24%) e automóveis (20%)0”.

A operação seria efetuada, principalmente, por proprietários individuais que, em


50% dos municípios, organizam-se em cooperativas. Tais estudos destacam,
ademais, o alto grau de organização destas cooperativas que, na metade das
cidades pesquisadas, articulavam-se em entidades de classe tendendo a criar uma
entidade representativa em na escala nacional0.

Quanto à luta pela regulamentação, afirma a NTU (2002) que não passa de
tentativas de "obter um ‘salvo conduto’ que evite que seus veículos sejam
apreendidos nas operações de fiscalização"0. Não haveria interesse “na
organização, no controle e no estabelecimento de regras por parte do poder
público0”, já que diminuiriam a sua rentabilidade.

Em suma, os serviços favoreceriam a concorrência desleal já que não se


submeteriam às regras, não pagariam impostos nem encargos trabalhistas sobre a
mão-de-obra empregada; concentrar-se-iam nas rotas e horários de maior
demanda, disputando passageiros com os ônibus sem respeitar a gratuidade e
descontos legais, aceitando os bilhetes e vales utilizados no sistema regular para
troca posterior no mercado paralelo.

0 ) Pelo levantamento da NTU & ANTP (1997. p. 24), poucas capitais brasileiras não apresentam ocorrência
significativa de transporte clandestino: Belo Horizonte, Cuiabá, Campo Grande, Palmas, Curitiba, Porto Alegre,
Salvador, Maceió, Florianópolis, Boa Vista, Porto Velho e Belém. No restante das capitais, pelo menos uma
modalidade de transporte ilegal apresenta ocorrência significativa, na maioria delas com a perda de controle da
situação por parte do poder público.
0 NTU; 2002. p. 1
0 NTU; 2002. p. 2
0 NTU & ANTP, 1997. p. 27
0 As lutas seriam mais freqüentes entre os operadores de transportes por vans ou microônibus, sendo
regulamentadas em cerca de 37% dos municípios, seguidos pelo serviço de mototáxi com 19%.
0 NTU, 2002. p. 4
14

As tentativas de eliminação do serviço, fazendo uso da mera repressão,


esbarrariam no descontentamento e solidariedade dos usuários. Esse respaldo,
proporciona aos informais, peso eleitoral e o apoio de políticos nas Câmaras e
Assembléias legislativas, chegando a eleger vereadores, deputados estaduais e
federais que defendem a legalização0.

0 Barboza (2002. p. 3) ;. NTU & ANTP, (1997, p 44)


15

Quadro 4

Capitais e Cidades de Porte Médio


Transporte Informal: Ocorrência e Legalidade por Tipos
Maio /1997
Municípios Ocorrência Sistema
(expressiva) legalizado
Vans1 Ônibus Micro2 Moto3 Vans1 Ônibus Micro2 M
Aracaju
Belém X X X
Belo Horizonte 0 0 0 0
Boa Vista X
Brasília X X X X X X
Campo Grande X X
Cuiabá4 0 0 0 0
Curitiba 0 0 0 0
Fortaleza X X X * X
Goiânia 0 0 0 0 * *
João Pessoa X
Macapá X *
Maceió X
Manaus X X
Natal X X X
Palmas X X
Porto Alegre5 0 0 0 0
Porto Velho 0 0 0 0
Recife X
Rio Branco X X
Rio de Janeiro X X X
Salvador X X
São Luís X
São Paulo X X X X
Teresina X X
Vitória X
Campo Grande X
Contagem 0 0 0 0
Diadema X
Duque de Caxias X X
Feira de Santana X X X X
Guarulhos X
Jabotão dos Guararapes X X
Joinvile X X X
Juiz de Fora X
Londrina X
Mauá X
Niterói X X
Piracicaba 0 0 0 0
Santo André X
São Bernardo do Campo X X
São Gonçalo X
São João de Meriti X
São José dos Campos X X
Uberlândia X
(0000)Indicamunicípiosondenãoháocorrênciadaqualquertipo (2)microônibus
(*)indicarnunicipiosondeháprocessodelegalizaçãonaCâmara (3moto-táxi
(1)Kombi,vanetáxi-lotação (4)Omesmoregulamentohabilitaakombi/vaneomicroônibus
(5)Háocorrênciadekombis/vans/mibuseclandesstinosnaRegiãoMetropolitana
(6)informaçõesreferem-seàRegiãoMetropolitana
Fonte: PesquisasobreTransporteInformalnasCidadesBrasileiras–NTU.
16

III.4. Causas da Expansão do Transporte Informal


A NTU aponta um conjunto de causas e fatores como responsáveis pela
emergência e expansão do transporte informal nas cidades brasileiras. Quanto às
causas apontam-se, primeiro, as relativas às deficiência do sistema público
regular, como a alteração do uso do solo nas cidades e peculiaridades locais e
regionais. Em segundo, constam causas econômicas. Quanto aos fatores, estes são,
tanto sócio-econômicos quanto político-institucionais.

III.4.a. Causas da Deficiências dos Sistemas de Transporte Público Regular

III.4.a.1. Alteração do Uso e Ocupação do Solo

As constantes alterações na ocupação da cidade levariam, no médio e longo prazo,


a mudanças significativas nos padrões de deslocamento da população.
Influenciariam também, o aumento da taxa de motorização e o crescimento
populacional. Seriam os principais fatores responsáveis pelo

 aumento do tempo de espera;

 baixa velocidade operacional0;

 superlotação dos veículos;

 excesso de transbordos;

 longas distâncias a pé;

 grande concentração de veículos em corredores e centros comerciais;

 itinerários inadequados e tempo de viagem elevado;

 falta de ligações entre bairros e regiões adjacentes;

 política de preços distorcida;

 veículos inadequados para determinados tipos de serviço, etc0.

Ademais, a padronização dos veículos e das tarifas criaria obstáculos no


atendimento de demandas específicas. Há incapacidade de adaptação do sistema à

0 Segundo as pesquisas de opinião realizada pela NTU (2000) entre os usuários o principal motivo "é o menor
tempo de viagem". (em 90% das cidades) Já os gestores apontam a "Baixa velocidade operacional do sistema
regular, falta de fiscalização, desemprego e freqüência baixa dos ônibus".
0 NTU, 2002. p. 10
17

demandas diferenciadas. Há, portanto, rigidez na prestação de serviços que, num


ambiente competitivo, levaria à perda de posição no mercado0.

III.4.a.2. Peculiaridades Regionais


Os empresários de ônibus assinalam, também que a exploração de alguns nichos
de mercado exigiria a consideração de idiossincrasias locais. Em muitos casos,
influenciaria a disponibilidade de ar condicionado nos veículos e em outros,
contaria a aparência do motorista, o tratamento por ele dispensado aos
passageiros, além da sensação de segurança oferecida contra roubos e assaltos0.

III.4.a. 3. Agravantes

Como agravantes são apontados muitos ítens já citados, como a “centralização do


processo de planejamento operacional”. Como elemento novo, cabe citar que, para
a NTU, esta centralização gera um grande “distanciamento entre os agentes
planejadores e o mercado de transporte em si, dificultando a tarefa de
identificação das necessidades da demanda e atrasando bastante as respostas de
mercado necessárias”. A resposta seria dada pelo transporte informal. Além disso,
o “excesso de rigidez dos contratos de concessão não permite que as empresas
operadoras atuem diretamente na solução de problemas detectados em sua área de
atuação0”.
Ao mesmo tempo, acrescenta-se que a “falta de estrutura de fiscalização que
grande parte das cidades apresenta0” já que “o poder público não possui estrutura
mínima para realizar uma fiscalização efetiva”, sendo, este, um dos argumentos
mais usado no reconhecimento das causas.

Quanto aos usuários, não seriam as suas necessidades mas “o desejo de status”
que “favorece o transporte informal por vans”, já que "o automóvel é um símbolo
importante de status, o ônibus estaria se afastando muito do padrão de serviço que
faz o usuário sentir-se socialmente valorizado e diferenciado0”.

0 Em mercados fechados essa estratégica funcionava muito bem, mas em mercados competitivos a experiência
mostra que essa política é problemática, simplesmente porque os grupos insatisfeitos procuram outro meio de
transporte
0 NTU, 2002. p. 11; NTU & ANTP, 1997. p.40
0 NTU, 2002. p. 11
0 NTU, 2002. p. 11; NTU, 2000. p.53. NTU & ANTP, 1997. p.37
0 Estes aspectos sustentam a crítica que deverá ser trabalhada à frente
18

III.4. b. Causas Econômicas


Segundo o mesmo documento0, além da própria rentabilidade do negócio, haveria
interesse da indústria automobilística na desregulamentação do transporte, posto
que visa aumentar o número de veículos e não a eficiência do transporte. Para
atingir esse objetivo é fundamental que o perfil da frota mude, passando a adotar
veículos de menor capacidade.

A introdução de diversos tipos de vans e peruas, com estratégias de vendas


bastante diversificadas, concentrava-se, basicamente, em serviços de carga e em
pequenos nichos de transporte de passageiros, como o transporte escolar, por
exemplo. Além de agressividade nas vendas, houve incentivo à formação de
cooperativas de transporte informal, principalmente por parte dos fabricantes
asiáticos. Fazia parte da estratégia de venda, o estímulo a proliferação dos
serviços de transporte por vans em todo o país. A mídia teria sido, também,
bastante utilizada pelos importadores de vans, inclusive com merchandising em
novelas de televisão mostrando que o transporte por vans seria mais moderno e
eficiente do que o convencional0.

III.4.c. Fatores Sócio-econômicos

Os primeiros estudos da NTU sobre os transportes informais apontavam como


responsáveis pelo seu crescimento nos anos 90, além da falta de fiscalização, o
desemprego0. Contudo, posteriormente0, reviram o alcance explicativo do
desemprego, apontando também as transformações do mercado de trabalho e,
especificamente a tercialização0 e a informalização do mercado de trabalho. A
primeira seria responsável pela alteração dos padrões de viagens, enquanto a
segunda constituiria uma opção de trabalho para aqueles que saíram do mercado
formal pela enxugamento das empresas e através dos Planos de Demissão
Voluntária (PDVs), uma vez que “o transporte de passageiros não exige muita

0 NTU, 2002. p. 9
0 Barbosa (2002. p. 21 -22), não fala de causas mas de fatores do crescimento e expansão do transporte informal.
Seriam a) a abertura econômica dos anos 90; b) descoberta de um ramo de atividade para investir capitais
advindos de planos de demissão voluntária e a crise de emprego; c) descoberta de um nicho de mercado e d) a
aposta de pequenos investidores neste mercado.
0 NTU & ANTP, 1997
0 NTU, 2002
0 Crescimento do setor terciário da economia.
19

especialização e o capital empregado no transporte informal é relativamente


baixo, há um grande interesse por parte dessas pessoas de entrarem no mercado0”.

III.4.d. Fatores político-institucionais


Os empresários afirmam que as lutas pela regulamentação teriam permitido, aos
informais, visibilidade e peso político, de modo que candidato, que se elegeram
com a ajuda dos informais, tiveram acesso a propaganda e transporte de eleitores.
Apontam, também, que o mesmo apoio teria sido responsável pela redução da
repressão e da fiscalização. Este posicionamento se apoiaria na constatação das
empresas de ônibus terem uma imagem negativa junto à população o que
influencia a mídia0.

III.4. e. Causas e fatores?

É importante registrar que não é clara a diferença entre causas e fatores feita pela
NTU. Se por causa entende-se “aquele ou aquilo que faz que uma coisa exista”,
ou ainda, “aquilo ou aquele que determina um acontecimento”; e por fator, ‘aquele
que faz ou executa uma coisa” ou “aquilo que contribui para um resultado”0, é
possível considerar que os fatores constituiriam as condições determinantes da
transformação, enquanto as causas referir-se-iam ao sujeito da ação que produz o
transporte informal.
Recapitulando: quanto às causas originadas na urbanização, reconhecem-se, a
constante transformação do uso do solo. Associa-se, a estas causas, a rigidez
institucional que dificulta a adaptação, por parte das empresas, às transformações
urbanas, bem como, às idiossincrasias locais. Somar-se-ia, a isto, a indústria
automobilística que, interessada em seu próprio crescimento, priorizaria a venda
de veículos, em detrimento da eficiência do transporte. A tercialização teria
contribuído, por sua vez, para radicalizar as transformações urbanas, já que
modificaria os padrões de deslocamentos. A informalização, por sua vez, teria
levado à formação do mercado de trabalho contribuído com o crescimento da
oferta de transporte informal.

Tudo isto, insisto, constituem fatores e não causas na medida explica-se o que
contribuiu para o processo mas não se esclarece quem são os sujeitos da

0 NTU, 2002. p 12
0 NTU, 2002. p 12; NTU& ANTP, 1997. p. 45
0 Holanda, 1989. p. 137 e 291
20

transformação, nem explicam como se tornaram uma força política influente.

III.4.f. Conseqüências do transporte informal


A síntese dos dois conjuntos de estudos permite enumerar vantagens e
desvantagens do transporte informal.

Quanto às vantagens, são citados aspectos ausentes das reflexões da ANTP e


NTU. Barbosa (2002. p. 24 –25) salienta:

 a diversificação das rotas: comprovam a viabilidade econômica das vans e


permitem a introdução do minibus no transporte regular;

 a redução de tarifas ;

 o aumento da mobilidade (redução do tempo de viagem; flexibilidade para


embarque/desembarque; um serviço quase expresso, com menos paradas, melhor
nível de conforto, maior segurança e aumento de status associado ao
deslocamento);

 opera em horários sem transporte;

 formação de um mercado ágil na satisfação de demandas novas e


reprimidas.

E as desvantagens0 consistiriam em:

 aumento dos riscos de acidentes (e segurança pública);

 concentração em trechos e horários mais lucrativos;

 perda de passageiros pelo setor formal;

 desobediência à legislação trabalhista;

 aumento do congestionamento e

 da poluição sonora e atmosférica.

Barbosa (2002) agrega, ademais as seguintes práticas negativas:

infrações de trânsito - concorrer por passageiros nos pontos de ônibus, direção


perigosa e falta de manutenção dos veículos -.

0 NTU & ANTP, 1997. p 46


21

 comportamentos inadequados: a comercialização de linhas; cobrança por


pontos; pagamento de propinas para liberação dos veículos ou garantia de
impunidade;

 rivalidades territoriais

 a solução armada de pendências;

 bloqueio de ruas e reações violentas que marcam as lutas pela legalização0.

III.4.g. Transportes Informais e Modelo Rodoviarista

Nos estudos técnicos, independentemente da denominação, os transportes por


vans e kombis revelam-se uma modalidade de transporte que, de marginal e
periférica, tornou-se volumosa e difundida em grande parte das cidades
brasileiras. Sem alterar o “modelo rodoviarista” - padrão histórico da circulação
urbana. Difundiram, no sistema, o uso de veículos de baixa capacidade que tanto
podem atingir locais de difícil acesso quanto atender demandas mais específicas,
de conforto, flexibilidade e velocidade. Provariam, também, a sua viabilidade
econômica, através de uma camada de pequenos proprietários organizados em
cooperativas e em entidades de classe bastante poderosas.

Quanto à concorrência desleal e à deterioração das qualidades do sistema de


transportes, a afirmação não é provada. Trata-se de um argumento próprio de
interesses conflitantes, originado do discurso de empresários que exploram o
transporte por ônibus. De qualquer maneira, se defensores e detratores coadunam-
se na defesa de um sistema capaz de conciliar bem-estar e eficiência e na
necessidade de planejar o sistema – como foi demonstrado através as propostas da
ANTP – nada permite afirmar que esteja ocorrendo uma desregulamentação.

Por outro lado, a proliferação de transportes informais chama a atenção para a


enorme complexidade de causas e condições operantes nas cidades. As causas
atribuídas pela ANTP aos problemas de tráfego e transportes encontram-se no
surgimento e expansão dos transportes informais: a diminuição da velocidade de
circulação e conseqüentemente, aumento do tempo de viagem, articulados a
mudanças do uso do solo.

0 Barbosa, 2002. p. 22
22

O original, nesta formulação - como terei oportunidade de explicar nos capítulos


precedentes - é a introdução da indústria automobilística como importante agente
da inflexão e do desemprego e, também, das transformações do mercado de
trabalho. Este indústria teria estimulado a formação de um mercado para seus
veículos através da publicidade, encontrando terreno fértil na mão de obra
recentemente desempregada, portadora de certo capital e disposta a iniciar seu
próprio negócio. Apenas isto explicaria que, nas condições de circulação
existentes há longa data, aparecesse uma nova modalidade de transporte. Por outro
lado, chama a atenção o fato que, apesar da profunda oposição da ANTP ao
“modelo rodoviarista”, este continua vigente nas suas próprias propostas, já que
afirmam um modelo pautado no uso de ônibus, sem alterar, em essência, as
características do padrão de transporte urbano criticado.

IV. A Crítica

Os documentos que sustentam as linhas gerais da exposição, realizada neste


capítulo conformam um campo específico, técnico institucional, no qual o
transporte é tematizado. Mobilidade, acessibilidade, competitividade econômica,
estruturação urbana, necessidades humanas, mercado e regulamentação seriam as
facetas da vida urbana que a engenharia de transporte deveria racionalizar. O seu
jargão técnico constitui a linguagem obrigatória de quem atua nesta área. No
Brasil, a ANTP constrói o campo dos transportes.

A Associação Nacional de Transportes Públicos autodefine-se como uma


organização da sociedade civil, atuante na proposição de soluções para os
problemas do transporte urbano0. No entanto, segundo Costa (1997), o termo,
sociedade civil define a existência de uma esfera distinta do mercado e do Estado
e apoia-se na proposição de novas bases institucionais que permitam equilibrar,
igualdade e liberdade e rearticular o público e o privado de modo a diminuir
tensões históricas. Assim sendo, deve esperar-se que a ANTP seja uma
organização, altamente, representativa da sociedade que exclua empresários e
governos.

A composição deste foro revela, contudo, que trata-se de uma entidade pára-
governamental e pára-empresarial, da que estão excluídos os usuários; os
sindicatos de empregados do transporte, os operadores de transportes informais ;
0 ANTP 2000
23

os movimentos que lutam pela reforma urbana: estes seriam sujeitos sem voz. A
análise do modelo proposto, quando referido ao transporte informal, revela
também a existência de contradições e ocultamentos.

IV.1. Composição do Campo

A observação da composição interna da associação revela que a maioria das


instituições filiadas pertence à esfera estatal 142 (48%) de 295; 122 (41,35%)
prefeituras e instituições municipais ligadas ao planejamento, regulação e
fiscalização do transportes; 6 (2,03%) da escala estadual, sem envolvimento direto
do governo. Estas últimas são instituições reguladoras e planejadoras; 4 (1,35%)
instituições metropolitanas; 2 (0,67%) instituições nacionais - o BNDS e o
GEIPOT – com o seu equivalente francês como instituição internacional.

São filiados, ainda, 120 (40,67%) associações empresariais e empresas Destas, 8


(2,71%) são empresas de ônibus que operam na escala municipal e metropolitana;
43 (14,57) são prestadoras de serviços técnicos ( com destaque para a consultoria
internacional Allien, Booz & Hamilton), seguidas, em importância numérica, por
sindicatos e associações de empresários de transporte de ônibus, que totalizam 18
(6,10%), seguidos pelas empresas montadoras de veículos e carrocerias.

As instituições de pesquisa e ensino são 27 (9,00%) do total de instituições


filiadas. A participação dos operadores diretos é extremamente reduzida, com
apenas 4 instituições de trabalhadores - 2 de escala nacional e 2 municipais.
Quanto aos usuários, é ínfima a participação: são duas instituições, uma estadual e
outra municipal. Aparentemente, apenas participa da entidade uma organização de
informais, que atua no fretamento.
24

Gráfico 1
Membros da ANTP por Tipo de Instituição

Instituição de Classe
1% Instituição de usuários
1%
Instituição de Ensino e
Pesquisa
9%

Instituição Estatal
48%

Instituição Empresarial
41%

Fonte: ANTP, 2002, elaboração própria

Os usuários são representados, apenas por 1 entidade0. Por outro lado, tampouco
participam os operadores de transporte informal com alto nível de organização
municipais, estaduais e nacional. Em verdade, há uma entidade filiada, o
desconhecido Sindicato das Cooperativas de Permissionários da Modalidade
"bairro a bairro" de Transporte Coletivo Alternativo de São Paulo.
O monopólio do discurso técnico na ANTP - que reúne as principais instituições
que desenvolvem, reconhecem e executam a técnica de transporte - autoriza a
tratar a ANTP como um campo produtor do discurso legítimo e. ao seu saber
como “discurso competente” que, segundo Chaui, é um

"( ) discurso que pode ser proferido, ouvido e aceito como


verdadeiro ou autorizado porque perdeu os laços com o lugar e o
tempo de origem. (...) Discurso instituído (...) no qual seus
interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o
direito de falar e ouvir. (.) A região onde melhor se determina e onde
melhor se efetua o discurso competente é a burocracia das sociedades
contemporâneas e a idéia de organização se encontra na base do
fenômeno” (Chauí,1997. p. 7).

0 A exceção de algumas entidades fantasmas que de vez em quando aparecem nos jornais, cuja existência, no
entanto não passa da menção das opiniões de seu presidente, geralmente um advogado em cujo escritório
funciona a entidade.
25

Em suma, os termos democráticos e modernizantes adotados pela ANTP


encobrem não apenas a existência de um campo produtor do discurso legítimo
sobre os transportes que opera na modelagem das práticas padrão de circulação,
acessibilidade e mobilidade que visa a diminuição dos tempos de deslocamento;
aumento da flexibilidade de movimentos do sistema de transporte e da eficiência e
competitividade urbanas0.

0 Apagando com o braço o que se escreve com a mão.


Tabela 1 -Instituições Membros da ANTP Segundo o Tipo de Atividade que
Exercem no Sistema de Transporte
Intituição Estatal Escala Número Instituição Estatal Escala Número
Agência de planejamento Internacional 1 Empresa de prestadora de Serviços Aéreos Internacional 1
Banco de Fomento Nacional 1 Empresa de Consuloria econômica Internacional 1
Agência de Planejamento de transportes Nacional 1 Empresa de transporte aéreo SI 1
Agência regulamentadora de transporte ferroviário Nacional 1 Empresa automobilística Internacional 5
Agência Regulamentadora Estadual 4 Empresa automobilística Nacional 1
Agência regulamentadora de estradas Estadual 3 Empresa de Carrocerias Nacional 2
Agência de desenvolvimento urbano Estadual 1 Empresa de trasnporte ferroviário Nacional 1
Agência de promoção habitacional Estadual 1 Empeitera Nacional 1
Agência de desenvolvimento Urbano SI 1 Empresa de trasnportes ferroviários Metropolitana 6
Agência de palnejamento Metropolitana 1 Empreas de transporte Metropolitana 4
Agencia de Desenvolvimento Urbano Muncipal 11 Empresa de transporte Municipal 24
Agência de engenharia de táfego Municipal 5 Empresa de transporte SI 1
Agência Regulamentadora Metropolitana 3 Empresa de transporte metroviário Municipal 4
Prefeituras Municipal 50 Empresa de serviços técnicos SI 43
Agência de Planejamento Municipal 2 Subtotal 95
Agência estatística Muncipal 1 Total 120
Agência regulamentadora ferroviária Municipal 2
Agência Regulamentadora Municipal 53 Instituição de ensino e pesquisa Escala Número
Total 142 Associação de instituições de Ensino e pesquisa Nacional 1
Instituição de ensino e pesquisa Estadual 26
Instituição Empresarial Escala Número Total 27
Associação de empresas de trasnporte Nacional 1
Associação de Fabricantes de carrocerias para ônibus Nacional 1 Instituições de Classe Escala Número
Associação de produtores ferroviários Nacional 1 Confederação dos trablhadores de transportes Nacional 1
Associação de empresários Regional nacional 1 Sindicato de trab. equipamentos ferroviários Nacional 1
Associação de empresários Regional estadual 1 Associação Profissional Engenheiros Municipal 1
Associação de empresas de Transporte Metropolitana 2 Sindicato de trab. metroviários Municipal 1
Associação de empresas de Transporte Estadual 2 Total 4
Associação de empresas de Transporte Muncipal 2
Sindicato de empresas Estadual 5 Instituições de Usuários Escala Número
Sindicato de empresas Metropolitana 1 Associação de Usuários Estadual 1
Sindicato de empresas Municipal 7 Associação usuários Municipal 1
Sindicato de cooperativas de alternativos Municipal 1 Total 2
Sub total 25 Total de Membros 295
Fonte: ANTP. 2002, Tabulação PrópriaIV.2. Principais Metas Sugeridas
O caráter modelar e institucional do debate sobre os transportes é claramente
perceptível quando se atenta para o fato de que não se discute, apenas, o
reconhecimento ou desconhecimento dos informais senão que se avalia quanto os
informais ajustam-se ao modelo de desenvolvimento portador de todos os símbolos
de modernidade: aumento da qualidade de vida; sociedade “verdadeiramente”
democrática e competição econômica na escala global. Como realizar esta difícil
tarefa?

A implementação proposta apresenta-se como democrática e aberta. Entretanto,


quando o discurso é contraposto à composição da ANTP suspeita-se de que trate-se
de um exercício de retórica.

Esta suspeita aumenta quando são observadas às metas para ação imediata
sintetizado no quadro 10. Estas metas promovem apenas promover a mobilidade
como pode ser observado na tabela 2.

Tabela 2
Caracterização das Medidas Propostas

Aspecto Número
Qualidade de Vida 3
Mobilidade 3
Fiscalização 2
Acessibilidade 1
Eficiência técnica 2
Total 11
Fonte: ANTP, 2002 – elaboração própria

O aumento da qualidade de vida dependeria de processos díspares, tais como


segurança no tráfego e nos veículos e da diminuição da poluição ambiental e sonora.
Quanto à diminuição da taxa de lotação para seis pessoas por metro quadrado indica

0 Classifiquei como qualidade de vida as medidas para a melhora da qualidade do ar, pela diminuição da lotação e
conseqüentemente o aumento da comodidade, diminuição de mortes por acidentes. As medidas referentes ao
aumento ou melhora da qualidade da fiscalização, denominei fiscalização da eficiência técnica. As destinadas à
diminuição de congestionamentos e aumento da fluidez rotulei como aumento da mobilidade. E as que visam
aumentar a economia e capacitação técnicas chamei aumentar a eficiência técnica. (Ver anexo quadro2).
que não se objetiva viagens com todos os passageiros sentados. No que concerne ao
aumento da eficiência técnica e da fiscalização, trata-se dos instrumentos necessários
para produzir maior mobilidade e acessibilidade, que têm em comum a minimização
do tempo de deslocamento. Concluo, então, que o modelo em questão teria como
objetivo,sobretudo, aumentar a velocidade do sistema.

IV.3. Limites à Compreensão do Fenômeno

As duas visões diferenciadas, aqui apresentadas, sobre o transporte informal usam,


como referência um ideal pré-estabelecido inspirado no modelo da ANTP, em relação
ao qual elencam vantagens e desvantagens. Assim, a NTU considera a autorização do
transporte informal desvantajosa, já que introduziria a desregulamentação de fato,
prejudicando o sistema existente e nivelando-o por baixo. Aqueles que tem uma
visão mais positiva do transporte informal afirmam que a polêmica em torno da
regulamentação é uma falsa questão, que esconderia a falta de preocupação com o
aprimoramento do serviço (acessibilidade e mobilidade).

Contudo, quando se trata de compreender as causas e condições que propiciaram o


crescimento e expansão dos transportes informais, as alternativas são bastante
limitadas. Restringe-se à compreensão de fenômenos sociais, à polêmica regular x
desregular, conduz a circunscrição do social à disputa entre estatismo e liberalismo, o
que simplifica ao extremo sua complexidade. Desconsidera-se a dinâmica do
informal, sua localização, seus agentes e as práticas sociais envolvidas.

Mesmo quando se recusam os termos da polêmica, a conceituação da atividade


guarda o mesmo viés. A adoção de uma noção de atividade informal como sinônimo
de irregularidade, ou de regularidade “espacial”, situa o debate dos transportes na
compreensão contemporânea de economia informal: informais ilegais ou informais
regulamentados são definidos com base numa idéia de atividade econômica com
estatuto jurídico0 menor, justificada pela deficiência do Estado como planejador ou
fiscalizador0.

No mesmo movimento, ao ser reduzida, a problemática à relação entre Estado e


empresas, não apenas simplifica-se o social, elimina-se a dimensão política do
Estado e recusa-se qualquer reflexão sobre o espaço. Assim, por exemplo, a NTU e a

0 Inspirado em De Soto, 1986.


0 NTU, 2000. p 12
ANTP0 reconhecem a presença de transportes informais em um número elevado de
cidades ( ver quadro 4). Não identifica, contudo, que estes municípios pertencem de
forma significativa a regiões metropolitanas.

Quadro 5
Presença de Transporte Informal -
Municípios por Regiões Metropolitanas
R. M. do Rio a R. M do R. M de Belo Outros
R. M São Paulo de Janeiro Recife Horizonte Capitais Capitais Capitais municipios

Feira de
São Paulo Rio de Janeiro Recife Belo Horizonte Aracaju Goiânia Palmas Santana
Jabotão dos
Diadema Niterói Guararapes Contagem Belém João Pessoa Porto Alegre Piracicaba

Santo André São Gonçalo Boa Vista Joinville Porto Velho Juiz de Fora
São João de
São Bernardo do Campo Merti Brasília Londrina Rio Branco Uberlândia
Duque de
Mauá Caxias Campo Grande Macapá Salvador

Guarulhos Cuiabá Maceió São Luís

Curitiba Manaus Teresina

Fortaleza Natal Vitória


Fonte: NTU, 1997 – Elaboração Própria

Estas análises, mesmo que reconheçam as transformações intra-urbanas,


desconhecem a dinâmica urbana, , concebida como expansão e, principalmente,
complexificação0. Reduz-se a urbanização ao crescimento populacional e, ainda, as
cidades aos municípios.

V. Conclusões

O saber técnico sobre os transportes construiu, em torno de suas organizações o


monopólio do conhecimento e do discurso legítimo sobre os transportes
metropolitanos. O discurso competente assume uma aparência democrática e
moderna, promotor do aumento da acessibilidade, da mobilidade e da qualidade de
vida nas metrópoles brasileiras através do aumento da fluidez e da diminuição dos
tempos de circulação de pessoas e mercadorias. Este discurso divulga e publicita,
verdadeiramente, as necessidades dos atores hegemônicos: a fluidez e a
competitividade.

0 NTU & ANTP, 1997. p.25


0 Como será mostrado no próximo capítulo.
Mesmo denunciando os limites do modelo de transportes, historicamente adotado, e,
reconhecendo que, no passado, não foram ouvidas as classes em confronto, o
discurso técnico excluiu, na prática, usuários, movimentos sociais urbanos e os
próprios operadores de transporte informal, apesar, destes, formarem grandes
organizações.

Neste discurso, a norma jurídica tende a ser apresentada como determinante única
das práticas sociais. Estigmatizando os transportes informais - concebidos como
solução inferior ao problema dos transportes oriundo das deficiências do
planejamento e do modelo de estruturação urbana, consolidados no passado - atribui
ao Estado um caráter monolítico que, sociologicamente, não possui e, funções
meramente administrativas omitindo e ocultando o caráter político do próprio
discurso.
Quanto aos determinantes econômicos ignoram que cada transformação no sistema
de transporte das metrópoles brasileiras, vincula-se, pelo menos desde aos anos 20,
às inflexões da indústria automobilística. Por outro lado, relacionam os transportes
informais ao desemprego de forma direta e linear. Mesmo quando são consideradas
as transformações do mercado de trabalho, este discurso, contenta-se em verificar a
existência de necessidades desatendidas e investidores à procura de investimentos
rentáveis. Com uma interpretação mecânica dos fatos que conduziram à emergência e
ao crescimento do transporte informal, não é possível vislumbrar os grupos, as
práticas e localização que o fizeram surgiu e se desenvolver e, principalmente, que
os tornou capazes de se constituírem em sujeitos sociais com capacidade para
questionar a circulação nas metrópoles brasileiras. O mesmo tipo de ocultamento
verifica-se em relação à dimensão espacial do fenômeno. Falta qualquer reflexão
desta dimensão, tanto na escala metropolitana quanto na intra-metropolitana, salvo
quando as metrópoles são lidas como recurso econômico das metrópoles.

Para apreender a natureza da disputa é preciso que se investigue os aspectos


desconsiderados que permanecem ocultos no campo dos transportes coletivos
conforme construído pelo discurso hegemônico: aspectos sociais, culturais,
econômicos e espaciais, constitutivos da “morfologia social” metropolitana. Cada um
destes aspectos será tratado em detalhes, nos capítulos seguintes.
Capítulo 6
Morfologia Urbana e Transporte Informal

I. Introdução

Os participantes do campo dos transportes reconhecem como urgente a


necessidade de aumentar a mobilidade e acessibilidade. Ambos conceitos recebem
definições diferentes conforme sejam tratados pelos membros da ANTP ou pelos
operadores do transporte informal. Na concepção institucional seriam viabilizadas
pelo ordenamento do tráfego e o aumento da confiabilidade do sistema de
transportes – com a conseqüente diminuição do custo Brasil - de modo a
possibilitar a concorrência num mundo globalizado.

Já em termos dos operadores de vans e kombis – que participam perifericamente


do debate - as deficiências ou falta de transporte de massas adequados à
locomoção urbana são fatores determinantes da sua própria existência, bem como
as transformações do mercado de trabalho e da necessidade de trabalhar. Para os
primeiros, a mobilidade e a acessibilidade devem levar à melhoria da fluidez
urbana; para outros, à satisfação das necessidades de seus habitantes.

Enquanto a concepção a primeira recorre a conceitos mais elaborados, a segunda


funda-se sobre a experiência vivida das condições de transporte da metrópole.
Ambas omitem, no entanto, qualquer reflexão sobre aspectos morfológicos
envolvidos na expansão e na consolidação dos transportes informais.

Acessibilidade e mobilidade são – segundo ensina a tradição – fenômenos,


necessariamente relacionados a toda transformação da circulação urbana.
Constituem, porém, pontos cegos da reflexão sobre a emergência e a consolidação
do transporte informal. Assim sendo, o objetivo deste capítulo é analisar ambos
fenômenos associados à expansão e à consolidação dos transportes por vans e
kombis na metrópole e no Estado do Rio de Janeiro nos anos 90.

Antes, faz-se necessário recordar a participação dos transportes informais no


processo de urbanização, identificando rupturas e continuidades. Considero que
tanto os problemas do transporte quanto a presença de informais são reveladoras
do crescimento e da diferenciação intrametropolitana, cujos antecedentes,
tendências e padrões podem ser descobertos mediante recurso a dados históricos.
2

Devo agregar que o reconhecimento da presença de transportes informais foi


possível por dois recursos metodológicos distintos. Para reconhecer problemas
anteriores ao fenômeno estudado, utilizei, como indícios as queixas publicadas
entre 1990 e julho de 1991 na coluna “Queixas do Dia” do Jornal O Dia. Já para
identificar a ocorrência e a distribuição de transportes informais recorri à
observação direta em diversos pontos da região metropolitana 0 entre setembro de
2000 e fevereiro de 2003.

II. Relevância Teórica

Como foi visto anteriormente, ao transporte e ao tráfego atribui-se grande


importância – como meios de circulação urbana. São considerados o “pulso da
cidade”0: “um instrumento essencial para determinar a evolução de uma
aglomeração”: sua complexidade mede-se por suas conexões 0; ou uma ferramenta
na produção do espaço que, como processo de trabalho, “articula território e
sociedade (...) resultado da divisão territorial do trabalho 0”. O transporte e o
tráfego constituem, então, um aspecto heurístico da realidade urbana.

A sua relevância remonta ao reconhecimento de que o próprio processo de


metropolização só foi possível pela implantação de sistemas de transportes
tecnicamente sofisticados e redes de comunicação e circulação que integram a
metrópole interna e externamente. Trata-se de condições econômicas que tornam a
metrópole centro da economia capitalista. Tais condições de acessibilidade são
fundamentais, não apenas para a formação da metrópole, mas, também, no que
concerne ao uso do solo: atividades econômicas e fins residenciais.

Quanto aos aspectos propriamente sociais, é importante lembrar que a


acessibilidade é considerada um dos aspectos determinantes na distribuição de
grupos e atividades no território urbano0. Mas, a mobilidade distribui-se
desigualmente em relação direta à renda, de modo que as distâncias sociais
tornam-se distâncias espaciais e os pobres urbanos podem, também, ser definidos
pela sua relativa imobilidade 0.
0 Segundo um método que, inspirado Malinowski (1978, p.27) denomino método de documentação estatística
por evidência concreta.
0 Burgess, op. Cit.
0 Castells, 1975
0 Gutiérrez, 1999 p. 13
0 Como foi visto na introdução.
0 Santos, 1990, p. 89
3

Na urbanização brasileira - e, de resto, latino-americana - predominou, ao longo


do século XX, o padrão centro - periferia 0. Localizaram-se nas áreas centrais e
consolidadas da metrópole os setores mais abastados da população, enquanto para
os pobres urbanos utilizam, foram destinados para fins residenciais, áreas cada vez
mais afastadas do centro metropolitano e dos sub-centros, de maneira que cada
expansão da metrópole, aumenta o tempo de viagem e o custo dos deslocamentos.

No caso das metrópoles brasileiras, este quadro parece ter-se agravado pela falta
de crescimento planificado do transporte de massas simultaneamente à ampliação
territorial. Os ônibus vêm a suprir esta carência, expandindo linhas até a fronteira
urbana. Assim, além do aumento dos tempos de viagem, do percurso e número de
conexões necessárias, cresceram o desconforto e a insegurança, devido à
superlotação e má conservação dos veículos0.

A distribuição desigual da acessibilidade e da mobilidade contribuiriam, então, na


definição tanto a condição periférica quanto da centralidade. Esta distinção pode
ser estabelecida, como ensina Santos (1978; 1990), pela acessibilidade física e
financeira do transporte. Isto é, pela relação entre localização da residência e a
produção, o comércio, a educação e o lazer; bem como pela organização do
sistema de transporte0. A localização sócio-espacial define-se, também pela
diferenciação física e simbólica, expressa na oposição entre transporte
coletivo/transporte individual0.

Por outro lado, é importante agregar que o saber relativo à relação entre transporte
e urbanização foi construído tendo como referência a cidade industrial, o que pode
limitar o seu alcance na atualidade, uma vez que as circunstâncias técnicas e
econômicas contemporâneas parecem alterar a escala e a composição interna da
urbanização, de forma que a própria vivência urbana se modifica, permitindo
esperar que a cidade decline em seu papel industrial e de âmbito vivencia do
encontro e da sociabilidade 0.

Contudo, se são evidentes a alteração e a complexidade crescentes da metrópole,


estas não parecem afetar a relação entre acessibilidade e rentabilidade. Ao

0 Lago, 2001 Pereira,1987. Barat (1974), denomina padrão dualista, Santos de expansão periférica.
0 Vasconcellos, 1996b. p. 16
0 Santos, 1978. p. 230; 1990, p. 89
0 Santos, 1990a, Vasconcellos, 1996b; 2000, Silva, 2000
0 Ciccolela, 1999, p. 3
4

contrário, a mobilidade e a acessibilidade continuam sendo recursos necessários


aos atores hegemônicos da economia urbana e quiçá mais importantes que no
passado, uma vez que a tem sido ampliado o papel da como espaço de valorização
do capital e, como lócus privilegiado da competitividade. Afinal, a fluidez e a
racionalidade são “axiomas fundamentais0”, capazes de gerar “um território global
onde os fluxos mundiais encontram suporte em certos pontos do espaço0”.

A incorporação das cidades à rede global de fluxos (re)significa os lugares,


redefinindo a cidade e a rede nacional e internacional na qual se insere. No seu
interior, tal incorporação, torna certos lugares “zonas de rentabilidade” e outras,
em zonas “opacas”0. A redefinição do espaço urbano, funcional às necessidades de
rentabilidade, ocorre transformando a circulação. Ocorreria, assim, a dualização0
e/ou fragmentação urbana já que junto a “novas classes médias apareceria uma
multidão de novos pobres”0, sem que exista a possibilidade de convivência e
integração nem na urbe nem na esfera política.

Tal situação, no caso específico do transporte, seria provocada pela


“reestruturação desde a oferta”0: possível pelo abandono da “concepção do
transporte como serviço público”, própria do denominado Estado Interventor. A
definição de políticas de transporte público rentáveis aprofunda a dualidade da
cidade, agravando os “fenômenos de marginalidade e de exclusão sócio-territorial
por diferenças de oferta, qualidade e preço0” e contribuindo, sobremaneira, para a
radicalização da segregação sócio-espacial.

O surgimento e a consolidação do transporte informal, realizado por vans e


kombis, comprovaria estes processos caso estivessem a relacionados à formação
de um novo marco institucional destinado a promover a fluidez e a racionalização
do espaço urbano: necessidades do capital num regime de acumulação flexível 0.
Se assim fosse as áreas de operação dos transportes informais atingiriam as áreas

0 Santos, 1999. p. 218


0 Santos, M. Apud. Gutiérrez, 1998
0 Santos, 1990a
0 Santos, 1990a. p. 16
0 Santos, M. 1990a.
0 Gutiérrez, 2000
0 Gutiérrez, 1998, p. 16.
0 Hoje: reorganização do capitalismo. ( Os contextos: fatos tiram o caráter hipotético de algumas a formações)
5

afetadas pela reestruturação urbana estimulado pela relocalização, redesenhando a


acessibilidade, a mobilidade e os pontos de convergência: as centralidades.

Por outro lado, grande parte dos estudos sobre a consolidação de um novo padrão
de urbanização fragmentada fixam sua atenção sobre novas formas de produção
residencial e a sua distribuição no território metropolitano. Tenta-se relacionar o
alcance e a dimensão dessas novas formas de habitar fragmentadas - fixa-se em
“micro-espaços privados, desconectados do seu entorno e conectados diretamente
aos centros comerciais e de serviços” - e “a expansão e consolidação do espaço
popular periférico e de renovação ou expansão de áreas centrais valorizadas,
reproduzindo o padrão dicotômico centro-periferia”0.

Tais estudos concluem que as “tendências demográficas, sócio-espaciais e


imobiliárias mais relevantes” levam à “expansão metropolitana e a reprodução do
espaço desigualmente integrado”0. Portanto a expansão ocorreria numa escala
maior afetando áreas diversas e com novos sentidos daqueles observados em
décadas anteriores.

A expansão globalizada-fragmentada da metrópole parece ocorrer


simultaneamente ao fenômeno da expansão da urbanização a uma escala nunca
antes concebida - explosão-implosão de Léfèbvre0 -. Alguns autores chegam a
sustentar que a urbanização mundial, ou urbanização difusa constitui, no caso
brasileiro, uma megalópole fragmentada que abrange as regiões metropolitanas de
São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, como sustenta Queiroga:

“A Megalópole constitui-se como entidade urbana específica, própria


do período e do meio técnico-científico-informacional. A megalópole
é um espaço heterogêneo e fragmentado, lócus de múltiplas
racionalidades e das múltiplas espacialidades e temporalidades.
Espaço por excelência das razões globais de dominação que,
entretanto, não anulam, aliás potencializam, pela diversidade,
densidade(proximidade) e especificidade, a razão comunicativa”
(Queiroga, 2001. p. 55).
Esta afirmação aponta para o fato da transformação intrametropolitana em curso
acompanharia uma expansão territorial intermetropolitana. Se assim for, é
possível esperar, com base na observação da metrópole do Rio de Janeiro, que a

0 Lago,2001, p. 1530
0 Lago,2001, p. 1537
0 Léfébvre, 2002. p. 26
6

expansão do transporte permita delimitar as áreas e os novos vetores da expansão


metropolitana.

No caso da Metrópole do Rio de Janeiro - segundo explica Pereira 0 (1987) - coube


à rede ferroviária constituir o vetor de expansão. Partindo de pontos urbanizados
nas estações, teria ocorrido, mais tarde o adensamento de ocupação. De modo que
a urbanização, já na década de 50 espraiava-se no território que constitui a atual
região metropolitana: de Santa Cruz até Venda das Pedras, em Itaboraí. Seguiria, a
expansão atual o mesmo padrão de extensão e adensamento?

Segundo Kralik, (1999) a extensão de uma cidade funcional corresponderia ao


raio máximo alcançado por um umbral de deslocamentos cotidianos inter-
juridicionais radiais, expresso pela existência de uma rede de transportes pautada,
por sua vez, na rentabilidade de serviços de transporte de passageiros de curta e
meia distâncias. Seria possível afirmar, com base neste critério, que o transporte
informal incorpora-se nesta funcionalidade? Se assim for, pode o informal mostrar
a extensão do processo de expansão urbana? Poderia o transporte informal indicar
as áreas de expansão futura da urbanização?

III Vetores de Urbanização

Para descrever a expansão indicada pelo transporte informal, parto da


caracterização elaborada por Pereira (1987), na década de 1980. Os vetores de
crescimento servirão como referência para avaliar rupturas e continuidades.
Segundo este autor, a expansão metropolitana do Rio de Janeiro seguiu cinco
vetores ou eixos.

Vetor I
“Avança entre as linhas ferroviárias da Central e auxiliar, partindo da
Zona Norte do Rio, no sentido dos municípios de Nova Iguaçu, São
João de Meriti, passando pela RAS do Méier e Anchieta, Madureira,
Nilópolis, Mesquita e Belford Roxo e Nova Iguaçu”. (Pereira, 1987. p.
27)

Vetor II
“Acompanha a linha da Leopoldina e a Avenida Brasil rumo a Duque
de Caxias, passando pela Penha e a Ilha do Governador. Os

0 Ver também, Villaça (2000, p.131)


7

principais subcentros comercias são Ramos, Penha, Duque de Caxias,


Imbarié e Piabetá. As indústrias da RMRJ localizam-se basicamente
ao longo desses dois vetores, seguindo os eixos das estradas de ferro
e a Avenida Brasil” (Ídem).

Vetor III
“Acompanha a linha da Central rumo a Campo Grande, passando
por Bangu, com ramificação secundária para Jacarepaguá. Os
principais subcentros comerciais são: Campo Grande, Bangu, Santa
Cruz e Itaguaí. Notam-se neste vetor os distritos industriais de Campo
Grande, Palmares, Paciência e Santa Cruz e o Porto de Sepetiba, no
município de Itaguaí, ao lado da área destinada à construção da
segunda unidade da Companhia Siderúrgica Nacional” (Ídem).

Vetor IV
“A Zona Sul em direção à Barra da Tijuca apresenta as maiores
densidades líquidas da RMRJ. Entretanto, este vetor ainda não
responde por uma parcela significativa do aumento da população do
município. Os principais subcentros localizam-se nas áreas de
ocupação mais antiga: Catete, Copacabana, Ipanema, Leblon,
Tijuca” (Ídem).

VetorV
“Avançando pelos municípios de Niterói e de São Gonçalo no sentido
nordeste, atinge a área central do município de Itaboraí e Venda das
Pedras. Indústrias localizam-se na Orla da Baia de Guanabara”
(Ídem).

Baseado em dados censitários de 1970 e 1980, Pereira0 afirma que o crescimento


metropolitano ocorria, naquele período, por adensamento e não por incorporação
de novas áreas.Apenas os vetores III e V tendiam a incorporar novas áreas,
respectivamente, Jacarepaguá, Campo Grande, Santa Cruz e Itaboraí.

Co relação aos vetores I e II observava


“(...) pouca diferença na área comprometida com a urbanização de
uma na outra; a incorporação de novas áreas parece ocorrer,
basicamente, em direção nordeste, rumo a Petrópolis e, menor escala
rumo a Magé. No Vetor III há ocupação de áreas cada vez maiores ao

0 Pereira, 1987, 30
8

longo do eixo ferroviário. Embora em 1959 a urbanização tivesse


atingido Santa Cruz e chegado à margem da Baia de Sepetiba,
existem inúmeras áreas não urbanizadas dentro das RAs que
compõem o vetor III. Além disso, o sub-setor que incorpora novas
áreas e em, 1980, estava em vias de unir-se ao vetor IV, que
representa basicamente a urbanização de São Conrado e da orla
litorânea da Barra de Tijuca até o Recréio dos Bandeirantes”
(Pereira, 1987. P. 30).
O vetor V apresenta duas sub-direções e em ambas nota-se a incorporação
expressiva de novas áreas: a primeira, e mais importante, em direção a São
Gonçalo e Itaboraí, apresenta taxas de crescimento ascendentes ao longo do
período. A expansão neste vetor, acompanha, bastante de perto, o eixo ferroviário
que parte de Niterói. A segunda sub-direção parte de Niterói no sentido de Maricá,
também apresentando taxas crescentes de expansão, embora tenha caído a sua
participação total ao longo do período.

Os vetores de expansão estabelecem parâmetros que permitem comparar


mudanças sócio-espaciais relativas ao crescimento e, também, à sua dinâmica
temporal0 mediante uma descrição não institucional mas, morfológica.

A utilidade explicativa desse critério verifica-se pela análise comparativa de dois


tipos de dados: registros de queixas relativas ao sistema de transportes nos jornais
e a observação direta da localização do serviço de transporte informal, seguida de
uma descrição do estado da urbanização observado. Antes, porém, é preciso
reconhecer as relações históricas entre urbanização e transporte informal.

IV. Crescimento Metropolitano e Transportes Informais

IV.1. Antecedentes históricos

Como foi visto no capítulo anterior, o transporte por vans ou kombis é


reconhecido pela NTU (1997. p. 11 e 45) como informal: “um serviço de
transporte coletivo de passageiros em áreas urbanas, realizado sem autorização ou
concessão dos poderes concedentes locais”. A mesma definição aplicar-se-ia aos
casos em que “o Estado cria um sistema legal de exceção, através do qual um
informal pode continuar a desenvolver suas atividades , mesmo sem atingir um
status legal equivalente ao dos que gozam da proteção e dos benefícios de todo o
sistema legal”. Estes seriam “informais regulamentados”.

0 Jardim (2002) confirma, por estudos posteriores, quese trata de mudanças na distribuição da população urbana.
9

A informalidade definida como ilegalidade ou precariedade institucional constitui


uma inflexão recente da velha questão do setor informal na economia 0. No sentido
clássico trata-se, sobretudo, de um fenômeno reconhecidamente econômico. O
setor informal estaria constituído por atividades econômicas efetuadas por
pequenas empresas pouco capitalizadas, técnica e organizacionalmente, e
precariamente desenvolvidas ou artesanais, assim como envolveria trabalhadores
autônomos e assalariados em condições precárias. Tal definição historicamente
datada é discutível, já que o informal não constitui um setor e, além disto, a
definição opera negativamente, por aquilo que não é 0.

Entretanto, se o informal é identificado como atividades concorrenciais


desenvolvidas por autônomos não muito capitalizados ou pequenos empresários
pode-se reconhecer a informalidade nos transportes do Rio de Janeiro como um
fenômeno constante e repetitivo, como uma breve análise histórica permite
reconhecer. Ao longo do século XX, houve dois momentos, que antecederam o
atual que proporcionaram grande visibilidade aos operadores informais.

Entre 1920-1940, o transporte urbano por ônibus foi iniciado, exatamente, como
uma atividade informal, quer se defina esta atividade como proposto pela NTU,
quer se adote a segunda definição. Pequenas empresas, de proprietários
estrangeiros, com modestas somas de capital acumuladas em atividades
comerciais, concorreram com a companhia de Carris, de propriedade da Light &
Power, companhia canadense que operava, em regime monopólico, os transportes
da cidade. Este momento, em que se forma o empresariado de ônibus e suas
organizações sindicais, foi marcado pelo discurso da modernidade e o prestígio
técnico do automóvel. Esta mudança gera o fim ao monopólio da Light amparado
no grande crescimento da cidade, iniciado entre 20 e 30. 0 No mesmo momento
histórico, foram dados os primeiros passos que permitiram o “posterior
predomínio das empresas privadas de ônibus (...) e a perda do controle do poder
público sobre um setor estratégico”0.

O segundo período histórico deu-se entre 1945-1963 caracterizado pela


consolidação do transporte por ônibus.

0 Os operadores reivindicam-se alternativos.


0 Mamani, 1996.
0 Freire,1992, p. 120
0 Freire, 1992, p.1
10

“A partir de 1945 -, os ônibus começaram a perder sua função de


transporte complementar e a se transformar na principal modalidade
de transporte de passageiros urbanos e suburbanos. Acompanhado de
uma política liberal de importações de veículos norteamericanos com
elevada capacidade unitária de transporte e grande
velocidade”(Pereira, 1987,p.40).
O ônibus, para consolidar-se, levaria cerca de uma década, operando, até então,
como auto-lotações ou lotações. A proliferação destes veículos, surgidos durante a
guerra para resolver as inúmeras dificuldades de transporte, decorreu da sua
velocidade e flexibilidade0. Eram conduzidos por motoristas autônomos, sem
itinerário rígido, colocaram em cheque o bonde bem como liquidaram as empresas
de ônibus criadas nos anos 30 (sobreviveram, apenas a Ideal, a Autodiesel, a Sta.
Maria e a Paranapuã). Este quadro – possível pela importação de veículos dos
Estados Unidos - somente iria se alterar com a implantação da indústria
automobilística e a adoção de políticas nacionais estimuladora do uso de veículos
produzidos no país. No caso específico do transporte urbano no município do Rio
de Janeiro, o sistema de lotadas foi desestimulado durante o governo Lacerda 0,
que favoreceu a formação de grandes empresas.

Como já visto, o transporte informal destinado a atender áreas pobres e de difícil


acesso nunca desapareceu totalmente. Contudo, o ressurgimento em grande escala
desta modalidade de transporte foi marcada por duas diferenças significativas com
relação aos auto-lotações ( ou mesmo os cabritinhos): surgem como um transporte
de (e para) a classe média, oferecendo serviços especiais a um preço inferior
daquele dos serviços convencionais, com elevada capacidade de organização, já
que rapidamente são formada cooperativas e entidades de classe0, o que estimula
os antigos informais a adotarem a mesma forma de organização.

Generaliza-se a idéia de que o transporte informal surge para atender necessidades


insatisfeitas de acessibilidade e mobilidade0, alteradas em sintonia com as
mudanças na morfologia metropolitana. Se tal relação é correta, a emergência do
transporte informal deveria ser precedida de carências. Além disto, os locais em

0 Segundo Pereira (1986) eram veículos de lotação mínima de 10 ou máxima de 21.


0 Em 1963, medidas governamentais incentivaram a formação de empresas comum número elevado de veículos
Informal fica restrito ao crescimento periférico, perdendo visibilidade sem, contudo, desaparecer.
0 As três primeiras Cooperativas do Rio de Janeiro foram a Cooper Jacarepaguá, a Cooper Ilha e a Cooper Méier
Riovan fundadas em 1997( ver entrevista com Presidente de Cooperativa do Subúrbio da Central e Jornal O Dia,
31/04/1996)
0 A este respeito ver Trani, 1987
11

que se observa maior incidência deveriam guardar relação com as necessidades


específicas.
12

IV.1. b. As Necessidades e Carências

Reconhecer as necessidades geradoras do transporte informal requer informações


baseadas estudos de demanda. Entretanto não existe este tipo de estudos para o
período abrangido pela pesquisa0. Proponho, então, a utilizar como seu substituto,
as queixas publicadas nos jornais do Rio de Janeiro, como base de dados que,
devidamente classificadas e ordenadas por áreas de incidência, servirão como
indícios das necessidades e de sua distribuição espacial.

Usarei dois registros cronologicamente diferenciados. Busco estabelecer,


inicialmente, a situação precedente ao aparecimento do transporte informal
operado por vans e kombis, através das reclamações de usuários publicadas na
coluna “Queixas do Dia”- do jornal O Dia - entre 1990 e junho de 1991,
comparados, depois, com as registradas nos jornais O Dia, O Globo e Jornal do
Brasil entre 1996 e 2002. Esta última fonte é questionável, pois não é sistemática
e nem possui a abrangência da primeira. Contudo, parece-me significativo
registrar possíveis mudanças de problemas reconhecidos pelos usuários. Tal
observância indicaria os sentidos da expansão, e, também para o tipo de
necessidades e carências presumíveis.

O jornal O Dia possuía, durante a primeira metade da década de 90 a coluna,


chamada “Queixas do Dia” que registrava as mais variadas reclamações e
demandas relativas à vida e aos serviços urbanos. Localizei 451 queixas
distribuídas da seguinte forma.

0 O último estudo deste tipo foi efetuado no final da década de 70 por ocasião da construção do Metrô.
13

Tabela 1
Queixas do Sistema de Transportes Segundo Vetores de Expansão
Área Central Vetor 1 Vetor 2 Vetor 3 Vetor 4 Vetor 5

20S. Central 51S. Leopoldina 33Z. Oeste 120Z. Sul 21Niterói 16

S. Linha Aucilair 22Duque de Caxias 20Itaguai 10Barra Jacarepaguá 15São Gonçalo 30

Nilópolis 18Magé 4Seropédica 2 Maricá 2

São João de Meriti 5 Rio Bonito 2

Nova Iguaçu 25 Itaboraí 1

Belford Roxo 10

Quemados 1

Japeri 4

Paracambi 2

Mesquita 1

n 437 20 139 57 134 36 51

% 100 4,58 31,81 13,04 30,66 8,24 11,67


Fonte: O Dia – 1990 – jun. 1991
(obs) O valor total corresponde às queixas que podem ser localizadas.

No início da década de 90, a maior incidência de queixas na Região Metropolitana


ocorre na Baixada Fluminense e na Zona Oeste - vetores I e II. Enquanto que ao
vetor IV - área de expansão da Zona Sul - correspondem a apenas 8,24 % das
queixas. No vetor VI, o município de São Gonçalo com trinta (6, 86 %) das
queixas tem peso superior ao de Nova Iguaçu (5,72%), enquanto na Zona Oeste,
as áreas periféricas são as que mais registram queixas. Nesta última, Campo
Grande e o Barata ocupavam o primeiro lugar (Ver tabela 2).

Tabela 2
Incidência de Queixas na Zona Oeste
Local No %
Barata 21
Campo Grande 21
Sepetiba 16
Vila Kennedy 11
Realengo 9
Pedra de Guaratiba 8
Santa Cruz 8
Bangu 6
Jardim maravilha 4
Padre Miguel 3
Vila Cosmos 3
Bairro Jabour 2
Paciência 2
Santíssimo 2
Barra de Guaratiba 1
Magalhães Bastos 1
Santa Margarida 1
Vila Labreiau 1
Total 120
Fonte: O Dia – 1990 – jun. 1991
14

Mas os problemas identificados e registrados espalham-se por uma vasta zona de


influência dos centros locais: Bangú, Campo Grande e Santa Cruz. Visto desta
forma, a área de Bangú seria a mais afetada ao perceber que orbitam em seu
centro, Realengo, Barata, Bairro Jabour, Padre Miguel, Santíssimo e Vila Kennedy
e Magalhães Bastos, totalizando quarenta e oito queixas (11,00% do total).

As queixas são bastante heterogêneas. A mais freqüente corresponde à falta de


linhas ou serviço (17,29 %), seguida da demora (11,53 %); da existência de
poucos veículos (8,87 %); da superlotação (7,32 %); da má conservação (7,10 %);
do não cumprimento de horários (6,65 %); da falta de serviço noturno (5,76 %);
do mau tratamento por parte de cobradores e motoristas (5,76 %); do
incumprimento de itinerário (5,10 %); do atraso (4,66 %); do fato de não pararem
nos pontos (3,99 %); do preço das passagens (3,55 %), da sujeira (2,66 %).

Tabela 3
Queixas do Sistema de Transportes - RMRJ
– 1990 – junho de 1991
Queixa No ¨
Falta de Linhas ou Serviços 78 1
Demora 52 1
Poucos Veículos 40
Superloatação 33
Má conservação 32
Não Cumprem Horário 30
Falta Serviço Noturno 26
Maus Tratos 24
Incumprimento de Itinerário 23
Atraso 21
Não Para em Pontos 18
Preço 16
Sujeira 12
Serviço deficiente 10
Falta de Conforto 6
Desrespeito Idosos 5
Má Direção 5
Má sianlização 5
Extensão de linha 4
Veículos Velhos 3
Falta Serviço fins de semana 2
Sem iluminção 2
Abandono 1
Desorganização 1
Insegurança 1
Monopólio 1
Total 451 10
15

Fonte: o Dia, 1990 – jun, 1991

Estas queixas, de maior incidência na periferia da metrópole ,


apontam para uma série de problemas que vão desde a manutenção e limpeza dos
veículos e pontos de acesso (falta de iluminação, de segurança e abandono), até a
despreocupação dos empresários com a boa qualidade do serviço prestado, que se
traduz no uso de poucos e velhos veículos, na operação de linhas, pela
superlotação, no descumprimento de horários e itinerários, na ausência de serviço
noturno e/ou nos fins-de-semana. E, ainda, são reconhecidos e denunciados
problemas relacionados ao treinamento e fiscalização dos trabalhadores (maus-
tratos e não parar em pontos0).

Uma parte importante das carências pode ser relacionada ao crescimento urbano 0.
Tradicionalmente o atendimento de novas necessidades na periferia deu- se pela
extensão das linhas de ônibus, sem aumento de frota e na freqüência. Com isto, os
serviços sofrem atrasos pois, os veículos param demais, os usuários são
submetidos a longas esperas nos pontos, à superlotação e ao desconforto.
Interpretadas assim, as queixas diretamente relacionadas ao crescimento
metropolitano correspondem a 56, 76% (246) do total.

A tabela a seguir, apresenta a distribuição as queixas por vetores de crescimento


da metrópole.

Tabela 4
Queixas Relacionadas ao Crescimento Metropolitano – RMRJ - 1990 – jun
1991
Centro n Vetor 1 n Vetor 2 n Vetor 3 n Vetor 4 n Vetor 5 n
Área Central 17S. Central 29S. leopoldina 23Z. Oeste 76Z. Sul 8Niterói 9

S. L. Auxiar 17Duque de Caxias 17Itaguai 1Jacarepaguá 8São Gonçalo 13

São João de Meriti 1Magé 2 Itaboraí 1

Nilópolis 8 Rio Bonito 3

Mesquita 1 Maricá 1

Belford Roxo 5

Nova Iguaçu 12

Queimados 2

Japeri 3

Paracambi 2

Total 456 13 80 42 77 15 29

% 100,00 5,08 31,25 16,41 30,08 5,86 11,33

Fonte: Jornal O Dia, 1990 – jun 1991

0 Curiosamente, e contra o senso comum apenas 3,55 % das queixas referem-se ao preço das passagens.
0 È necessário lembrar que o período citado corresponde à quebra da empresa pública de transportes coletivos
CTC, à decadência do sistema ferroviário e do Transporte por Barcas, assim como a grandes greves ferroviárias
(ver anexo).
16

O resultado reforça os indícios presumidos anteriormente. No início da década de


90, eram os vetores I e III que apresentavam maior incidência de queixas.
Embora, também seja necessário chamar a atenção para o município de Duque de
Caxias, com dezessete queixas, sendo seguido pelos bairros de Barata e Campo
Grande, na Zona Oeste, e São Gonçalo, com treze queixas respectivamente. A
estes, segue Nova Iguaçu com doze

Tabela 5
Incidência de Queixas por Bairros do Rio de Janeiro
e Municípios da Região Metropolitana - 1990 – Jun 1991

Bairro/Município nBairro/Município nBairro/Município nBairro/Município n


Duque de Caxias 17São Carlos 2Bonsucesso 2V. de Carvalho
Barata 13Magé 2Penha 2São João de Meriti 1
Campo Grande 13Guadalupe 3Paciência 2Mesquita 1
São Gonçalo 13Inhaúma 3Santíssimo 2Catumbi 1
Nova Iguaçu 12Maria da Graça 3Vila Cosmos 2Estácio 1
Sepetiba 10São Francisco Xavier 3Cidade de Deus 2Lapa 1
Olaria 9Jardim América 3Gávea 2Itaguai 1
Niterói 9Vila da Penha 3Rocinha 2Cordovil 1
Nilópolis 8Padre Miguel 3Água Santa 1Ramos 1
Vila Kennedy 8Rio Bonito 3Cachambi 1Vigário Geral 1
Pedra de Guaratiba 6Irajá 2Cascadura 1Vista Alegre 1
Realengo 6Lins 2Deodóro 1Magalhães Bastos 1
Jacarepaguá 6Mariópolis 2Fazenda Botafogo 1Santa margarida 1
Marachal Hermes 5Pavuna 2Honório Gurgel 1Itaboraí 1
Belford Roxo 5R. de Albuquerque 2Madureira 1Maricá 1
Santa Cruz 5Rocha Mirnada 2Parque Anchieta 1Glória 1
Santa Teresa 4Turiaçu 2Quintino 1Leblon 1
Jardim Maravilha 4Paquetá 2Tuiuti 1Saens Peña 1
Bento Ribeiro 3Santo Cristo 2Vaz Lobo 1Total 256
Fonte: Jornal O Dia

Quanto aos subúrbios da Leopoldina, há que destacar Olaria, que apresenta tantas
queixas quanto Niterói, nove (ver Tabela 5). Com respeito à área central merece
destaque o bairro de Santa Teresa, que apresenta quatro reclamações de falta de
serviço de transporte 0

0 Número superior a de Santo Cristo e de Paquetá, que considero periferias do Centro.


17

Em suma, é nas áreas periféricas da metrópole onde registra- se o maior número


de reclamações. Estes dados parecem confirmar a sua e os problemas de
transportes originados da expansão da metrópole. Confirmar-se-ia, também, a
validade dos eixos de crescimento propostos por Pereira e da sua avaliação que, a
partir dos anos 1980, predominou a expansão por adensamento e não mais por
incorporação territorial, embora esta também, ocorra em áreas mais extremas da
periferia – São Gonçalo, Nova Iguaçu e áreas mais periféricas da Zona Oeste.

O único aspecto não confirmado pelas fontes do jornal O Dia, refere-se ao


crescimento da Barra da Tijuca0, Recreio e Jacarepaguá. Em verdade a
proliferação de queixas relativas o transporte nessa área surge em registros
posteriores e menos confiáveis que os mostrados anteriormente. pois nenhum
jornal mantém – como O Dia no in´cio da década de 1990 - uma coluna específica
para acolher reclamações sobre problemas urbanos. E foram coletadas em
diversos artigos, publicados, principalmente nos suplementos de bairro. É
compreensível, então, que, ao contrário dos dados anteriores, as informações
disponíveis não guardam relação com os vetores de expansão. Servem, entretanto,
para ilustrar a relevância que os problemas de transporte e tráfego adquiriram
naquela área (ver Tabela 6).

Tabela 6
Queixas do Sistema de Transportes por Vetores de Expansão
– RMRJ – 1996 -2002
Total Centro n Vetor 1 n Vetor 2 n Vetor 3 n Vetor 4 n Vetor 5
Central 1 Nilópolis 2 S. Leopoldina 1 Sul 13 Oeste 23 São
Gonçalo
N. Iguaçu 4 D. Caxias 2 Barra – 19
Jacarepaguá
B. Roxo 1

S. Central 3

n 78 1 10 3 32 23

% 100 1,28 12,82 3,85 41,03 29,49


Fonte: O Dia, Jornal do Brasil e O Globo, 1996 – 2002

0 Em parte, isto pode ser atribuído a que, predomina nessas áreas da metrópole o uso do transporte individual.
Contudo, como será mostrado mais adiante. O crescimento econômico faz surgir carências no sentido Subúrbios
da Central – Barra da Tijuca e Zona Oeste – Barra da tijuca. O grande número de carros, ônibus e transporte
informal engarrafa a principal avenida do Bairro.
18

Como poderá ser visto a seguir ambas bases de dados são significativas, já que
permitem reconhecer uma relação entre locais com maior incidência de problemas
e os locais onde prolifera o transporte informal. Permitem perceber, ademais, as
carências sociais em novos termos.

De fato, quanto às carências, as queixas do início da década de 1990 possibilitam


inferir que há necessidade de serviços de transporte utilizando veículos ou
composições em número suficiente, novos, bem conservados e limpos, que
prestem serviços pontuais, sem demora, atrasos ou mudanças de itinerário, sem
superlotação e com conforto. Haveria, também, necessidade de um tratamento
respeitoso aos passageiros, o que incluiria condução cuidadosa e respeito às
paradas, que deveriam ser bem sinalizadas, conservadas, iluminadas e seguras.
Por último, seria desejável que todos esses serviços fossem mantidos durante a
noite e nos fins-de-semana.

Estas mesmas necessidades parecem ter se alterado na segunda metade da década


de 90. Como ilustra a tabela 7, a demora e a superlotação passaram a ter mais
incidência que a falta de linhas ou serviços. Este resultado decorreria do maior
peso,nos dados disponíveis, de moradores da Zona Sul e da Barra da Tijuca, ou de
pessoas que se dirigem àqueles pontos. O fato é que as alternativas mais citadas
referem-se a problemas ligados à perda de tempo (atraso, demora e
engarrafamentos -vinte e quatro) e falta de conforto (superlotação e veículos
inadequados e poucos veículos com - vinte e nove reclamações)
19

Tabela7
Deficiências do Transporte no Final dos Anos 1990
- RMRJ
Deficiências Final dos
90 Início dos 90
n %n %
Demora 20
20,40 52 11,53
12
Superlotação 12,24 33 7,32
10
Falta de Linhas ou Serviços 10,20 78 17,29
9
Poucos Veículos 9,18 40 8,87
8
Falta de Conforto 8,16 6 1,33
5
Má Direção 5,10 5 1,11
5
Maus Tratos 5,10 24 5,32
4
Não Para em Pontos 4,08 18 3,99
4
Serviço deficiente 4,08 10 2,22
Atraso 3
3,06 21 4,66
3
Insegurança 3,06 1 0,22
3
Má conservação 3,06 32 7,10
3
Não Cumprem Horários 3,06 30 6,65
3
Preço Elevado 3,06 16 3,55
Engarrafamento por excesso de veículos 1
1,02 0 0
Falta de Fiscalização 1
1,02 0 0
Sem gratuidade 1
1,02 0 0
1
Sujeira 1,02 12 2,66
Tipo de veículos 1
1,02 0 0
Abandono 0 0 1 0,22
Desorganização 0 0 1 0,22
Desrespeito a Idosos 0 0 5 1,11
Extensão de Linha 0 0 4 0,89
Monopólio 0 0 1 0,22
Veículos Velhos 0 0 3 0,67
Falta Serviço fins de semana 0 0 2 0,44
Falta Serviço Noturno 0 0 26 5,76
Incumprimento de Itinerário 0 0 23 5,10
Má Sinalização 0 0 5 1,11
Sem Iluminação 0 0 2 0,44
Total 98 100,00 451 100,00
Fonte: O Dia, Jornal do Brasil e O Globo, 1996 – 2002

De forma aparentemente, contraditório, há registro de queixas relativas tanto à


escassez de veículos quanto ao excesso. Entretanto, tal notação explica-se, pela
existência simultânea de áreas não muito rentáveis ou de crescimento recente,
20

onde se manifestam os antigos problemas de falta de linhas nas áreas periféricas,


juntamente com o excesso de veículos nas áreas centrais0.

IV.1.d. O Estado da Urbanização

Comentava, algumas páginas atrás que é provável que a emergência do transporte


informal guarde relação com os problemas de transporte relacionados â expansão.
Se assim for a maior concentração de informais deveria ocorrer em áreas de
expansão.

O levantamento de dados relativos à a presença de cooperativas, sua localização e


características, ocorreu pelo método por observação direta do campo mediante
visitas às áreas de expansão metropolitana e observação da presença de transporte
informal em extensão e características aparentes da urbanização. Com base nestas
observações estabeleci o número de cooperativas operantes, suas linhas, áreas de
circulação e concentração. Como primeiro passo para a descrição e análise é,
porém, preciso um relato do observado.

IV.1.c. O Trabalho de Campo

À primeira vista verifica-se a veracidade da afirmação de Pereira quanto ao fato


da expansão realizar-se sob o estímulo da malha ferroviária. Os pontos extremos
da mancha urbana da região metropolitana desenham-se, tentacularmente, em
conexão com esta malha: há um continuo urbano sobre as margens das estradas de
ferro que se expandem na Baixada até alguns quilômetros depois de Queimados
( Engenheiro. Pedreira), sem atingir Japeri nem Paracambi. Já sobre a linha da
Leopoldina, a urbanização é contínua até Raiz da Serra sem, contudo, prosseguir
pelo ramal que parte de Saracuruna, passa por Magé e Guapimirim. Nesse trecho
verificam-se grandes áreas de terras devolutas, com uso rural entre as estações
ferroviárias, rodeadas de pequenas aglomerações em volta.

Na Zona Oeste, a continuidade atinge às margens da Baía de Sepetiba: desde


Santa Cruz segundo pela estrada de Sepetiba, seguindo pela estrada-de-ferro que
parte de Santa Cruz e sua paralela, a Estrada de Santa Cruz e ultrapassando o
centro de Itaguaí.

0 No caso da Barra da Tijuca esses problemas ocorrem mais nas áreas de expansão como vargem grande e
vargem pequena e áreas próximas que se integram progressivamente como Barra e Pedra de Guaratiba. E
também em lugares nobres como o Itanhangá. Há grande número de queixas em relação á Tijuca com sentido
Barra onde a demora e a falta de veículos era o motivo principal de reclamações.
21

Já em Niterói segue a linha férrea, atingindo Venda das Pedras e continuando por
vários quilômetros, unificando-se, praticamente, com Tanguá, seguindo, a partir
daí pela BR-101, até atingir Rio Bonito.

Quanto à expansão vinculada às rodovias, os eixos I e II, não as seguem. O


contínuo urbano desaparece poucos quilômetros depois de Nova Iguaçu, por
exemplo, sem atingir a entrada de Queimados. Essa área permanece usada por
instalações industriais e comerciais e por terras devolutas. A área mais próxima do
Rio, conectada à Dutra, dá lugar à instalação de hipermercados e shoppings num
padrão próximo ao da Barra da Tijuca. Este fenômeno é particularmente nítido
nos municípios de São João de Meriti e Belford Roxo0.

Sobre o eixo da rodovia Washington Luiz, verifica-se fenômeno similar, sem,


contudo, manifestar-se numa interiorização tão intensa: a presença de
hipermercados, grande comércio e outras empresas (o parque editorial do O
Globo) interrompe-se antes de chegar à Refinaria de Duque de Caxias
(REDUQUE). Vários quilômetros à frente, a partir do trevo em que se separam as
rodovia Régis Bittencourt e Washington Luiz , observa-se que o contínuo urbano é
menos denso, interrompendo-se pouco depois de Saracuruna, enquanto sobre o
outro eixo, continua em direção à Xerém. No sentido de Magé, entre o trevo da
Régis Bittencourt e Saracuruna , percebe-se a diminuição progressiva do uso
comercial às margens da rodovia. Os pontos de urbanização, afastam-se da
rodovia e aproximam-se de áreas urbanizadas próximas às ferrovias, como é o
caso de Parque Paulista e Nova Campinas, localizados na periferia de Santa Cruz
da Serra.

Sobre a Avenida Brasil, o contínuo urbano interrompe-se logo depois de Santa


Cruz, após várias interrupções por áreas devolutas e distritos industriais
escassamente ocupados, a partir de Campo Grande. Esta área periférica da
metrópole do Rio de Janeiro, ao contrário das anteriores, não apresenta grandes
empreendimentos comerciais, a exceção de um supermercado recentemente
inaugurado em Deodoro. A partir do Trevo das Margaridas, observa-se
principalmente o uso residencial, com alguma concentração de indústrias e

0 No Município de Nova Iguaçu há um hipermercado, recentemente instalado, de dimensões menores aos dos
municípios vizinhos.
22

comércio atacadista em volta da CEASA. Depois de Deodoro, o uso predominante


das margens é residencial e comercial de pequena monta.

No KM32, da Avenida Brasil acede-se à Dutra pela antiga estrada Rio-São Paulo.
No seu entorno, é possível notar a expansão da urbanização periférica que abrange
poucos quarteirões acerca da estrada, formando um contínuo urbano que chega ao
centro de Seropédica. Esta malha é interrompida, apenas, pelo Campus da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), comunicando-se, com
Queimados e Nova Iguaçu.

Quanto à expansão a partir de Niterói0, afora o eixo ferroviário que serpenteia pela
desordenada e antiga urbanização de São Gonçalo, existem dois eixos viários: a
BR101 e o caminho que se inicia na Alameda São João Boaventura.

Pela BR101, a partir da Ponte Rio-Niterói, cortando a antiga área industrial de


Niterói, expande-se uma vasta área de urbanização recente, que margeia a rodovia
até próximo a Rio Bonito. Nos primeiros quilômetros –no Barreto - do mesmo
modo que nas outras rodovias da região metropolitana estabeleceram-se
recentemente hipermercados e um grande shopping além de um acesso ao centro
de São Gonçalo, que está sendo concluído0. Outra grande concentração comercial
ocorre no Trevo de Manilha, especializado em material de construção e decoração.
Cabe ressaltar que se trata, também, de um centro, de uma urbanização recente,
que oferece acesso a uma das áreas de loteamento mais populares, ativa e muito
pobre - Itambi-, a alguns quilômetros no sentido de Magé0.

A urbanização nae a BR101 segue sem grandes interrupções. Trata-se de uma


ocupação comercial e residencial de suas margens até Rio Bonito.

Outro eixo parte de Niterói seguindo pela Rodovia Amaral Peixoto e subdivide-se
em Tribobó. De um lado continua em direção a Itaboraí passando por Alcântara.
De outro, segue em direção a Maricá, onde, margeando a periferia de Niterói e
depois de atravessar a Serra da Tiririca, penetra numa área de expansão de

0 Não me deterei sobre a expansão de Niterói. Não porque não trnha ocorrido, senão porqeu treta-se da
elitização de uma área metropolitana, em que as vias , as novas modelidades de comércio vem a rebboque da
urbanização e porque não deu lugar à expansão do transporte informal. Quanto aos transporte s é digno de
menção que as passagens internas do município são mais caras que as intermunicipais com destino a São
Gonçalo e Itaboraí.
0 Foi inaugurado nos primeiros meses de 2004.
0 Sem que, contudo, haja continuidade entre a urbanização de Magé.
23

condomínios fechados. Em Inoã, há concentração de comércio de beira de estrada


semelhante ao de Itaboraí, comparativamente menor.

Esta descrição permite identificar áreas de expansão orientadas pelos eixos.


Entretanto não permite relacioná-las com os volumes de fluxos e nem, tampouco,
identificar as várias modalidades de centros comerciais e de lazer que
configurariam um novo padrão de urbanização similar ao da Barra da Tijuca.
Apesar de podermos concluir que novos centros ocasionam impactos sobre o uso
do solo e sobre demanda de mobilidade, é cedo para avaliar os efeitos dessas
novas centralidades sobre a circulação metropolitana. Conforme, antes dito, cabe
recordar que Barra da Tijuca constitui uma área de grande expansão do serviço de
transporte mas, também de carência crônica de transporte.

IV.1.e. Cronologia do Novo Informal

A cronologia do transporte informal e sua evolução posterior permite reconhecer


que os novos informais não irromperam como transporte coletivo convencional e
nem ocorreu nas áreas mais carentes da metrópole, como ilustra a Tabela a seguir.
24

Tabela 8
Localização do Transporte Informal– RMRJ - 1994 e 1997
1994 1997 (continuação)
Veículo No Serviço No Local No Veículo No Serviço No Local N
Van 7 Turismo 7 Tijuca 2 Van 25 Turismo 4 Leblon
Grajaú 1 Meier –Cetro
–Botaforgo
Barra 2 Lotada 21 Castelo - Pça
Seca
Z. Sul 1 Austin –
Central
Jacarepaguá 1 Barra da
Tijuca –
Itaguai
Total 7 Barra – Santa
Cruz
1995 Campo
Grande - ?
SI - Central – M.
Couto
1996 Central – N.
Campina
Van 12 Lotada 8 Méier – 2 Central –
Centro Xerém
Pechincha – 1 Ilha – Centro
Centro
Santa Cruz – 1 Itaboraí –
Barra Castelo
Recreio – 3 Méier - Centro
Centro
Barra da 1 Miguel Couto
Tijuca – Centro
Turismo e 1 São Gonçalo – 1 N. lguaçu –
Lotada Centro Central
Turismo 2 Jacarepaguá 2 Queimados –
Central
SI 1 Gávea 1 São Gonçalo –
Centro
Total 12 12 Kombi 2 Lotada 2 Bangu (Linhas
locais)
Pavuna
(Linhas
1997 Locais)
Veículo No Serviço No Local No Towner 2 Lotada 2 Centro -
Bangu – Méier
Van 29 SI 1 Méier 1 Centro- V. das
Pedras
Escolar 3 Laranjeiras 1 Total 33
Tijuca 2 Fonte: O Dia, Jornal do Brasil, O Globo (Tabulação
própria)
25

Durante os primeiros anos, o transporte informal atuou, exclusivamente, em


atividades turísticas, nas áreas abastadas e centrais da metrópole: Tijuca, Grajaú,
Barra da Tijuca, Zona Sul e Jacarepaguá. Nos anos seguintes, observa-se a sua
expansão e diversificação. Assim, já em 1996 a maior incidência do transporte
operado por vans, registrado na imprensa, refere-se à denominada lotada. Trata-se
de um transporte urbano, restrito, ainda, a áreas ‘nobres’. Este serviço liga o
Centro ao Méier, à Barra da Tijuca, ao Recreio, a Jacarepaguá e, ainda a Barra da
Tijuca à Zona Oeste. Só registra-se uma linha originada em município externo ao
Rio de Janeiro: São Gonçalo. Todavia, este serviço alterna o turismo e a lotada
enquanto que, em Jacarepaguá, permanece o transporte turístico.

O crescimento e diversificação da lotada foi veloz. Já em 1997, era possível


verificar sua presença em quase toda a metrópole, delineando a sua atual extensão
que atinge trinta municípios do Estado do Rio de Janeiro, como pode ser visto no
quadro 1. A espacialidade constituída pelo transporte turístico permanece com o
mesmo perfil inicial. Já na lotada, verifica-se a diversificação de veículos,
empregando-se não apenas Bestas e Topics – modelos com capacidade para doze
ou dezesseis passageiros que denomino vans -, senão que adotam-se as Towners,
veículos com capacidade de apenas seis passageiros, como também as kombis
prestam-se ao serviço em bairros periféricos.

Quadro 1
Municípios com Presença de Transporte Informal
– Estado do Rio de Janeiro – 2000 - 2002
Angra Itaboraí Niterói
Araruama Itaguai Parati
Belford Roxo Japeri Petrópolis
Búzios Magé Queimados
Cabo Frio Macaé Rio
Cachoeira de Macacu Mangaratiba Rio Bonito
Casimiro de Abreu Maricá Rio das Ostras
Campos Mesquita São Gonçalo
Caxias N. Friburgo São João de Meriti
Iguaba N. Iguaçu Seropédica
Fonte: Pesquisa para Tese
26

Mas a diversificação de modalidades de circulação no interior da metrópole foi


posterior ao crescimento do transporte por kombis, que se expandiu apenas a
partir de 1998 e principalmente entre 1999 e 20000.

IV.1.f. Formas de Circulação

Foi possível identificar três modalidades de circulação, caracterizadas em “termos


nativos” pelo tipo de veículo: vans, towners e kombis.

Tabela 10
Linhas de Transporte Informal -
Estado do Rio de Janeiro – 2000- 2002
(Cooperativas e Tipo de Veículo)
Veículo Número
Kombi 184
SI 9
Towner 9
Van 151
Total 353 1
Fonte: Pesquisa para Tese

Os números apresentados na Tabela 10 não são expressivos da composição


verdadeira do sistema. Expressam, apenas o tipo de veículo operante nas linhas
por mim observadas. De todo modo é possível afirmar, sem grande margem de
erro que as kombis operam em maior número. A diferença no uso ambos veículos
observa-se no modo de circulação.

As vans realizam viagens no sentido radial atingindo o centro da região


metropolitana a partir da periferia próxima, assim como a partir de outros
municípios mais distantes.

0 Como em outros momentos históricos, além da expansão metropolitana, a inovação tecnológica explica a
expansão do uso de Kombis para transporte: foi favorecida pela introdução do gás natural como combustível e da
importação de equipamentos conversores a um baixo custo. Estudos da COPPE afirmam que van e kobi provou a
rentabilidade do transporte coletivo realizado por veículos pequenos.
27

Tabela 11
Formas de Circulação por Vans e Kombis
– Município do Rio de Janeiro – 2000 - 2003
Kombis No % Vans No %
Centro - Periferia 4 3,77 Cento do Rio 40 95,23
Interbairros da Mesma área 93 87,73 - 0,00
Interbairros de áreas diferentes 9 8,49 Interbairros 1 2,38
S. I. 0 0,00 S. I. 1 2,38
Total 106 100,00 Total 42 100,00
Fonte: Pesquisa para Tese

As vans – como pode ser visto na tabela 11- operam em 95,23% dos casos
observados, nas linhas radiais (centro-periferia). Chegam e partem para seus
destinos, de pontos nodais do centro do Rio. Estes locais, também são, pontos de
partida do serviço convencional: Castelo, Praça XV, Praça Mauá, Avenida Chile,
Central, Avenida Presidente Vargas e Rodoviária Novo Rio. No Castelo,
concentram-se as saídas para Recreio, Barra da Tijuca, Santa Cruz, Campo
Grande e Jacarepaguá. Na Central, está a maioria das linhas que tem como destino
a Baixada Fluminense. Da Rodoviária Novo Rio, partem os veículos com destino
a municípios distantes do centro ( mais de 75Km0).

São também estes veículos, que realizam o fretamento, tendo capacidade de


transportar, numa só viagem, de doze até dezesseis passageiros sentados, podendo
ainda utilizar veículos com vinte lugares, fabricados pela Marcopólo, embora com
menor freqüência. Cabe ressaltar, ainda, que passagens, são um pouco mais caras
que a dos ônibus convencionais.

Já as towners, cuja lotação é de seis passageiros, operam de modo flexível, numa


área suburbana, próxima ao centro do Rio, quais sejam: Méier-Centro, Madureira-
Centro, Ilha do Governador-Centro, Penha, Vila da Penha e Vista Alegre-Centro.
Oferecem vários trajetos, de acordo com as necessidades do grupo formado,
realizando pequenos desvios, de maneira a aproximar os passageiros do seu lugar
de destino, ou de buscá-los em suas residências em horários combinados. Após a
regulamentação municipal, estes veículos foram substituídos por vans mas,
continuam no mesmo tipo de circuito, sendo freqüente os serviços irregulares.

0 Apesar da legislação que não permite o uso de vans no transporte em distâncias superiores aos 75km.
28

As kombis são utilizadas em circuitos menores, geralmente em torno de um sub-


centro0 comercial realizando o transporte interbairros da mesma área. A única
exceção a esse padrão foi registrada, por mim, entre as kombis que operam na Ilha
do Governador. Põem em contato a Ilha com Bonsucesso, com o Largo do Bicão,
com Ramos, com a área da Leopoldina e com Duque de Caxias. Denomino esta
modalidade transporte interbairros em áreas diferentes.

Como ilustra a Tabela 13 (na próxima página), os serviços por kombis, no sistema
informal de transporte, alimentam e são alimentados de outras modalidades de
transporte – trens, ônibus e vans. Os pontos de articulação entre os vários sistemas
são, também, sub-centros comerciais, de serviços, cívicos e culturais. A relação
com o Centro pode ser medida pelo preço das passagens. Enquanto a van cobra
preços levemente superiores aos dos ônibus especiais, as kombis regulam o seu
preço pelos coletivos convencionais.

Quadro 2
Preço das Passagens – RMRJ - setembro de 2003
Linha Preço em R$
Central – Magé 4,00

Central – Queimados 3,80

Central – N. Iguaçu 3,00

Centro – Barra 4,00

Centro – Santa Cruz 4,00

Centro – Itaboraí 3,50

Centro – Alcântara 3,50

Castelo – Silvestre 1,40

Rio Comprido – Botafogo 1,40

Barra Shopping – Taquara 1,40

Bangu – Violeta 1,40


Fonte: Pesquisa para Tese

0 Desde esse ponto de vista o próprio Centro do Rio de Janeiro funciona, como um centro local com a sua
periferia próxima.
29

Por outro lado, as passagens em direção aos bairros mais abastados da metrópole
são tão ou mais caras que os praticados em áreas periféricas, muito mais distantes,
tais como Magé, Queimados. Itaboraí e Alcântara. Os trajetos realizados por vans,
kombis e towners, são análogos aos do sistema convencional quanto à hierarquia
de lugares. Contudo, os transportes alternativos permitiram maior velocidade e
flexibilidade0 )de horário e trajetos) nos deslocamentos.

Quanto a relação de analogia e hierarquia entre os vários sub-centros e os


considerados tradicionais, ou popular periférico e as novas centralidades, ligados à
expansão de novas formas de consumo e prestação de serviços como a Barra
(como mostrarei mais à frente) as novas centralidades não parecem assumir mais
importância que os sub-centros periféricos como ilustra a tabela 12. A presença de
informais, em termos de linhas, é muito mais significativo na periferia da
metrópole.

0 É comum que as kombis estendam seu trajeto até favelas e bairros que os ônibus não atendem.
30

.Tabela 12
Linhas que Integram Bairros a Subcentros – Município do Rio de Janeiro – 2000 - 2002
Linha N Linha N Linha N Linha N
Barra da Tijuca Bangu Santa Cruz C. Grande
Sulcap - Barra (via Capelinha) 1 Bangu (Linhas Locais) 1 Sta Cruz – Sta. Margarida 1 C. Grande - California 1
Circular –Barra via Alvorada 1 Bangu- Estrada do Engenho 1 Sta. Cruz 1 Lgo do Correia – C. Grande 1
Rio das Pedras - B.Shopping 1 Bangu –Vila Kenedy (Presídio) 1 Santa Cruz (Local) 1 Cachamorra – Lgo. do Correia 1
Rocinha - Barra 1 818 – Jardim Bangu 1 Sta. Cruz –Matadouro 1 Sta Cruz – C. Grande 1
V. Grande – Barra 1 Bangu (Linhas Locais) 1 Sta. Cruz-Ucrânia 1 Sepetiba – Vasconcelos 1
Lgo. do Tanque -B.Shopping 1 Bangu (Local) 1 Sta. Cruz –Cemitério 1 Vila Nova – C. Grande 1
Curicica – Barra (linhas locais) 1 Bangu(?) – Sulacap (L 94) 1 Sta. Cruz-Chatuba 1 Grão Pará – C. Grande 1
C. Deus –Barra 1 Barata – Bangu via Murundu) 1 Sta Cruz – Alvorada 1 Gouveia – C. Grande 1
Méier - Barra 1 Bangu (Sendas) -? 1 Sta Cruz –Guandu 1 Monteiro - C. Grande 1
Rio centro Preguiça – 1 L 46 Jabour – M. Pereira 1 StaCruz –São Fernando 1 Vila Cesário – Sta Cruz 1
Madureira – Alvorada 1 L 48 – Boiobi- Estação 1 StaCruz –Antares 1 Boa Terra – C. Grande 1
Curicica – Barra 1 Estação – J Violeta 1 Sta. Cruz- João XXIII 1 V. da Varanda – C Grande 1
Vila Sapé – Barra 1 Estação – Viegas 1 Sta Cruz –Guaratiba 1 Morro coroado – C. Grande 1
Rio das Pedras- Barra 1 Sta. Cruz –São Benedito 1 São Jorge . C. Grande 1
Sta Cruz ( Local) 1 Vilar Carioca – C. Grande 1
Sta Cruz Cesário 1 Vila Nova – Rodoviária 1
Sta Cruz - Piraquê –P. de
Guaratiba 1 Westshopping – Bangu 1
Sta.Cruz - Seropédica 1 Westshopping – Areia Branca 1
Milcimo-Sta Cruz 1 C Grande – Ponunelo 1
C. Grande Campinho 1
Novo Campinho – C Grande 1
Padre Miguel – C. Grande 1
Bairro Admisivo – C Grande 1
Sta Margarida – C. Grande 1
29 de Março – C. Grande 1
Santíssimo – Campo grande 1
Seabra Filho – C. Grande 1
Total 14 13 19 27
Fonte: Pesquisa para TeseV.1.e. Linhas e Cooperativas0

Identifiquei cento e cinqüenta e duas cooperativas (legais e ilegais) responsáveis


trezentos e quinze linhas no Estado do Rio de Janeiro. A maior concentração
encontra-se na região metropolitana como indica a tabela a seguir

Tabela 13
Linhas por Município – Estado do Rio de Janeiro – 200 - 2002

Região Metropolitana Outros Municípios do


Estado
Município No % Município No
Rio de Janeiro 126 40,00 Cachoeira de Macacu 6
São Gonçalo 55 17,46 Cabo Frio 4
Itaguai 29 9,21 Nova Friburgo 3
Magé 21 6,67 Angra 2
Niterói 13 4,13 Araruama 2
N. Iguaçu 11 3,49 Macaé 2
D. de Caxias 10 3,17 Rio das Ostras 2
Itaboraí 10 3,17 Búzios 1
Maricá 4 1,27 Iguaba Grande 1
Seropédica 3 0,95 Petrópolis 1
Japeri 2 0,63 Rio Bonito 1
Mangaratiba 2 0,63 Parati 1
B. Roxo 1 0,32
Mesquita 1 0,32
Queimados 1 0,32
Subtotal 289 91,75 26
Total 315
Fonte: Pesquisa para Tese

O maior número de cooperativas corresponde a 91,75% do total observado,


enquanto, em outros municípios do Estado constatei a operação de apenas 8,25%
do total. O maior número atua no município do Rio de Janeiro (40,00%). Seguem
São Gonçalo (17,46%); Itaguaí (9,21 %); Magé (6,67) e Niterói (4,13 %); Nova
Iguaçu (3,49%); Itaboraí e Duque de Caxias (3,17%). Fora da região
metropolitana, cabe destacar a importância do transporte informal em Cachoeira
de Macacu e Cabo Frio.

0 Lembro que as linhas e as cooperativas forma identificadas por observação direta. Iniciei o trabalho mediante
as listas da OCERJ, do DETRO e do SMTU. A observação revelou um grande número de cooperativas e linhas
que não constavam messes cadastros.
Quanto às linhas não foi possível construir um quadro rigoroso do seu total. As
informações obtidas, apenas permitem notar sua extensão, quando observadas as
linhas que convergem para o centro do Rio de Janeiro: são cento e trinta e duas
linhas, das quais cento e treze originam-se no perímetro metropolitano.

Tabela 14
Linhas Intermunicipais Extra-metropolitanas com Destino ao Centro da
Cidade Rio de Janeiro
- Estado do Rio de Janeiro – 2000 - 2002
(Cooperativas por Linha)
Área n Área n
Município do Rio Municípios oeste
Zona Oeste 17 Seropédica
Barra/ Jacarepaguá 13 Itaguaí
Área Central 7 Total
S. Central, Leopoldina e Ilha 18 Costa do Sol
Total 55 Búzios
Baixada Fluminense Rio das Ostras
Belford Roxo 1 Macaé
Caxias 7 Total
Nova Iguaçu 8 Norte Fluminense
Magé 9 Campos
SI 1 Total
Total 27 Região dos Lagos
Grande Niterói Araruama
Niterói-Rio 1 Iguaba
São Gonçalo -Rio 12 Cabo Frio
Itaboraí - Rio 7 Arraial do Cabo
Maricá – Rio 3 Total
Cachoeiras de Macacu – Rio 1 Costa Verde
Rio Bonito- Rio 1 Mangaratiba
Total 25 Angra
Parati
Total
Subtotal 107 Total 1
Fonte: Pesquisa para Tese (Ver anexo)

No município do Rio de Janeiro, é na Zona Oeste onde verifica-se a presença do


maior número de cooperativas dezessete (12, 84), seguida da Barra da Tijuca e
Jacarepaguá, com treze (9,84 %). À área suburbana correspondem incidências
menores. Fora do município do Rio de Janeiro, continua sendo São Gonçalo o
município com maior número de cooperativas, operando em direção ao Centro.
doze (9,09%), seguido de Magé, com nove (6, 81)
É curioso notar que o eixos de expansão mantêm-se, a grosso modo, inalterados
nos vetores históricos de expansão da metrópole conforme reconhecidos por
Pereira (1987) 0. A partir do centro do Rio são quatro vetores. Um quinto tipo
parte do centro de Niterói.

Tabela 15
Cooperativas e Linhas de Vans por Vetores – RMRJ 2000 - 2002
Vetor 1 N Vetor 2 N Vetor 3 N Vetor 4 N Vetor 5 N
Pça XV -Marechal Hermes (via 2 Ilha –Centro 5 Campo Grande - 5 Barra-Centro 6 Niterói-Rio 1
Madureira) (261) Centro
Praça XV - Pavuna ( via Rua do 1 Fundão – 2 Santa Cruz. 5 Jacarepaguá - 7 São Gonçalo 12
Mercúrio) (376) Centro -Centro Centro -Rio
Pça XV - Cavalcanti (311) 1 Centro V. 1 Bangu -Centro 7 Itaboraí - Rio 7
Alegre
Centro –Madureira 1 Centro-Vila da 2 Seropédica 1 Maricá - Rio 3
Penha
Centro – Méier 2 Caxias –Rio 7 Itaguai 2
Centro – Cascadura 1 Magé-Rio 9 Mangaratiba 1
Nova Iguaçu –Rio 8
Central –Queimados 1
Mesquita – Centro 1
Belford Roxo – Rio 1
102 19 26 21 13 23
100 18,62 25,49 20,58 12,75 22,54
Fonte: Pesquisa para Tese

Estes dados mais recentes, apesar de sua inexatidão estatística indicam um


processo, senão de crescimento periférico, de transformação do padrão de
circulação. O vetor V foi o que mais cresceu, presumivelmente, por adensamento
mais que por incorporação de novos territórios.

V. Transformações no Padrão de Expansão

Estudos posteriores ao de Pereira indicam transformações significativas nestes


vetores. Segundo Lago (2001), entre 1980 e 1996 verificou-se:

“1) (i)Expansão na fronteira da metrópole com a reprodução do


perfil proletário da área na maior parte do município do Rio e dos
municípios periféricos e na Z. Oeste.
(ii) elevação relativa do perfil social da área com aumento dos
segmentos médios nos municípios periféricos da orla marinha
( Mangaratiba-Maricá), em área pontuais da Z. Oeste, S. Gonçalo, N.
Iguaçu, Belford Roxo e Caxias ou Barra, Jacarepaguá ou Itaipú.

0 E confirmado posteriormente por vários autores (Lago,1999, Jardim ,2001)


2) Consolidação de áreas próximas aos centros dos municípios da
Baixada Fluminense e S. Gonçalo e da área central de C. Grande e
Bangu ( todas com perfil médio e inferior).
3) Esvaziamento populacional em extensa área da cidade do Rio com
perfil superior e médio, com tendência à elitização nas Z. Sul e Norte
e proletarização do Centro.. Na baixada Fluminense e S. Gonçalo, o
centro dos municípios com perfil médio sofreram queda da
população” (Lago, 2001, p. 1538 – 39).

O padrão de crescimento, identificado pela autora, “desigualmente integrado”


significaria a coexistência de dois modos distintos de urbanização. Um, conjugaria
a um processo de elitização com forte investimento imobiliário privado; e outro a
um processo de proletarização e de auto-construção em lote popular sem infra-
estrutura.

O primeiro seria bem representado pela Barra da Tijuca, por parte de Jacarepaguá
e Itaipu. E, o segundo por Itaboraí, Queimados e Itaguaí e pelas fronteiras de São
Gonçalo, Caxias, Nova Iguaçu e da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Comparando os estudos de Pereira e de Lago reconhece-se tanto uma


intensificação da complexidade no padrão de crescimento metropolitano como no
0
sistema de transportes, produzindo um padrão de viagens mais imbrincado e
alterando as centralidades ordenadoras de fluxos.

V.1. A Barra da Tijuca e e Outras Centralidades

A Alteração de centralidades implicaria na emergência de novos pólos atratores.


Nesse sentido, os shoppings, centros comerciais e de negócios rivalizam como os
centros já estabelecidos e, até mesmo, com centros históricos. Esse seria o caso da
Barra da Tijuca.

Quanto à Barra da Tijuca, esta não permaneceu à margem do processo de


proliferação de transportes informais que atingiu toda a Região Metropolitana.

0 Pereira (1987), afirma que esta complexificação é economicamente positiva.


Tabela 16
Linhas de Transporte Informal – Barra da Tijuca – 2000 – 2002
Trajeto No %
Barra – Centro 2 0,67
Barra - Centro (Vindos de outras áreas) 5 1,68
Barra – bairros de outras áreas 4 1,34
Barra – Periferia Barra 10 3,35
Total 21 7,04
Fonte: Pesquisa para Tese

Das vinte cooperativas que operam linhas que passam pela Barra da Tijuca –
correspondente a 7,04 % do total da região metropolitana - sete ( 2,34 % 0),
realizam a conexão com o centro do Rio de Janeiro. No ponto mais central da
Barra – no que concerne aos transportes - em frente ao Barra Shopping, na
Avenida das Américas, partem também kombis com destino à periferia da própria
Barra ( dez linhas) e ainda outras que conectam-na com os Subúrbios da Central
(quatro). Quanto ao transporte informal, a Barra não disputa centralidade com o
centro do Rio de Janeiro, pois a conexão com este dá-se através de carros
particulares e ônibus, que engarrafam a Avenida das Américas, como registrado no
item relativo às queixas. Há, intensa conexão com a Zona Oeste, Sul e Centro e,
particularmente, com os bairros de Santa Cruz e de Campo Grande, passando por
Barra e Pedra de Guaratiba0. Devo registrar, porém, que o número de linhas não é
capaz de expressar a intensidade da interconexão de fato existente.

A expansão do transporte informal não confirma a perda de importância do Centro


tradicional do Rio de Janeiro, uma vez que a maioria absolutadas linhas a ele se
dirige. Como foi mostrado na tabela 14, cento e trinta e duas (40, 83%) linhas das
trezentos e vinte e três linhas registradas no Estado do Rio de Janeiro dirigem-se
ao centro do Rio. Além disto, cento e treze (38,04) das duzentos e noventa e sete
em operação na região metropolitana conectam o centro.

Por enquanto, e pelos dados disponíveis, a Barra da Tijuca permanece a principal


e única centralidade expressiva novo tipo novo tipo. Por outro lado, os centros
periféricos apresentam maior peso que a Barra. Como foi visto antes, na tabela 12,
0 6,10 % do total que se dirige ao centro dentro da região metropolitana.
0 O que confirma a tendência identificada por Pereira de integração entre o vetor III e IV.
Campo Grande e Santa Cruz têm forte presença de kombis, interligando seus
centros à periferia. Contudo, nenhuma dessas áreas conecta-se tanto com o centro
do Rio de Janeiro, por transporte informal como São Gonçalo, com doze linhas.
Neste município, há que destacar Alcântara que, como ilustra a Tabela 17,
apresenta elevada, comparável a de outros centros mais antigos e já consolidadas,
tais como Madureira e Campo Grande na Zona Oeste do município do Rio

Tabela 17
Linhas de transporte Informal que operam a partir de Alcântara – 2000 -
2002
Intermunicipal Municipal
Vans No Alcântara – Jardim Tiradentes 1
Alcântara – Rio 6 Alcântara – Legião 1
Alcântara – Niterói 5 Alcântara – Sta. Isabel 1
Subtotal 11 Alcântara – São Pedro 1
Alcântara – Mundel 1
Kombi Alcântara – São Gonçalo (Via Rocha) 1
Alcântara – Magé 1 Alcântara – Rocha 1
Alcântara – Rio Bonito 1 Alcântara – Dallas 1
Alcântara – Itaboraí 3 Alcântara – Jóquei 1
Alcântara – Niterói 4 Alcântara – Lagoa Seca 1
Subtotal 9 Alcântara – Caixa d’água 1
Alcântara – Jd..Catarina 1
Alcântara – Capote 1
Alcântara – Champion via Dallas 1
Alcântara – Boaçu 1
Alcântara – Curuzu 1
Alcântara – Cabuçu 1
Alcântara – Itaúna (Via Trindade) 1
Alcântara – Apollo III 1
Alcântara – Sta. Luzia 1
Alcântara – Sta Catarina 1
Alcântara – M Paula (Via Plastigal) 1
Subtotal 22
Total 42
FONTE: Pesquisa para tese

Alcântara comunica-se, por transporte informal, com vinte e dois bairros do


município de São Gonçalo e ao centro do Rio de Janeiro. Trará-se de serviços
oferecidos por seis cooperativas de transportes informais, além de contar com
nove linhas para Niterói e três para Itaboraí.

Em suma, a continuidade do crescimento popular periférico e sua intensa relação


com o transporte informal podem ser confirmadas através da ver tabela 18.
Tabela 18
Presença de Transporte Informal por Bairros e Municípios Periféricos da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 2000 – 2003
Vetor 1 n Vetor 2 n Vetor 3 n Vetor 6 n
Mesquita 1D. Caxias 10C.Grande - Centro 32Niterói 1
B. Roxo 1Magé 21Sta.Cruz. -Centro 24Maricá
Japeri 2 Bangu –Centro 20São Gonçalo 5
Queimados 1 Itaguai 29Itaboraí 1
N. Iguaçu 11 Mangaratiba 2Cachoeira
Rio Bonito
Total 16 31 107 8
Fonte: Pesquisa para Tese

A maior incidência de linhas de transporte informal acontece na periferia


(duzentas e oitenta e três, 84,0% do total da Região Metropolitana). Por outro
lado, os bairros e os municípios mais próximos ao centro do Rio de Janeiro
apresentam menor incidência de transporte informal, já os localizados um pouco
mais distantes, apontados por Lagos (2001) como áreas de crescimento popular
periférico, apresentam intensa presença de transporte informal.

Provavelmente, a centralidade periféricas reproduz um padrão de expansão urbana


e centralidade em território mais extenso, como aponta Ciccolela (1999) para o
caso de Buenos Aires. Isto significa que a centralidade periférica novas
reproduzem um certo padrão histórico numa nova área enquanto as mais antigas e
consolidadas tendem a se diversificar.Assim, quando são observados os fluxos que
vão além da região metropolitana institucionalmente definida, é possível inferir
que desenha-se a rede inicial de uma expansão muito maior cujos indícios podem
ser encontrados nos circuitos construídos pelo transporte informal.

V.2. Novas Áreas Urbanizadas para Além da Região Metropolitana

Se o mapeamento do transporte informal permite traçar um quadro mais ou menos


adequado às transformações metropolitanas, com a mesma linha de raciocínio, e
inspirado em Kralich (1999), posso propor que os transportes permitam indicar a
extensão da urbanização e suas tendências. Neste sentido, parece-me ser possível
afirmar que estão em curso dois processos, quem parte ocultos: a expansão da
mancha urbana de forma tentacular, incorporando municípios limítrofes q à
Região Metropolitana e a conurbação de um grande conjunto de municípios
litorâneos, fisicamente sem continuidade com a mancha urbana do Rio de Janeiro.
Refiro-me, no primeiro caso, aos municípios de Rio Bonito e Cachoeira de
Macacu. Quanto a Rio Bonito, a continuidade é visível à olho nu, construída ao
longo da BR 101, está conectada à Praça XV por ônibus urbanos e por uma
cooperativa de vans. Já Cachoeira de Macacu tem um serviço intermitente de
conexão com o Rio. São poucas as viagens: uma ou duas por dia. A conexão
habitual é de ônibus de longa distância, que passa pela cidade vindos de cidades
serranas e que cobram preços superiores a R$ 15,00 até a Rodoviária Novo Rio.

A interconexão intensa ocorre em relação a Itaboraí e Alcântara, grandes centros


comerciais regionais. Nos últimos anos, após o estabelecimento de uma grande
cervejaria ocorre nesta área, a proliferação de condomínios fechados e
loteamentos. Contudo, um dos fatos mais notáveis é o adensamento populacional
e comercial em torno da RJ 116, entre Itaboraí e Cachoeira de Macacu, e uma
grande extensão nas localidades urbanas intermediárias: Samabetiba, Papucaia e
Japuíba. A interconexão por transporte informal, nesta área é intensa. É de se
esperar que a urbanização às margens da RJ 116, continuando no ritmo atual, virá
a permitir a conexão com a mancha urbana do Rio de Janeiro em poucos anos.

V.3. Municípios Mais Distantes

O transporte informal opera, com muita freqüência, linhas não legalizadas, já que
excedem a extensão de setenta e cinco quilômetros 0. Mesmo assim, estas linhas
operam à luz do dia, partindo das proximidades da Rodoviária Novo Rio. Nas
ocasiões em que a repressão é mais dura, o serviço é operado com carros
particulares, com intervalos de quinze a vinte minutos, principalmente com
destino a Macaé.

0 Como será visto no próximo capítulo a regulamentação estadual do transporte alternativo impediu a operação
de linhas com trajetos superiores a 75 km.
Tabela 19
Municípios não Metropolitano com Transporte Informal em Direção ao Rio
de Janeiro – 2000 -2002
(Cooperativas por município)
Região dos Lagos Norte Fluminense
Municípios No de Cooperativas Municípios No de Cooperativas
Araruama 1 Campos 1
Iguaba 1 Total 4
Cabo Frio 3
Arraial do Cabo 1 Costa Verde
Total 4 Municípios No de Cooperativas
Mangaratiba 1
Costa do Sol Angra 2
Municípios No de Cooperativas Parati 1
Búzios 1 Total 4
Rio das Ostras 1
Macaé 1
Total 3
Fonte: Pesquisa para Tese

As passagens, no transporte informal realizado em direção à região metropolitana


do Rio de Janeiro, têm valor pouco inferior ao dos ônibus intermunicipais de
longa distância, porém o tempo de viagem é menor.

Utilizo, neste momento, uma nomenclatura diferente da anterior, inspirada em


definições turísticas: Costa Verde, Costa do Sol e Região dos Lagos e Norte
Fluminense (sobretudo a Campos). Esta nomenclatura é imprecisa mas,
acompanhada de dados da observação permitirão alcançar a análise pretendida.

A observação da paisagem, em torno de rodovias, permite identificar um extensa


conexão e, até mesmo, uma conurbação que envolve Araruama, Iguaba, São Pedro
da Aldeia, Cabo Frio, Arraial do Cabo e Búzios. Esta conexão ocorre através das
praias e áreas de veraneio da chamada Região dos Lagos, que se comunica com
São João da Barra, Rio das Ostras e Macaé pela RJ 124.

É notável, nesta região, a proliferação de loteamentos, condomínios, casas auto-


construídas e comércio é notável. A circulação entre os pontos conurbados ocorre
principalmente por transporte informal, através do corredor formado pela RJ 124,
sem que a urbanização distancie-se muito da estrada.
Creio, com base nestes dados e pautado nos antecedentes históricos, que esta
expansão marcará os limites futuros de um adensamento populacional naquelas
áreas, acompanhado de diluição de áreas mais consolidadas da metrópole
tendendo à formação de uma megalópole. De todo modo isto não é mais que uma
conjectura provável a partir da experiência e da tentativa de compreender os
efeitos, causas e efeitos morfológicos da expansão do transporte informal.

VI. Conclusões

As transformações morfológicas da metrópole do Rio de Janeiro, evidenciadas


pela operação do transporte informal, comprovam a importância da acessibilidade
e da mobilidade na estruturação urbana. Ou seja, a urbanização superpõe-se às
redes viárias e na dependência das condições de acesso existentes. Assim, se boa
parte da extensão metropolitana ocorrida no passado seguia a linha férrea, é
possível afirmar, hoje, que a urbanização ocorre, em determinadas áreas, em
associação com o sistema viário da metrópole pelos quais se fixam atividades
comerciais e áreas residenciais.

A esta afirmação geral deve-se agregar também que se confirma a alteração do uso
econômico dessas redes, uma vez que áreas industriais, que ocupavam ou tendiam
a ocupar lugares acessíveis da rede, dão vez, pouco a pouco, a centros comerciais
e de consumo, que se beneficiam do aumento da mobilidade permitido pelas vias
e do uso de veículos automotores - carros, vans, kombis ou ônibus - atendendo
grandes áreas de expansão periféricas, popular ou abastada, no caminho das áreas
de veraneio localizadas fora da região metropolitana, ocasionando, ao longo do
tempo mudanças no uso do solo em seus arredores.

Quando os centros urbanos se consolidam, concentram fluxos que constroem


centralidades, como indicam as diversas formas de transporte automotivo. Este
fato pode ser exemplificado pela área em à frente do Barra Shopping. Entretanto,
as centralidades mais tradicionais não cessam de existir. Ao contrário, a extensão
da urbanização aumenta, diversifica e concentra os fluxos. Há, portanto, uma
alteração da dinâmica e integração funcional da metrópole, que tem no centro do
Rio de Janeiro seu pólo unificador. Assim, antes de ocorrer uma perda da
importância do Centro ou da centralidade metropolitana, verificar-se-ia, ao
contrário, um aumento de sua importância, articulando um processo de
urbanização numa escala, até agora, desconhecida, que dificulta a utilização de
conceitos e recortes convencionais para compreender, planejar e gerir a
urbanização.

Quanto às necessidades do capital, não é possível negar a rentabilidade dos


operadores sobrepõe-se às necessidades dos habitantes gerando carências nos
pontos mais afastados e pobres e hiperconexão nos centros. Porém é impossível
pensar numa única lógica já que a expansão metropolitana compreende várias
lógicas diferentes: resulta da conjugação da ação de vários sujeitos sociais sem
que o planejamento ou a regulamentação estatal tenha condições suficientes para
prever e ordenar o crescimento, como mostrarei no capítulo seguinte.
Capítulo 7
Política Urbana ou Política no Urbano? A regulamentação do Transporte
Informal na Região Metropolitana do Rio de Janeiro

I. Introdução

O Estado aparece como elemento central em toda explicação técnica dos


problemas do transporte das metrópoles brasileiras a reflexão. Sendo, o transporte
uma atividade capaz estimular ou restringir as atividades econômicas e sociais,
considera-se, o seu planejamento, essencial para o desenvolvimento urbano0.
Assim, erros de regulação e planejamento são apontados como os principais
responsáveis por sua disfunção. Entretanto, e apesar desta valorização, a visão
técnica sustenta-se numa concepção antipolítica do Estado. Mais exatamente, esta
dimensão é abstraída das análises, na medida em que partem de concepções
jurídicas e administrativas, apoiadas numa filosofia que, na divisão de tarefas
entre público e privado, atribui ao público: o planejamento e provisão de
equipamentos de consumo coletivo e, ainda, o tratamento de aspectos que não
podem ser resolvidos pela esfera do privado. Concebe-se o Estado, então, a partir
dos fins que deve ou deveria atingir.

Uma leitura sociológica inspirada em Weber, deve considerar essa perspectiva


inadequada pois o Estado moderno só pode ser definido, sociologicamente, pelos
meios0 e, o campo político, resulta da luta pela possibilidade de disputar e impor
um fim aos instrumentos do Estado0. Omitindo a existência desta luta, oculta-se o
objetivo político do discurso técnico e abandona-se a possibilidade de observar,
adequadamente, a dinâmica pela qual a política - em particular a política urbana -
tem conseqüências que ultrapassam o regular ou o planejar. A ênfase nas funções 0
administrativas toma a política como problema, como irracionalidade e, às vezes
como corrupção0. E, finalmente, a mesma a abstração, construída pelo discurso

0 Ao igual que as políticas de tráfego e de vias.


0 Weber, 1982. p. 97-8
0 E agrega, Daí, a “política” para nós significar a participação no poder ou a luta para influir na distribuição de
poder, seja entre estados ou de grupos dentro de um Estado”. (...) Quem participa ativamente da luta pelo poder,
quer como um meio de servir a outros objetivos, ideais ou egoístas, quer como o “poder pelo poder”, ou seja, a
fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pelo poder” (Weber, 1992; p. 98). Portanto, a luta política
abrange mais que partidos e eleições. Incorpora grupos de pressão e toda forma de ação legal ou ilegal destinada
a influir nas decisões e na distribuição de poder.
0 Agregando, também, fiscalizar e reprimir.
0 Esta perspectiva não é exclusiva dos técnicos, encontra-se profundamente enraizada no senso comum.
2

técnico, deixa despercebida a relação entre as várias instâncias de gestão territorial


metropolitana, ocultando, com isto, a dimensão política da segregação.

Estas características do discurso técnico sobre o transporte em geral acentuam-se


no caso específico do transporte informal. Os autores concordam ao apontar que
seu surgimento parece atender necessidades insatisfeitas pelo sistema regular , o
que explicaria o seu reconhecimento pelos usuários, dado seu enraizamento local
e amiúde comunitário. Mas, o desconhecimento da político e do seu jogo
impedem relacionar a suposta “irracionalidade”0 da política à configuração de
relações de força no campo político.

Os limites racionalizadores da esfera técnica alimentam uma visão moralista do


político, cujo acobertamento faz com que se correlacione, facilmente, a
regulamentação do transporte informal à desregulação e/ou à corrupção. Não se
trata de negar a existência de corrupção mas, de retirar-lhe, para fins analíticos, as
conotações maniqueístas pelas quais “eles” são maus e o analista é bom.

Este capítulo tem como objetivo, então, por em evidência os efeitos da ação
política e das instituições estatais sobre a circulação metropolitana, levando em
consideração o modo pelo qual ocorreu a regulamentação do transporte informal,
e suas perspectivas. Em segundo lugar, busco reconhecer a diferenciação sócio-
espacial produzida pela mesma e, finalmente, avaliar as práticas que articulam ,
freqüentemente, o transporte informal à corrupção e ao crime.

II. Regulamentação: texto e contexto

II. 1. Apresentação

A questão da regulamentação do transporte informai e dos seu efeitos sobre a


circulação urbana constituiu, ao longo dos anos 90, um ponto importante de
discussão e experimentação nas metrópoles brasileiras que viram proliferar novas
formas de circulação junto às já conhecidas, sem acompanhamento de nenhum
tipo de política pública. Curiosamente, quando o transporte informal foi
problematizado, a polêmica não envolveu as kombis que atendiam áreas sem
transporte ou de difícil acesso0 (que, em muitas cidades, já era regulamentada
como transporte complementar desde a década anterior0). Questionava-se os
0 Recordar comentário, nos jornais, os políticos foram chamados “cabecinhas de bagre”.
0 Visão predominante até meados dos anos 90.
0 No município Rio de Janeiro era regulamentado desde 84 mas conhecido e tolerado desde a década de 70.
3

transportes por van, que ofereciam serviços diferenciados com fins turísticos e de
lazer para pequenos grupos, ou contratados para itinerários e horários incomuns
assim como, serviços especiais de linha, mais caros, flexíveis e velozes que
punham em contato um grande número pontos na metrópole0.

Tais modalidades constituíram-se como um conjunto de práticas e formas de


circulação0 independentemente de qualquer decisão governamental. Portanto, a
sua incorporação ao sistema de transportes, antes de constituir uma
desregulamentação, representa, de fato, uma regulamentação. A imposição de uma
forma legal e institucional àquelas práticas ocorreu de forma desencontrada tanto
temporal quanto geograficamente, sujeita à avanços e revezes em decorrência do
tamanho da metrópole e de sua diferenciação interna, assim como pelos interesses
econômicos e políticos em jogo.

Busco, então, na primeira parte deste capítulo, reconstruir e caracterizar o


conjunto de normas e princípios que pautaram a regulamentação do transporte
informal, bem como estabelecer a conjuntura política em que ocorreu e os seus
reais efeitos.

A reconstrução do marco legal e institucional da regulamentação dos transportes


constitui uma tarefa difícil e sujeita a incongruências e desconhecimentos. Pois a
Constituição Federal estabelece que é uma atribuição municipal, no que tange às
permissões, critérios de circulação e fiscalização, cabendo à esfera estadual
efetuar o mesmo na escala intermunicipal. O transporte que unifica a região
metropolitana, bem como vários pontos conurbados do Estado está sujeito, assim,
a condições institucionais heterogêneas, o que inviabiliza a reconstrução
completa do quadro legal .

A tarefa funda-se, então, na análise de três conjuntos de instrumentos legais:


federal, estadual e do município do Rio de Janeiro, cuja composição pode ser
observada no quadro 1. No primeiro momento, apresento um quadro geral de
normas que regem o sistema de transportes urbanos, explorando a brecha, já
conhecida, entre texto da lei e práticas que tornaram, o transporte por ônibus

0 É curioso que muito antes de tais modalidades existirem no Brasil, a idealização de um transporte operado por
pequenos veículos intermediários entre o táxi e o ônibus com um regime de preços livre, tinha sido introduzida
esboçada no Brasil por estudo do GEIPOT de 1989. Entretanto, o seu surgimento não permite entrever nenhum
indício de indução institucional.
0 Ao falar de formas de circulação refiro-me à classificação efetuada no capítulo anterior.
4

hegemônico e politicamente dominante. A seguir, procedo à análise de textos de


decretos do Estado e do Município do Rio de Janeiro que regulamentam as várias
modalidades de transporte informal, de modo a esclarecer as ambigüidades e
evidenciar indícios de luta política, complementando-os com explicações dos
agentes governamentais que realizaram a regulamentação. Finalmente, busco
reconhecer aspectos políticos ocultos, que perpetuam a segregação na metrópole.
Quadro 1
Relação de Leis que Regulamentam o Transporte Urbano por Ônibus – 1953 - 20030
Instrumento jurídico Ano Descrição
Escala Federal
Constituição Federal cap. IV, art. 29 05/10/1988 Dispõe sobre as competências municipais
Lei 866 (c/ alterações de leis 883 – 08/06/1994 - e 9648 – 27/05/1998) 21/06/1993 Regulamenta o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal que institui
normas para Licitações e Contratos da Administração pública e dá
outras providências
Lei 8987 – Atualizado pelo art. 22 da Lei 9648 de 27/05/1998. 13/02/1995 Dispõe sobre o regime de concessão e Permissão de prestação de
Serviços Públicos Prevista No artigo 175 da Constituição Federal

Escala Estadual
Decreto “E” n.º 3893 01/1981 Regulamenta o transporte coletivo intermunicipal de passageiros por
ônibus e similares, inclusive por veículos de baixa capacidade
(microônibus)
Constituição Estadual 05/10/1989
Art. 8; 14; 85; 199;229;239;242;243; 245; 338; 340; 358
Portaria DETRO n.º 437 e 438 09/1997 trata da padronização dos veículos microônibus dotados ou não de ar
condicionado
Lei 2890 01/1998 Dispõe sobre o serviço de transporte de passageiros sob regime de
fretamento (vans) no Estado do Rio de Janeiro e dá outras
providências.
Resolução - Arcon - 003/99 08/04/1999 Dispõe o Prazo de Autorizações para o prazo de Transporte
Alternativo
Decreto “E” nº 25.955 07/01/2000 Regulamenta o Transporte Alternativo intermunicipal
Lei 3473 04/10/2000 Revoga lei 2890
Decreto “E” nº 27465 29/11/2000 Altera regulamentação Nalguns pontos
Portaria Detro/pres. nº 615 30/05/2003 Dispõe sobre obrigatoriedade de padronização na identificação do
transporte complementar de passageiros
Escala Municipal - Transportes Coletivos por ônibus
Lei Orgânica do Município 05/04/1990
(art. 30; art. 395, art. 399, art. 413 e art.415)
Plano Diretor 1992
(art. 168, incisos II e IV)
Lei n.º 775 27/08/1953 Estabelece o regime de exploração do Serviço de transporte coletivo
por meio de Auto-ônibus, Micro-ônibus e auto-lotações.
Decreto n.º 13965 04/081958 Primeira regulamentação do transporte Coletivo do Rio de Janeiro.

0 Ordenados por ordem de generalidade e cronologia.


Quadro 1
Relação de Leis que Regulamentam o Transporte Urbano por Ônibus – 1953 – 2003 (Continuação)
Instrumento jurídico Ano Descrição

Decreto “N” 45 13/08/1963 . Diretrizes básicas do Planejamento do transporte Coletivo


Resolução n.º 137 02/08/1979 Estabelece a vida útil do veículo (7 anos de fabricado)
Resolução n.º 352 SMOSP 20/06/1984 Altera resolução 164 de 01/02/1980 – Uniforme
Decreto nº 12713 1/03/1994 Padroniza veículos
Decreto nº 15798 05/06/1997 dispõe sobre a utilização de microônibus nas linhas regulares
existentes.
Lei Complementar no 37 14/07/1998 Dispõe Sobre a delegação de prestação de Serviços Públicos Prevista
no art. 175 da Constituição Federal e no art. 178 da Lei Orgânica do
Município do Rio de Janeiro.
Portaria n.º 07 tr/smtu/pre 04/05/1999 Resolve sobre o transporte de Idosos em Micro-ônibus.
Portaria n.º 076 tr/smtu/pre 14/05/1999 Regulamenta inscrição do Ar condicionado Decreto”N” n.º 15798.

Escala Municipal - Transporte Complementar e Complementar Especial


Resoluções SMO n.º 350 e n.º 470 1984 Primeira regulamentação do Transporte Complementar.
Decreto n.º 11.470 13/10/1992 Regulamenta o Serviço Complementar de Transporte de Passageiros.
Decreto n.º 11.471 Ídem Código Disciplinar.
Decretos nº 11983 17/03/993 Alteram decreto 11471.
Decreto nº 16009 14/08/1997 Alteram decreto 11471.
Decreto “N” nº 19469 03/01/2201 Estabelece a suspensão da autuação das Kombis e Vans.
Decreto n° 19951 30/05/2001 Regulamento O transporte Complementar Especial.
Escala Municipal – Fretamento por vans
Lei Municipal nº 2.582 28/10/1997 Institui fretamento.
Decreto nº 17.349 26/02/1999 Regulamenta Fretamento.
Decreto nº 118.086 19/11/1999 Introduz algumas alterações no decreto anterior
Fonte: Pesquisa para Tese
II. 2. a. Regulação como Relação Entre Empresas e Estado: antecedentes

A regulamentação do sistema de transporte urbano constitui uma forma específica


de relação entre Estado e empresas. Contudo, dada a sua importância, a circulação
não pode ser corretamente abordada mediante a simples oposição entre regular x
desregular0.

A natureza da atividade econômica exige uma regulamentação, por mínima que


seja, como explicam Orrico e Santos:

“(...) os transportes encontram-se entre os setores da atividade


econômica que registram mais continuamente a presença do Estado.
(...) Os serviços de transporte constituem um campo preferencial para
atuação antitruste e as ações distributivas do poder público. Além
disso, os mercados de transportes sempre foram considerados muito
afeitos a apresentarem falhas. Por isso, o setor sempre foi objeto de
uma regulamentação complexa e subsetorialmente diversificada”
(Orrico & Santos, 1996. p. 30).
O sistema de transportes urbano brasileiro não é diferente. É regulamentado por
um conjunto vasto de leis e decretos que no caso do município do Rio de Janeiro,
remonta à década de 50. Muitas de suas características atuais foram normatizadas
já nos anos 60 e 70 (Ver quadro 1). Nessa legislação há dois aspectos dignos de
destaque: o princípio da decisão pública pela qual os transportes são considerados
um bem público cabendo ao Estado prover, seja pela operação direta, seja por
permissão precedida de licitação e ainda o princípio da gestão municipal e
estadual no caso de regiões metropolitanas. Tais princípios não são os únicos que
permitem caracterizar o sistema metropolitano de transportes. A legislação vigente
refere-se a relações historicamente dadas que consolidaram o transporte urbano
operado, predominantemente, por ônibus, segundo os postulados do monopólio
territorial e o da não-concorrência, sendo de prerrogativa estatal a determinação
de linhas e o preço das tarifas, segundo certos critérios de justiça e equilíbrio.

Há, contudo, uma regularidade sociológica, não oriunda diretamente das normas e
dos seus princípios, que tem efeitos sociais, econômicos e geográficos
importantes: a predominância de grandes empresas e o imenso poderio das
organizações empresariais sobre os governos estaduais e municipais. Freire
descreve esta predominância nos seguintes termos:

0 Orrico & Santos, 1996. p. 30


“O forte predomínio das empresas privadas de ônibus tem como
conseqüência a perda de controle, pelo poder público, de um setor
estratégico para a reprodução das relações econômicas na cidade.
(...) O aumento do poder de barganha dos empresários de ônibus
atrofia a capacidade do poder público em promover alterações em
sua política para o serviço, cada vez mais marcado (...) pela rigidez .
(...).Há deterioração de um sistema de transportes urbanos que
atende de forma cada vez mais precária à população” (Freire, 1992,
p. 2)

Há poucos estudos sobre a relação entre empresas de ônibus e Estados, bem como
as condições que estruturaram esta relação. Consegui ter acesso a apenas
dois0estudos que, juntos, cobrem a história da formação do transporte por ônibus
na Metrópole do Rio de Janeiro de 1906 a 1987. Ambos mostram que as empresas
de ônibus possuem um enorme poder de negociação e imposição de seus objetivos
às administrações municipais. No Rio de Janeiro, este poder remonta aos
primórdios da formação do sistema de transportes urbano que consolidou-se como
grupo de pressão e propaganda, já na segunda década do século XX, com a
formação de uma união de empresários de ônibus em 1932, transformada em
sindicato em 19410.

Mas, a consolidação do atual sistema tem origem no período da ditadura militar.


Este é caracterizado por Pereira (1987) nos seguintes termos:

“(...) as empresas atuam no âmbito dos serviços de âmbito municipal,


cujas organizações refletem não somente a sua origem mas a natureza
do serviço prestado. Detêm grande poder econômico e político(..) Os
empresários de ônibus não se constituem num segmento de elite,
tratando-se mais de um grupo de interesses marginais e
complementares à atuação dos níveis de governo envolvidos na
questão dos transportes” (Pereira, 1987. p.51)0.

Esta relação, uma vez estabelecida, rotiniza-se nos procedimentos e formas dos
numerosos cadastros, fiscalizações e vistorias das empresas por órgãos de terceiro
escalão: a SMTU no Município e o DETRO no Estado, como instituído pelo
decreto “N” n.º 3893 de 13 de agosto de 1963 e “E” n.º 3893 de janeiro de 1981.

0 Freire, 1991; Pereira, 1987.


0 Freire, 1991. p. 81
0 As entrevistas realizadas com altos funcionários da SMTU e o DETRO revelaram um quadro de enorme
concentração econômica. No Município do Rio cinco grupos controlariam as mais de quatrocentas linhas
municipais. Enquanto no Estado do Rio de Janeiro seriam apenas três grupos.
O autor citado caracteriza tal arranjo entre empresas privadas e Estado, através do
uso do conceito de corporativismo0

“(...) o Estado concede privilégios, cria grupos de interesses, tenta


regular seu número e lhes dá aparência de um monopólio quase
representativo, juntamente com prerrogativas especiais. De outro
exige o direito de controlar os grupos representativos por uma série
de mecanismos a fim de desencorajar a expressão de divergências e
exigências conflitantes” (Pereira, 1987. p. 54).

A conformação desse sistema ocorreu em dois momentos. Primeiro, “o governo


interveio ativamente através da restrição de motoristas autônomos de autolotações
e micro-ônibus e, posteriormente, de empresas auto-controladas, promovendo a
criação de empresas de ônibus0”, o que, no caso do Município do Rio de Janeiro,
corresponde à regulamentação do sistema de transporte por ônibus. Decreto “E”
n.º 3893 de janeiro de 1981.

“(...) estabeleceu em seguida, certo número de empresas através da


exigência de uma frota mínima, desativou meios de transporte
alternativos, estabeleceu regras de rentabilidade através de
mecanismos de reajuste tarifário quase automáticos, enfim, organizou
o sistema de forma abrangente. Porém, o governo atuou nesse sentido
através da concessão de privilégios: restrição de permissionárias ,
reserva de mercado por zona de operação, estabelecimento de linhas
e sessões rentáveis sem concorrência com outros meios de
transportes” (Pereira, 1987. p. 54).

O zoneamento e as rotas foram estabelecidas por várias legislações mas, o autor


refere-se, aqui, às frotas mínimas que, a legislação vigente (datada de 1981),
estabeleceu em cento e vinte veículos. Este quadro, assim constituído, permitiu
que, nos anos 90, os ônibus fossem responsáveis por 61%0 dos deslocamentos
metropolitanos. Com esta base, os empresários buscaram ampliar e aprofundar
essa situação de privilégio alcançada.

0 “Conjunto de estruturas que responde pela interação entre setor público e setor privado. A teoria da concessão
de grupos de interesses nos foi transmitida de Roma, via Península Ibérica. E parece ter se arraigado nos países
de América Latina. Entretanto estas concessões de privilégios, tinham como contra partida obrigações para as
empresas que teriam que se adequar ao papel do governo, que era de promover o bem comum enquanto o
governo deveria montar uma extensa rede de controle e fiscalização”. (Pereira, 1987. p. 54)
0 Pereira, 1997. p. p. 53
0 Segundo Leal (2002. p.33) 61% são realizados por ônibus, 11% por carros ou táxis, 3,1% por trens, 2,3 %
metrô e 0,7 % barcas.
“Para os empresários, neste segundo momento tratava-se de
preservar a posição estratégica conseguida. (...) O governo organizou
o sistema, e concedeu poder cartorial às empresas que, dependendo
dos azares das autoridades, podiam ter ganhos maiores ou menores.
Tudo isto se passava num mercado cativo, extremamente interessante
desde o ponto de vista da liquidez, e precisava ser preservado a
qualquer custo. Assim, a posição dos empresários passou a se
revestir, cada vez mais de caráter eminentemente defensivo, tornando-
se fundamental a adoção de duas linhas de atuação bem claras:
visando ampliar substancialmente as relações de interesses com a
burocracia estadual e municipal, eventualmente, federal, como parece
ter ocorrido com os membros do legislativo e com os sindicatos de
classe, especialmente com os sindicatos de rodoviários do Rio de
Janeiro. (...)E visando aumentar a eficiência e a produtividade do
sistema no nível micro-econômico, de forma a não deixar dúvidas da
vantagem das empresas privadas sobre as empresas públicas”
(Pereira, 1987. p. 55 - 6).
Pereira afirma que os empresários conseguiram alcançar, efetivamente, os seus os
objetivos0, o que pode ser facilmente provado e através da história subseqüente
dos transportes na Metrópole do Rio de Janeiro. Uma vez superado o episódio da
encampação dos ônibus0, os empresário conseguiram fortalecer sua posição
através da CTC (1991) e a compra da CIFERAL 0. “Os empresários têm total
consciência de sua força política. Estão convictos de que o governo não teria
condições de assumir o transporte”0.

A denúncia mais grave feita pelo autor consiste na identificação ideológica entre
empresários e poder público, de modo que a tarifa, sobre a qual os governos
deveriam ter a última palavra, tornou-se uma das questões negociadas, posto que
ao Estado é atribuída a mediação entre empresas e usuários0 E conclui:

“(...) neste caso estaríamos frente a uma aberração institucional e


política bastante preocupante, pois os usuários que deveriam ser a
própria razão de ser das empresas, dos órgãos de estado e da
prefeitura envolvidos, seriam , ao contrário, marginalizados e
excluídos de qualquer participação substantiva em função, mesmo, da
alteração do objeto do sistema” (Pereira, 1987. p. 60).
A apresentação do quadro da regulamentação do sistema de transportes que
antecedeu à expansão do transporte informal por vans visa explicar, em primeiro
lugar, que a polêmica ‘regular versus desregular’ elucida pouco o fenômeno
0 Pereira, 1987. p. 58
0 Durante o Governo de Leonel Brizola (1982 –1986).
0 Empresa pública privatizada pelo governo Marcelo Alencar.
0 Pereira, 1987. p. 60
0 Pereira, 1987. p. 59
tratado nesta tese. Sustento, neste capítulo, que mais importante do que a própria
regulamentação, as circunstâncias políticas em que esta ocorre. Seus resultados
não são nem imediatos, nem diretos. Esta problemática serve de pretexto para
sondar o modo de operação da política urbana, que terá, nos governos e em seus
instrumentos estatais, apenas um dos múltiplos agentes, que interagem na
produção do sistema de transportes metropolitano.

II. 2. b. Transporte Informal: cronologia da regulamentação

Como já disse, o transporte por kombis e outros veículos, na cidade do Rio de


Janeiro, recebem o nome de cabritinhos e são regulamentados desde 1984 sob o
nome de transporte complementar0 O seu regulamento, estabelecido pelo Decreto
11.470, define no seu artigo 1º:

“considera-se Serviço Complementar de Passageiros no Município


do Rio de Janeiro os serviços executados em locais de difícil acesso e
em locais de aglomerações populacionais que não disponham de
linha regular de ônibus”.
Trata-se de serviço explorado através do regime de permissão, a título precário,
mediante prévia licitação, e que pode ser executado por motoristas autônomos,
cooperativados ou não, e empresas, utilizando microônibus ‘A’ - com capacidade
de 20 a 30 passageiros sentados -; microônibus ‘B’- com capacidade de 13 a 19
passageiros sentados - e caminhonetes, com capacidade de 8 a 10 passageiros
sentados que não excedam 10 (dez) anos de uso, contados desde sua fabricação.

Cada permissionário autônomo pode admitir até 2 (dois) motoristas auxiliares,


devidamente cadastrados no órgão competente. Embora a legislação estabeleça
uma frota mínima para cada trajeto, não é exigida uma freqüência mínima, sem
que, contudo, haja flexibilidade no que concerne aos itinerários.

Tabela 1

Número de Operadores de Transporte Complementar no Município do Rio


de Janeiro por Tipo de Permissão - 2001

Tipo de Permissão
Nº de
Frota Pessoal
Permissões Permissionários Auxiliares Total

0 Na legislação estadual, não existe nenhuma referência e esta modalidade de transportes. E, nos demais
municípios de RMRJ não foi possível reconstruir nem a história nem encontrar a legislação.
Autônomos 126 127 49 94 143
Empresa 2 2 0 0 0
Cooperativa 1 0 77 0 77
Autorização Provisória. 8 8 0 0 0
TOTAL 137 137 126 94 220
Fonte SMTU, 2001

Pelos dados da SMTU, em 2001 circulavam no município cento e trinta e sete


veículos operadores em sua maioria autônomos organizados em cooperativas (ver
tabela 1) mas, estes números são inexpressivos frente à frota que realmente realiza
este serviço0.

II. 3 Modalidades de Transporte Informal Regulamentado

II. 3 a. no Estado

A modalidade, antes citada, não corresponde ao autodenominado nos anos 90,


transporte alternativo. Tal denominação foi aplicada, inicialmente ao transporte
por vans que tanto se dedicavam ao fretamento quanto à lotada. Assim, foi o
fretamento0 a primeira modalidade de transporte por vans legalizada no município
e no Estado. Este serviço já era contemplado no Estado pelo Decreto “E” 3893 de
23 de janeiro de 1981, que regulamentava o transporte coletivo intermunicipal de
passageiros por ônibus. De acordo com o decreto lei n. 275 de 22 de julho de
1975, o fretamento - segundo o determinado nos artigos 100 e 101 - é um serviço
prestado mediante a contratação de pessoas jurídicas, executado por empresas
privadas e realizado por veículos rodoviários registrados na Embratur.

A legislação em vigor não contemplava, então, o uso de pequenos veículos e nem


as cooperativas. O uso de micro-ônibus, vans e kombis foi autorizado, apenas,
pelas portarias do DETRO/pres. 437 e DETRO/pres. 438 de 11 de setembro de
19970, posteriormente sancionados pela Lei 2890 de 8 de janeiro de 1998. Este

0 Laboratório do Transporte Público, 2001. p. 4.


0 Curiosamente, foi a primeira modalidade de transportes que utilizava tais veículos a chegar ao conhecimento
dos funcionários do DETRO/RJ, no Governo do Estado, em 1993 como pode ser notado no depoimento de uma
alta funcionária do DETRO:“Em 93 foi a primeira vez que o Estado do Rio de Janeiro, ouviu falar em operação
com vans, para fazer deslocamentos de longa distância. Houve uma consulta formal, na Secretaria de
Transporte. E resolveram explicar que isso já estava acontecendo em outros lugares. Foi a primeira vez que nós
ouvimos que, naquele momento a legislação não nos permitia aceitar, aquela operação. Foi um algo todo novo.
Era um grupo que queria operar. Não era cooperativa, aliás, era uma pessoa física querendo operar
primeiramente com cinco vans no corredor para a Região dos Lagos. Lembro bem disso”.
0 Decretos não encontrados.
uso vinculava-se ao serviço de fretamento contínuo, eventual e turístico, sendo
vetado, expressamente, o uso de desses veículos, incluindo motos, para lotadas0.

“Art. 4.§ 2 Considera-se serviço de transporte, sob regime de


fretamento eventual ou turístico, o prestado, segundo preceitos dessa
lei e das disposições regulamentares, mediante emissão de nota fiscal,
para a realização de
a) excursões de turistas; e
b) programações culturais, serviços e lazer”.
Aquela lei, proposta pela Comissão de Transportes, Política Urbana e de
Habitação da Assembléia Legislativa, contemplava, ademais, o transporte porta a
porta0. Mas, esta modalidade foi vetada pelo governador Marcelo Alencar, pela
alegação de que o projeto de lei 1.175 de 1997 invadiu a competência do
Congresso Nacional, ao legislar sobre transporte nos artigos 2, 3 e § 1 do artigo 4.
O mesmo ocorreria, em relação ao Poder Executivo estadual, que possuiria a
prerrogativa de dispor sobre o regime jurídico de seus servidores. De todo modo,
essa legislação não conseguiu regularizar mais do que três cooperativas0.

II. 3.b. No Município

No mesmo período das portarias do DETRO/RJ, o uso de vans para transporte foi
contemplado, na Cidade do Rio de Janeiro, pela Lei Municipal n° 2582 de 28 de
outubro de 1997 e regulamentado, mais tarde, pelo decreto n°17349 de 26 de
fevereiro de 1999, na forma de fretamento. Não há registro desta atividade na
legislação municipal, em período anterior, embora houvesse no Estado, o que
permite inferir que não se tratava de uma atividade regulamentada pelo município.

O decreto que instituiu “o transporte coletivo de passageiros sob regime de


fretamento”, no seu artigo 1º, define o fretamento como

“(...) serviço contratado entre usuário e operador, em caráter


permanente ou temporário, para transporte de pessoas que
embarquem e desembarquem em locais devidamente aprovados pelo
Poder Pertinente Municipal do Rio de Janeiro, diversos dos previstos
para o transporte coletivo de passageiros”.

0 art. 17.
0 Transporte de lotação que partindo de um ponto determinado deixa os passageiros no seu destino final.
0 “Só 3 cooperativas até hoje conseguiram se registrar. De cor, não sei te dizer ...só 3 cooperativas se
cadastraram “ Funcionária do DETRO.
O transporte podia ser efetuado por veículos com capacidade para, no mínimo,
sete passageiros, atendendo as necessidades de pessoas portadoras de deficiência
física, grupos de turistas, transporte porta-a-porta e contratado de passageiros
(fretamento). Os serviços seriam prestados por pessoas físicas, organizadas em
cooperativas ou pessoas jurídicas. O instrumento legal que permitiu a circulação
foi a permissão a título provisório, estabelecido por licitação e revogável.

Este decreto permitiu a regularização de mil cento e cinqüenta e sete veículos,


operados por distribuídas entre mil quatrocentos e cinqüenta autônomos
organizados em quarenta e uma cooperativas e vinte e cinco empresas, como pode
ser visto na tabela 2.

Tabela 2

Número de Operadores de Fretamento no Município do Rio de Janeiro por


Tipo de Permissão - 2001

Nº de Pessoal
Tipo de Permissão Frota
Permissões Permissionários Auxiliares Total
Autônomos 1.450 1.113 28 383 411
Empresa 25 44 0 64 64
Cooperativa 41 0 1.422 0 1.422
Associação 0 0 0 0 0
SUBTOTAL 1.516 1.157 1.450 447 1.897
Fonte SMTU, 2001

É preciso chamar a atenção sobre os períodos coincidentes da regulamentação:


ocorrem entre setembro e outubro de 19970. Pode ser reconhecida, ainda, a
tentativa de delimitar o escopo de atuação, de modo a preservar o princípio
constitucional da delegação dos serviços públicos: de permissões concedidas (e
licitadas) pelo “poder concedente’ (ou “poder público”0). E ademais, sendo mais
perceptível no Estado, discrimina-se as modalidades regularizáveis e as que
continuarão ilegais de forma a evitar a concorrência danosa com o sistema de
transporte por ônibus, tal como definido pelo Decreto “E” 3893 de 1981 e pelas
diretrizes municipais expressas no Decreto “N” nº 45 de 1963 0, que excluíram um
grande número de operadores. Entretanto, ambas constituem apenas um momento
de um processo maior e ainda inconcluso0.
0 Recordar que este momento corresponde ao ápice das lutas pela regulamentação.
0 Lei federal No 866 e 9648.
0 Isto não autoriza a falar de Neo-liberalismo.
0 Escrevo isto em 22 de junho de 2003.
II. 4. Regulamentação da “lotada”

Antes de prosseguir com a descrição dos decretos que regulamentaram a lotada, é


necessário que me detenha nos termos com os quais se define a nova modalidade
de transporte. Como já foi visto no primeiro capítulo, os operadores diretos
insistem em se auto-definir como alternativos. Este termo engloba um conjunto
bem diferente de formas de circulação e operação. Tal denominação explica-se
não por sua adequação técnica ou jurídica mas, pela conformação de um campo de
lutas – político - no qual os operadores de transportes informais opõem-se ao
transporte convencional por ônibus, buscando trazer a opinião pública em seu
favor, com o objetivo expresso alcançar a legalização da lotada 0. Este propósito
não foi alcançado nas primeiras regulamentações mas, ao longo do ano de 2000,
que marcou, de fato, sua incorporação concreta ao sistema regular de transportes
da região metropolitana. No Estado, o Decreto “E” nº 25.955 de 7 de janeiro de
2000, regulamentou o transporte alternativo intermunicipal e a Lei 3473 de 04 de
outubro de 2000 revogou a lei 2890. No Município, o Decreto “N” nº19469 de 03
de janeiro de 2001, estabelece o fim da repressão ao transporte por vans e kombis,
procedendo à regulamentação, meses mais tarde, pelo Decreto n° 19951 de 30 de
maio de 2001. No Estado, a lotada foi incorporada com a denominação de Serviço
Alternativo de Transporte Rodoviário Intermunicipal (SETAIP), enquanto, no
Município, e foi denominado de Subsistema de Transporte Complementar
Especial (STCE).

II. 4. a. Legislação Estadual

O decreto n° 25.955 instituiu o Serviço Alternativo de Transporte Rodoviário


Intermunicipal de Passageiros(SETAIP) nos seguintes termos:

“Art. 1.º Fica instituído o Serviço de Transporte Alternativo


Rodoviário Intermunicipal de Passageiros (SETAIP) em veículos
utilitários tipo Van e Kombi, integrado ao Sistema de Transporte
Público de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (STPP), a ser
prestado por delegação do Poder Executivo, sob o regime de
permissão, no âmbito do Departamento de Transportes Rodoviários
do Estado do Rio de Janeiro - DETRO/RJ, nos termos deste Decreto.
Parágrafo único - A permissão será delegada, a título precário,
mediante prévia licitação, exclusivamente a pessoa física associada a
uma Cooperativa de Transporte de Passageiros, que, além de
responsável pela gestão do serviço permitido, obrigar-se-á
0 Recordar que no início de 1997 uma liderança tinha declarado: “ a legalização da lotada é o nosso objetivo”.
solidariamente com o permissionário pelo cumprimento das normas
da permissão”.
A normatização é explícita no seu propósito de enquadrar uma modalidade de
transportes que existe per si – auto-regulada - no marco da ordem institucional
vigente, no que concerne à prestação de serviços públicos, como pode ser notado
nas considerações que precedem o texto do decreto:

“CONSIDERANDO, finalmente, a necessidade de planejar, organizar


e disciplinar o transporte alternativo rodoviário de passageiros
compatibilizando-o com o transporte convencional e integrando-o ao
sistema de transporte público de passageiros”

A organização supõe uma definição do que pode ser considerado o transporte


alternativo e ratifica o princípio da não concorrência com o sistema de ônibus e a
integração modal.

“Art. 2.º Considera-se transporte alternativo, para os efeitos deste


Decreto, a operação de transporte rodoviário intermunicipal que atue
em serviço diferenciado ou que venha a suprir a demanda de
passageiros decorrente da insuficiência ou de ausência de
atendimento pelo serviço convencional de transporte coletivo
intermunicipal.
Parágrafo único - Não será considerado transporte alternativo, mas,
ao contrário, serviço coincidente ou concorrente com o serviço
convencional aquele:
“I) que embarcar ou desembarcar passageiros, ao longo do itinerário,
fora de um raio de 1 km dos pontos terminais;

II) cujos pontos de parada para embarque e desembarque dos


passageiros sejam os mesmos do serviço convencional, ressalvada a
hipótese de interesse na integração com os modais de maior
capacidade, a critério do DETRO/RJ;
III) cujo valor da tarifa do serviço alternativo não atenda ao disposto
no inciso IV do art. 3º deste Decreto”.

O decreto define, ademais, e conforme as prerrogativas da legislação federal e


estadual, cabendo ao último, o planejamento e determinação das normas de
exploração dos serviços de transporte e das condições de habilitação aos
operadores, tais como: auxiliares e fiscais de cooperativas (ver quadro 2).

A normatização visa dar “forma” aos transportes informais. Ou seja, condiciona a


permissão ao cumprimento dos princípios constitucionais da iniciativa estatal e
outorga a permissão do serviço público por tempo determinado mediante licitação
prévia. Cabe ao DETRO-RJ determinar as linhas; autorizar e homologar as tarifas
e determinar critérios de controle técnico, tais como; fiscalização, planilhas e
normas de segurança.

A determinação das linhas, entretanto, não veio precedida de estudos de demanda


e levantamento de carências do sistema. Estas foram estimadas a partir de
propostas dos operadores filiados a cooperativas legalizadas. Coube às
cooperativas apresentar ao DETRO-RJ a proposta da linha a ser operada,
detalhando o número de permissões adeqüadas, a freqüência, tempo da viagem, e
período de operação
Quadro 3
Decreto Nº 25955
Permissão Válida por cinco anos
Renovável a critério do DETRO
Vagas “guardadas” por 6 meses.
Contrato De adesão
Efetuado entre o Estado, Pessoa Física e Cooperativa.
Delegado no Diário Oficial do Poder Executivo.
Condições Autorização pelo DETRO/RJ
Prestação de serviço contínuo e permanente.
Corresponsabilidade Pessoa Física – Cooperativa
Normas e Planejamento Prerrogativa do Estado através do DETRO/RJ e do Conselho consultivo
Tarifas Homologado pelo Governador com base nas planilhas.
Criação de Linhas Prerrogativa do DETRO/RJ e o Conselho Consultivo a pedido dos usuários e fundado em
estudos técnicos(2).
Critérios Técnicos Equiparação de oferta e produção, evitando a concorrência com o sistema de ônibus e a
superposição de linhas.
O seu número não deverá ultrapassar 20% da demanda convencional.
Prerrogativa técnica do DETRO/RJ.
Conteúdo da Proposta Área de atuação
Número de permissionários por Linha.
Pontos e Paradas.
Itinerários.
Freqüência.
Tempo de viagem.
Período de operação.
Linha operada por cooperativa
Permissão Eqüivale a 55% dos veículos do sistema convencional.
Adequação à Lei municipal
Planilha Elaborada pelo DETRO/RJ
Operadores/Autorização Pessoa Física
Habilitação Profissional conforme CTB
18 anos
Experiência de 18 meses.
Curso de Direção Defensiva.
Curso de Relações Humanas.
Estar Filiado a uma Cooperativa (legal)
Certificado de Reservista.
Curso de Primeiros Socorros.
Domicílio eleitoral no Rio de Janeiro por dois anos.
Estar em dia tributariamente.
Estar em dia com a cooperativa.
Não ser motorista auxiliar de qualquer serviço permissionado.
Ser proprietário exclusivo do veículo.
Ter o transporte como única fonte de renda.
Bons antecedentes.
É vedado ser proprietário de mais de um veículo.
Cooperativa Capital de 80000 UFIRs.
Garagem para, no mínimo 6 veículos.
Seguro APP no valor de 20000 UFIRs.
Auxiliares 1 auxiliar – legalmente registrado.
Veículo Capacidade entre 9 e 16 passageiros (confirmar motorista)
Três portas.
Idade máxima: 5 anos para cadastro e dois para operação, totalizando 7 anos.
A partir da emissão de fatura de compra.
Substituição deve ocorres 30 dias antes do fiem do prazo.
Padronização de cor
Tacógrafo, Extintor , cintos e ítens de segurança segundo CBT e CONTAN
Publicidade autorizada por CONTAN
CFOMV Com uso definido por DETRO
Selo de CAT.
Vistoria Selo anual
Vistorias especiais determinadas pelo DETRO/RJ
Direitos Recorres a decisões do permissionário.
Casos em que é possível recusar o transporte.
Obrigações Prioridade de embarque a gestantes, idoso e portadores de deficiência.
1 assento para gratuidade.
Fiscalização DETRO/RJ
Detro manterá Cadastro de cooperativas e permissionários.
Processo disciplinar Será complementado em decreto complementar.
(1) Criado pelo DETRO/RJ a ser regulamentado.
(2) Princípio idêntico ao de expansão de linhas convencionais.

Quanto ao permissionário, o decreto estabelece que deveria ser pessoa física,


adulta, com habilitação profissional, com um mínimo de 18 meses de experiência
e com domicílio eleitoral no Estado do Rio Janeiro. O permissionário deveria,
ainda, ser proprietário de apenas um veículo, sem poder acúmulo de qualquer
outro tipo de permissão estadual, tendo o transporte como única renda, além de
bons antecedentes e probidade fiscal. Deveria, ademais, realizar cursos de direção
defensiva, relações humanas e primeiros socorros. Admite-se também o uso de
serviços de um motorista auxiliar, devidamente registrado.

A cooperativa, com capital social mínimo de 80000 UFIRs, deveria funcionar


como uma empresa, com garagens e seguro de Acidentes Pessoais de Passageiros
(APP).

Quanto aos veículos estabeleceu-se um prazo de 7 anos de vida útil; exigiu-se a


padronização de cores; estabelecendo-se critérios de segurança e o controle de
velocidade; limites à publicidade; fiscalização anual: vistoria e uso de selos.
Quanto ao serviço, exigiu-se um certo número de vagas fixo, por veículo, para
transporte gratuito de idosos e escolares. Quanto ao Regulamento Disciplinar, o
decreto registra a sua existência mas posterga sua redação.

A normatização do Serviço de Transportes Alternativos Intermunicipais de


Passageiros contempla vários aspectos do transporte: critérios de permissão,
critérios destinados a garantir a eficiência do serviço e segurança dos passageiros
e, até mesmo, as relações de trabalho 0. Chamo a atenção, contudo, para a ambígua
definição do SETAIP: ao mesmo tempo em que deveriam ser considerados
transportes especiais, com ar condicionado, mais velozes e mais caros - com
capacidade de transporte nunca superior a 20% da frota de ônibus convencionais -
e atender lugares com transporte de deficientes o que, habitualmente, é realizado
por kombis. Este é transporte complementar, como foi visto, permanece
largamente na ilegalidade. Na prática, o transporte intermunicipal regulamentado
pelo Estado, é um transporte radial, cobrindo distâncias maiores e operado por

0 As regulamentações dos anos 60 e 70 fizeram o mesmo em relação ao mercado de trabalho dos ônibus.
Fixando, o nível salarial, a qualificação, os uniformes, entre outro aspectos.
vans, enquanto o transporte por kombis restringe-se a uma escala local, ou melhor
dizendo, municipal0.

II. 4. b. Legalização Municipal

No município do Rio de Janeiro, como antes registrado, a legalização inicia-se


com o Decreto “N” nº 19469, e prossegue com o Decreto n° 19951, seguido de
uma legislação, com vetos, que não vige0. O segundo decreto regulamentou o
transporte operado por kombis e vans e o conceitua como Sub-sistema de
Transporte Urbano Especial Complementar sem que, porém, seja claramente
definido em que consiste e quais as suas características específicas.

O texto do decreto estabelece que a regulamentação e a fiscalização serão


realizadas pela SMTU e a GM (Superintendência Municipal de Transporte Urbano
e Guarda Municipal respectivamente), sendo explicitada a razão da
regulamentação e os seus procedimentos, como pode ser visto nas considerações
que iniciais.

“CONSIDERANDO a inocuidade de anteriores tentativas encetadas


pela Pública Administração Municipal para ordenar a atividade de
transporte desenvolvida por Kombis e Vans, mercê do caráter pontual
e exclusivamente repressivo adotado

CONSIDERANDO que a realização do competente processo


licitatório requer a elaboração de prévia análise técnica informadora
da necessidade do serviço nas diversas áreas que integram o
território municipal, bem como a definição dos trajetos, horários e
estimativa de tarifas pertinentes

CONSIDERANDO que o serviço de transporte executado por veículos


utilitários Kombis e Vans deve complementar ao transporte coletivo
de passageiros convencional, desenvolvido por ônibus, prevenindo
sobreposições danosas à racionalidade do sistema e à qualidade do
serviço

0 “Percebe-se um equívoco conceitual ao se buscar suprir a insuficiência e a ausência de oferta de transporte


coletivo convencional praticando tarifas mais elevadas do que as que deveriam ser praticadas por este mesmo
serviço caso ele existisse, além de exigir que os veículos sejam dotados de ar condicionado” (Laboratório de
Transportes Públicos, 2001. p. 8).
0 Segundo entrevista concedida alta funcionária da SMTU.
CONSIDERANDO que a realização do cadastramento pela
Superintendência Municipal de Transportes Urbanos – SMTU, ora
concluído, traduziu-se na primeira e indispensável etapa do processo
de regulamentação, revelando dados até então inexistentes acerca dos
profissionais que desempenham tais atividades, a natureza da
atividade desempenhada e o perfil dos respectivos usuários
CONSIDERANDO que a consumação de etapas subseqüentes,
inclusive a elaboração e realização de centenas de licitações
despenderá tempo, a despeito da óbvia prioridade conferida à
matéria pelos órgãos públicos responsáveis
CONSIDERANDO que não pode o Poder Público deixar de adotar
medidas administrativas necessárias ao ordenamento da atividade,
mesmo em caráter transitório, posto que o seu exercício repercute na
segurança do usuário, dos demais cidadãos que se utilizam das vias
públicas e na qualidade de vida da Cidade
CONSIDERANDO que o poder de polícia, nas hipóteses em que as
normas jurídicas encontrem-se ajustadas à complexidade dos fatos
sociais, contribui para a eficácia da fiscalização a cargo da
Administração, melhor servindo ao interesse público;
Considerando o art. 395, art. 399, art. 413 e art.415 da Lei Orgânica
do Município do Rio de Janeiro; o art. 168, incisos II e IV do Plano
Diretor da Cidade do Rio de Janeiro; a Lei 2582 de 28 de outubro de
1987”.
Considera-se equivocadas as políticas anteriores, que teriam sido ineficazes no
enquadramento legal e técnico do transporte informal, de maneira a torná-lo
complementar ao serviço convencional por ônibus e, ademais, com capacidade de
oferecer, aos cidadãos, melhorias na qualidade de vida e de circulação. Tais fins
justificariam uma mudança na ordem processual: ao invés da licitação anteceder à
permissão - e com isto a pesquisa e o planejamento, antecederem a legalização - a
concessão de autorizações provisórias visava o cadastramento do maior número
de operadores diretos e, assim a obtenção de um retrato fiel das características do
sistema.

A inversão do processo não significa o abandono da permissão concedida por


licitação e nem dos princípios da prerrogativa estatal. Estes aspectos, não são,
contudo, tão frisados quanto no texto do decreto estadual. De todo modo, foi
atribuída à Secretaria Municipal de Transportes (SMTR) e à Superintendência
Municipal de Transporte Urbano (SMTU) a responsabilidade pelo processo de
regulamentação.
Para atender aos critérios para obtenção de pessoal e intransmissível, como pode
ser visto no quadro 3, foi estabelecido que o permissionário seria uma pessoa
física, sem nenhum tipo de permissão para o transporte de passageiros ou
emprego público0, que tenham participado do cadastramento realizado entre
09/01/2001 e 10/ 02/2001. O postulante deve possuir carteira de habilitação
adequada, segundo os critérios da lei nacional de trânsito e realizar uma série de
cursos: legislação e trânsito, ética e cidadania, meio-ambiente, qualidade de vida,
primeiros-socorros, direção defensiva, procedimentos operacionais da SMTU e
relações interpessoais0. A autorização não exige filiação a cooperativa. Mas, caso
exista, a cooperativa deve ter, como finalidade exclusiva, o transporte.

Para cadastramento, os veículos, deveriam ter capacidade entre 8 e 16 passageiros,


ter no máximo 3 anos de fabricação e obteriam permissão para operar por cinco
anos a partir desta mesma data. Deveriam, ademais, instalar tacógrafos e
possuírem cintos de segurança individuais, sendo proibida a instalação de
equipamentos de som, salvo casos especificamente autorizados. Os carros seriam
identificados, ademais, com cores diferenciais por linhas. Proibiu-se o
estacionamento em logradouro público, o que significa incentivo a estruturas
organizativas mais profissionais através de cooperativas que fiscalizem os
itinerários, freqüência e velocidade.

0 Critério que exclui permissionários de fretamento, de táxi e funcionários públicos, portanto, impossibilita o
transporte como segundo trabalho ou como “bico”.
0 Os cursos exigidos abriram uma brecha para que universidades privadas oferecessem os curso somo pode ser
visto na reprodução de publicidade em anexo.
Quadro 3
Decreto Municipal Nº 19951
Autorização Permissão por licitação
Provisoriamente é uma autorização pessoal intransmissível.
Segundo critérios a definir pelo SMTR e SMTU
Pessoa Física
Cadastrada entre 9/01/2001 e 10/02/2001
Inspeção visual de segurança
Amparada por vistoria
Curso de Legislação de Trânsito
Curso de Ética e Cidadania
Curso de Meio Ambiente
Curso de Qualidade de Vida
Curso de Primeiros socorros
Curso de Direção defensiva
Curso de Procedimentos operacionais da SMTU
Curso de Evolução tecnológica
Curso de Relações interpessoais
Não ser permissionário de transporte de passageiros
Um veículo por autorizado desde que não exerça atividade em negócio pessoal ou
em sociedade.
Não ser funcionário público em atividade.
Cadastro Motorista ou auxiliar devem estar habilitados segundo o CBT
Auxiliar Cooperado ou com Carteira assinada
1 auxiliar por veículo
Cooperativa Formada exclusivamente com a finalidade de atuar em transportes.
Documentação CNIH
DUT
CIPC
Identidade
Selo de vistoria anual
Certificado de cadastro
Veículos e equipamentos Proibição de guarda do veículo em logradouros públicos
Espaço interno segue normas da SMTU
Seguir trajeto previamente definido pelo SMTU.
Capacidade: entre 8 e 16 passageiros
5 anos de validade, cadastrável com o máximo 3 anos.
Tacógrafo.
Cinto individual.
Sem som, salvo casos especiais, autorizados.
Podem ter fiscais próprios que controlem os itinerários, freqüência e velocidade
nos pontos.
(Continuação)
Cores diferenciadas por linhas
Se não aprovadas em vistoria tem 9 meses para substituição.
Tarifas Direito a auferir justa remuneração do capital empregado ( equilíbrio econômico
financeiro).
Fixado pelo SMTU tendo como base estudo prévio
Deve levar em consideração custos fixos e variáveis, a quilometragem de cada
roteiro e o número de passageiros.
Compatíveis com ônibus.
Sem aumento por transporte de bagagem.
Preço público definidos pelo SMTU.
Obrigações Acatar regulamento
Plano operacional da SMTU
Quanto a conforto, manutenção, conforto
Recusar passageiros em certas condições específicas.
Obrigações fiscais.
Carga horária compatível com segurança
Boa aparência e uniforme
Comunicar mudanças de endereço
Educação no trato
Não recusar passageiros
Cobrar preço legal
Fixar visivelmente o preço
Não fumar
Não usar som
Renovar anualmente a autorização
Devolver a documentação em caso de afastamento.
Não excesso de lotação
Não mudar combustível sem autorização
DUT na substituição de veículos
Não abastecer com passageiros
Prestar toda informação aos passageiros
Direção segura e confiável.
Respeitar velocidade.
Seguro obrigatório e de responsabilidade civil contra terceiros.
Recolher ISS
1 lugar de gratuidade para veículos para 11 passageiros e
2 lugares para veículos para 16.
Direitos Posicionar-se perante o SMTU
Recusar passageiros especificados.
Fiscalização SMTU enfatizará: conforto, pontualidade e regularidade do serviço.
SMTU fornecerá orientação para a correta prestação do serviço.
SMTU pode retirar imediatamente veículos de circulação.
Penalidades ( Item extensamente detalhado)
Direitos dos Usuários Serviço de qualidade
Acesso fácil e permanente quanto ao serviço.
Regularidade nos serviços.
Respostas às reclamações.
Propôr medidas que visem a melhoria do serviço.
Trato urbano e respeitoso.
Ouvidoria por parte da SMTU
Fonte: Decreto Municipal n 19951 – Elaboração própria

Apesar do detalhamento e do seu sucesso imediato0, o decreto permanece evasivo


na definição do Transporte Especial Complementar, o que sugere a ingerência de
fatores políticos durante a regulamentação Este fato demonstra, preocupação com
o ordenamento do sistema, sem que haja transparência em seus princípios a não
ser quando se trata de evitar a concorrência com o sistema de ônibus
convencional. Por outro lado, o que é bastante curioso, tanto o Estado quanto o

0 Compareceram 9000 operadores, dos quais 5000 foram autorizados e um número menor, ainda, logrou a
renovação.
Município criam obstáculos à participação de empresas e à contratação de mais de
um auxiliar.

II.4. c. Organizar Versus Ordenar

A lotada, quando regulamentada, converte-se em transporte alternativo ou


complementar especial. Cada denominação caracteriza uma avaliação, um projeto
e objetivos a cumprir, em relação aos transportes. Se definido como na legislação
estadual - como transporte alternativo - são uma solução para o problema. Já
como transporte complementar especial não se menciona as deficiências. Entende-
se0que este opere em locais de difícil acesso e aglomerações que não disponham
de linha regular de ônibus. Quanto ao que os faz especiais nada é dito. Argumentei
que a escolha da definição ocorre num campo de lutas político, em que está em
jogo não apenas as formas de operação mas, o modo de articulação com outros
sistemas e o número, qualidade e tipo de veículos que serão regularizados e os que
serão excluídos.

Ambos projetos de regulamentação empenham-se em compatibilizar o


estabelecido na legislação vigente de modo a garantir o princípio da gestão
pública dos serviços coletivos e a promover o papel central da instituição estatal
quanto à determinação de linhas, preços, freqüência, horários, qualidade técnica
dos serviços e segurança. Das diferenças entre ambos, entretanto, é possível
inferir - além de expectativas diferentes quanto ao transporte – que existem
compromissos políticos subjacentes a regulamentação.

Ambas normatizações buscam harmonizar eficiência na prestação do serviço com


rentabilidade0. Concordam quanto à necessidade de equilibrar rentabilidade e bem
estar social0. No entanto, nas ambigüidades e no não dito, manifestam-se
diferenças que podem ser desvendadas pela análise das conotações dos termos
ordenar e organizar, com os quais os textos explicitam os propósitos da
legalização.

No âmbito estadual fala-se de “a necessidade de planejar, organizar e disciplinar o


transporte alternativo rodoviário de passageiros compatibilizando-o com o
transporte convencional e integrando-o ao sistema de transporte público de

0 Como definido nas resoluções 350 e 470 da SMTU de 1984.


0 Estes não são os únicos aspectos legislados. Todas as regulamentações normatizam o mercado de trabalho.
0 Segundo definição de Orrico (1996. p. 15).
passageiros”. Enquanto no município, critica-se se a “inocuidade de anteriores
tentativas encetadas pela Pública Administração Municipal para ordenar a
atividade de transporte desenvolvida por kombis e vans, mercê do caráter pontual
e exclusivamente repressivo adotado”.

A diferença entre planejar, organizar e disciplinar e ordenar pode parecer tênue, 0


na medida que faz referência a um arranjo de ação destinado a atingir um fim ou
satisfazer certas funções ou necessidades. Creio, porém, restringindo-me à letra da
lei quando observo que há diferenças mais amplas, que vão além das semelhanças
que tratarei de mostrar mais à frente. Esta diferença advém de uma avaliação
diversa quanto às dimensões geográficas, econômicas e sociais da expansão dos
transportes informais. De modo que enquanto o Governo do Estado manifesta a
sua disposição de proceder ao estudo de demanda, planejamento e concessão de
permissões a operadores individuais organizados em cooperativas, no município
reconhece-se a impossibilidade de proceder deste modo pelos erros das
administrações anteriores, teriam realizado uma repressão infrutífera e, também,
pela complexidade do fato social, e em virtude disto, o que justificaria a inversão
do processo de regulamentação.

Assim, se os condicionantes jurídico-institucionais são semelhantes, as atitudes,


procedimentos e modos de regulamentação manifestam diferenças. A atitude do
estado, pode ser caracterizada como organizadora, na medida em que pretende
“dar às partes (de um corpo) a disposição necessária para as funções a que ele se
destina”. E a atitude do município, pode ser reconhecida como ordenadora, dado
que busca atingir “tranqüilidade pública resultante da conformidade às leis”. Isto
é, disciplinar e subordinar, o que é absolutamente coerente à declaração do
Prefeito do Rio César Maia, em 1997, quando declarou da necessidade de “domar
as bestas”0.

II. 5. Racionalizar Versus Ordenar

0 Ordem: Disposições convenientes dos meios para atingir os fins. 2 Disposição metódica (..) de
coisas segundo certas relações. 3 Boa disposição. 4) Qualidade de quem é metódico. 5)
Tranqüilidade pública resultante da conformidade às leis. 6 Disciplina, subordinação. 7
Determinação da autoridade, etc.
Organização: Constituir organismo de; estabelecer as bases de, arranjos, dispor. 2 Dar às partes (de um corpo) a
disposição necessária para a s funções a que ele se destina. 4 Arranjo ou instituição com objetivos definidos. 7
Planejamento, preparo (Holanda, 1989).
0 O Dia, 20/04/96
O propósito ordenador e/ou organizador do Estado e do Município, não pode ser
explicado completamente pela análise do texto das leis. É preciso deixar claro que
tanto a dinâmica em prol da legalização quanto as indefinições e contradições da
legislação subordinam-se, mais que à negligência ou incompetência das
autoridades, ao estado da luta política. Tal fato não transparece no exame da
legislação. Por outro lado, correspondem, também, ao diagnóstico feito do sistema
de transporte e dos fins que deve atingir, ou melhor, dos fins da política de
transporte.

Para melhor entender as diferentes concepções presentes na regulamentação do


transporte informal no estado e município do Rio de Janeiro, a que tenho aludido
através da citação dos conceitos de organizar e ordenar, parece-me adequado
comparar o diagnóstico realizado, em entrevistas, por dois altos funcionários do
DETRO e da SMTU, responsáveis pelo processo de regulamentação em 2001.

II. 5.a. No Estado

Na concepção da funcionária do DETRO, quadro técnico da instituição e


participante do processo de regularização dos transportes, a causa do surgimento
do transporte de vans deve ser atribuída, em duplo sentido, à globalização. De um
lado, pela abertura das importações, no início dos anos 90, que permitiu o acesso a
utilitários. E de outro, pelo desemprego de funcionários técnicos e qualificados,
ocasionado pela privatização de empresas públicas. Foram estes que, de posse de
suas economias e fundos advindos da rescisão contratual, descobriram um
mercado desatendido – o da lotada . O desenvolvimento de um nicho de mercado,
num primeiro momento foi benéfico, na medida que aumentaram a oferta, a
velocidade e o status do transporte oferecido e as tarifas foram reduzidas. O
transporte informal sanou deficiências do sistema de transporte por ônibus,
decorrentes das fragilidades econômicas, técnicas, organizacionais e
comportamental das empresas operadoras, que lhes impediram o
acompanhamento de mudanças no uso do solo, ao que se agrega a falta de
planejamento do Estado.

Para esta depoente, entretanto, a tendência dos novos operadores é reproduzir os


vícios do sistema convencional de transportes, entregando-se à concorrência com
este e entre si, o que termina por prejudicar os usuários. Portanto, a política
destinada a este setor deverá racionalizar o serviço, garantindo rapidez;
aumentando a eficiência e diminuindo o número de veículos (ônibus, vans e
carros) das ruas e hierarquizando o serviço de modo a promover a integração dos
vários sub-sistemas.

II. 5.b. No Município

A funcionária da SMTU explicita que o ordenamento do sistema de transporte:


deve ser um projeto de médio prazo, não podendo depender de uma única gestão
municipal. Pois, a desordem não tem causas recentes, nem fáceis de solucionar. A
falta de investimento em transporte de massa produziu uma distorção, de modo
que o transporte por ônibus, em tese complementar, transformou-se, ao longo do
século XX, no principal sistema de transporte da cidade. Tal distorção torna-se
mais evidente no transporte para lugares distantes, pela inexistência de oferta e
pela falta de qualidade dos serviços.

Tais problemas, porém, não são suficientes para explicar a proliferação dos
transportes por vans e kombis. Aspectos culturais foram destacados na entrevista:
o individualismo, e busca de serviços personalizados, velozes e flexíveis. Esses
valores, também, estariam relacionados à globalização. No cotidiano, manifestar-
se-ia a valorização do transporte individual ou, quando não possível, de
transportes que permitiriam aumentar a individualização: vans e kombis.
Entretanto, tal opção constituiria um fator de desordem no tráfego.

Estas condições tornam impossível a racionalização dos transportes num único


sistema integrado formalmente perfeito. Neste contexto, ordenar seria alcançar
eficiência; aumentar a velocidade e compatibilizar tarifas para permitir,
simultaneamente, o individualismo e a eficiência.

Em suma, a noção de ordem, para a depoente, engloba três aspectos distintos. A


ordem jurídica legal, que não afeta apenas vans e kombis mas, o próprio sistema
de transporte convencional. A ordem nos fluxos, isto é, preservar condições
ótimas de circulação. E, finalmente, trata-se de promover uma ordem social
destinada a atender as necessidades dos indivíduos como usuários e como
cidadãos.
II.5.c. Política e Técnica: interesses desencontrados
A comparação dos diagnósticos justifica os distintos termos utilizados para
caracterizar diferenças0 ocorridas na normatização: ordenamento e racionalização.
Em ambos os casos, reconhecem-se as deficiências do sistema de transporte mas,
o termo ordenar possui um sentido mais amplo, onde a política e a decisão política
têm lugar central. Então, disciplinar, organizar e planejar, facilmente resumíveis
ao conceito de racionalização, implica na busca de uma solução técnica0.

De todo modo, o processo de regulamentação dos transportes informais deve ser


entendido à luz da luta política. Os empecilhos, dificuldades e retrocessos,
posteriores, devem ser também relacionados a luta política, já que a legalização
foi uma decisão política, e não técnica, tanto no estado quanto no município,
como testemunham os seguintes depoimentos.

“Aí com isso é que vem o componente político. O governo Moreira


Franco, do Marcelo Alencar chegando ao final, o mercado ficando
cada vez mais cheio de cooperados, vem as eleições, vem a campanha
eleitoral, que foi o Garotinho, ele pegou essa bandeira na campanha,
essa promessa de legalizá-los. E desde o início...” Funcionária do
DETRO.
“A gente adotou, na verdade o prefeito atual, em 2000, na campanha
ele assumiu um compromisso, até porque ele tinha feito a questão do
frete, então ele tinha iniciado este processo e assumiu o compromisso
de fazer a regulamentação” Funcionária da SMTU.
Os depoimentos apenas vêm ratificar informações já levantadas na imprensa e
confirmadas pelas lideranças do movimento de transportes alternativo: a decisão
política de regulamentar, associada ao cesse imediato da repressão. A posterior
normatização está associada ao peso eleitoral do transporte informal em eleições
majoritárias. Quer dizer, tomada a decisão política favorável à regulamentação e
antes da lei, manifesta-se ao jogo de forças típico, que se traduz num processo
lento, que altera os propósitos pactuados em campanha ao sabor da composição de
forças no legislativo. Por outro lado, uma vez normatizadas as práticas, acontece a
gestão cotidiana da negociação, da regulamentação e da fiscalização,

0 E lhes dá um alcance maior que envolve a administração.


0 É possível inferir que a diferenciação no sentido dos discursos se origine na forma integração de cada uma das
entrevistadas no campo institucional. A funcionária do DETRO é um quadro técnico e a Funcionária da SMTU,
político.
desenvolvidas por instituições específicas: no caso do Estado, o DETRO/RJ e do
município, a SMTU0.

II.6. Objetivos da Institucionalização do Sistema

Mas, a rotina administrativa não está livre de política: devem ser resolvidos os
confrontos entre aspectos políticos e aspectos técnicos do sistema de transportes.
O que resulta dessa composição de aspectos e forças distintas?

II.6.a. No Estado

“A legalização, no governo Garotinho, não nasceu no órgão


(DETRO). Nasce na Secretaria de Transporte. Antes estava o Raul de
Bonnis, o Rômulo, que era da Secretaria de Trabalho. Ele fez um
trabalho, ele que começou..., viajou, foi ele que começou a fazer o
primeiro cadastramento. Então em vez das cooperativas irem a ele,
ele foi. Deixou um banco de dados muito bom, na época. E a gente
trocou muitas, muitas idéias. Naquele período e depois, quando eu
assumi (...) ele não pensava numa legalização de linhas regulares. Ele
pensava numa legalização através de fretamento contínuo. Eles iam
operar como se fossem um táxi de lotada. Só que o Rômulo estava
tratando esse trabalho com uma liderança dispersa. Não existia um
grande líder. Eram líderes locais, eles ouvindo, e um trabalho como
deve ser, um trabalho serio. E o que ocorreu nesse processo: o Abdul
tendo uma aliança política com o Governador, então ao mesmo tempo
que o Rômulo fazia esse trabalho, o Abdul veio com uma outra forma
de legalizar que é conceder as linhas e aí o Raul saiu, o Rômulo saiu
junto e nós assumimos. Nós, eu e Henrique, que é muito próximo do
governador. E aí o Abdul veio trabalhar conosco, mostrando o
trabalho dele. A idéia do decreto do governador nasceu fruto desse
trabalho do Abdul. E a gente passou a trabalhar com as lideranças
das vans e com as lideranças dos ônibus. Então foram dois anos para
que o poder público venha tentando convergir. Aonde é que eles
podem convergir é ali que a gente vai”.

0 Como mostrado por Pereira


Percebe-se, neste trecho da entrevista, que a funcionária valoriza propostas
existentes no governo estadual durante a gestão anterior, de Marcelo Alencar, e
identifica uma mudança de sentido: com o novo governo. Uma das lideranças do
movimento – presidente da FECOTRAL - esteve diretamente envolvido na
elaboração da legislação, relegando os funcionários técnicos ao papel de
“mediadores”0 da relação entre empresários e operadores de vans.

“A situação que nós estamos vivendo aqui, no Estado do Rio de


Janeiro um momento delicadíssimo. A gente fez um cadastro e 2629 se
cadastraram e, até o momento, 1561 qualificados, já passaram por
todo esse processo de triagem. (...) E um dado que nos chama a
atenção é que com a legalização ou com o cadastramento, essa
possibilidade de ser legalizado a frota foi renovada. Então eu acho
que isso é um grande ganho para a população. A gente tirando os
carros velhos, inseguros, fazendo com que um condutor, na medida
em que a gente exige do condutor que ele seja mais capacitado, que
ele faça um treinamento, então legalizado ou não já se impõem uma
qualidade para esses condutores de transporte alternativos e seus
respectivos veículos.
Então, no atual momento, onde é que o topiqueiro ou a van, ou o
condutor de van está convergindo com o empresário de ônibus. É na
repressão a quem não está se legalizando”.
Como resultados positivos verifica-se a renovação da frota e a qualificação dos
operadores e, simultaneamente, o aumento do apoio à repressão ao transporte não
legalizado. Mas, o fato do DETRO/RJ ser responsável pela legalização torna-se
um obstáculo na prática.

O DETRO tem uma imagem muito comprometida, ele não tem uma
confiabilidade, um respeito da população, nem dos operadores, nem
mesmo no Legislativo. Nem aqueles que se servem do órgão dão
respeito ao órgão. Nem aqueles que dependem do órgão. E as
cooperativas em maior escalas, elas estão receosas. Por que? Porque
no governo do Marcelo Alencar foi o órgão que fez mais repressão

0 “Olha, em grande momento, um mediador. Porque um ou outro indo para a justiça, o que a gente
mais está vendo na área de transporte é que o poder judiciário inúmeras, ele inúmeras vezes toma o
lugar do Secretário de Transporte. Esse opera, esse não opera. Que são as grandes disputas no
judiciário das operadoras. Justamente os empresários de ônibus. Eu recentemente tive uma
audiência com o Ministro no Superior Tribunal de Justiça e ele me fez uma pergunta. "Doutora, a
senhora sabe me explicar porque os empresários de ônibus do Estado do Rio de Janeiro são os
empresários que mais recorrem a Justiça em todo o Brasil?"
Nós estamos o tempo todo como mediadores, tentando, dessa diversidade de..., de variáveis que estão em jogo,
fazer com que a van consiga se legalizar e atender um deslocamento que ainda não está ativado. Então a gente
vem falando muito justamente isso que eu estou te falando, das transversais, nas alimentações. Como a
SUPERVIA, necessita imensamente de integração. A SUPERVIA, para chegar a um ponto de equilíbrio, ela
precisa de integração. Sem integração os lindeiros já estão ali. Ela para implementar essa demanda, ela tem que
buscar esse passageiro para ela. Funcionária do DETRO.
contra eles. Foi o órgão que estabeleceu mais impedimento para eles
se legalizarem. Então, a imagem do órgão era muito ruim para os
cooperativados.
E, o desprestígio acarreta dificuldades para a regularização do sistema.

Então, o nosso problema não é quem está cadastrado, mas quem não
se cadastrou. É muito maior.
Um outro obstáculo à racionalização do sistema adviria do desencontro dos
sistemas municipais no âmbito da região metropolitana, assim

“O município do Rio está legalizando. Aí você vai para Niterói, não


legaliza e sequer quer que as vans circulem pelo município. Mas não
é competência municipal, legislar, gerenciar a circulação viária
dentro do município”.
Cabe ao DETRO, então, reprimir nestes casos0.

E justamente na escala metropolitana, onde as dificuldades de racionalização do


sistema mostram, de forma patente, a sua incompatibilidade (para não dizer
contradição) com o ordenamento político do território torna-se patente.

“Eu acho que..., é vencer esse imobilismos de longas datas, esses


partidarismos, que a cada dois anos você tem uma eleição de um lado
ou de outro. Agora nós estamos vencendo isso E aí, quando você está
tratando já com pessoas do município, que fazem parte da agência
metropolitana e discutindo o interesse metropolitano é o que
convergem as nossas ações. Então já se tem uma eleição chegando no
Governo do Estado, as figuras mudam. Aí começa..., isso é danoso”.

A tentativa de racionalização do sistema de transportes é apresentado como um


esforço inglório de negociação entre as partes interessadas na qual o estado
funciona como mediador mas é, ao mesmo tempo, encarregado da repressão, num
território institucionalmente dividido em municípios com dinâmica política
própria, o que dificulta a tomada de decisões e racionalização do sistema.

II.6.b. No Município

“Não adiantava mais negar, porque de meados para o fim de 2000 a


repressão aumentou muito, e ao aumentar muito ela mobilizou muito,
a reação à repressão mobilizou. Então o setor estava razoavelmente
mobilizado para que a regulamentação se desse. Nós fizemos uma
opção pela regulamentação muito diferente do estado. Em janeiro e
0 É bom lembrar que há conflitos entre prefeituras e municípios quanto à instância a que corresponde à
repressão.
fevereiro de 2001, abrimos um cadastro amplo, sem restrição –
“quem quer se legalizar vem”. Porque sempre se diz números, mas
sempre hipotéticos, as pessoas inventam números, porque para saber
disto é preciso um trabalho de pesquisa que seria bastante caro e isso
não foi feito. Então o que nós fizemos? “Tá todo mundo mobilizado,
acabou de sair de uma campanha eleitoral, o segmento quer se
legalizar, abre um cadastro que ele vem”. Veio. Vieram nove mil e
quatorze para o cadastro, é evidente que como todo o processo que a
gente tem que acelerar, tinha problema no cadastro, a gente teve que
digitar, tirando tudo isso, nó verificamos que trazer isto tudo para a
legalidade mais ampla, não poderia ser você dar um salto de um
estágio para outro estágio, que não se faria isto nunca, porque você
precisaria, por exemplo, para fazer um processo de licitação você tem
que ter todo um estudo de linha, uma pesquisa anterior, ver demanda
de onde... Isto é um processo para um ano e meio, um ano e meio de
pesquisa e elaboração de edital, para depois entrar nisto, seria um
processo para mais de dois anos. É impossível você deixar à solta na
rua este volume, que tenderia a crescer, então a gente adotou outro
mecanismo, estou dizendo que este mecanismo foi mais ou menos o
mecanismo do estado, como princípio. Após o cadastramento, nós
fizemos um decreto, não fizemos uma lei inicialmente porque
sabíamos também que a composição da Câmara de Vereadores ela é
desfavorável a isto porque existem muitos lobbys e os lobbys
poderosos de que eram representantes têm um poder econômico
vinculado ao setor empresarial. Uma legislação naquele momento
não adiantaria porque ela estaria servindo a interesses outros. Nós
partimos para a regulamentação através de decreto compreendendo
que era frágil, mas como instrumento transitório serviria. Fizemos o
decreto em maio, dia 30 de maio. Também resolvemos que
partiríamos para uma etapa intermediária que foi uma confirmação
de cadastro, porque só pelo cadastro a gente não tinha informação
suficiente, nem tinha feito vistoria de veículos, não era possível.
Partimos para essa etapa intermediária de confirmação de cadastro
onde já trouxemos aqui cada um com o seu veículo, isso em um prazo
de um mês e meio, julho e agosto. Entregamos um cartão de
confirmação de cadastro para que facilitasse na rua a fiscalização.
Então, a partir de setembro, até que os cartões fossem emitidos,
então, a partir do final de setembro em diante, a nossa fiscalização
começou a atuar no sentido de ver quem tem e quem não tem o
cartão, aí isso já era um elemento definidor. E com muita pressão,
porque a gente sofre uma pressão desmedida, tanto da Câmara de
Vereadores como do setor empresarial”(Funcionária da SMTU).
Segundo o relato da funcionária da SMTU, o processo de normatização do
transporte informal apresentou características e desafios distintos dos enfrentados
no Estado, já que a convocação de todos os operadores para o cadastramento teria
legitimado a legalização e garantido a confiança dos operadores.

“A gente não teve nenhum problema possivelmente pela forma como


a gente encaminhou, nenhum problema de nenhuma movimentação,
porque até o decreto foi discutido, não que se tenha a concordância
de cem por cento, mas eu diria que essa regulamentação teve a
concordância de noventa por cento. Porque foi discutido desde
dezembro diariamente com todos os segmentos até que se chegou a
um produto.
Eu só discuti com o seguimento alternativo. As cooperativas - a
(Fetransrio) foi se formando neste bolo - com o Sindicato, que hoje,
pelo menos até agora é o representante que é o Sintral, com pessoas
que em tempos anteriores haviam sido representantes deste segmento
que até já tinham se afastado, a gente tentou abrir e o que resultou, se
ele não é consensual plenamente, ele caminha em uma boa direção
para o consenso. Tanto que não tivemos nenhuma manifestação, não
tivemos nada! Nenhum problema. Inclusive eu cheguei aqui no final
de agosto e tinha milhares de pessoas aqui dentro, até ameaça de
bomba teve com esquadrão antibomba e ninguém se moveu daqui de
dentro, não houve nenhum tumulto, uma briga, um grito, nada! Eram
milhares de pessoas que ficaram quatro horas em fila.
Era explicitamente uma vontade e também uma certeza de que o
poder público estava fazendo, se tinhas problemas, o atendimento
pegava aqui, pegava acolá, demorava mais aqui, mas o objetivo era
único, ninguém estava aqui para nenhuma... Então isto foi bom
também para nós, porque o segmento queria, desejava mesmo. Isso
foi positivo. Estamos iniciando agora a terceira e penúltima etapa,
fizemos um estudo preliminar de linhas”.
O ordenamento municipal, iniciado por decisão política revelou-se capaz de
alcançar consenso entre operadores. Através do mesmo movimento, teria sido
possível capitalizar forças para o enfrentamento de interesses contrários à
legalização e possibilitar a mudança da relação entre empresas de ônibus e
governo municipal, ao mesmo tempo que, contrapõe-se àqueles que se beneficiam
da ilegalidade no transporte informal.

II. 7. Efeitos esperados

O objeto comum da racionalização ou do ordenamento do transporte informal é a


redução da frota e sua integração parcial ao sistema de transporte convencional0

II. 7.a. No Estado

No caso do Estado do Rio de Janeiro, pretende-se reduzir o transporte informal e


aumentar a velocidade do sistema de transporte.

0 Recordar que empresários de ônibus insistem na repressão e permissão de empresas efetuarem o serviço.
Enquanto “a lotada” busca a abertura e um vez mais firmado, busca o monopólio local: bom relacionamento com
empresas de ônibus.
“Agora, é uma situação de extrema cautela. Porque os que estão
cadastrados é uma parcela muito pequena. E até mesmo a gente não
poderia garantir ou gerar expectativa com um contigente grande,
porque primeiro você vai legalizar o que vai acarretar mais prejuízo
ainda para a fluidez de tráfego, vai acarretar uma...
Mais existe um mercado. E (...) quanto mais você reprime, mais você
segura o mercado e o mercado não incha, e eles podem operar mais
sossegados, eles podem ditar mais ordens e sem a repressão o
mercado vai inchando, vai inchando e acaba jogando todos eles por
terra. Então assim, eles sabem que as regras da legalização já são
públicas. Então já se sabe que vão conviver com uma perda de 20%
da demanda, com uma frota que eqüivale a 55 %, então as regras já
estão claras para eles. Aquelas regras eles conseguem suportar.
Agora, o mercado sem a repressão nenhum dos dois consegue mais
suportar.
Uma das coisas que o poder público vem alertando: a repressão ela
requer: uma aliança política. Dos poderes locais. Porque ilegal,
clandestino, ele é ilegal, clandestino no âmbito municipal, no âmbito
estadual e às vezes ele pode não estar servindo ao deslocamento inter
municipal, mas pode estar servindo no intra-municipal e a prefeitura
não possa querer. Então tem que se tomar cuidado com os interesses
municipais, locais. E a Constituição e o Código de Trânsito são
competência de circulação viária ao poder local. Então a questão da
competência.
Aí você tem, com a própria repressão, você tem que cuidar
principalmente do usuário. O usuário hoje, já criou hábito. Numa
pesquisa recente que a Globo fez em localidades onde o transporte
não é problema. E curiosamente é problema o trânsito. Eles não
desassociam, que justamente pode estar sendo bom para o veículo,
para transportar, mas aquele veículo está reduzindo o tráfego(...) E aí
a gente começa a ver que a repressão por si só, ela pode ser um
desastre. Pode causar um colapso.
Porque você deixa a população sem saída. Sem alternativa. Então eu
vejo, por tudo o que eu vi de transporte neste último ano, dando
seminário, viajando, vendo as repercussões na imprensa, uma das
saídas mais tranqüilas, não a melhor, mas mais tranqüilas, é você, é a
repressão vir a acompanhada de outros apoios que passam, também,
por dispositivos que dêem maior velocidade ao transporte legal. A
repressão por si só, eu acho que ela vai ser danosa. Corredores em
que dêem prioridade aos ônibus, linhas que impedem o bom
transporte de massa. E se você não dá em troca para essa população
o transporte de melhor qualidade e mais ágil, o que nós vamos
reprimir, vai acabar sendo saudoso para a população. E o mercado..
quem dita, hoje, as ordens é justamente o usuário.
Em suma, espera-se, que esse processo melhore ou preserve a fluidez do tráfego,
assim como, a manutenção da rentabilidade do sistema legal, sem descuidar do
usuário. No que se refere ao transporte informal, o objetivo seriam alcançáveis por
uma legalização parcial e restritiva, acompanhada de repressão articulada entre
municípios e estado, que elimine a concorrência ao transporte legal. Essa deveria
ser acompanhada, portanto, de medidas que aumentem a velocidade do sistema,
de forma a que os usuários não sejam afetados ou se provoque um colapso no
sistema.

II.7.b. No Município

Já no caso do município, ordenamento permanente significa, também, redução do


volume de transporte informal, realizada por etapas, concluído com a licitação de
linhas0, como pode ser constatado no depoimento da funcionária da SMTU.

“Eu acho que seis mil e setecentos veículos no sistema alternativo é


excessivo, mas isso vai ser reduzido, o mercado regula bastante bem
desde que a gente deixe para ele, a gente regula por um lado e ele...
também você vai... Estou montando uma campanha, possivelmente em
março, uma grande campanha pelo transporte regular, para gerar
uma cultura da regularidade. São ações que vêm em bloco para que o
usuário tenha consciência e saiba o que ele pode exigir. Nós também
abrimos espaço para o sistema ônibus se qualificar mais, por
exemplo, a gente abriu em algumas linhas um número bastante
grande de microônibus. Isso é uma forma de prestares um
atendimento mais profissionalizado, sem cair em um veiculo de
pequena capacidade.(...) Tem várias ações que acho interessantes e
que a gente esta procurando desenvolver, mas nada disto é no curto
prazo.
Por enquanto eles não tem conflitos porque a gente já se encarregou
de ir dirimindo os conflitos. E aí, bom, essa autorização tem validade
de um ano, prorrogável por mais um, período no qual deverá ser feito
o processo licitatório e aí teremos a legalidade plena.
O estudo que nós fizemos em cima do que eles nos informaram é um
estudo que não nos dá diretrizes suficientes, até porque, não por
culpa de quem fez o estudo, mas até porque a informação era muito
inorgânica, então ela não me dá segurança suficiente para que eu
diga: “então eu vou cortar aqui, eu vou cortar acolá”. Então a gente
tomou uma decisão: de ir fazendo autorizações para as linhas
formadas a não ser em evidentes distorções. O veículo não pode
circular, seguindo o decreto, uma parte da linha de ônibus. Se ele
quer seguir a linha de ônibus, ele tem que seguir mesmo. Ele vai ter
que pegar o tronco (...) e não só o “filé mignon”, isso é uma regra do
decreto, concorrer em cinqüenta por cento, sessenta por cento é estar
pegando o miolo que interessa, aí não pode. Isso a gente está

0 Para de ter uma idéia da dimensão recorte basta lembrar que dos nove mil e quatorze veículos que se
cadastraram entre janeiro e fevereiro de 2001 apenas seis mil e setecentos passaram à segunda fase.
procurando ir dirimindo.(...) É concorrência mesmo.
Não se quebra este princípio (do monopólio territorial) pegando o
“filé mignon”, porque aí é concorrência predatória. Isso a gente vai
equacionando e, no nosso entendimento, neste período da
autorização, conforme essa circulação for se ordenando e a
fiscalização for conseguindo retirar os piratas aí, a gente vai pegando
região a região e vai arrumando para que isso funcione bem melhor.
Simultaneamente a isso nós vamos licitar uma pesquisa de demanda
para que a gente redefina algumas questões do transporte por ônibus
e defina para a licitação os espaços em que deverão operar os
alternativos. Aí uma mudança já mais radical, porque é invertida a
lógica. É claro que até esse processo, em um ano ou dois, essa lógica
dessas linhas já vai sofrendo ajuste. Na própria regulamentação(...)
nós não estamos amarrando na legalidade das linhas o detalhamento
oriundo do sistema único, porque isso foi a primeira guerra
comprada, até porque eu peguei algumas legislações do resto do
Brasil e que em todas as recomendações dizia o seguinte: “Não
conseguimos, transformamos o alternativo em ônibus.” Fizeram os
modelos reproduzindo o modelo ônibus que é o modelo conhecido.
Então, a gente pensou assim: “podemos errar, mas vamos acertar na
maioria”. Que é o seguinte: eles têm origem e destino, e
necessariamente alguns pontos intermediários obrigatórios, mas não
queremos fazer, você conhece como é o trajeto de um ônibus: “vira a
direita na esquina tal, na rua tal, vira a esquerda....
Ele tem mais flexibilidade, mas tem pontos de obrigatoriedade,
porque você garante a idéia de uma certa liberdade, mas garante
também que em determinados lugares a pessoa sabe que vai ter
aquele tipo de transporte. Isto ainda é uma coisa bastante dificultosa.
Agora você tem que ter algumas amarrações, mas não uma
amarração porque não adianta, você pega o alternativo e transforma
em ônibus. Aí perde a questão..(...) Que é o desejo do usuário. A gente
tem que encontrar o meio de campo entre o desejo da individualidade
de ser atendido e um certo ordenamento por questões de trânsito,
inclusive.
Porque o transporte alternativo é desordenado e com interesses
menores, todos com muito interesses financeiros. Poucos interesses
mais nobres.
Olha, é uma coisa muito interessante, primeiro o desejo de uma
legalização, depois uma baixíssima compreensão de quais são os
deveres oriundos da legalização. Porque você quer ser legalizado
para não ser achacado pela polícia, que é isso, não é só multado,
basicamente é achacado. E eu não quero ser achacado pela polícia e
pela fiscalização, então tudo bem vamos legalizar. Mas o conceito
deles de legalidade, embora tanto em julho e agosto, quanto agora a
gente continue discutindo permanentemente o que é, vivem mandando
cartas. Eles ainda têm uma noção um pouco confusa do que isso é.
Eu, que tenho discutido muito com as cooperativas, e na semana
passada estava inclusive reunida aqui no auditório com a direção
nacional deles, que é lá de Goiânia...”
O ordenamento do sistema significa, então, a diminuição do número de veículos, -
sendo mesmo desnecessário o uso da repressão, posto que o próprio mercado
encarregar-se-á de fazê-lo -, ter como objetivo que o transporte operante seja
estritamente legal. Chegar-se-á isto, por um lado, pela fiscalização e pela
promoção do transporte legal, visando o estímulo de uma “cultura de
regularidade”. Por outro, é necessário criar condições para que o sistema
convencional torne-se competitivo, seja pelo aumento do número de linhas, seja
pelo uso de microônibus e veículos especiais, trazendo ao sistema um certo
profissionalismo na oferta de serviços.

O cuidado de preservar a concorrência mantêm-se ao exigir-se, das linhas


informais, o cumprimento do trajeto dos ônibus em sua totalidade visando a
quebra do princípio do monopólio territorial. Este objetivo corresponde à intenção
de não reproduzir os monopólios nem o enrijecimento do sistema tradicional de
transportes por ônibus. A concorrência entre ambos deveria garantir, portanto, a
abertura e a flexibilidade do sistema. Obter esta flexibilidade não significa,
contudo, liberar o transporte informal mas, sim, criar uma regularidade mínima.

Neste ponto, afirma-se o Estado - como encarnação do público e do interesse geral


– atendendo ao ordenamento do sistema, de forma a garantir a satisfação das
necessidades dos usuários. Trata-se de um terceiro termo de natureza
essencialmente política, e não apenas de negociação, na qual o estado seria o
mediador, como foi defendido pela funcionária do DETRO. A comparação de
ambas experiências não permite identificar, no Estado, um projeto maior e mais
abrangente. Apenas destacam-se a integração e o postulado da não concorrência.
No caso do município, trata-se de acionar a concorrência para obrigar as empresas
a aumentar sua eficiência e a qualidade dos serviços. Em outras palavras, busca-se
a eficiência do sistema sem que o transporte, sem perda da flexibilidade e da
fluidez trazidas pelo transporte por vans e kombis.

A funcionária da SMTU acrescentou, ainda, em trecho não gravado, que muitas


cooperativas “não têm possibilidades reais de concorrer com as empresas de
ônibus que, se quiserem concorrer são capazes de quebrá-las”. Quer dizer, o
espírito que anima a legalização do transporte informal no município do Rio de
Janeiro assume plenamente o seu caráter político, confrontando saberes técnicos,
jurídicos e econômicos.

“Eu... olha só... só para te dizer, eu não sou da área, eu sou


professora de português. (..) Mas isso é uma questão de você ter uma
sensibilidade para ouvir todas as partes, nem cair no lobby de um
lado, nem cair no lobby do outro lado: É, tem que ser tudo
regulamentado!
Eu acho que tem uns conceitos nesta área, que não é a minha área, eu
venho da área da educação, a área da educação tem a mesma
problemática, os segmentos pseudo técnicos, eu não discuto mais
porque eu ando meio atormentada por eles, eles acham que por ato
de desejo da técnica, elaborada teoricamente, a sociedade vai
funcionar do jeito que eles.(...) Só que graças a deus existem os
sociólogos que consideram que você tem que conjugar as coisas,
porque você não pode, eu não determino as coisas assim, isso é muito
bom para o sistema autoritário, mas a gente já viu que isso deu
errado.
Nem nos sistemas autoritários não adianta. Uma verticalidade
excessiva não dá certo, eu tenho tido muito embate nesta área. Um é
que eu não sou da área, então quem não é da área não precisa, como
se não tivesse inteligência o suficiente para poder ouvir e tentar
chegar, ouvindo a parte que tem experiência sem ser capturado (...)
nem por um tecnicismo idiota e estreito e pouquíssimo inteligente,
nem pelos interesses financeiros do empresariado, nem pelos
interesses que também são financeiros pelo outro lado0”.
E continua afirmando a prioridade da decisão política na gestão.

“Eu costumo dizer que gestor não precisa ser uma pessoa da área.
Ele tem que ser, primeiro ele tem que ter uma boa formação é
evidente, segundo tem que vir da política, o que nos dá muita
experiência, muita capacidade de ouvir, porque tem que ter a
capacidade de ouvir, não pode ser sectário, tem que ter bom senso e
respeitar outros conhecimentos. Só que não pode ser subordinado a
nenhum interesse específico, se você se subordina você é capturado
pela (interrupção da gravação). O gestor ele precisa ter algumas
características que, e não ser - veja só, eu já dirigi um centro do
SENAC, - você deve conhecer, o “sistema S”, especializado em
educação e saúde - no inicio, você tem que dominar o jargão, aí você
tem que ouvir bastante para pegar o jargão, depois que você pega o
jargão e aí é claro, desde que você seja cauteloso, não queira tomar
decisões levianas. Rapidez de decisão não é leviandade não, rapidez é
conseqüência do que você está fazendo. Quando você não tem certeza
é melhor esperar um pouquinho mais, pensar um pouquinho mais,
conversar com mais gente, mas eu acho que isso ajuda muito. Bom,
mas do que a gente estava falando, esta questão da flexibilidade, ter

0 A funcionária da SMTU revelou que os próprios grupos de em presas de ônibus, são as maiores beneficiárias
da venda de veículos usados no transporte informal.
os pontos intermediários, por outro lado, para que os sistemas
venham a produzir, apesar das oposições, melhor a gente também está
procurando, fazendo um esforço concentrado bárbaro, de ajustar
determinadas questões do sistema de ôônibus que a gente acha
fundamentais. Por exemplo, liberar que o ônibus urbano possa operar
com ar condicionado.
Não era (possível) porque não tinha autorização para isso, vai sair
esta semana, é uma reivindicação do setor. Nós temos uma briga com
o Tribunal de Contas porque nós queremos os terminais que são
pessimamente operados, ou nem são operados, pelo poder público.
Podemos até abrir uma licitação, mas o instrumento que a gente
queria é sessão de uso para os operadores empresários de ônibus,
porque como o sindicato congrega é uma sessão fácil, você só pega o
setor público, o sindicato para eles poderem fazer obras, qualificar.
Ou seja, para que eles também tenham a oportunidade de oferecer
para o usuário o que o usuário quer; conforto, segurança e rapidez. A
gente está procurando outros instrumentos (...), porque não interessa
a ninguém que o sistema ônibus perca a sua demanda toda para o
sistema alternativo, de jeito nenhum”.
A autonomia política da tomada de decisões no município não exclui a
concorrência. Ao contrário. Utiliza-a para estimular a eficiência. Esta ousada
tomada de decisão é admirada pela funcionária do DERTO.

É essa postura do município ela foi bem corajosa e eu acho que


também foi uma lição para os empresários de ônibus que achava que
a autoridade pública fica refém, aquela ameaça de que ele vai
devolver as linhas. Então se ele recebeu as duas empresas de volta, a
autoridade deu de troco o seguinte: então vai ampliar a operação das
vans, vai fazer integração com trem.
A última e, quiçá, mais importante diferença entre o município e o estado advém
do primado da política sobre os interesses e as pressões imediatas. Tratar-se-ia de
uma proposta de ordenamento fundada no “bom senso necessário ao gestor”, o
que considero uma lição de política.

II.8. Política, Fins e Efeitos Duradouros

Iniciei o capítulo enunciando, hipoteticamente, que a regulamentação, ou melhor,


a legalização do transporte informal operado por vans e kombis, antes de
expressar uma vontade desregulamentadora, obedeceria à exigência de incorporar
institucionalmente as práticas, ao arcabouço legal, que estabelece a prerrogativa
estatal na prestação do serviço de transportes ou a sua delegação a empresas
privadas, sob a forma de permissão. Assim a normatização do transporte informal
corresponde à regulamentação de um conjunto de práticas já existentes, moldadas
pela presença dum mercado formado pela operação conjunta de vários outros
mercados.

Os termos desta regulamentação levam, necessariamente, à redução da frota e


visam ou a racionalização (com suas conotações técnicas) ou ao ordenamento do
sistema, aprimorando o serviço em termos de qualidade, velocidade, pontualidade
e preço, alcançando, ao mesmo tempo a desobstrução de vias. Trata-se da
expectativa de aumento da fluidez urbana tanto nos transportes quanto no tráfego.
A regulamentação foi uma decisão política cujos termos, em aberto, justificam-se
pela existência de uma luta política inconclusa0. Trata-se de uma regulamentação
realizada por decreto, ao sabor de conjunturas políticas específicas, que não
geraram leis. Está, portanto, sujeita à mudanças, quiçá radicais.

Este fato põe em evidência a importância da negociação, do jogo político, assim


como de sua cadência e dimensão espacial: arranjos intermunicipais que
organizam a região ou área metropolitana.

III. Regulação, Planejamento e Política Urbana: desenhos da escala


metropolitana

Algumas páginas atrás relativizei a importância da desregulamentação no sistema


de transportes da metrópole do Rio de Janeiro. De fato, as experiências da cidade
e do estado não permitem falar de neoliberalismo, pelo menos na relação entre
empresas e estado ou operadores e Estado. Ao contrário, percebe-se uma
preocupação em garantir a fluidez metropolitana mas, antes do que o de
neoliberalismo, trata-se do ordenamento ou de racionalização. Visa-se, muito mais
a garantia da metrópole como locus da rentabilidade, o que, em capítulos
anteriores, foi lembrado através de citação de expressões como “Custo Brasil”.
Isto é, busca-se garantir a rentabilidade urbana0. Pode-se, portanto, ter
neoliberalismo nos objetivos mais gerais, mas não no sistema de transportes.

Mas, não é minha intenção, no momento, enfatizar este aspecto. Gostaria,


outrossim, de chamar a atenção para a continuidade histórica do desenvolvimento
do sistema de transportes por ônibus: desde a década de 20 do século passado, o
sistema de transportes coletivos por ônibus tem evoluído ciclicamente por
movimentos sucessivos de monopólio, concorrência e restabelecimento do
0 Ver anexo
0 Nos moldes de Santos.
monopólio. É constante a sua tendência a produzir uma grande concentração de
serviços no centro da metrópole e carências nas periferias.

Mais significativo ainda, é que a desigualdade continua sem que exista nenhum
tipo de planejamento geral, mas, de forma articulada à lutas políticas, cujos
resultados manifestam a coerência e a continuidade do sistema. Esta é uma
regularidade sociológica que permanece sem explicação.

A subordinação do planejamento às condições mais amplas de implementação da


política urbana é um fato explicado teoricamente. Lojkine (1981, pp. 181-5)
estabeleceu que a coerência da política urbana se dá, principalmente, pela política
financeira, pelo zoneamento e pela prática jurídica do alvará 0, o que resulta em
segregação. No caso do Rio de Janeiro – o que provavelmente, também acontece
em boa parte das metrópoles latino-americanas - o transporte por ônibus precede a
regulamentação. Há, portanto, um atraso no estabelecimento de normas, bem
como carência de políticas públicas favoráveis ao desenvolvimento de transporte
de massas e, ainda, a falta de continuidade das mesmas, justificadas pela carência
de recursos0. Conseqüentemente a política financeira é, de fato, responsável pela
situação do transporte, o que confirma a afirmação de Lojkine.

Por outro lado, no caso do transporte por ônibus, antes que o alvará, a licitação e
os princípios da prerrogativa estatal e a gestão municipal - superposta à gestão
estadual dos transportes intermunicipais urbanos - contribuem para a segregação,
provocando hiper-acessibilidade nos centros e sub-centros e a falta de acesso das
periferias.

Além desses aspectos, e de forma complementar aos anteriores, cabe citar a


superposição de legislações estabelecidas em diversos momentos históricos, o que
constitui um terreno fértil para a contradição e para as indefinições judiciais, o que
permite explicar a exploração de linhas sem licitação durante décadas em
decorrência do poder político dos monopólios.

Resta mencionar que, mais além das regulamentações gerais, há a gestão cotidiana
dos transportes por instituições do Estado, encarregadas da normatização,
fiscalização e repressão. Nelas, além do exercício de suas funções, verifica-se,
freqüentemente, o rodeio das leis com a conseqüente apropriação de benefícios
0 Quando se refere a renovação urbana.
0 Como já houve oportunidade de observar em vários momentos desta tese.
advindos da flexibilização da norma instituída. Estas práticas são citadas com
horror e abordadas como um tipo de doença nacional. 0, que contribuem, apesar de
tudo, para a efetiva estruturação do transporte e do tráfego urbanos.

III.1. A Prerrogativa Municipal

Esses aspectos revestem-se de complexidade maior, pelo princípio de gestão


municipal do sistema de transporte numa região que - como foi visto no capítulo
anterior – caracteriza-se por um processo de urbanização mais extenso e mais
intricado do que habitualmente considerado. Por sua vez, segundo estabelece a
Constituição de 1988, cabe aos Estados delimitar e gerir as regiões
metropolitanas, com o recurso de leis e instituições, o que exige cooperação e
coordenação de atividades de municípios e estado.

Tal colaboração é vital e particularmente complicada no que se refere aos


transportes por ônibus que integram os fluxos humanos. Porém não está
regulamentada e, portanto, não é gerida e nem fiscalizada de forma coerente e
uniforme. A heterogeneidade e a vastidão do sistema dificultam a própria
identificação, para fins de pesquisa, do conjunto de normas operantes nos
municípios e mesmo as acionadas por instituições incumbidas da regulamentação,
fiscalização e repressão ao transporte informal.

Assim, por exemplo, enquanto o município-sede apresenta uma legislação


detalhada e possuindo instituições de gestão e fiscalização organizadas e
eficientes, o município de São Gonçalo, não apenas carece de qualquer legislação
no que concerne ao transporte informal, como também não possui, sistema de
fiscalização, veículos e recursos para fazê-lo0. De modo que sub-centros urbanos
em franca expansão, não localizados nas vias de grande fluxo e visibilidade -
como os acessos à Ponte Rio-Niterói – condensam o transporte informal, que não
operam apenas no município e, sim, interligam uma ampla rede intermunicipal0.

0 Para afirmar isto baseio-me no conceito de vigência da ordem de Weber.


0 Jornal do Brasil, 07/04/96
0 Considero Alcântara uma centralidade importante na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com um volume
elevado de transportes informais, comparável quiçá a Campo Grande na Zona Oeste do Rio. A grande diferença
está no peso do transporte inter-municipal. Em Campo Grande operam linhas com destino a Seropédica, Itaguaí
e Caxias enquanto em Alcântara há várias linhas com destino a Niteroí, Rio, Maricá, Rio Bonito, Itaboraí,
Cachoeira de Macacu, Magé, etc.
É importante recordar também que os diversos municípios da região têm posturas
distintas quanto ao transporte informal0 e em relação ao próprio transporte.
Niterói, por exemplo, não permite o transporte informal na escala municipal mas o
Rio de Janeiro sim. Outro exemplo, a política tarifária de Niterói, estabelece um
preço de passagens superior ao dos transportes intermunicipais com destino a São
Gonçalo.

A formação de uma agência metropolitana – instituída pela Constituição estadual


e estabelecida, com grande dificuldade durante o Governo Marcelo Alencar -
encontra problemas, não tanto pela incompatibilidade entre níveis de poder, mas
pela interferência do calendário eleitoral e às mudanças de gestão, tal como
exposto pela Funcionária do DETRO/RJ.

III. 2. Municípios e Jogo Político

A diferenciação urbana advinda da decisão municipal não é, propriamente, uma


descoberta. Castells (1978), já a mencionava e mostrava, ironicamente, a
contradição entre o princípio da democracia municipal e seus efeitos humanos e
urbanos. Porém, este fenômeno, não constitui uma banalidade - como Castells dá
a entender - se percebida em seus vínculos com o jogo político, que com base em
de Weber, pode ser concebido como luta para influenciar no uso dos meios
monopolizados pelos Estados. Com esta concepção, a dimensão política adquire
relevância na compreensão de seus efeitos sobre urbano. Trata-se, enfim, da
relação entre as diversas esferas governamentais e as carreiras políticas.

De fato, um dos aspectos mais marcantes reconhecidos pelo levantamento da


legislação realizado anteriormente é relativo à coincidência cronológica das
regulamentações: a regularização do fretamento e a decisão política de
regulamentar o transporte informal, ocorreram quase simultaneamente no
município do Rio de Janeiro e no estado. Assim, o fretamento ocorreu entre
setembro e outubro de 1997, enquanto a decisão de legalizar, no município,
ocorreu ao longo de 2000, tendo seu ápice no mês de outubro do mesmo ano,
quando se enfrentaram, no segundo turno das eleições municipais, César Maia e
Luiz Paulo Conde, este último apoiado pelo governo do Estado.

0 Sem levar em conta as diferenças de cada administração.


A simultaneidade das decisões e seu caráter eleitoral podem ser claramente
notados no caso destas eleições. Em meados de outubro torna-se público o apoio
dos operadores do transporte informal à César Maia e, o outro candidato anuncia
sua disposição de também legalizá-lo. Já no mês seguinte, quando o prefeito eleito
negocia as condições da legalização, o governo do Estado deroga a impopular lei
do fretamento.

A legalização por candidatos que, em gestões anteriores, combateram o transporte


informal, põe em evidência um jogo político no qual a decisão de legalizar,
articulada à solução de um problema urbano, e tomada no âmago de um processo
de acúmulo de forças que visa metas de careiras políticas, como apontado por
Bourdieu.

“Os discursos políticos, produzidos pelo profissionais são sempre


duplamente determinados e afetados por uma duplicidade que nada
tem de intencional, visto que resulta da dualidade dos campos de
referência e da necessidade de servir ao mesmo tempo aos fins
esotéricos das lutas internas e aos fins exotéricos das lutas externas”.
(Bourdieu, 1989, p. 177).
“Nas democracias parlamentares, a luta para conquistar a adesão
dos cidadãos (o se voto, suas quotizações, etc) é também uma luta
para manter ou para subverter a distribuição do poder sobre os
poderes públicos”. (...) Para garantirem esta mobilização duradoura,
os partidos devem, por um lado, elaborar e impor uma visão de
mundo social capaz de obter a adesão do maior número possível de
cidadãos e, por outro lado, conquistar postos capazes de assegurar
um poder sobre seus atributos”. (Ibidem. p. 174)
No caso específico do Rio de Janeiro, este caminho já tinha sido aberto pelo
Governador Anthony Garotinho que nas eleições de 1998, descobriu a
possibilidade de capitalizar a seu favor o ódio contra empresas de ônibus,
levantando bandeiras como a saudosa CTC, o encampamento das empresas e
outras bandeiras do PDT. Com isto, não apenas obtêm a aceitação dos cidadãos,
senão que encontra, nos operadores do transporte informal, cabos eleitorais
eficientes que transformam seus veículos em equipamento de campanha de grande
penetração0.

Os mesmos passos foram seguidos, pouco tempo depois, por César Maia e, nas
eleições federais, pelos funcionários que levaram adiante a legalização. Durante a

0 Recordar que Funcionária do DETRO mencionou pesquisa encomendada ao Datafolha que confirma a
legitimidade do transporte informal perante os usuários.
campanha eleitoral de 2002 era possível ver nas vans e kombis da Região
Metropolitana publicidade eleitoral da funcionária da SMTU entrevistada para
esta tese, ou de Luiz Paulo Correia da Rocha - Secretário Municipal de
Transportes que conduziu a regulamentação -, que fez dobradinha com presidentes
de cooperativas. Lideranças históricas do transporte intermunicipal usaram,
também, as vans para fazer propaganda por partidos diferentes. Pelos PSB,
Habdul Haikal era candidato a deputado estadual e João Ferreira, apresentado
como João das Vans concorria ao mesmo cargo pelo PMDB.

Além do peso da matemática eleitoral presente na tomada de decisão de legalizar


o transporte informal, as circunstâncias em que ocorreu iluminam a composição
hierarquizada do “mercado” de candidatos na metrópole. O município do Rio de
Janeiro ocupa um lugar central na hierarquia política do estado, constituindo um
“palco” de projeção nacional, o que torna , o prefeito, uma figura politicamente
tão importante, quanto o Governador do Estado, em seus resultados para a
consolidação de carreiras políticas.

Tal posição contrasta violentamente com o lugar político e econômico


proporcionado por muitos outros municípios, caracterizados por seu menor peso
econômico e eleitoral0, o que se traduz em dependência do governo estadual e,
portanto, na tendência ao alinhamento político com a situação nas assembléias
legislativas0. Tal fenômeno, conhecido de longa data no sistema político brasileiro
como coronelismo, decorre da concentração de poder nas escalas estadual e
federal, o que corresponde à permanente fraqueza econômica dos municípios0.

III. 3. Autonomia Municipal: mercados de terras e de transporte

A fraqueza econômica de muitos municípios periféricos da Região Metropolitana


do Rio de Janeiro não é, nem segredo, nem novidade. Traduz-se, numa
distribuição desigual de equipamentos, largamente concentrados na cidade do Rio
de Janeiro e em Niterói. Mas, a fraqueza não implica apenas dependência do
governo do estado, manifestar-se, também, no estímulo e promoção do mercado
de terras e de transporte, quando expande-se urbanização.
0 Embora municípios como São Gonçalo e Nova Iguaçu ou Duque de Caxias possuam grande peso eleitoral não
concentram o mesmo poderio econômico do município do Rio de Janeiro.
0 Recordar a import6ancia econômica do município sede, cujo orçamento corresponde à metade do doestado.
( confirmar e citar).
0 Foi visto que no caso dos transportes metropolitanos, embora parte dos municípios, cabe às instituições
estaduais fiscalizar e reprimir.
Esta explicação estende para os municípios da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, a tese provada por Freire (1992) no caso do município do Rio de Janeiro.
Nas primeiras décadas do século XX, o então Distrito Federal, sofria a falta de
autonomia política e grande dependência econômica do poder executivo federal.
Mesmo assim, tanto a Câmara quanto o poder executivo municipal buscavam a
autonomia econômica pelo estímulo ao mercado de terras 0, ao mercado
imobiliário e aos transportes, tornando os interesses imobiliários muito influentes.
Freire afirma, ainda, que o mercado de terras periférico e as empresas de
transporte por ônibus, muitas vezes controlados pelos mesmos capitais, eram
estimulados e protegidos. E o Poder Executivo, utilizou, em diversas
oportunidades, a disputa que “faiscadores” estabeleciam com a Light, para
barganhar a seu favor0.

Não pretendo desenvolver essa hipótese no corpo desta tese. Esboço-o apenas
para estimular a reflexão e deixar caminhos abertos para estudos posteriores.
Entretanto, vale lembrar que este momento histórico fundou os alicerces sobre os
quais foi estabelecida a relação quase simbiótica entre governos e empresas de
ônibus, na região.

0 Freire, 1991. p. 128


0 Freire, 1991. p. 418
III.4.Conclusão Parcial

Não basta regulamentar os transportes informais para eliminar os problemas do


sistema. Em verdade, como a racionalização ou o ordenamento busca-se, apenas,
solucionar problemas relativos à fluidez e à rentabilidade urbanas0. O padrão de
segregação pré-existente reproduz-se nos interstícios da lei e das normas e,
sobretudo, nas rotinas administrativas. Soma-se a isto, a fragmentação
institucional cujas origens não são a falta de qualificação técnica das prefeituras0
mas, a concentração de recursos econômicos e políticos. Assim, municípios
populosos dependem de um alinhamento com o governo estadual. Trata-se ainda,
da formação de interesses municipais que estimulam a urbanização através do
mercado de terras e de transportes.

Neste ponto, é possível reconhecer a existência de uma aliança estrutural entre


economia e Estado, que na escala municipal, preserva e estimula o lucro. Esta
relação não possui, contudo, o grau de institucionalização e legitimidade como na
escala nacional. Entretanto, a aliança entre poder e interesses locais menores
obedece aos mesmos condicionantes da ação política encontradas noutras escalas.

IV. Irregularidade e Crime nos Transportes Informais

Durante os primeiros anos, a ilegalidade do transporte informal foi o seu


denominador comum, seja pela inexistência de normas, seja pelo serviço não se
adequar a elas. A irregularidade no seu extremo, transforma-se em crime. Utiliza-
se corriqueiramente, a denominação de máfia dos transportes ou máfia das vans e
kombis. Tais denominações são utilizadas pela imprensa. Encontram-se difundidas
no senso comum, em associação com o roubo e a clonagem de veículos, o
controle territorial do número de operadores, a coação física, a cobranças de
“luvas”, diárias e “semanadas”, o enfrentamento armado de grupos rivais, a
apropriação privada dos benefícios da circulação por “donos” de cooperativas e
corrupção policial.

Não é possível negar a existência de tais práticas. Contudo, tampouco é possível


generalizá-las. E, fundamentalmente, é preciso recusar qualquer interpretação
essencialista. Parece-me não ser demais registrar que, nas questões relativas às

0 Segundo um critério técnico ou econômico: aumentar a legalidade do sistema que pode ser traduzida como
confiabilidade.
0 Como afirma a ANTP.
normas, orienta-me o conceito weberiano de vigência da ordem. Segundo este,
uma ordem vige tanto quando a regra é obedecida como quando é contornada. A
norma, de um ou de outro modo produzirá regularidades sociais. Dada a natureza
do fenômeno aqui estudado, estas regularidades serão, necessariamente, sócio-
espaciais.

Busco, agora, caracterizar as várias práticas compreendidas no fenômeno


analisado, para identificar os períodos e locais de sua incidência, assim como,
mostrar suas possíveis inflexões e relações com outros fenômenos. Além disso, há
que recordar que, no caso dos transportes, a informalidade apresenta uma
permanência histórica relacionada ao processo de expansão metropolitana, por
outro lado, a ilegalidade e o crime não são atributos exclusivos dos informais. Pré
existe um conjunto de práticas de drible e subversão das normas, comuns a todos
os sub-sistemas de transportes de passageiros.

IV. 1.Tipos de Contornamento da Norma

Uma análise dos aspectos ilegais envolvidos, segundo mostra a imprensa entre
1996 e 1992, permite relacionar zonas obscuras da política à ilegalidades que não
atingem apenas os informais mas, que apresentam traços comuns com o sistema
regular de ônibus, de táxis e o tráfego de carros particulares: ‘lobby’ e pressão
política sobre legislaturas municipais, estaduais e federais de modo a manter ou
conquistar “direitos” e privilégios; corrupção de funcionários técnico-
administrativos das instituições responsáveis pela normatização e fiscalização;
controle territorial, da concorrência e da rentabilidade.

IV.1.a. Lobby na Conquista de “Direitos” e Privilégios

Lobby não é sinónimo de corrupção. Constitui uma forma política de


representação de interesses identificáveis, munida de argumentos técnicos
especializados, que busca influenciar decisões dos representantes eleitos,
mediante procedimentos que incluem pressão política, campanhas de informação
e negociação, excluindo, em princípio, a troca desonesta de favores 0. É
considerado - nas teorias políticas pluralistas - uma modalidade de representação
legítima, porém algo menor do que a representação política, na qual há claro

0 Graziano, 1997. p. 138


reconhecimento das diferenças entre representação de interesses privados e
interesses públicos.

Há, contudo, “zonas cinzentas” nas quais se interpenetram a corrupção, o lobby e


o financiamento de campanhas políticas. Entretanto, lobby e corrupção excluem-
se mutuamente na medida que o primeiro representa um investimento alto,
realizado por instituições prestigiosas, que têm posições claramente diferenciadas
das do poder público. Já a corrupção suporia a proximidade do interesses privados
e de agentes do Estado, de modo que o convencimento não seria necessário0.

Podem ser identificados, no caso dos transportes, os compromissos que envolvem


o financiamento de campanha; a contratação, como assessores parlamentares, de
membros de sindicatos e de organizações empresariais e o pagamento de propinas
em momentos de votação de leis favoráveis ou contrárias aos interesses. Tais
procedimentos seriam responsáveis pela concessão de linhas sem licitação, pela
renovação das mesmas e pelo cancelamento de multas. Trata-se de um recurso
usado principalmente por empresários de ônibus, já que requer dinheiro e
articulação política.

Assim, por exemplo, dos 364 projetos referidos a transportes na Câmara


Municipal do Rio de Janeiro, entre 1976 e 1996, apenas vinte e dois foram
aceitos. Deputados estaduais como Gilberto Rodrigues e José Nader
reconheceram ter recebido dinheiro para representar os interesses das companhias
de ônibus. Tais práticas foram responsáveis pelo perdão de multas no valor de R$
200.000.000,00 além de quatrocentos e cinqüenta e duas linhas municipais e
novecentos e trinta linhas estaduais, serem distribuídas sem licitação 0. Também
pode ser citado, neste contexto, o Deputado Federal Chico Princesa (PTB/PR),
quando, em 1996, apresentou um projeto-de-lei que permitia a prorrogação de
concessões a empresas de transportes em todas as escalas 0, mesmo estando a
prorrogação expressamente vetada pela Constituição Federal.

0 Segundo tal definição, a política de pressão e convencimento levada a cabo pela ANTP, bem poderia ser
considerada lobby que como foi visto tem atua na escala nacional. Mas tanto o sindicato de empresas de ônibus
do Rio de Janeiro quanto a Federação de empresas de ônibus do sudeste FENATRANSPOR não parecem se
adequar do mesmo modo.
0 Jornal do Brasil, 14/09/1996
0 Ibidem, 10/12/1996
Outro flagrante deste tipo de prática pode ser identificado em 1998, no Município
do Rio de Janeiro, quando, na Câmara Municipal, os vereadores do mesmo
partido do prefeito Luiz Paulo Conde, (PFL) derrubaram o veto que impedia a
prorrogação das concessões a empresas de ônibus do município. A prorrogação,
inconstitucional, encontra-se em vigência até hoje em causa nos tribunais0

Tais práticas não são possíveis para operadores de vans, kombis e táxis já que não
dispõem de recursos econômicos ou políticos suficientes. Recorrem, então, a
pressão política, e à negociação: carreatas e, ainda, cortes de vias e passeatas, que
visam, principalmente, pressionar o poder legislativo e o executivo 0. A partir de
2000, adota-se a estratégia de trocar apoio eleitoral por regulamentação.
Entretanto, a barganha ocorre somente em caso de eleições majoritárias 0,
caracterizando um modo de operação limitado, já que nem sempre os acordos são
cumpridos (ver anexo).

IV.1.b. Corrupção de Funcionários Públicos

A corrupção de funcionários públicos envolve tanto a SMTU, quanto o DETRO e


o DETRAN e, até mesmo, as secretarias de transporte. Afeta toda forma de
transporte automotivo e favorece, comumente, as empresas de ônibus. Por
corrupção, entendo, neste caso - como antes definido - identificação entre
interesses privados e agentes do Estado.

Assim, por exemplo, em 19 de novembro de 1997, O Globo noticiava que, em 11


de novembro de 1997, o agente de trabalho de engenharia da Superintendência
Municipal de Transporte Urbano (SMTU), Itacy Dias Azevedo, foi descoberto
transportando 47 envelopes contendo quantias entre R$ 28,00 e 30,00 cada um,
para serem distribuídos pelo mesmo número de funcionários. Houve atraso na
divulgação da notícia, já que o superintende, Eng. José de Oliveira, teria
“abafado” o caso para não denegrir a imagem da SMTU. O depoimento do
funcionário, demitido, revelou que este esquema existia desde 1992.

O sindicato de empresas de ônibus da cidade do Rio de Janeiro negou que tivesse


oferecido a propina mas assegurou que durante a gestão do Eng. Márcio Queiroz
Ribeiro, oferecia, a funcionários da Secretaria de Transportes, vales transportes.

0 Ibidem, 28/04/1998
0 Estas últimas práticas são propriamente políticas e não podem ser consideradas nem corrupção, nem lobby.
0 Ver presidente de cooperativa do Méier.
O mesmo conjunto de notícias que tratam daquele episódio revela que, naquele
mesmo ano, tinham sido identificados outros 15 funcionários que, encabeçados
pelo ex-diretor de Fiscalização, José Stênio Vasoncelos, transferiram licenças de
táxis de concessionários mortos0.

Um grande número de acusações envolve o DETRAN em questões relacionadas à


“legalização” de veículos roubados. A obtenção de documentos clonados implica,
além da existência de quadrilhas dedicadas ao roubo e adulteração de chassis, em
uma conexão com o DETRAN, capaz de “esquentar” documentos “frios”. Este
tipo de crime afeta tanto carros particulares quanto kombis, vans e ônibus do
sistema regular0.

Outro tipo de crime, relacionado especificamente ao transporte informal, foi


denunciado em 2002, pela Deputada Estadual Heloneida Studart (PT).
Funcionários do DETRO exigiam dinheiro para a concessão de linhas de
transporte alternativo, durante o processo de legalização do transporte informal o
estado, fato confirmado nas entrevistas.

O mais recente problema deste tipo, vindo à público, foi a venda de cadastros
dentro do próprio SMTU, envolvendo 27 funcionários. Lembro que no caso do
Município do Rio de Janeiro, apenas poderiam pleitear a legalização os veículos e
operadores cadastrados entre janeiro e fevereiro de 2001. Esses registros foram
forjados por funcionários que tinham acesso ao sistema e que utiliza o mesmo
programa de cadastro dos táxis0. Esse esquema de “legalização” tinha sido
denunciado um ano antes pelo jornal O Dia e envolvia a comercialização de
cartões de permissionários pelo presidente da Cooperativa, Cooper Rio das
Pedras, a R$ 800,00 cada0.

IV.1.c. Controle Territorial: concorrência e rentabilidade

Entendo por controle territorial, no que concerne ao fenômeno em análise, a


possibilidade de auferir renda proveniente da cobrança de propinas e luvas por
parte de funcionários encarregados da fiscalização e repressão ao crime e
pagamento de propinas à PM, encarregada de multar e fiscalizar infrações de

0 O Globo, 20/11/1997
0 Jornal do Brasil, 31/08/1999
0 O Dia, 13/03/2002
0 Dia 21/04/2002
trânsito. Trata-se, também do pagamento de propinas a oficiais de patente
superior, que podem evitar a fiscalização em certas áreas da metrópole. Classifico,
nesta modalidade, toda forma de controle privado de linhas irregulares, seja pela
obstrução da livre operação seja pela disputa de linhas e áreas com outros donos,
ou conjunto de operadores.

1) Pagamento de propinas à Polícia Militar

Esta é uma prática antiga e generalizada em todos os sub-sistemas. Os transportes


ilegais: táxis, ônibus, vans e kombis constituem alvos perfeitos para a extorsão e o
achaque. Não porque a Polícia Militar tenha competência específica sobre o
transporte, mas, porque a ilegalidade torna, os operadores, presas fáceis. Esta é a
mais simples das práticas em que os envolvidos são PMs de baixo escalão:
soldados, cabos e sargentos.

A este respeito, O Globo publicou, em agosto de 1998, dois artigos que


denunciavam a cobrança de propinas por PMs aos “ônibus piratas” das linhas do
trajeto Caxias – Central. Segundo estas matérias o pagamento de propina seria
uma rotina. Os veículos parados durante o trajeto eram multados 0 caso não
pagassem propina.

“ Agora estão fazendo isso, a polícia Militar - a Guarda Municipal, o


prefeito afastou - a PM chega e pede documentos. Esta tudo
legal....Mas vou te dar uma multa de cinto de segurança. Mas eu
tenho cinto de segurança... Mas o passageiro não está. Mas eu estou
vazio. – Isto eu vi acontecer -. Não você tem que levar uma multa...e
está entregue e é assim. Isso para que: o presidente da cooperativa ou
líder do grupo ligar para o cara para oferecer. É assim que funciona
o negócio”. (Presidente de Cooperativa da Zona Norte)
2) A circulação de ônibus e vans ilegais

Envolve com maior freqüência, o controle territorial da fiscalização: pagamento


de oficiais dos Batalhões da Polícia Militar (BPMS) nos pontos de partida e
chegada.

Os mesmos operadores de ônibus piratas pagavam rotineiramente R$ 25,00 e R$


50,00, respectivamente a oficiais dos BPMs da Praça da Harmonia (5o BPM) e de
Duque de Caxias (15o BPM). Na própria Central, pagavam R$ 4,00 a um PM

0O Globo, 14 e 15/08/1998
aposentado para que atuasse como despachante0, sendo encarregado da
organização das filas e evitar que outros policiais cobrassem propinas adicionais
aos veículos.

Quanto às vans, ao que tudo indica, reproduzem-se as mesmas práticas. Em agosto


de 1997, O Dia denunciava a oferta de pontos no Centro, divulgados em anúncios
de jornal. Localizavam-se no cruzamento da rua México, esquina com a rua
Araújo Porto Alegre. Pagava-se à PM, R$ 20,00 por semana para parar e esperar
lotação, sem ser multado.

“Na realidade é um sistema totalmente corrompido. Você paga um


guarda, você paga não sei quem. Paga o ponto, paga isso, paga
aquilo” (Presidente de Cooperativa do Zona Suburbana).
O mesmo tipo de prática foi citado por presidentes de cooperativas na ocasião de
entrevistas por mim realizadas: pagar aos “donos de ponto”.

“O dono do ponto é o cara que é dono da rua. Chega ali e fala o


dono sou eu, esse aqui é o ponto. Ele chama as pessoas, você paga a
ele para poder operar ali, opera qualquer um, ele não tem
compromisso com organização, compromisso com nada” (Diretor
administrativo de cooperativa de Bangu).
Apesar das críticas ao descompromisso com a organização, esta é uma prática
corrente e vista com naturalidade pelos operadores0.

“A organização nossa é, ela é muito, bem..., vamos dizer, capitalista.


Tem uma lista de ponto. Você chega na rua, eu acho que daqui para lá
é um pontinho bom, "esse espaço na rua é meu". Se você quiser parar
no meu ponto, você tem que pagar tanto para parar. Toda semana
você me dá X, e eu te protejo. Vou lá, faço um acordo com a polícia
dali, da redondeza e viro dono do ponto.(...) Então para você ver, um
espaço ali na Praça XV hoje, custa, cada carro daquele, R$ 40,00 por
semana. Nós temos 110 carros lá” (Presidente de Cooperativa da
Grande Niterói).
Segundo os jornais, os “donos de ponto” dariam também assistência jurídica e
proteção contra a concorrência de operadores autônomos. Entretanto, não pude
confirmar este fato.

“Cada carro paga ao dono do ponto e ele tem a mensalidade, que é


R$ 50,00. O da cooperativa que é independente. Cuja função é correr
atrás da legalização, dar o aparelho jurídico. Correr tudo para ele.

0 Despachante é o nome que recebe, mesmo nas empresas regulares de transporte, aquele que leva o registro das
chegadas e as partidas, sendo responsável pelo cumprimento dos horários.
0 Freqüente, também, nos táxis.
Só que na pista em si, tem os donos”. (Presidente de Cooperativa de
Itaborai).
Os jornais registram vários outros casos nos quais policiais passaram da
fiscalização do ponto ao controle da circulação e cobrança de “luvas” para operar,
além da “semanada”, para parar nos pontos.

Este era o caso do Sargento da PM Gilson de Almeida, dono do ponto da


Rodoviária. Cobrava R$ 5000,00 para operar a linha Rio – Cabo Frio e uma taxa
de administração de R$ 20,00, diários. Os operadores que se recusassem a pagar
eram coagidos a pagarem, ou a afastarem-se.

A figura do “dono-do-ponto”, não corresponde necessariamente a PMs. São


pessoas com influência e poder que evitam a concorrência e a ação de outros
policiais e, ainda de oferece pontos de grande fluxo para o embarque e
desembarque de passageiros. Este é o caso dos galpões que servem de rodoviárias
e locais de estacionamento em torno da Central do Brasil0. Seus proprietários são
apontados, por várias fontes, como “donos da cooperativa Cooper Central”:
Fernando Pinto Marques e Cordiato Esteves Vidal0.

Os “donos-de-ponto” não são os únicos a ganhar dinheiro com o transporte


informal. Nas áreas periféricas, é freqüente a circulação de grandes frotas
pertencentes a “empresários” locais, ou seja, proprietários de grande número de
kombis, como Reginaldo Washington, dono de 40 kombis em Campo Grande, ou
o comerciante Nivaldo Cabral Lima, proprietário de 170, em Santa Cruz, que
também vende veículos. Também pode ser citado Joaquim Mamede, ex-campeão
brasileiro de judô e ex-presidente da Confederação deste esporte, durante 21 anos,
acusado de corrupção e dono de 8 kombis na Ilha do Governador.

Segundo os operadores, esta é uma situação mais comum entre as kombis do que
entre as vans.
“Na kombi existe uma relação de que 70% das pessoas que dirigem
não são donos da kombi. São pessoas da comunidade, como falei, que
são motoristas. E os proprietários são outras pessoas. Ou às vezes
são pessoas que operam a kombi mas têm sempre um motorista.
Senão não conseguem andar. A van não. Na van, em 99,9% dos casos
opera o dono. Ele só vai ter um motorista auxiliar caso arrumar uma
viagem ou uma coisa assim. Mas é muito raro. Em 99, 6% das vans o

0 O Dia, 23/11/1999. Na realidade é o Elias que é o dono daquela área do Posto (..) Ele fez uma cooperativa
para... fazer algumas linhas. Ele é dono daquela área do Posto
0 Conferir Jornal, 23/11/1999
dono é a pessoa que dirige. Salvo quando é como a gente, eu sou
presidente da cooperativa, tenho que pôr uma pessoa para que o
carro saia à rua, senão fica parado. Nesses casos tem que ter um
motorista auxiliar” (Presidente de cooperativa do Méier).
Uma outra faceta do mesmo processo é a apropriação privada das linhas, que
passam a ser operadas por “donos de cooperativas”, pela apropriação da
cooperativa por seu presidente0 De qualquer forma, antes disto, existe a
necessidade de controle do número de operadores. O mercado de transportes, em
expansão, acarreta perda de rentabilidade e necessidade de limitar o número de
operadores de cada linha.

“Se entrar mais gente no sistema ninguém sobrevive nessa estrada”


(presidente de cooperativa as Zona Suburbana).
“acho que é trezentos reais a taxa de adesão(...) É... Aí tem duas
coisas aqui. A primeira é a seguinte: dependendo da linha que a
pessoa vai, tem linha que tem faturamento mensal de cem mil reais. Aí
não é justo que a linha que tem faturamento de mil reais, mil e
quinhentos reais por mês o cara pagar a mesma coisa, acaba
pagando menos. Mas aí você trabalha com a lógica da distribuição,
inclusive, de renda quem fatura mais paga mais. Inclusive na
operação de linha aqui, quem fatura mais paga mais, quem fatura
menos paga menos”(Diretor administrativo de cooperativa de Bangu).

A cobrança de taxas de ingresso para operar linhas0 não é claramente assumida


com. Contudo, todos manifestam a preocupação com o crescimento excessivo do
número de operadores e tentam controlá-lo. Os que trabalham fora das
cooperativas ou sem “donos” são denominados de bandalhas. A sua organização,
para evitar a repressão e a fiscalização, abre um “mercado de trabalho” para PMs
e seguranças. A este tipo de obstáculos à livre circulação, denomino de controle
territorial da circulação.

3) A relação entre proprietários de vans, Presidentes de cooperativas e Polícia


Militar

0 Boa parte das cooperativas visitadas tiveram problemas com seus diretores. Segundo o presidente de uma das
cooperativas. O presidente “se torna dono porque ninguém quer assumir a direção, porque é o mais competente,
porque é eleito, ou pela força”. (Presidente da Fecotral e de cooperativa da Baixada Fluminense)
0 Digo linhas e não cooperativas por que nem todas as linhas organizam-se desta forma.
Luiz Cláudio Rocha, ex- segurança e irmão de um PM, era presidente da Cooper
Vanguarda (ou Cooper Águia), criada há quatro anos (em 21/11/1999) 0,
controladora da linha São Gonçalo – Centro, cobrando diária de R$, 120,00. Este
era o caso da Coop Skyland ou SL Cooper Itaguaí que opera as linhas Central-
Itaguaí e Castelo-Itaguaí, controlada pelo policial militar da reserva, Jorge
Geraldo, que cobrava, para operar as linhas, R$4.000,00.

Os jornais oferecem vários exemplos destas prática. Mas os presidentes de


cooperativas explicam-nas como forma de auto-controle do número de
operadores. E até como estímulo, em certos casos, atraindo operadores com mais
fáceis de legalização.

É freqüente, também, a contratação de PMs e seguranças para proteger os


operadores das blitz. Em 23/11/1999, O Dia informou a prisão de 10 dos 16 PMs
que usavam a sua influência para livrar kombis das blitz. Eram 8 em Campo
Grande e 2 em Itaguaí, cobrando aproximadamente R$ 70,00 de diária. Os
policiais definiam uma área onde espalhavam olheiros que impediam a circulação
de autônomos.

“Começou aquela coisa do inspetor, pelo seguinte: a gente viveu uma


repressão muito grande no ano passado e nos anos anteriores. A
polícia, a própria prefeitura, a SMTU, que fazia fiscalização.
colocavam as..., o ano passado em Bangu, bem em frente aqui, a
CEPETRAN.(...) Todo dia a CEPETRAN estava aqui. Aí vinha com a
viatura deles, a gente chegou a um ponto aqui que a gente passava
com uma kombi e vinha uma moto atrás da gente. Tinha que parar,
saltar passageiro tudinho. Prendia o nosso carro. tem um depósito
aqui em Realengo, bem pertinho. Eles descarregavam os carros ali.
Aí como é que a gente fazia? A gente tinha que sobreviver. Porque
muita gente tinha comprado seus carros, pagado uma prestação,
tinha muito prestação para pagar e até o sustento de suas famílias. Aí
a gente ficava..., começou a aparecer esses radinhos. Aqueles que
pegam não sei quantos metros quadrados, aí aquelas pessoas que
tinham uma condição assim, que tinha um carro, tinha uma
kombizinha, mas tinha um carro e tinha uma condição de poder
marcar as blitzes deles, aonde eles estavam, aonde eles estavam
passando..., aí o que acontece? Por exemplo: a linha de kombi que
passa aqui nessa rua, aí de repente chegou uma barreira ali, uma
fiscalização ali. Aí a gente, os inspetores ficavam para saber se eles
iam colocar lá e aí a gente travava a linha lá. (...) ficava vigiando
eles. E eles estavam de carro, ai você estava aqui e eles não sei
aonde” (Diretores de linha de cooperativa de Bangu).

0 Luiz Cláudio Rocha foi assassinado em julho de 2001.


O mesmo tipo controle, que visa evitar a entrada de novos operadores, provoca,
muitas vezes, disputas violentas, entre cooperativas e “donos” rivais, como ilustra
o enfrentamento armado entre a Cooper Barata e a Cooper Rio da Prata, ocorrido
em 2000. Em 1º de dezembro de 2000, policiais civis atacaram a residência de
Rubens Miranda (PQD), cabo da PM reformado, “dono” da Cooper Barata, com o
intuito de seqüestrar seu filho. Era uma retaliação por este ter ferido, à tiros, dias
antes, Cristiano Gouveia, motorista de kombi, sobrinho do “dono” da Cooper Rio
da Prata, César Moraes Gouveia. A disputa de fundo era por duas linhas de
kombis da Cooper Rio da Prata, que operavam no bairro Barata0

Alguns dias depois, uma disputa semelhante culminou no assassinato do policial


Wanitul Almeida Guilherme, de 35anos, do Grupamento Especial Tático Móvel,
da Barra da Tijuca, proprietário de 30 kombis que faziam a linha Bangu – Jardim
Bangu. Foi fuzilado no ponto, junto a outros dois operadores 0, na porta de um
supermercado.

IV.2. Espacialização dos Fatos

O controle territorial da circulação é um fenômeno abrangente. Entretanto, a


disputa territorial é pouco freqüente no Centro e nas áreas mais consolidadas da
metrópole, porém é mais comum na periferia. Itaguaí, São Gonçalo, Bangu,
Campo Grande, Santa Cruz, Itaborai e Queimados, assim como Madureira e
Jacarepaguá, são áreas aonde verificam-se conflitos seguidos de morte.

0 O Dia, 02/12/2000
0 O Dia, 02/12/2000
Em toda a metrópole pode-se constatar o controle territorial de linhas e pontos
pela polícia (Federal, Civil ou Militar). Esta relação foi denominada por Luiz
Paulo Correia da Rocha (Vice-governador entre 1994 e 1998, e Secretário
Municipal de Transporte, entre 2000 e 2003)de militarização, o que causou
bastante polêmica. Entretanto, o fenômeno não parece restrito à polícia. Existe
uma burguesia e uma pequena burguesia periféricas, no sentido estrito de
proprietários dos meios de produção, composta por proprietários de kombis,
comerciantes e PMs, assim como por traficantes e seus familiares. Esta é outra
acusação formulada com certa freqüência. Estes “grandes proprietários” trabalham
associados a extenso grupo de pequenos proprietários, auxiliares, que encontram,
no maior proprietário e dono de grande prestígio local, um protetor com quem
estabelece relações paternalistas.

“O presidente da cooperativa não foi eleito, foi praticamente o


fundador, o criador. Ele lutou com a gente articulando tudo, então,
nada mais justo ...:Ele caminhava junto com a gente,(..) em todas as
fases ele estava junto com a gente”. (Diretores de linha de cooperativa
de Bangu)
Os “donos” exercem o controle do território e estabelecem entre si um trato de
senhores, com alianças – chamadas de amizade - e quando os desacordos não
permitem o entendimento, existem ódios mortais que justificam o ataque e a
disputa de linhas e mortes.

O importante é assinalar a preservação de um tipo de relação hierárquica, em que


as alianças e os desencontros, se explicam por referência a relações de tipo
afetivo, que ocorrem também, em relação aos formadores de linha, que convidam
aos que trabalham com ele.

Tudo leva a crer que estou diante de um habitus ou de um ethos social, do


empreendedor periférico, que inclui a apropriação do que, em tese, é público.
Como conjunto de práticas sociais, a relação hierárquica é comum e permanece
inquestionada. Estas práticas, a meu ver, formam um contínuo que não exclui
empresários de ônibus, como ilustra o caso comentado a seguir.
São Gonçalo: um caso exemplar

O Globo 11.12.2000
“Disputa por trajetos provoca mortes. Polícia investiga assassinatos na capital, na Baixada
Fluminense e em São Gonçalo”
As mortes ocorridas num dos lugares mais pobres da Região Metropolitana, o bairro-
dormitório Jardim Catarina, em São Gonçalo, dão idéia da dura guerra que o Governo
estadual terá de enfrentar até regulamentar o sistema de transporte alternativo no Rio. Lá, a
luta pelo controle de linhas de vans e kombis já causou a morte de quatro pessoas em
apenas alguns meses. Sérgio Murillo Santos Monteiro, de 35 anos, foi assassinado dentro
da Kombi placa KUK-5344, no Jardim Catarina Em março deste ano, o motorista José Luiz
da Silva, de 36 anos, foi assassinado no escritório da Cooperativa União de Bairros.
Três pessoas acusadas de envolvimento com as mortes de pelo menos dois cooperativados
já estão presas, entre elas um policial militar e Carlos Alberto Soares de Lima,
companheiro da vereadora Solange Costa (PDT), autora de um dos projetos de lei para a
regulamentação do transporte alternativo na região. O caso envolve também um dos
maiores empresários rodoviários do Rio, Eduardo Pereira Gonçalves, dono da Viação Rio
Ita, que entregou 15 kombis ano 2000 a Carlos Alberto.

Em depoimento ao delegado José Willian de Medeiros, que investiga o caso, Eduardo disse
ter dado 15 kombis para Carlos Alberto, que foi preso há duas semanas. Segundo o
empresário, a doação das kombis (cada uma custou R$ 18 mil) fazia parte de uma parceria
entre as empresas de ônibus e o transporte alternativo.
Secretário de Transportes tentou intermediar negociação
O secretário estadual de Transportes, Luiz Alfredo Salomão, tentou intermediar
negociações entre cooperativas e empresas de ônibus que atuam na região, mas não teve
sucesso. - Eles só se sentarão depois que morrerem 20 - disse o secretário.
Os crimes começaram a ser investigados por policiais da 74ª DP (Alcântara) em 5 de julho
passado. Em pouco tempo a polícia descobriu que o alvo era outro motorista: Bento César
Gilbert, que havia saído da cooperativa em que trabalhava, levando outros 30 colegas.
Bento chegou a prestar depoimento, mas negou que fosse o alvo do crime e garantiu que
nunca tinha sido ameaçado. Pouco tempo depois, entretanto, foi fuzilado.
Em março deste ano, o motorista José Luiz da Silva, de 36 anos, foi assassinado no
escritório da Cooperativa União de Bairros. Ele também disputava pontos do bairro Jardim
Catarina. Ele teria sido morto por causa da disputa pela linha Boaçu-Niterói, o primeiro
trajeto intermunicipal da cooperativa que tem 230 associados. O caso foi registrado pela
72ª DP (Mutuá). Uma semana depois, policiais encontraram o corpo carbonizado de um
outro motorista de van, Eduardo Luiz Paixão da Cunha, de 25 anos. A polícia chegou a
investigar a relação entre os dois crimes.
A guerra na região começou no fim do ano passado, quando Nelson da Conceição, diretor da
Cooperativa União de Bairros, foi assassinado. Atualmente, a cooperativa mantém 18 linhas
municipais. Para rodar na região do Jardim Catarina, qualquer Kombi ou van tem que pagar R$

1.500 de luvas e uma semanada de R$ 80 para PMs O exemplo de São Gonçalo - um dos
municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro que mais cresceu entre os
anos 1980 e 1990 - ilustra bem a complexa rede de relações que sustenta a
expansão do transporte informal. O artigo permite entrever relações entre poder
municipal, poder econômico armado e poder político em seus vínculos com o
governo estadual.

Durante a gestão daquele secretário estadual 0 foi estudada a possibilidade de


estabelecer uma forma de legalização inspirada na experiência de Guarulhos; onde
o transporte por kombis é subcontratado do serviço regular 0. Porém, a parceria
construída em São Gonçalo segue os padrões locais: um acordo comercial que
resolve desavenças pela força, física ou política e que não exclui o empresariado
local. Sociologicamente, não devem surpreender nem a sua natureza política, nem
os direitos “garantidos”. Sabemos, desde Marx, que o direito do mais forte é
também um direito e, quiçá, o mais antigo deles. Por outro lado, as relações entre
atividade economia e Câmara de Vereadores, ilustra bem aquela experiência que,
no caso do Rio, acontece a partir dos anos 20, expressando a relação entre
expansão urbana, crescimento econômico e poder político.
IV.3.Conclusão Parcial
A criminalidade no transporte informal poderia ser considerada, em parte, como
resultado de suas condições anômicas. Da ilegalidade original advinda da
inexistência de normas à morosidade no estabelecimento de regras, estimula-se a
instalação de um negócio extremamente rentável. Mas, manifesta-se, nos novos
transportes, o mesmo conjunto de práticas que impera nas modalidades mais
antigas de transporte, como nos ônibus. A exceção do lobby, todas as outras
práticas são reproduzidas, no transporte informal.

Inicialmente, uma burguesia e pequena burguesia periféricas tomam o controle


dos negócios e, mais tarde, estabelecem um controle territorial, que é preservado
e, se possível, expandido. Sendo uma prática ilegal, este controle é facilmente

0 Expressamente contrário à regulamentação do transporte informal.


0 “O Detro já chamou o pessoal do inter-municipal comum contratozinho dizendo que aquilo era a única saída.
Aquilo era um contratozinho para o cara trabalhar para as empresas de ônibus. O cara vai rodar na linha dele
vai pagar 24 passagens por dia. É a proposta do Detro. Se não aceitar não tem problema: a gente vai abrir para
empresários de ônibus comprar Van também (não entendi) É complicado o governador se prestar a isso. Ele diz
que tem compromisso com as cooperativas, mas deixa que isso ocorra” (Presidente de Cooperativa da Zona
Suburbana).
apropriado por aqueles com capacidade de se impor pela força. Possibilita-se,
assim, a policiais tornarem-se “donos”, beneficiando-se da circulação urbana.

É possível refletir, aqui, a dimensão de ‘rua’ oposta à ‘casa’ mas, deixarei de


desenvolvê-la, agora, para pensar o conjunto de práticas ocultas pelo “ princípio”
institucional da concessão dos transportes públicos que, no caso do Rio jamais
existiu completamente. A prática de driblar a norma, conforme mencionei
anteriormente, é um aspecto importante da ordem, ao que, em geral, não é
devidamente valorizado.

As legislações estadual e municipal, ao mesmo tempo em que estabelecem o


princípio da prerrogativa estatal, atribuem aos usuários, a solicitação de novas
linhas, e os estudos de demanda futura. Esta faceta da legislação elimina, na
prática, o princípio da iniciativa pública. Outro instrumento legal que estimula a
ilegalidade é que as linhas descobertas não oferecem nenhuma vantagem ou
garantia ao seu desbravador. Este consegue, no máximo, uma autorização
provisória que não estabelece nenhum precedente o no momento das licitações.
Estes determinantes da ação, somado, ao monopólio territorial que garante a
rentabilidade sem esforços, desestimula as empresas da realização de qualquer
investimento na eliminação de carências. Entre os informais, desestimula a
legalização, mesmo quando trata-se de transporte complementar.

A formação de uma empresariado periférico aumenta acessibilidade na metrópole


mas, a inexistência de estrutura legal que conceba o seu crescimento e que
viabilize a sua adaptação às normas produz a ilegalidade. Portanto, a orientação
analítica que opõe livre mercado à gestão pública, mostra-se formal e
improcedente. O sistema de transportes, tal como opera, incorpora apenas as
deficiências da gestão pública e do livre mercado. A regularidade resultante
decorre da desconsideração do usuário como sujeito e da expansão dos transportes
segundo um padrão empresarial típico, que beira a ilegalidade, e que se
caracteriza pela apropriação privada da circulação. Por outro lado, esta
apropriação, é perfeitamente coerente com a ordem social de classes vigente.

V. Conclusões

A omissão da dimensão política da problemática da regulamentação e do


planejamento dos transportes oculta as formas de poder envolvidas na
distribuição dos transportes. A busca do bem-estar, proclamada por todos, é
reduzida, na prática, ao aumento da velocidade do sistema de transportes e do
tráfego e na manutenção da rentabilidade das empresas. De modo que, a
regularização do transporte informal significa, também, a outorga de uma
prebenda, na qual o Estado responsabiliza-se pela repressão e a manutenção do
lucro, tendo a fluidez e a rentabilidade como o maior bem urbano a ser alcançado.

Neste contexto, pouco importa que a introdução do transporte informal ao sistema


seja reconhecido como racionalização ou ordenamento. De um ou de outro modo,
busca-se preservar a rentabilidade privada cabendo a fiscalização e repressão ao
Estado.

O tema dos transportes ilustra, em pequena escala, fenômenos mais abrangentes


que caracterizam as relações entre empresas e Estado. Se, na escala nacional, há
diferenciação mais clara entre interesses públicos e privados, tendo estes últimos a
capacidade de revestir-se de legalidade e moralidade 0, o mesmo não pode ser
afirmado noutros níveis de governo. A face legal e visível das decisões esbarra
noutras faces, ocultas: o poder econômico exerce-se nas câmaras e assembléias
legislativas, torna-se tão mais forte quanto mais periférica a unidade político-
administrativa, sendo formada uma amálgama de interesses entre governantes,
políticos e empresariado local, onde predominam interesse ligados ao mercado
imobiliário e aos transportes. Quanto à dimensão burocrática do Estado, a
corrupção tende a ocorrer nas instituições de terceiro escalão, onde também são
tecidas alianças entre membros da burocracia e empresariado. Estas alianças
fundam-se não em aspectos institucionais mas em aspectos culturais oriundos de
características sociais do empresariado urbano. Trata-se de condicionantes sociais
de práticas econômicas que abordarei no capítulo seguinte.

0 Ver Santos, (2000).


1

Capítulo 8
Transporte Informal e Mercados Metropolitanos de Trabalho

I. Introdução

O tema dos transportes, autodenominados alternativos pode ser abordado


teoricamente pela economia através da análise do trabalho informal. Porém, o
conceito de informal apresenta dificuldades empíricas e teóricas, pela imprecisão
dos fenômenos que definem e por estarem marcados por uma história de críticas
ainda não incorporadas e mudanças de significado.

O conceito de setor informal, enunciado em 1972 pela Organização Internacional


do Trabalho0 (OIT), refletia a preocupação, por parte de economistas dos órgãos
internacionais, com os limites da modernização e do desenvolvimento nos países
do terceiro mundo, em cujos mercados de trabalho conviviam tanto atividades
modernas como tradicionais, constituindo-se estas últimas, em obstáculo à
modernização. A solução para este quadro envolvia a superação da pobreza e a
eliminação de entraves ao desenvolvimento econômico, pela supressão de setores
e práticas econômicas não modernas.

Assim, o conteúdo do conceito de setor informal é anterior aos estudos


sociológicos do tema sustenta-se numa concepção dualista da economia nos países
do periféricos sendo, portanto, sucedâneo do conceito de marginalidade que,
apesar de sua hegemonia institucional, nas décadas de 60 e 80, foi objeto de
crítica teórica e de denúncia, dos erros a que induz pelo uso de modelos sociais e
econômicos calcados na experiência recente dos países centrais0.

Mas, independentemente dos ganhos cognitivos alcançados dos nos passado, no


final da década de 80 a economia informal0 passou de ser a considerada - pelas
mesmas instituições0 - como fator de desenvolvimento econômico e de eliminação
da pobreza e, até mesmo, como alternativa de proteção social. Deixou de ser

0 Ver Lautier, 1991. p. 25


0 Atitude que em inúmeros campos do conhecimento qualifica os fenômenos observados entre nós como
prévios ou atrasados em relação à experiência de outras sociedades ou regiões que servem de modelo ( Ver
Santos, 1979. p. 13)
0 Convenciona-se adotar como data de inflexão o ano de 1986. Porém cabe lembrar a releitura feita por Piore &
Sabel (1984) e por De Soto (1986).
0 De incentivo à pequena empresa ou adoção de uma legislação que favoreça formas de trabalho e de produção
não empresariais como cooperativas, subcontratação, terceirização, etc.
2

concebida como sobrevivência de relações econômicas e sociais atrasadas e pouco


competitivas, seriam o efeito negativo da regulamentação estatal que privilegiou a
grande empresa ou setores monopolistas da economia em detrimento das
pequenas iniciativas econômicas0.

O elogio ao setor informal ocorre em sintonia e sincronia com a redefinição dos


objetivos da políticas sociais e econômicas pelos Estados 0 e a reestruturação das
empresas - inovação tecnológica é simultânea à inovação gerencial, à
flexibilização das relações de trabalho e à terceirização. A inovação traduz-se na
promoção, por diversas vias institucionais, da competitividade e eficiência, tanto
de empresas, quanto de trabalhadores; pela busca da qualificação profissional, ou
melhor, de novas competências segundo um “novo espírito”, polivalente e
criativo, que destacaria o empreendedorismo econômico como qualidade 0, que
igualaria o empreendimento de elite e o precário.0

A positivação de elementos da economia informal não superou, contudo, os


limites teóricos já reconhecidos pela crítica de outrora. Não conseguiu definir,
com clareza, o que é economia ou setor informal, rotulando indistintamente,
práticas econômicas confusamente percebidas. Passa ao largo, também, de um dos
aspectos mais importantes do antigo debate: as relações entre economia informal e
urbanização. Abandona, com isto, boa parte dos avanços cognitivos já realizados
nos anos 700. Tal retrocesso é particularmente grave no caso dos transportes, já
que, por sua natureza e escala, a atividade vincula relações de produção
estritamente econômicas à produção do espaço urbano e à reprodução social.

Por outro lado, as preocupações contemporâneas com a urbanização relacionam-


na diretamente à dinâmica da economia. A associação reaparece e persiste na
tendência à reificação de conceitos novos –, tais como: globalização,

0 Tal vez em decorrência da importância que a pequena empresa, o empreendedor e o empreendimento passam
ater nas cadeias produtivas contemporâneas: tercirização.
0 Procedendo segundo os preceitos do, chamado, neo-liberalismo tende á desregulamentação das relações de
trabalho e formação de um estado mínimo.
0 Ao falar institucional, refiro-me, não apenas, à iniciativa estatal mas a iniciativas privadas das mais diversas
naturezas, assim como instituições semi-públicas como o SEBRAE ou a Revista Pequenas Empresas Grandes
negócios.
0 Ver Ribeiro, 1995
0 A volta a tona da informalidade, a partir de meados da década de 1980, difere do antigo debate em dois
aspectos principais: a informalidade não é, apenas um problema típico do Terceiro Mundo, e as mudanças na
estrutura produtiva surgidas em conseqüência da crise de 1970 e tratam do trabalho informal como alternativa
válida para agregação de renda (Castells & Portes, 1989. p. 29)
3

fragmentação e exclusão -, apesar da experiência e do conhecimento acumulados


demonstrarem que tais relações entre urbanização e economia, e, ainda, entre
urbanização e práticas sociais são mais complexas e mediatizadas do que
normalmente se crê.

Apesar das diferenças disciplinares, as abordagens geográficas e sociológicas da


economia urbana0 e do mercado metropolitano de trabalho, enfrentaram,
simultaneamente, o dualismo, estabelecendo a interconexão entre os pólos
moderno e “marginal” ou tradicional, da economia urbana, ao negarem a
adequação dos critérios que opunham moderno a atrasado, bem como no uso dos
termos setor formal e/ou informal. A evolução posterior das disciplinas separou as
reflexões, de maneira que a geografia tenderia a se distanciar da análise dos
mercados de trabalho e a sociologia da relação entre o mercado de trabalho e
fenômeno urbano.

Se, de um modo geral, a articulação de ambas aprofunda o entendimento do


fenômeno urbano, no caso aqui estudado tal articulação é fundamental, já que
busco compreender como emerge e consolida-se uma atividade econômica não
institucionalizada, responsável pela produção e pela reprodução da metrópole: o
transporte informal.

A partir da tradição geográfica, Milton Santos contribui não apenas negando a


existência de um setor informal0 mas, por propor a explicação daquele fenômeno
econômico pela operação de circuitos econômicos subalternos, não independentes
do circuitos econômicos dominantes, cuja existência está intrinsecamente ligada
às das modernizações econômica e social. Por outro lado, desde uma tradição
sócio- antropológica é possível abordar as representações, os projetos, as táticas e
as estratégias, que norteiam práticas econômicas, como aspectos localizados de
outras facetas da vida; aspectos que constituem persistências ecológicas ou
rugosidades que conformam um ethos social: disposições ativas de indivíduos e
de grupos em tensão com as relações econômicas, e capazes de gerar resistências
e conflitos.

0 Ver Oliveira (1986); Machado da Silva (1971); Santos (1979; 1990a).


0 Santos, 1990 a
4

A estratégia expositiva consistirá na apresentação de cada contribuição disciplinar


em separado, cotejando-se depois as contribuições teóricas com os dados
disponíveis. Por último, busco uma síntese do tema.

II. Perspectiva Geo-econômica

II.1.a. Modernização e Diferenciação Metropolitana: a teoria dos circuitos

A partir de uma perspectiva geo-econômica, coube a Santos (1979) a denúncia da


inadequação do dualismo na compreensão da economia metropolitana e regional
no terceiro mundo. Em seu lugar, identificou a diferenciação e a segmentação da
economia urbana como fruto não do atraso ou da sobrevivência. Mas, da
acomodação da economia urbana à rede econômica mundial e às sucessivas
modernizações0.

Com efeito, para Santos, a urbanização nos países do terceiro mundo associar-se-
ia à industrialização mas não necessariamente à industrialização doméstica ou
nacional e sim, num nível ou escala mais ampla. Tratar-se-ia de uma urbanização
mundial provocada pela industrialização local ou reflexa, pela modernização do
campo, pela revolução do consumo e pela incorporação da cidade ou a
reformulação da rede urbana em que se insere0.

Modernizações e promessas de modernização alteram os espaços. Entretanto, ao


fazê-lo, superpõem antigas e novas condições técnicas e organizacionais,
alterando a ocupação de certas áreas e abandonando outras, o que produz uma
modernização segmentada0, capaz de integrar a economia das metrópoles dos
países subdesenvolvidos em circuitos inter-relacionados porém diferenciados, que
o autor tipifica na oposição polar entre Circuito Superior e Inferior que operam de
forma articulada na metrópole.

Desde um ponto de vista geo-econômico, a metrópole seria definida, portanto,


como unidade econômica, unidade de consumo e unidade do mercado de trabalho
pois

0 “Cada período se caracteriza pela existência de um conjunto coerente de elementos de ordem econômica,
social, política e moral que constituem um verdadeiro sistema. Cada um desses períodos representa uma
modernização (inovação vinda de um período anterior ou da fase imediatamente precedente” ( Santos, 1979.
p. 25).
0 Ver capítulo 2
0 Ver Santos, 1979. p. 43
5

“(...) a metrópole em sua totalidade funciona como um sistema de


estrutura global e integrada, constituído de subsistemas
independentes e complementares que ao ajustar-se aos diferentes
aspectos da modernização, através das inter-relações dos sub-
sistemas entre si e com o todo, possibilita um determinado equilíbrio
que impede sua desintegração”. (Santos, 1990 ª p. 32).
“Nas grandes cidades existem as condições ideais para essa
convivência entre capitais tão desiguais. Os bancos unificam os
diversos níveis de mais valia realizados pelas diversas atividades
econômica” (Santos, 1990 ª p. 32).
“Os modelos concretos de consumo são numerosos e diversos e há
diversos mercados de trabalho, ainda que entrelaçados” ”.(Santos,
1990 ª p. 31)
“A estrutura socio-profissional é indutora de estrutura produtiva: as
empresas buscam instalar-se em lugares onde encontram mão-de-
obra qualitativamente indicada para executar as tarefas”.(Santos,
1990 ª p. 30)
A urbanização como fenômeno mundial associado teria nas metrópoles, centros de
dinamização e interconexão - seu relés, nas palavras de Santos -, o que significaria
a diversificação e o adensamento de relações econômicas. Este não seria, contudo,
um processo homogêneo e contínuo de desenvolvimento nas metrópoles de países
subdesenvolvidos. Trata-se de um processo heterogêneo e ambíguo pois,
simultaneamente à modernização de atividades, ocorreria a expansão da pobreza,
decorrente do modelo de crescimento

“(...) responsável por uma distribuição de rendas cada vez injusta, e


impede a expansão do emprego, assim como o desenvolvimento de um
mercado interno para produtos modernos. A existência de um circuito
inferior da economias urbana é uma das conseqüências principais
dessa situação” (Santos, 1979. p.147).
Aquele fenômeno que permitiu a Santos caracterizar, ainda nos anos 70, o espaço
das cidades do terceiro mundo como sendo um espaço dividido bipolarmente,
emerge para o autor, nos anos 90, tendo como referência a metrópole de São
Paulo, como processo de involução
“(...) já que existe crescimento mas este é paralelo à baixa do rendimento médio e
à expansão do número de empregos mal remunerados. A adaptação da economia a
esta involução metropolitana caracteriza-se por uma segmentação ou seja uma
proliferação de atividades com os que diferentes níveis de capital, trabalho,
organização e tecnologia. Menores que no setor moderno que surgiram como uma
forma de suprir a demanda de empregos e serviços provocados por aquela
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modernização e que a economia monopolista não consegue atender” (Santos, 1990


a. p.33).

Formalmente, os elementos e a concatenação explicativa de Santos não diferem de


outras análises efetuadas nos anos 60 e 70. A urbanização periférica poderia ser
descrita, segundo a seguinte seqüência: a modernização industrial e do campo
provocou a migração da população rural em direção às cidades e,
conseqüentemente, o aumento da população urbana. A expansão da população,
porém, não foi acompanhada do crescimento da oferta de emprego no “setor
moderno”0 e, ainda, os empregos oferecidos em grande volume eram mal
remunerados. Até este ponto, Santos não alcança a oferecer uma contribuição
substancial. Sua contribuição realmente relevante consistiu em estabelecer uma
relação causal entre o fenômeno da pobreza provocada pela modernização e a
formação de circuitos econômicos que relacionam “uma série de atividades de
menor capital”0, estimulando dinamicamente a economia da metrópole0.

Assim, as metrópoles, ao invés de se tornarem, simples e diretamente, lugar de


coexistência de uma minora de ricos e uma massa homogênea de super pobres,
permitem que se desenvolva uma vasta classe média e pobre”, o que ocorre
simultaneamente à “diversificação da produção de bens e serviços a partir das
mais diversas condições técnicas ou financeiras que ocupa uma região específica
e, muitas vezes, ocorre dentro de certas áreas da mesma metrópole”0, de forma
que quanto mais populosa e extensa é uma cidade “mais flexível quanto à criação
de atividades econômicas”0metropolitanas.

O conceito de involução expressa a complexificação geográfica e sócio-


econômica, denominado, nos anos 70, de circuitos da economia urbana e regional
- que enuncio como teoria dos circuitos. Esta teoria, preserva e tem aumentado o
seu poder explicativo no contexto dos anos 90, mesmo quando muda
substancialmente a migração campo - cidade e a modernização afeta áreas e

0 O conceito tradicional para referir-se a a tal situação era “inchacho” urbano. Tal concepção foi
duramente criticada por Oliveira (1986) atribuindo, pelo menos na experiência de São Paulo, não à falta de
empregos mas á natureza, organizacional e técnica da industrialização na cidade de São Paulo. Enquadrando-
se entre os que definem a cidade ao modo de Castells, como locus da reprodução da força de trabalho, de modo
que a cidade é para a reprodução o que a fábrica para o processo produtivo.
0 Santos, 1979, p 43. (ver também Santos 1990 a.)
0 E que Santos denomina também “flexibilidade tropical”.
0 Santos, 1990a. p. 30.
0 Ribeiro (1999) fala de involução intrametropolitana: outros sentidos das migrações.
7

grupos, que num passado recente, dela se beneficiavam. O conceito de involução


metropolitana e a teoria dos circuitos são uma contribuição crucial de Santos para
a explicação da consolidação dos transportes informais nas metrópoles brasileiras
nos anos 90, permitindo considerá-la no marco mais geral da modernização
econômica.

II.1.b. Os Circuitos

A economia que se forma a partir da segmentação e da diferenciação sócio-


espacial metropolitana e regional, não se deixa apreender por conceitos como
setor ou nichos de mercado ou como, redes ou cadeias produtivas técnicas e
organizacionais, como propõem as perspectivas produtivistas ou mercadológicas.
Trata-se de um circuito, ou seja, de cooperação econômica com extensão e
localização variáveis, que abrange a produção, o financiamento, a distribuição e a
comercialização. A noção de circuito relaciona os consumidores a que se destina a
produção - avaliados segundo seu poder de compra e necessidades atendidas - o
tipo de trabalhadores, sua renda e qualificação; empresários e empresas, segundo
o seu tamanho e características técnicas e organizacionais; os modos de
financiamento, bem como as características das relações de trabalho e produção,
conforme se aproximem ou não das relações monopolistas hegemônicas. Em
suma, cada circuito é definido tanto pelo “conjunto das atividades realizadas”
como pelo “setor da população que se liga a ele essencialmente pela atividade e
pelo consumo”0.

Santos distingue assim, dois circuitos: o superior e o inferior, opostos em termos


formais e não por sua autonomia - economias estanques, já que o inferior articula-
se de algum modo, geralmente pelo financiamento, ao circuito superior, que é
dominante (ver gráfico 1). Simplificando, é possível conceber o circuito superior
como constituído por bancos, comércio, indústria de exportação, indústria urbana
moderna, serviços modernos, atacadistas e transportadores, que atendem um
consumo de elite e de classe média, oferecendo bens e serviços em lugares
apropriados. Originado das modernizações tecnológicas, seus elementos
representativos são os monopólios, que atuam, tanto no país, quanto no exterior.

Já o circuito inferior é composto por formas de fabricação não capital-intensiva,


pelos serviços, fornecidos a varejo, pelo pequeno comércio. Em suma são
0 Santos, 1979. p. 33
8

atividades econômicas não-modernas, de pequena dimensão, de interesse das


populações pobres, localizadas em certas áreas da metrópole. Este circuito surge
das necessidades dos habitantes, expressando a sua renda e distribuição no espaço
urbano.

Como ilustra o quadro 1, Santos procede à diferenciação dos circuitos por


construção tipológica de seus aspectos distintivos no que se relativos à tecnologia,
à organização, ao volume de capital investido, ao volume de emprego criado, ao
regime de trabalho, à capacidade de estocagem, aos mecanismos de fixação de
preços, à forma de crédito, à margem de lucro, às relações com a clientela, ao
volume de custos fixos, à necessidade de uso de publicidade, à freqüência de
reutilização de bens, à dependência de ajuda governamental e ao grau de
dependência externa .

Quadro 1
Características dos circuitos da economia urbana dos países
subdesenvolvidos
CIRCUITO SUPERIOR CIRCUITO INFERIOR
Tecnologia Capital intensivo Trabalho intensivo
Organização Burocrática Primitiva
Capitais Importantes Reduzidos
Emprego Reduzido Volumoso
Assalariado Dominante Não obrigatório
Estoques Grande quantidade e /ou alta Pequena quantidade,
qualidade qualidade inferior
Preços Fixos (em geral) Submetidos à discussão
entre comprador e
vendedor
Crédito Bancário institucional Pessoal não institucional
Margem de Lucro Reduzida por unidade mas Elevada por unidade, mas
importante pelo volume de pequena em relação ao
negócios ( a exceção dos volume de negócios.
produtos de luxo)
Relações com clientela Impessoais e/ou com papeis Direta e personalizada
Custos fixos Importantes Desprezíveis
Publicidade Necessária Nula
Reutilização dos bens Nula Freqüente
Overhead capital Indispensável Dispensável
Ajuda governamental Importante Nula ou quase nula,
Dependência direta do exterior Grande atividade voltada para o Reduzida ou nula.
exterior
Fonte: Santos, 1979 p. 34
9

Observo que as variáveis destacadas por Milton Santos para diferenciar os


circuitos assemelham-se aos esquemas dualistas que opõem moderno à
tradicional0, grande indústria e artesanato e trabalho autônomo. Assim, enquanto
no circuito superior predomina tecnologia capital intensiva, que demanda grandes
investimentos e organização, de tipo racional - burocrática; no circuito inferior,
elencam-se, aspectos opostos, inclusive a reutilização de bens e a falta de
publicidade.

O aparente dualismo desta explicação, que desaparece pela descrição flexível dos
elementos, realizada pelo autor permite localizar relações e identificar a dinâmica
dos circuitos, como ilustra o gráfico que segue.

0 Mas podem opor capitalista a artesanal, também.


10

Gráfico 1
Os Elementos dos dois circuitos

Circuito Moderno Extra-regional

Banco

Circuito Superior
A
Comércio tiv
de
ida
exportaçã Indústria
de
Exportaç de
s
Comércio moderno Re
gio
Tr nai
an
sp At Serviços s
or ac
ta adi
do sta
Circuito inferior

re s
s

F
a
br

Relações Comércio não-moderno


Relações Relações de
hierárquicas simples de complementariedade
complementariedade recíproca
Fonte: Santos, 1979, p. 31

Em escala supra local, os circuitos relacionam-se pela via financeira - no nível


mais elevado -, enquanto na escala regional, ocorre pelos transportes, pelos
atacadistas e pelos serviços. Tais relações contribuem, igualmente, para o
desenvolvimento econômico regional, assumindo a aparência do consumo.
11

Entre os circuitos, pode haver - o que é típico nas metrópoles brasileiras - um


circuito intermediário que Santos denomina Circuito Superior Marginal 0,
originado tanto da sobrevivência de formas técnicas e organizacionais menos
modernas quanto da resposta a uma demanda que não alcança a suscitar atividades
totalmente modernas. Esta atividade intermediária pode atender necessidades do
circuito superior ou do inferior. Tal ambivalência pode torná-lo complementar ou
concorrente do circuito superior, conforme a conjuntura e a área de atuação0.

Este circuito (segundo o primeiro quadro) possui características mistas ou


intermediárias e atua, em verdade, junto ao Circuito Superior. Ambos “utilizam a
cidade como mercado unificador da mão-de-obra, economias externas, de capital
e um lugar de consumo, também unificado: há uma verdadeira cumplicidade no
nível de mercado”.

“O mercado é unificado apesar da diferença dos preços de custo


devido às diferenças de nível tecnológico - organizacional. Essas
diferenças ajudam a estabelecer uma verdadeira cumplicidade ao
nível do mercado” (Santos, 1979. p. 246).
Para Milton Santos, não há oposição entre ambos circuitos Tanto o Circuito
Superior quanto o Circuito Superior Marginal “pretendem inserir-se na chamada
economia urbana moderna”0. A diferença consiste em que o Circuito Superior, por
sua estrutura econômica e financeira, cria consumo. Já o Circuito Superior
Marginal funda-se em parâmetros modernos mas reponde a necessidades locais de
consumo. Este último aspecto é compartilhado pelos Circuitos Superior Marginal
e Inferior. O Superior Marginal, por outro lado, pode atuar, ora de forma
complementar, ora em oposição, na medida que impede a formação de oligopólios
Os custos do Circuito Superior Marginal, mais elevados, estabelecem os preços do
Circuito Superior0 aumentando a sua rentabilidade.

Em suma, a metrópole unifica e articula processos econômicos diversos,


formalmente contraditórios, favorecidos e potencializados por sua extensão,
diferenciação e segmentação interna. Nela, a modernização técnica e
organizacional - estimulada verticalmente pelas corporações - é precedida pela

0 Santos (1990, 35 –6) afirma. Ademais que “ o circuito superior divide-se em duas formas de organização” a) o
circuito superior e b) o circuito superior marginal que correspondem a formas de produção menos modernas
desde o ponto de vista tecnológico e organizacional (Santos 1979. p. 80)
0 Santos, 1979. p. 246
0 Santos, 1991. p. 35-6
0 Ibidem
12

formação de necessidades, expectativas de consumo e estilos de vida que não se


realizam plenamente. A prosperidade é simultânea à proliferação da pobreza,
fazendo emergir as mais diversas atividades econômicas, das quais emerge uma
vasta classe média, que estimula o crescimento e a diversificação vertical da
economia urbana. Portanto, a modernização, em metrópoles extensas e
diversificadas, multiplica-se em efeitos locais diferenciados e distantes dos seus
primeiros propósitos. O contraditório processo da involução metropolitana pode
ser lido, então, como um fenômeno expressivo da reapropriação do espaço urbano
por seus habitantes.

II.2.a. Teoria dos Circuitos e Transportes

O detalhamento da teoria de Santos visa destacar, aspectos da economia urbana,


relevantes à compreensão do objeto da Tese. Mais especificamente, a expansão e
consolidação do transporte informal realizado por vans apresenta características
associáveis à formação de um circuito superior marginal nos transportes.

Considerando-se que o sistema convencional de transportes urbanos (ônibus,


barcas, metrô e trem) como pertencentes ao circuito superior, é possível tomar o
transporte por kombis como pertencente ao circuito inferior e o transporte por
vans como inscrito no circuito superior marginal. A hipótese esbarra, contudo, na
afirmação de Santos (1979, p. 158), de que o transporte por ônibus pertence ao
circuito inferior. É preciso perguntar, então, até que ponto é possível aplicar,
esquematicamente, a concepção dos três circuitos aos transportes.

A resposta não pode ser alcançada facilmente, pois, é impossível classificar os


transportes por ônibus no circuito monopólico no sentido proposto por Santos,
embora a experiência brasileira recente autorize que se fale de monopólio 0.
Comumente, e na forma de denúncia, chamam-se as empresas de monopólios e
cartéis, visando mostrar a força econômica e política que as mantêm numa
situação territorialmente privilegiada, sem licitação e sem concorrência, com
preços elevados e serviços de má qualidade. Mas, o alcance do termo vai apenas
até aí0. A noção de monopólio de Santos atenta ao fato de que as grandes firmas
0 No sentido de empresas monopolistas.
0 O interessante desta reflexão é perceber que na experiência histórica brasileira, o princípio da grande
empresa foi estimulado pelo Estado paulatinamente que contribuiu para formação de um grande empresariado
que impôs o sistema de ônibus como hegemônico apenas nos anos 90 e que o mesmo empresariado diversificou
concretizou sua propriedade a ponto de cinco grupos no município do Rio e três no Estado controlem todo o
sistema de transportes urbanos de passageiros. Organizando-se em grupos que diversificam sua atuação na
13

criam a sua demanda, manipulando a mídia veiculada e o desenvolvimento de


produtos adequados; através do controle econômico extra local e da diversificação
econômica.

De fato, analisando a questão desde a perspectiva da necessidade satisfeita - a


mobilidade metropolitana - ,o transporte por ônibus não corresponde ao Circuito
Superior. Ligado a este e satisfazendo necessidades de mobilidade encontra-se o
automóvel e o transporte individual. Ocorre assim, uma inversão dos critérios
com os quais diferencia-se normalmente os setores modernos e não modernos da
economia, pautados no antagonismo entre auto-produção e produção artesanal, e
produção capitalista. À primeira, atribui-se inferioridade técnica e econômica em
relação à última. Neste caso, a auto produção corresponde ao pólo positivo. A
valorização do transporte individual, torna o transporte coletivo inferior,
classificando-o como lento, sem flexibilidade e inadequado às necessidades
pessoais e à distinção social.

A oposição hierárquica entre transporte individual e coletivo ordena uma cadeia


de atributos, esquematizados no quadro apresentado a seguir.

revenda de veículos utilitários zero quilômetro e usados. E durante os anos 90 a internacionalização, comprando
empresas em grande metrópoles brasileira, tanto quanto a exportação de Know How.
14

Quadro 2
Propriedades distintivas dos transportes urbanos
Veículo Tipo Preço Trajeto Conforto Atendimento Velocidade
Automóvel Individual Elevado Muito Elevado Personalizado Alta
Flexível
Táxi Individual Elevado Muito Elevado Personalizado Alta
Flexível
Vans (especiais) Coletivo Médio Flexível Alto Personalizado Alta
Ônibus especiais Coletivo Médio Rígido Alto Padrão Média
Metrô Coletivo Médio Rígido Médio Padrão Média
Inferior
Vans de linha Coletivo Baixo Flexível Médio Padrão Alta
superior
Ônibus convencional Coletivo Baixo Rígido Baixo Padrão Média
Kombi Coletivo Baixo Flexível Baixo Padrão Alta
Trem Coletivo Baixo Rígido Baixo Padrão Baixa
Fonte: Pesquisa para Tese

Este quadro0 permite identificar as propriedades do transporte por tipo de veículo,


como individuais ou coletivos, pelo preço da viagem, pela flexibilidade,
adequação no atendimento às necessidades e pela velocidade que atinge, ou pode
atingir, abstraindo-se atrasos decorrentes de congestionamentos. O automóvel
individual e o táxi são formas de transporte urbano mais flexíveis, mais
confortáveis, mais rápidas e adequadas às necessidades individuais. Entretanto,
são mais caros que os transportes coletivos de massa.

A relação transporte - hierarquia social, não decorre, tão somente, do preço, senão,
também, da rapidez e da personalização que proporcionam ou parecem
proporcionar. Tais atributos relacionam-se à valorização social da individualidade
e da liberdade0 e a sua desigual distribuição. De todo modo, a referência ao
automóvel serve como parâmetro de avaliação das outras modalidades de
transporte 0, como pode ser notado na tabela 1 ilustra parte dos dados obtidos
mediante aplicação de questionários entre estudantes universitários de uma
faculdade pública e outra privada0.

0 Os critérios resultam da sistematização da própria experiência.


0 Ver Silva (2000. p. 52).
0 Esta relação entre transportes e hierarquia social foi aludida, em várias outras oportunidades( Ver ANTP
(2001);Vasconcellos (1997); Santos (1990).
0 Foi aplicado um questionário fechado no qual os alunos deviam citar os meio de transportes usados
regularmente e avaliá-los.
15

Tabela 1
Sistema de Transportes na Avaliação dos Usuários
Transporte Trem Metrô Ônibus Táxi Kombi Van Carro Outro
Qualificação N % N % N % N % N % N % N % N %
91,4
Não Sabe. 51 54,84 39 41,94 14 15,05 44 47,31 42 45,16 43 46,24 30 32,26 85 0
Bom 9 9,68 40 43,01 20 21,51 35 37,63 10 10,75 22 23,66 54 58,06 8 8,60
Mau 28 30,11 9 9,68 47 50,54 10 10,75 38 40,86 28 30,11 5 5,38
Regular 4 4,30 2 2,15 10 2,15 3 3,23 2 2,15 3 3,23
Outro 1 1,08 1 1,08 10,75 1 1,08 1 1,08 1 1,08
Depende 2 2,15 2
100,0
Total 93 0 93 100,00 91 100,00 93 100,00 93 100,00 93 100 93 100,00 93 100
Fonte: Pesquisa para Tese

Embora os dados não possuam valor estatístico servem para demonstrar mostrar
que o automóvel é o mais prestigiado dos meios de transporte mesmo quando a
maioria absoluta dos que responderam os questionários são usuários de
transportes coletivos. Como se vê na tabela 2, 53,76 % dos que responderam usa
ônibus como transporte principal enquanto 26,88% complementam o ônibus com
outro meio de transporte e apenas 6,45 %utilizam o automóvel individual como
principal forma de transporte.

Tabela 2
Principal Transporte Usado
Tipo de Transporte N
Carro 6 6
Carro e Metrô 1 1
Carro e Van 1 1
Kombi 1 1
Metrô 3 3
Motocicleta 1 1
Ônibus e carro 13 13
Ônibus 50 53
Ônibus e barcas 3 3
Ônibus e trem 2 2
Ônibus e van 4 4
Ônibus, Kombi e bicicleta 2 2
Ônibus, van e carro 1 1
Trem 1 1
Van 4 4
Total 93 100
Fonte: Pesquisa para Tese

Mesmo sendo o transporte individual a referência realmente positiva, na prática,


esta preferência concretiza-se de forma reduzida e as necessidades de transporte
são satisfeitas de diversos modos e mediante várias combinações. Existem, então,
muitos tipos de demanda e várias formas de satisfazê-las.
16

Portanto, se relacionados produção e consumo, neste caso específico, percebe-se


que há mais circuitos que os três, que tomei como referência, com base em Santos.
Ao relacioná-lo com o circuito econômico mais abrangente - da produção de
veículos que permite o transporte urbano - identifica-se o circuito superior que
obedece, verdadeiramente, aos parâmetros da teoria de Milton Santos. A indústria
automobilística é monopólica e estrangeira. Apresenta, ainda, o aspecto mais
essencial do circuito superior: as sucessivas modernizações incidem na formação
de outros circuitos, neste caso do transporte, que não tema a possibilidade de
atender.

II.2.b. Indústria Automobilística e Transporte

É curioso que a indústria automobilística não seja citada por Santos em sua obra
de 1979, na medida em que oferece um exemplo típico de mercado monopolista,
com impactos expressivos na urbanização. A força de sua presença é
particularmente notável no caso do Brasil. Nos anos 90, a indústria
automobilística assumiu um lugar de destaque0 tanto como produtora quanto
consumidora. Efetivamente, nessa década, a indústria automobilística - assim
como a telefonia, a informática, a petrolífera, entre outras - travou uma disputa
estratégica no (e pelo) mercado nacional e regional, que culminou não apenas na
ampliação do parque industrial e em diversificação de produtos e empresas mas,
principalmente, na globalização de sua produção0, o que redunda em
especialização internacional e em reestruturação (geográfica, técnica e
organizacional) das relações industriais.

É possível, então, estender a relação entre modernização e circuitos marginais de


Santos em vários sentidos. Os anos 90, seriam assim, um período de
modernização. A década foi marcada pela abertura de importações, durante o
governo Collor e, alguns anos mais tarde, pela implementação de uma nova
política nacional para a indústria automobilística (Regime Automotivo), que
permitiu a importação, desde que se assegurasse a produção, no país, até 1998. O
período corresponde, também, ao da “reestruturação” da indústria mundial, que
permitiu disputar novos mercados, barateando custos 0 e implementando uma
política micro-econômca mundial, na qual o Brasil desempenhou papel
0 Assim por exemplo, a abertura da importação ocorrida durante o governo Collor é considerada o ato que
marcou a inflexão no sentido de adição de políticas neo-liberais e a globalização.
0 Quer dizer, a empresa passou a operar de forma mundialmente integrada.
17

importante. Assim, em 1996, os projetos de investimento somavam algo em torno


de doze bilhões de dólares, introduzindo técnicas e formas de gestão e
organização mais modernas. O potencial exportador do país, assim como o
reduzido número de veículos por habitante, num contexto de estabilidade
monetária, tornaram o Brasil extremamente atrativo e disputado.

Há que recordar, também, que é vasta a gama de produtos que a indústria


automobilística oferece. São muitos “nichos de mercado” e, a cada um,
corresponde uma rede econômica própria como pode ser visto no quadro a seguir.

0 Trata-se do corolário da crise da indústria automobilística norte americana produzida pela concorrência
japonesa e européia e saturação dos mercados.
18

Quadro 3
Participação das Montadoras por tipo de veículo na produção nacional –
Brasil - 2003
Tipo de veículo Montadoras
Passageiros e uso misto
Passageiros Fiat Ford GM Honda Renault toyota VW
Uso misto Fiat Ford GM Renault VW
Comerciais leves
Camionetas de uso misto Fiat Ford GM Honda Chrysler MMC Nisan Peugeot Renault VW
-citröen
Camionetas especiais: Fiat VW
Camionetas de Carga Fiat Ford GM Iveco MMC Nisan Peugeot Renault VW
Utilitários Land
Rover
Comerciais Pesados
Caminhões
Semileves Agrale Fiat Ford Iveco Peugeot-
citröen
Leves Agrale Ford Chrysler VW
Médios Ford Chrysler VW
Semipesados Ford Chrysler Scania VW
Pesados Ford Chrysler Scania Volvo VW
Ônibus
Chassis Agrale Iveco Chrisler Scania Volvo VW
Plataforma Chrysler

Fonte: ANFAVEA, 2003

O quadro esboça os diversos mercados por tipo de veículo e as montadoras que


atuam em cada um deles. A concorrência segue a clivagem de tipo, com políticas
específicas de atuação, por parte de cada uma delas. O mesmo ocorre em relação
às políticas de importação e exportação.

É notável que onze montadoras atuem na produção de camionetas especiais, ou


seja, vans e kombis. Trata-se da maior concentração de montadoras atuando na
produção e comercialização de um determinado tipo de veículo. No período
tratado, a oferta e o número de marcas comercializadas no Brasil, aumentou
consideravelmente (ver quadro 4) tanto pela importação como, principalmente,
pela instalação de novas montadoras (Renault, Citröen, Pugeot)0.

0 O mesmo pode ser feito para cada um dos tipos de veículos encontrando diferenças intermináveis. Não é este o
meu objetivo. Lembro isto por que no mercado de utilitários o esquema se repete.
19

Quadro 4
Veículos Usados para o Transporte de Passageiros
por Modelo, Montadora e País de Origem
Montadora Veículo Origem
Asia Topic Coréia
Asia Towner Coréia
KIA Besta Coréia
Hyundai L300 Coréia
Mercedes Benz Sprinter Argentina
Renault Minibus Argentina
Iveco Daily S. I
Fiat Ducato Brasil
Peugeot Boxer S. I
Citröen Jumper S. I
Volkswagen Kombi Brasil
Fonte: Pesquisa para Tese0

Com efeito, tradicionalmente os furgões e os utilitários, com maior uso nas


metrópoles brasileiras, eram as kombis fabricadas pela Volkswagen. Foi
exatamente neste nicho que a concorrência descobriu um campo livre. As
montadoras asiáticas - Hyundai, ASIA Motors e KIA importaram, desde os
primeiros anos da década de 90, modelos econômicos e baratos com capacidade
para seis e doze passageiros, disponíveis em condições de crédito muito
favoráveis. Além disto, a valorização do Real tornou os preços ainda mais
acessíveis. Apenas anos depois, ofereceram-se outras opções no mercado
brasileiro. Num patamar mais alto de preço, encontram-se os modelos da IVECO,
da Mercedes Benz e da Renault, veículos mais amplos e confortáveis que os das
empresas asiáticas e kombis. Noutra faixa um pouco mais econômica, a Peugeot e
a Citröen importaram veículos e, posteriormente, passaram a produzi-los no país,
assim como tem feito também a Fiat. Quanto à kombi da Volkswagen,
tradicionalmente produzida no país, teve diversificados seus modelos, oferecendo
veículos com doze lugares, porta automática e ar condicionado (ver quadro de
preços por modelo)0.

Ao que tudo indica, um dos estímulos centrais à proliferação do transporte por


vans e kombis foi a concorrência da indústria automobilística mundial, que fez do
Brasil, um entreposto importante de consumo e produção, explorando nichos de

0 Beseado na sistematização das entrevistas, na observação e em pesquisa em jornais.


0 O fenômeno da Mototaxi segue o mesmo padrão.
20

mercado pouco ou mal servidos. Esta descoberta é importante pois, relativiza o


alcance explicativo da inovação tecnológica considerada isoladamente.

II. 2.b.1. Histórico0

A expansão do transporte informal relaciona-se à concorrência por mercados entre


grandes firmas, de presença mundial, sem que se verifique transformação
tecnológica significativa. Seria possível então negar a relação entre inovação
tecnológica e urbanização. Contudo, uma breve recuperação histórica permite
reconhecer a mudança tecnológica relevante noutro memento, no início da
metropolização brasileira.

O uso de micro-ônibus e a expansão do seu mercado, como estratégias


competitivas da indústria automobilística, não são novos. Nas grandes cidades
latino-americanas, sua presença foi simultânea à chegada de montadoras norte-
americanas que concorriam com os ônibus europeus, maiores e com rodas de
borracha maciça, além do bonde, ao superados por ônibus e micro-ônibus, que
ofereciam mais conforto, flexibilidade e maleabilidade.

O micro ônibus, inicialmente denominado jitney, começou como um carro de


passeio que recebia uma carroceria maior para transformar-se em coletivo 0. Tais
veículos foram responsáveis, na segunda década do século XX, pela expansão de
Los Angeles sem necessidade de ampliação das de linhas férreas. Na América
Latina, serviram de cabeceira à ponte da indústria automobilística norte-
americana0. Foram responsáveis, ademais, pela popularização o transporte
automotivo, já que o automóvel era, então, artigo de luxo.

Ao jitney podem atribuir-se, então, duas grandes transformações urbanas: a


introdução de um novo padrão de deslocamento permitiu que a expansão urbana
ocorresse por adensamento a partir de estações ferroviárias0 e pela ocupação de
áreas sem estrutura ferroviária. Este veículo foi responsável, ademais, por uma

0 Quanto aos transportes informais clássicos. São kombis, veículos velhos, usados que atendem a periferia e
que para a sua realização econômica dependem de sua condição ilegais, contudo, não concorre com o sistema
de ônibus, não agora, por isso nos anos 60 sua repressão foi necessárias à consolidação dos sistema
monopólico. Com modos de circulação específicos.
0 Jitney: nome que recebeu, nos Estados Unidos o táxi-coletivo.
0 Todas as capitais tiveram ativa participação dos Jitneys na formação do sistema de transportes por ônibus (São
Paulo, Rio de Janeiro,Lima , Buenos Aires. Caracas etc.).
0 A urbanização por trem e bondes, responsável pela primeira modernização urbana sucumbre pela Indústria
Automobilística.
21

representação ideológica, profunda e enraizada da circulação urbana, que vincula


automóvel, técnica e modernidade industrial0, como pode ser visto na imagem
reproduzida a seguir.

Figura 1
Anúncio da Chassis para Microônibus da Chrysler – Buenos Aires - 1932

Fonte: Achával, 2000. p. 18

Este anúncio da Chrysler, publicado em Buenos Aires em 1932 estimula a noção


de superioridade técnica do carro em relação ao trem. No desenho, o automóvel,
que na prática seria destinado ao transporte coletivo, está localizado à frente do
trem. Esta imagem transmite também uma idéia de sofisticação e distinção social,
já que o automóvel é conduzido por um chofeur uniformizado que aguarda numa

0 Criticado por Pereira(1997), identificado por Santos(1990) e pela ANTP.


22

estação de trem chamada golf, o que sugere lazer. Esta imagem, relaciona, então,
o automóvel ao bem viver.

Além da estratégia publicitária, as montadoras norte-americanas estimularam, a


formação de indústrias. Ao contrário das européias, que traziam os veículos
prontos, as empresas norte-americanas importavam, apenas, o chassis e o motor,
aqui encarroçados e adaptados ao transporte de passageiros, desenvolvendo ou
modernizando uma indústria específica0.

Em suma, de uma perspectiva histórica, é possível caracterizar a difusão do


transporte automotivo no padrão norte-americano, como uma mudança
tecnológica que alterou a urbanização, a economia e a cultura urbanas, já nos anos
20. Esta difusão, determinou, a partir daí, uma urbanização pautada no transporte
automotivo - coletivo ou individual - como fonte de negócios para a indústria
monopólica, estimulante à formação de um circuito econômico complementar
tanto na produção de equipamentos e implementos. Estimulava, ainda, a
formação de um empresariado urbano específico, fortalecendo a relação entre
circuitos inferior e superior marginal, e a modernização.

II.2.c. Transporte Urbano e Circuito Superior Marginal

Creio ser possível falar da coexistência de vários circuitos relacionados à


indústria automobilística no sistema de transporte metropolitano. Os transportes
comporiam, então, circuitos superiores marginais, aceitando-se que estes reúnem
aspectos mistos, como pode ser visto no quadro 5. Neste quadro, amplio aos
transportes automotivos do Rio de Janeiro, os critérios propostos por Santos para
caracterização dos circuitos da economia urbana.

0 Achával, 2000
23

Quadro 5
Características dos dois circuitos do transportes urbano por tipo de veículo
Aspectos Ônibus Vans kombi
Tecnologia Trabalho intensivo Trabalho intensivo Trabalho intensivo
Organização Burocrática Mista0 Mista
Capitais Importantes Relativamente Reduzidos Relativamente Reduzidos
Emprego Volumoso Volumoso Volumoso
Assalariado Dominante Não obrigatório Não obrigatório
Estoques Sem Sem Sem
Preços fixo fixo (em geral) fixo (em geral)
Crédito Bancário institucional Pessoal não institucional Pessoal e variável
Margem de Lucro Reduzida por unidade mas Elevada por unidade, mas Elevada por unidade, mas
importante pelo volume de pequena em relação ao pequena em relação ao
negócios volume de negócios. volume de negócios
Relações com clientela Impessoais0 Direta e personalizada Direta e personalizada
Custos fixos Importantes Importantes Importantes
Publicidade Nula Nula Nula
Reutilização dos bens Freqüente Freqüente Freqüente
Overhead capital Indispensável Indispensável Indispensável
Ajuda governamental Importante Nula Nula
Dependência direta do exterior Nenhuma Nenhuma Nenhuma
Fonte: Pesquisa de Campo inspirado em Santos (1978)

Seria impossível afirmar que os transportes encontram-se inseridos no circuito


inferior da economia urbana. Assim, no que tange à organização das empresas de
ônibus, pauta-se num padrão burocrático moderno, que utiliza, de forma
preponderante, o trabalho assalariado. Requer, além disso, o investimento de um
grande volume de capital fixo e depende do sistema de crédito, já que necessita
de grandes investimentos para fazer frente aos custos de renovação da frota e à
manutenção dos veículos e das instalações.

Por outro lado, tanto o ônibus quanto as vans e kombis, relacionam-se de forma
bastante direta, ao circuito superior, como clientes do sistema de revenda das
montadoras que, no caso do transporte por kombis, parecem constituir uma real
novidade. De resto, há muitas diferenças: modalidades de transportes surgidas da
iniciativa de proprietários individuais não requerem, em princípio, grandes
volumes de capital, principalmente comparados aos das empresas 0, embora,
individualmente seja necessário um investimento alto, com recursos oriundos de
poupanças pessoais ou familiares e em capacidade de crédito (bancário ou de

0 Combinação de gestão pessoal da operação direta com tentativas mais ou menos heterogêneas de constituir
as cooperativas como organização burocrática.
0 Impessoais desde o ponto de vista da organização do trabalho.
0 Ver mais adiante
24

outro tipo). Contudo, a formação de cooperativas e a legalização, mesmo que


parcial, fortalecem o processo de organização que pode estimular a formação de
empresas. Isto é, tende a aproximar entre a prestação de serviços e o padrão de
eficiência racional- burocrática, em condições organizacionais e com recurso a
relações de trabalho heterogêneas.

Mesmo reconhecendo que o transporte por vans e kombis ocupa uma


posição inferior na economia urbana, em relação aos ônibus, é difícil
atribuir os transportes urbanos a um único circuito. Contudo, se é refletida a
rede produtiva e comercial em que se inserem os veículos torna-se possível
reconhecer a heterogeneidade das práticas econômicas de farto existentes e
também o seu imbricamento.

Gráfico 2
Localização dos Transportes nos Circuitos da Economia Urbana
Circuito Superior

Indústria Automobilística

Caminhões Ônibus Utilitários Carros de Passeio


(Vans Kombis)

Concessionárias

Circuito Superior Marginal


I. Carrocerias
Opcionais adaptações

Empres Empres Pessoa Empres Pessoa Empr


a a Física a
Física

Operação de transportes
(ônibus/ Vans/ Kombis/ Taxis)

Fonte: Pesquisa para Tese


25

Como ilustra o gráfico 2, a produção de ônibus corresponde, na indústria


automobilística, à produção de chassis e motores. Este é obviamente um
segmento do circuito superior, com forte atuação nos mercados nacional e
internacional. Para ser acionado, necessita que o comprador, através de
concessionária ou esquemas de venda articulado pela indústria, encomende o
veículo necessário (caminhões ou ônibus). A partir deste momento, ocorre um
outro momento produtivo, no qual o veículo é encarroçado para atender às
finalidades a que se destina. O circuito, que formalmente é idêntico para pessoa
física ou empresa, diferencia-se pelo fato de não haver produção de ônibus para
pessoas físicas. De todo modo, a operação no transporte regional ou urbano só
ocorrerá depois que este circuito for acionado e ultrapassado.

Com as vans e kombis acontece algo muito semelhante, com a diferença de que
as próprias montadoras oferecem modelos opcionais0. Há contudo,
principalmente no caso das kombis, adaptações específicas, tais como: utilização
de gás natural como combustível e dispositivos para abertura automática ou
mecânica das portas e, também, ar-condicionado e vidros especiais, oferecidos
por empresas que podem, tanto estar inseridas no circuito inferior, quanto no
circuito superior marginal.

Os táxis apresentam o mesmo modo de operação, o que possibilita reconhecer


analogias entre as várias formas de relacionar o transporte à indústria
automobilística. Todos passam pelo sistema de revenda mas, a grande diferença
entre ônibus e outras modalidades de transporte urbanos consiste no fato de
que, de um lado, a iniciativa parte de empresas e, de outro, de pessoas físicas.
Mas, os circuitos não se encerram neste momento. A revenda continua até o
total envelhecimento do veículo.

0 Portas automáticas, ar-condicionado ou transformação para gás, no caso das kombis.


26

Gráfico 3
Elementos dos Circuitos do Transporte
com Ênfase na Revenda e no Circuito Inferior

Circuito Superior
Indústria Automobilística

Crédito
Crédito Pessoal

Concessionária Concessionária

Circuito Superior Marginal


Empresa Operador
(ônibus/ (Van/Kombi)
van/kom

Empresa
Ônibus
Distante

Revendedore
s Operador
(Van/Kom
Circuito Inferior

Ônibus Pirata

Operador
(Van/Kom
Ônibus Pirata

Fonte: Pesquisa para Tese

Destaco, neste gráfico, primeiro, que o crédito e suas condições são determinantes
da estruturação dos circuitos, estimulando o circuito Superior Marginal ou o
Circuito Inferior, conforme dificulte ou facilite a aquisição de veículos novos.
Diferencia-se conforme o crédito seja concedido a empresas ou a pessoas físicas,
sendo que, no último caso, as condições de acesso comportam maior risco 0.

0 O crédito para empresas ou para permissionários de transporte tem prazo e juros menores,
tendo linhas exclusivas dos bancos públicos.(Ver capítulo próximo)
O crédito para empresas ou para permissionários de transporte tem prazo e juros menores, tendo linhas
exclusivas dos bancos públicos.(Ver próxima seção).
27

Quando se trata de revenda, reaparece a analogia entre ônibus, vans e kombis. A


revenda estimula a formação de uma frota de veículos adquirida a preços menores,
cuja variação pode ser conferida no quadro que segue. Difere, contudo, a posição
estrutural no sistema de transportes, das empresas de ônibus e dos proprietários de
vans e kombis. As primeiras são proprietárias de suas revendedoras. Contudo, em
muitos casos, a revenda passa por uma concessionária que, ou gere o crédito de
uma instituição financeira, ou atua como financiadora.
Quadro 6
Preços de Veículos Novos e Usados, Utilizados no Transporte Informal por Ano de Fabricação

Nacionais
Modelo Montadora Novo 2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997 1996 1995 1994
Ducato Turbodiesel 15 Fiat 59.345,00 - - - - - - - - - -
lugares
Kombi - Standard (Básico) VW 27.944,00 - - - - - - - - - -
Completo (12 lugares) VW 33.944,00 - - - - - - - - - -
Lotação VW 25.921,00 22.900,00 19.200,00 16.450,00 14.530,00 12.980,00 11.800,00 9.100,00 8.300,00 8000,00* 7.500,00*
Daily * Maxi 40 IVECO 87.600,00 - - - - - - - - - -
Minibus dti* Renault 65.890,00 - - - - - - - - - -
Importados
Jumper 15 Lugares Citöen 60.710,00 - 47.000,00 41.000,00 - - - - - - -
H100 GL 12 Lugares Hyundai 47.000,00 - 34.200,00 32.600,00 - - - - - - -
H100 GL 16 Lugares Hyundai 55.00.00 - - - - - - - - - -
Besta GS 2.7* Kia 51.790 - - - - - - - - - -
Besta GS Grand Kia 57.490,00 - 36.900,00 32.500,00 - - - - - - -
Sprinter 311 Diesel 12 MB 67.479,00 - 55.400,00 47.500,00 - - - - - - -
lugares
Sprinter* 311 Diesel MB 82.628,00 - - - - - - - - - -
Lotação 16 lugares
Boxer 15 passageiros Peugeot 57.367,00 - 46.500,00 41.400,00 40.800,00 34.500,00* - - - - -
*
Topic Luxo* Asia - - - - - 30.450,00 - - - - -
Towner Luxo* Asia - - - - - 9.650,00 - - - - -
Fonte: O Globo, Folha de São Paulo - novembro e dezembro de 2003
1

(*) Folha de São Paulo A concessionária tem, então, parte ativa na formação de circuitos,
já que controla a compra e venda de veículos novos e usados. No caso dos
ônibus, veículos antigos formam as frotas do interior do estado e do país,
enquanto que, nas metrópoles, os ônibus piratas têm a mesma origem.
Provavelmente, nos pontos mais extremos do circuito inferior, a revenda de
veículos deixa de passar por concessionárias0 de grande porte, permitindo a
atuação de pequenas revendedoras e mesmo, a venda direta.

No caso dos transportes, a concessionária ou o esquema de revenda da indústria


automobilística funciona como relés, de forma similar aos atacadistas e
transportadores, na proposta teórico-analítica de Santos. Quanto ao sistema de
transporte, considero tanto o ônibus, quanto as vans e kombis, incluídas no
circuito superior marginal, mesmo que possa haver hierarquização e diferencias
entre eles. Por outro lado, os veículos mais antigos, que operam depois de
sucessivas revendas, inserem-se na dinâmica do circuito inferior.

Se o antigo sistema de transporte informal - de ônibus pirata e kombis usadas –


formava claramente um circuito inferior, um circuito superior marginal forma-se
pela entrada de veículos novos, estimulada pela política comercial das
montadoras. Este circuito, não decorre da perfídia das empresas e, sim, a um ato
com conseqüências incalculadas: formação de um “ nicho de mercado” que
manifesta uma conjuntura específica da concorrência entre as grandes corporações
da indústria automobilística.

Evidentemente, trata-se de uma rede complexa que não é apenas econômica. Seu
estado técnico e concorrencial é determinante e característico do momento
modernizador. Quero, com esta afirmação, relativizar o alcance explicativo da
inovação tecnológica, pelo menos no que se refere aos veículos, para destacar
mudanças na organização empresarial (micro-econômica), em função das
estratégias competitivas que, desde o seu início, têm nos micro-ônibus um meio
de penetração e de consolidação.

A verdadeira mudança tecnológica verificou-se nos anos 20 e 30 quando os micro-


ônibus alteraram o padrão de urbanização de todas as grande cidades, iniciando
sua transformação em metrópoles. A partir de então, o transporte individual

0 Ver mais adiante.


2

transforma-se no padrão ideal de deslocamento, desigualmente distribuído e


símbolo de distinção social. Afinal, a mobilidade desigualmente distribuída é fator
de diferenciação social. As inovações que desde então foram introduzidas,
relacionam-se mais à economia de combustíveis e ao conforto dos passageiros.
Por outro lado, e sem relação direta com a indústria automobilística, a introdução
do gás natural como opção de combustível, implicou na formação de uma rede de
fornecimento, e na regulamentação de seu uso, assim como na formação de um
mercado conversor. As demais condições de formação dos circuitos decorrem das
conjunturas política e financeira: estabilidade monetária e disputa de mercados
promissores, capazes de absorver novos bens de consumo, pelas empresas
multinacionais 0.

Em suma, a oferta de veículos e as suas condição são determinantes da


emergência e da consolidação do transporte informal no circuito superior
marginal. Este circuito é determinado por ações econômicas e pelo estado dos
mercados. Contudo, tais determinantes são insuficientes para explicar o fenômeno
de forma multidimensional. De qualquer modo, nada disto pode ocorrer, sem que
hajam empreendedores que direcionem suas ações à realização de projetos.

II.3. Conclusão

A contribuição de Milton Santos, além de permitir relacionar a expansão dos


transportes informais à modernização econômica, revela que a involução
metropolitana aciona uma complexa e imbricada rede de relações econômicas e
sociais0, cujos elementos foram fixados numa conjuntura histórica distante,
quando se firmaram a hegemonia do transporte automotivo e o vasto complexo
industrial que o comanda. Concebido como um circuito superior, é responsável
pelo ordenamento vertical dos territórios, por controlar técnica e economicamente
os meios indispensáveis à mobilidade urbana. A mesma perspectiva histórica
mostra que suas inflexões foram acompanhadas por mudanças na mobilidade
metropolitana e no padrão técnico e organizacional dos serviços oferecidos, de
maneira que as alterações atuais não são motivadas tecnicamente mas, sim,
economicamente, pelo aumento da concorrência no mercado mundial.

0 Lembrar de Piore e Sabel (1984).


0 Que em diversas oportunidades denominará o poder do lugar, ou como elogio aos homens
lentos ou ainda, quando se trata da persistência de formações ecológicas, rugosidades.
3

Nas escalas regional e nacional, as políticas empresariais e governamentais de


crédito estimulam (ou desencorajam) a formação de circuitos superiores marginais
e circuitos inferiores, articulados pelas concessionárias, funcionando, para o
transporte urbano, de forma análoga à atribuída por Santos aos atacadistas, (des)
favorecendo a formação do circuito superior marginal, pelo controle da oferta e da
procura.

Por outro lado, a vida útil dos veículos não terminaria com a retirada de serviço. A
venda sucessiva de veículos estimulou a expansão do transporte por vans e
kombis numa extensão territorial pouco precisa e propícia ao surgimento de
circuitos inferiores. Assim, o esquema bipolar de Santos transforma-se num
instrumento de compreensão dos fenômenos sócio-geo-econômicos - a formação
de circuitos - numa sucessão quase infinita e descendente, que termina com a
destruição física do veículo.

A teoria dos circuitos, contudo, encontra seus limites ao tentar estabelecer quais
seriam as práticas, os grupos e atitudes que conformam os circuitos inferior e
marginal superior. Quem, como e mediante que relações forma os circuitos, são
explicações inatingíveis através das orientações analíticas desta teoria. Alcança-
se, então, o limite explicativo das técnicas e da transformação econômica, como
condição suficiente para a explicação da emergência de novas dinâmicas sociais,
de novos grupos e práticas.
4

III - Práticas Econômicas e Lugares Sociais

III. 1. Introdução

A contribuição de Milton Santos relaciona modernização econômica à formação


de uma economia urbana segmentada, que em termos explicativos, é mais eficaz e
perspicaz, do que as de nicho de mercado, ou rede econômica ou mesmo
organização em rede0. No entanto, o ponto limite de esta contribuição encontra-se
nas atribuições de sentido dadas à pobreza na emergência do circuito inferior. A
pobreza pareceria ser capaz de produzir tanto agentes econômicos, quanto
estimular o surgimento de movimentos sociais, quando as promessas da
modernização não se realizam0. Faltam instrumentos para reconhecer e analisar os
elementos subjetivos que sustentam a formação da ”economia informal” e seu
enraizamento sócio-espacial0.

A ausência de ênfase em problemas tipicamente sociológicos ou antropológicos é


compreensível, já que, desde uma perspectiva geográfica, as técnicas e as
organizações são dimensões determinantes, já que atualizam e distribuem, no
território, as ações hegemônicas. O conceito de ação funciona aqui, verticalmente
– requerendo a noção de escala para a sua apreensão e compreensão. No entanto,
o uso da categoria ação impõe, aos sociólogos, deveres teóricos e metodológicos
específicos: a compreensão dos comportamentos com base na interação social.
Significa reconhecer que tais ações, relações e instituições sociais, atualizam-se
através de indivíduos que atribuem à interação social sentidos, capazes de
produzir padrões e regularidades sociais. Significa, ainda, reconhecer a existência
de dimensões imateriais na ação: crenças e valores - permanentemente
atualizados.

Sustento, então, que existe um ethos do empreendedor urbano, que consolidou


novas práticas no momento da modernização técnica, organizacional e, também.
das necessidades de consumo. Falo de ethos aludindo a um postulado sociológico
clássico: nenhuma prática social ou fenômeno humano aparece do nada. Nem as

0 Pensar fenômeno como o contrabando e a formação de redes internacionais. Desemprego e pobreza e


contrabando. Duas experiência histórias: redes extra-locais
0 Santos, op. Cit.
0 Isto fica muito evidente quando define as classes médias.
5

técnicas, nem as necessidades, bastam para explicar a formação de uma prática 0 e,


portanto, a emergência de um sujeito coletivo. Operam em sua conformação,
também, aspectos imateriais de ordem sócio-cultural.

Por ethos, entendo caráteres sociais ou habitus que se manifestam como padrões
de comportamento, capazes de produzir aquilo que Weber (1991. p. 17)
denominou regularidades sociais de fato. São princípios ativos incorporados
através de socialização, que permitem comunicar e agir, sem necessariamente
abrir mão de discursos, e que se reproduzem, ao longo do tempo, como práticas
geograficamente localizadas.

Na economia urbana, se repetem e expandem fenômenos associados à economia


informal, sem que tal repetição e expansão possa ser atribuída ao atraso ou da falta
de desenvolvimento, como no passado. Sua vitalidade e recorrência sugerem,
além de condições objetivas análogas, a persistência de modos de ser e de agir
particulares que, no mercado de trabalho, estabelecem práticas e conformam redes
sociais, dando, às relações de trabalho e de produção urbanas, feições particulares.
Por este motivo, insisto, ao longo desta tese, na continuidade de práticas não
formalizadas, nos transportes, assim como na existência de aspectos extra-
econômicos, igualmente determinantes0 que podem ser estudados a partir de
fenômenos já conhecidos.

Os transportes informais não correspondem, contudo, a uma mera repetição de


práticas passadas. A expansão e a consolidação do transporte informal é um
fenômeno novo com aspectos e facetas particulares. Refiro-me especificamente às
lutas pela regulamentação e organização em cooperativas, que não se esgotam
completamente em inovações técnicas, nem nas necessidades do capital e que
manifestam, também, continuidades das relações de trabalho, não formalizadas, já
conhecidas. O transporte informal constitui, assim, um meio para a observação da
transformação em dimensões, econômicas, técnicas, organizacionais ou sócio-
culturais.

0 Se bem Santos trata de ethos como submetido a manipulações que, como terei ocasião de mostrar no próximo
capítulo é verdade. E Weber usou aquela categoria no contexto da inflexão qualitativa de que emergiu o
capitalismo moderno. Nenhuma das duas noções são precisas para a questão que busco expressar, peno menos
não na exata medida. Uso o termo ethos como sinônimo de habitus: princípios ativos incorporados mediante
socialização, que permitem comunicar e agir, sem necessariamente abrir mão de discursos.
0 Como já foi visto a, há uma regularidade histórica na relação entre transportes informais e a metropolização ou
expansão metropolitana.
6

No intuito de precisar as formas assumidas por aquelas relações de trabalho, três


perguntas nortearão a exposição: que práticas conformam os circuitos superiores
marginais nos transportes, como se formam e quem participa. Esta perguntas
explicitam a seguinte questão: quais são as continuidades e rupturas presentes nas
mesmas? Antes, porém, é necessário esclarecer a perspectiva e o conhecimento
aceitos que pautarão a análise.

III.2. Antecedentes Teóricos

Utilizar a clássica noção de ethos social na identificação de aspectos sócio-


culturais em circuitos econômicos, para apreender características de um mercado
de trabalho específico, a conformação da demanda e a formação de um
empresariado particular, ou uma pequena burguesia urbana, significa questionar a
“validade da autonomia do mercado de trabalho” 0, afirmando que “a relação de
mercado ao invés de ser uma instância autônoma que determina o social é um
procedimento social cujos efeitos são econômicos0”. Trata-se, portanto, de
priorizar a investigação dos fundamentos culturais do comportamento
econômicos0. Esta perspectiva vai de encontro a supostos econômicos
tradicionais, denunciando a presença de outras racionalidades que amiúde são
taxadas de irracionais, informais ou clandestinas0.

Na abordagem das práticas sócio-econômicas que fundamentam a “economia


informal”, esta opção analítica, significa afirmar que as práticas rotuladas de
informais têm, de fato, forma definida: seguem padrões e critérios sócio-culturais
que escapam ao pensamento modelar, permanecendo ocultos0 ou descritos,
somente, por referência às carências, limites e faltas, em relação a modelos
idealizados de funcionamento do mundo do trabalho. Revela, também, para além
dos limites cognitivos, dificuldades metodológicas oriundas da inexistência de
dados e informação capazes de analisar aquelas práticas.0.

Desde esse ponto de vista, torna-se impossível determinar um único mercado de


trabalho. Há múltiplos mercados de trabalho a serem levados em conta:

0 Lautier e Pereira, 1994, 126


0 Isto, aliás, sabe-se desde Marx.
0 Ver Sahlins (1989).
0 Ver Santos (2000. P. 119).
0 Ver Lautier (1991) Machado da Silva e Chinelli (1997).
0 Expor as permanências
7

“mecanismos de contratação, de formação de grupos e coalizões de empresas que


não adotam determinações institucionais, nem a uma lógica puramente
mercantil”0. A idéia de rede social0 sintetiza este aspecto, negando a procedência
de uma descrição formal e impessoal das relações de contratação, acesso ao
trabalho e mesmo de promoção do trabalhador, indicando a importância das
relações familiares, de amizades e afinidades pessoais 0 na estruturação do
mercado de trabalho.

Estudos antropológicos e sociológicos que adotam tal perspectiva contribuem para


esclarecer que, ao invés do atraso econômico e da passividade dos pobres,
verifica-se, na economia urbana, um variado conjunto de práticas tendentes ao
alcance de condições de trabalho minimamente estáveis e favoráveis aos agentes.
Assim, quando as relações e o mercado de trabalho são estudados a partir das
representações, antes que enfatizar a diferença entre emprego e trabalho precário,
permitem - como mostrou Machado da Silva (1971) ainda nos anos 70 - conceber
o mercado de trabalho como um continuum de posições sociais hierarquizadas,
em cujo topo encontra-se o emprego público ou a grande empresa multinacional e,
no pólo inferior, trabalhadores pouco qualificados, realizando bicos e biscates. Em
todo caso, a busca da estabilidade (cujo modelo era dado por aquelas formas de
emprego mais estável) norteava as diversas estratégias e formas de atuação, de
maneira que as carências seriam compensadas por outros recursos, tais como
simpatia, humildade e/ou a formação de redes de contatos amplas0.

A noção de estratégia revela que ações econômicas dos trabalhadores “informais


urbanos” são racionais0 e não, movidas por alguma espécie de tradicionalismo 0
sobrevivente. Tais ações, contudo, não corresponderiam a uma racionalidade

0 Lautier, S. D. p. 3
0 “ maneira pela qual as relações interpessoais são estruturadas e influenciadas, no modo através do qual
indivíduos – vistos como empreendedores sociais – procuram manipulá-las para atingir metas e resolver
problemas, e na organização e dinamismo das coalizões que constróem para atingir seus fins. O assunto é
familiar: na rede social de amigos, parentes e colegas de trabalho; as visitas, barganhas, fofocas e manipulações
que ocorrem entre eles; o impacto que todas elas exercem sobre a promoção, a ideologia e o conflito; as etapas
que um homem ambicioso percorre para construir um fundo de crédito entre relações proveitosas; e a atuação de
cliques as facções constituídas na vizinhança e o local de trabalho”. (Boissevain, 1987. p. 197 – 198).
0 Ídem, Sem negar o poder explicativo da noção é bom lembrar que estas redes operam melhor em condições de
baixa institucionalização.
0 Enquanto os trabalhadores mais qualificados e melhor empregados, pautam sua ação em critérios de
profissionalismo mais formalizado, de tipo empresarial.
0 Tomo essa racionalidade à maneira de Bourdieu, como sendo implícita, resultante da operação do habitus que
não necessariamente implica racionalismo e ação instrumental.
0 Ou má fé.
8

formal, técnica, instrumental cindida dos demais aspectos da vida 0 e nem


significariam atraso ou sobrevivência de antigos modos de produção. Tratar-se-ia
de uma racionalidade social indivisa, na qual o econômico é meio para outros fins.
A operação dessas estratégias – de padrões já bem consolidados, nas metrópoles
latino-americanas nos anos 80 - estruturaria de forma particular, o mercado de
trabalho0.

Este era descrito (percebido e concebido) bipolarmente (ou dual), já que parte do
mercado de trabalho era institucionalizado, oferecendo direitos e estabilidade
enquanto outra parte era alijada destes. A sua operação, contudo, não seria bipolar,
sendo constituída por uma série de aspectos sócio-culturais tais como ciclo vital e
organização familiar, de maneira que a participação no mercado de trabalho sofria
clivagens etárias, a partir das quais os jovens de até 20 anos participariam do
mercado não formalizado. Até os 40 anos verificava-se a sua incursão no mercado
formalizado de trabalho, e a partir de então, notava-se novamente a mobilidade
rumo ao informal, tornando-se, principalmente, micro empresários0.

Essa mobilidade profissional com clivagem etária, dirigia-se a estabilidade, como


apontado por Machado da Silva (1971). Pode ser caracteriza-se como um projeto
no qual a mobilidade opera como estratégia de capitalização da experiência
adquirida no emprego no estabelecimento do próprio negócio, sem perda de
renda0. Por outro lado, a família ocupa um lugar central, já que nela se apóiam as
possibilidades de mobilidade, combinando rendas e construindo um patrimônio0.

Em suma, as estratégias que pautaram a ação econômica dos trabalhadores latino-


americanos entre os anos 50 e 80 não separavam o econômico do residencial e do
matrimonial. Sendo assim, as estratégias, seriam “escolhas condicionadas e se
redefinem constantemente”0, polivalentes e evolutivas. O seu sucesso depende do

0 Trata-se de uma racionalidade socialmente embebida, segundo os termos de Polanyi.


0 Lautier, S. D. p. 3
0 Segundo o mesmo autor transformações econômicas e demográficas teriam alterado esse quadro de
mobilidade social ascendente, não me deterei sobre este ponto, pois foge do meu tema.
0 Essa passagem, denominada popularmente “ pulo do gato” não possível para todos alimenta expectativas e
projetos raramente concretizáveis ( Castro, apud, Lautier)
0 Lautier (1994, p. 3).Segundo o mesmo autor tais estratégias já operavam por ocasião das migrações campo
cidade e operam n urbano (mobilidade e inserção conforme a faixa etária) (comparar com Santos)Santos aponta
o mesmo, a urbanização é um fenômeno anterior às migrações.
0 Lautier, 1994. P. 134
9

grau de controle dos fatores sociais que condicionam as escolhas que são
reformuladas constantemente”0.

O recurso do termo estratégia subentende que a ação envolve o conhecimento de


artifícios para atingir um fim, em circunstâncias adversas. O fim seria, para
Lautier e Pereira (1994), a busca da afirmação de um estatuto social que não tem
objetivação institucional precisa. A sua eficácia social decorreria de
representações compartilhadas do trabalho. Parece-me difícil conceber um
estatuto não institucionalizado. Considero, outrossim, como defenderei mais
adiante, que a busca de ascensão social e do enriquecimento, aliados a alguma
forma de estabilidade profissional e de reconhecimento social, constitui
expectativas com ampla presença entre os operadores do transporte informal.

Defenderei aqui que os parâmetros que norteiam as decisões do mercado de


trabalho permitem perceber projetos implícitos. A descrição das trajetórias
profissionais permitirá vislumbrar os parâmetros de avaliação nas conjunturas e
inflexão das estratégias que buscam atingir um fim e as táticas empregadas 0.

O termo estratégia, extraído da guerra é segundo De Certeau (1999),

“(...) cálculo ou manipulação das relações de força que se torna


possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder
pode ser isolado. A estratégia estipula um lugar próprio onde se pode
gerir as relações com uma exterioridade alvos ou ameaças” (De
Certeau, 1999, p. 99)
Enquanto tática seria uma

“(...)ação calculada que se determina pela ausência de um próprio.


Deve jogar com os termos que lhe são impostos. Tática é movimento
no capo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado. O que se
ganha não se conserva. É astúcia”. (De Certeau. 1999, p. 100)
Ambos termos permitem, ao meu ver, a realização de uma análise mais afinada da
ação. Falarei de estratégia, quando estejam em jogo a posição ou o lugar social e
de táticas, quando se tratar da maximização de oportunidades. Mediante tais

0 Lautier, 1994. P. 133. Os trabalhos de Lautier são fruto de uma pesquisa coletiva que além do relatório final
(Lautier, 1994) deu lugar à publicação dos relatórios de Costa Lima , 1992. Girard F Nunes (1993), Huytte
(19930, Kune (1993), Montero Cassassus, Morice (1992) e Vasconcelos (1992). ( Apud Lautier, 1994).
0 Dentre os estudos mais recentes, destacam-se os de Lautier valoriza-se a eficácia social das representações do
mercado de trabalho como orientadores das ações próprias e alheias e julgá-las. Seriam objetos de orientação e
ação. Entre as que se destacam as representações do bom e o mau emprego como instrumento heurístico de
determinar as representações.
10

termos, buscarei por em evidência o sujeito como agente interessado e ativo,


portador de projetos moldados na interação ou inter-relação social.

Insisto, entretanto, no caráter implícito do projeto, articulado no habitus ou ethos


social que segundo Bourdieu (1989. p. 63), favorece a formulação de projetos
implícitos e coerentes e o acionamento de uma série de recursos para atingi-los.
Enquanto as condições sociais de origem não se modificarem. (tarefa efetuada
pelos agentes dominantes) serão bem sucedidos. Afirmarei então que as táticas são
os instrumentos de transformação e capitalização da mudança, sem ganhos de
posição.

Por outro lado, se há projeto - mesmo que implícito - há racionalidade não formal
ou instrumental: racionalidade0 com relação a valores. Anuir que trata-se de uma
racionalidade calcada em valores implica recordar que a própria racionalidade
ocidental - que por anos, serviu de base à noção de racionalidade - está carregada
de elementos valorativos que permanecem irrefletidos. Não bastasse a denúncia de
Weber, há quase cem anos, é possível notar – tal como mostrado por Sahlins - que
o ordenamento cultural moderno (racionalizado) opera sobre codificação totêmica
e binária que preside a escolha racional, manipulada pela publicidade0. É no nível
das crenças, dos valores, que opera a institucionalização da ação, lugar da
legitimidade, de disputa de sentidos e do significado da ação. O simbólico
constitui, neste caso, a dimensão cultural da ação, um elemento da práxis.

A praxis é um risco para os significados dos signos na cultura da maneira como


está construída, do mesmo modo como sendo arbitrário de sua capacidade
enquanto referência. A hubris simbólica do homem se torna uma grande aposta
feita com as realidades empíricas. Esta aposta é de que a ação referencial, que
coloca os conceitos a priori em correspondência com objetos externos, implicará
alguns efeitos imprevistos que não podem ser ignorados. Além disso, a ação
envolve um sujeito ou sujeitos pensantes relacionados ao signo na posição do
agente. O esquema cultural é colocado numa posição duplamente perigosa tanto
subjetiva quanto objetivamente. Subjetivamente pelo uso motivado dos signos
pelas pessoas para os seus próprios projetos; objetivamente por ser o significado
posto em perigo” (Sahlins, 1997, p. 186).

0 Santos (2000) fala dessas racionalidades.


0 Sahlins, 1979. P. 197
11

É porque os signos são engajados em projetos por interesses e , dessa


forma, em relações temporais de envolvimento e não apenas em
relações simultâneas de contraste, seus valores são arriscados,
sintagmaticamente e não paradigmaticamente (Sahlins, 1997. p.190).

A práxis supõe que o objeto de representação seja experimentado, de acordo a


esquemas de percepção e concepção de mundo fornecidos pela codificação
cultural. Mas contempla, também, a contradição e o conflito de interesse, que
sempre é conflito entre sentidos. Toda mudança se expressará, então, nas
representações ou no conflito entre sentidos e em leituras diferenciadas de
significados.

Pelas representações - neste caso, dos transportes, do mercado de trabalho e da


trajetória profissional - esboçam-se, ao meu ver, contornos de projetos coletivos e
individuais que vivificam expectativas culturais e resultam em “regularidades de
fato”. Parece-me que as regularidades geográficas, sociológicas e históricas,
verificadas no transporte informal, sustentam-se na crença compartilhada da
legitimidade de uma ordem ou forma de proceder, num ethos social que as
representações, avaliações, fins, táticas estratégias manifestam.

Mediante a análise dos discursos dos operadores de transporte informal procuro,


daqui em diante, estabelecer seu referencial cultural, seus padrões valorativos, de
modo a identificar projetos, táticas e estratégias e definir seu grau de generalidade.
Em suma, busco reconhecer aspectos imateriais do ethos do empreendedor
popular urbano.

Um primeiro momento da análise consiste em identificar como explicam sua


própria história: o que é o transporte alternativo, suas particularidades e
diferenciação interna. Num segundo momento, busco de perceber a representação
que fazem de si nesse processo, quando será possível verificar a dimensão
simbólica pela análise da narrativa das trajetórias profissionais, nas quais
aparecem, claramente, os elementos valorativos orientados pela ética, as táticas e
as estratégias. E, finalmente, procurarei determinar o grau de abrangência desta
ética e a sua operação na rede sócio-econômica institucionalizada pelas
cooperativas
12

III. 3. Considerações Sobre as Entrevistas e o Uso da Base de


Dados

Os dados analisados a seguir resultam de 12 entrevistas realizadas com operadores


de transporte informal. O número não é estatisticamente representativo Compensa,
no entanto, a falha ao lançar luz sobre um universo desconhecido. Quanto às
entrevistas e ao número obtido, é importante lembrar que realizá-las foi difícil.

Quadro 1
Caracterização dos Entrevistados
Cooperativa Nome Cargo Tipo de Veículo Idade E. Trabalho
Atribuído operação Civil Anterior
Riovan Cooper Meyer Cooperativa da Presidente de Fretamento Van 40 - 50 Casado Funcionário
Zona Cooperativa Público
Suburbana
Riovan Cooper Meyer Cooperativa da Motorista/ Fretamento Van 50 - 60 S. I. Funcionário
Zona proprietário Público
Suburbana Aposentado
Cooperpenha Cooperativa da Presidente de Lotada Van 40 - 50 S. I Bancário
Zona Cooperativa
Suburbana 2
Cooper Rio da prata Cooperativa da Diretor - - 40 - 50 S. I Assessor
Zona Oeste Administrativo Parlamentar
Cooper Rio da Prata Cooperativa da Diretor de Lotada Kombi 40 – 50 Casado Metalúrgico
Zona Oeste Linha
Cooper Rio da Prata Cooperativa da Diretor de Lotada Kombi 40 – 50 Casado Metalúrgico
Zona Oeste Linha
Cooper Rio da Prata Cooperativa da Diretor de Lotada Kombi 40 – 50 Casado Motorista de
Zona Oeste Linha ônibus
Cooper Rio da Prata Cooperativa da Diretor de Lotada Kombi 30 – 40 Casada Camelô
Zona Oeste Linha
Cooperativa Rio da Prata Cooperativa da Inspetor Lotada Kombi 30 -40 S. I. S. I
Zona Oeste
Cooperitt Cooperativa da Presidente de Lotada Van 30 - 40 S. I Funcionário
Grande Niterói Cooperativa público
Cooperitt Cooperativa da Diretor Lotada Van 30 - 40 S. I Funcionário
Grande Niterói Financeiro público
Cooper Fluminense Cooperativa da Presidente de Lotada Van 40 - 50 casado Vereador
Baixada Cooperativa
Fluminense
Fonte: Pesquisa para Tese – 2001- 2002

A intenção inicial era utilizar questionários semifechados, com um número


expressivo de operadores e algumas entrevistas que, aprofundassem a
compreensão do tema. Contudo, este caminho revelou-se difícil, demorado e
exaustivo. A primeira dificuldade teve origem na decisão relativa a quem
entrevistar. Sair pela rua em busca de pontos de concentração de veículos
constituía uma dificuldade extrema, pois abordar operadores, trabalhando, e às
vezes, fugindo da fiscalização, para preencher um questionário, requeria,
primeiro, a abordagem do depoente em momentos de maior tranqüilidade e, que
houvesse tempo. Em seguida, convencê-los a responder e provar que não se
13

tratava de alguma forma de fiscalização ou jornalismo prejudicial às suas


atividades.

A outra possibilidade seria abordá-los através das cooperativas. Mas isto, além de
deixar de fora um número considerável de operadores independentes (bandalhas),
implicava em convencer os presidentes, entrevistá-los e, apenas depois, aceder aos
operadores por seu intermédio. Este foi o procedimento que, de fato, me permitiu
realizar o maior número de entrevistas, havendo um senão, neste caso: os
entrevistados eram escolhidos pelas cooperativas e era notório, nas entrevistas, a
existência de aspectos sobre os quais podia-se falar e outros que constituíam
tabus.

Além disto, contatar e chegar às cooperativas e às organizações de classe foi


tarefa difícil. Havia que localizá-las em seu endereço comercial e descobrir
telefones para contato. O problema era que, muitas vezes, nem endereços nem
telefones coincidiam. E, em mais de uma oportunidade, fiquei esperando sem que
ninguém aparecesse, principalmente nas cooperativas da Ilha do Governador. Eu
procurava mapear um universo desconhecido, cujas características e modos de
operação apenas se tornaram claras ao final da pesquisa e, mesmo, assim, com
todas os empecilhos, as entrevistas aqui analisadas esclarecem pelo menos
parcialmente, as práticas em questão nesta Tese.

Dadas as condições em que realizei a pesquisa de campo, o questionário


transformou-se em roteiro de entrevistas, em geral coletivas. A estratégia para
realizá-las foi solicitar a opinião sobre questões da Tese, basicamente, sobre o
conflito entre transporte informal e convencional e a polêmica em torno da
regulamentação x desregulamentação, indagando sobre a dinâmica do fenômeno
do transporte informal nos anos 90, as características dos sistemas, seus vínculos
com o lugar e o perfil dos operadores. Estes ângulos, mais ou menos gerais,
mudavam de foco ao serem abordadas a partir da trajetória pessoal dos depoentes
e das relações de trabalho em que participavam.

Finalmente, é importante advertir que, durante a exposição, abro mão de algumas


outras fontes, principalmente artigos de jornal, o que, metodologicamente, pode
parecer equivocado. Entretanto, este recurso visa, apenas, aumentar a
compreensão e o alcance explicativo de um recurso limitado.
14

III. 3. a. - Diferenciação e Cronologia das Formas de Circulação

As entrevistas realizadas, como dizia, partiram da interrogação sobre as causas do


“transporte alternativo”, categoria usada pelos participantes, ter surgido nos anos
90. Contudo, de forma sintomática, a resposta partia da afirmação de que o
transporte alternativo não era novo, como pode ser visto a continuação.

“O transporte alternativo do Rio de Janeiro não data dos anos 90, ele
data dos anos 70. Aqui em Bangu, por exemplo, em 1973, já tinha em
cima da linha 9, um companheiro nosso aqui da cooperativa, o
Marrom, que já fazia transporte alternativo, só não era
cooperativado, a cooperativa vem depois. Tinha ai uma meia dúzia de
kombis que faziam, na década de 70, o frete de passageiros, daqui do
centro do bairro para dentro”.

“O que ele fazia? As debilidades do transporte já naquela época


eram duas: além de ser péssimo do ponto de vista do horário, de não
cumprir horário, ele não levava até lá dentro, na parte mais funda do
bairro. Mas, teve um acidente aqui, graças a Deus nunca mais teve,
em frente ao Colégio Getúlio Vargas em que uma Kombi pegou fogo e
as pessoas ficaram presas e aí passou algum tempo, todos os caras
que operavam Kombi ficaram meio ressabiados e ficaram um bom
tempo sem operar. Na década de 90 mais 92, 93 começa a ter um
percurso mais longo, começa a aparecer o que eles chamavam de
ônibus pirata lá no Centro, em terminais como Praça Tiradentes,
Presidente Antônio Carlos trazendo para cá”. (Diretor de Cooperativa
da Zona Oeste)

Na Zona Oeste, já nos anos 70, kombis realizavam o transporte do centro do


bairro até a sua periferia, sanando a carência de transportes em direção à periferia
local e beneficiando-se da falta de serviço e do não cumprimento de pelas
empresas de ônibus. Já na década de 90, antes das vans, teriam os ônibus piratas,
no sentido do centro0. Já as vans, teriam iniciado a sua operação mais tarde,

0 Sub-entende-se que este outro tipo de transporte corresponda outras necessidades, não mais àquela atendida
pelas kombis, mas não fica claro quais sejam, quiçá ônibus em direção ao centro, por ocasião do colapso do
sistema ferroviário e da CTC.
15

realizando um outro tipo de serviço, como atesta o depoimento do Presidente de


Cooperativa da Zona Suburbana.

“Aqui no Rio de Janeiro surgiu, basicamente, em 1995. Entre 1994-


95. A primeira Van do Rio de Janeiro foi 1993-94.Quer dizer, já no
ano de 94 foi a primeira Van que entrou no Rio de Janeiro.
Anteriormente já existiam algumas Kombis mas muito poucas e,
principalmente, dentro para fora de uma comunidade, quer dizer
dentro e fora de favelas - quando é plana - já tinha esse tipo de
transporte. E ai, por causa desse problema, dos empresários não
terem um olhar para a qualidade dos veículos - hoje já mudaram - os
horários, as pessoas que estavam no ponto, a própria idade da frota.
Não estudaram isso, quer dizer, aquela ânsia de ganhar e ganhar e
ganhar. Então entrou o espaço alternativo nesse meio. A Kombi já
vinha, mais bem tranqüilo, ela só trabalhava em comunidades:
interbairros. A partir do final de 94 início de 95 vieram as Vans .A
Van começou a fazer o intrabairros, quer dizer, Meier-Centro, Pavuna
–Centro. E os chamados intermunicipais que são Caxias e os outros
municípios do Rio de Janeiro. E, ai, começaram a crescer”.
(Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana).

Na percepção deste Presidente, morador de uma das áreas mais consolidadas da


metrópole, (Méier), as kombis teriam aparecido como um transporte específico de
favelas planas0. Para além dessas áreas, teriam sido pouco expressivas. As vans
por outro lado, inseriram-se numa brecha deixada pelos ônibus, por ocasião do
colapso do sistema ferroviário, metroviário e da CTC – dos sistema público de
transportes – que antecedeu à sua privatização, atendendo passageiros primeiro
dos Subúrbios ao Centro e, logo depois, da Baixada ao Centro.

Vans e kombis diferem, por sua vez, pelo tipo de usuários, entre “classe média” e
o “ povão” respectivamente.

“A kombi é o transporte do povão mesmo, popular. A van é um


transporte de classe média. Então a van, com exceção da baixada – a
baixada que eu digo é inter-municipal – onde não é tanto é um

0 O que não é verdade, os primeiros Cabritinhos conhecidos pela imprensa operavam no morro de São Carlos
em 1977.
16

transporte mais povão. Por que? Porque tem o vale transporte. E o


ônibus é caro”. (Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana)

Kombis e vans são categorias nativas que definem, distintas formas de circulação.
As primeiras operam, majoritariamente, em trajetos curtos, conectando um sub-
centro a uma periferia, enquanto as vans realizam, predominantemente, a conexão
radial em direção ao centro da metrópole. As vans, que atuam no município sede,
atenderiam à classe média, enquanto kombis e vans da periferia atenderiam ao
“povão”. Os depoimentos sugerem, também, que houve alguma mudança de
necessidades dos passageiros entre os anos noventa e as décadas anteriores. Quais
seriam? Até onde explicam a proliferação do transporte informal nos anos 90?

III. 3. b. Causas da Emergência do Transporte Informal nos Anos 90

A identificação de vários tipos de transporte informal não permite explicar suas


causas e proliferação observada ao longo dos anos 90.

“As causas do transporte alternativo foram alguns problemas:


primeiro o desemprego. As pessoas ficaram sem possibilidade de
emprego. Segundo, a baixa qualidade do transporte urbano. Isto
possibilitou a entrada dos alternativos, que foi aumentando cada vez
mais” (Presidente de cooperativa da Zona Suburbana).

“Naquela época que tinha poucas kombis o que deu mais emprego foi
transporte, no Rio de Janeiro. Tem até os números. O desemprego
diminuiu no Rio. E por que? Porque abriu vaga para mais kombis.
Abriu para 20 mil pessoas.(...) Então isso é muito importante
também” (Diretor de Linha de cooperativa da Zona Oeste n 1).
“As causas são o desemprego, os baixos salários, a falta de meios de
transportes e uma carência de atitude” (Presidente de Cooperativa
Intermunicipal).
Na compreensão destes três operadores, o desemprego aliado à carência de
transportes foi a causa do surgimento e proliferação do transporte informal nos
anos 90, sendo este transporte duplamente alternativo: uma alternativa de trabalho
e alternativa de transporte. Curiosamente, reproduzem, sem grande análise, o
diagnóstico do senso comum, em consonância com o do setor empresarial,
criticado, no capítulo 5, por ser incapaz de indicar aspectos subjetivos que
explicassem a formação de pequenos empreendedores econômicos. Tal sintonia
não surpreende, já que os operadores ocupam posições subordinadas no campo do
17

poder0, não possuindo instrumentos próprios de conhecimento e de construção do


discurso. Explica, ainda, que a análise mais profunda da origem seja formulada
pelo Diretor Administrativo da Cooperativa da Zona Oeste, ex- assessor
parlamentar.

“Na década de 90 (..) o Collor atuou muito pesadamente com grandes


demissões na área pública, com o estímulo de PDV (Programa de
Demissão Voluntária), etc... o Estado passa a ser considerado um
elefante... e pessoas, por exemplo, que estavam na Petrobrás há anos
a fio, vinte anos, fazem acordo e saem. Vem também na mesma época
do governo Collor a abertura dos portos, então você começa a ter
carros importados, com tecnologias mais avançadas...Algumas delas
na verdade só se trocava a lanterna. Na verdade você passa a ter no
mercado uma tecnologia mais avançada, que também a gente vai
descobrir mais adiante que tem seus problemas, que não foram feitos
para grandes trajetos, (que foram feitos para trabalhar dentro de
pátios, coisas do tipo, mas que suprem uma necessidade de uma
parcela da população que tinha condições de pagar um valor maior,
que queria rapidez e conforto, que queria uma tecnologia mais
avançada, um carro com ar condicionado, e que o mercado não
conseguia dar conta.(...) O terceiro e, talvez, o mais grave, é a
própria crise da economia nacional, a não geração de novos postos
de trabalho, a crise na indústria nacional também levou muita gente a
entrar no mercado. Mas só entrava no mercado porque tinha uma
brecha enorme no mercado, porque se não tivesse, se o mercado fosse
servido com qualidade, só raramente esses companheiros poderiam
ter investido (..) Eu acho que estas são as causas principais” (Diretor
de Cooperativa da Zona Oeste).

Neste caso, concebe-se como causas as carências de transportes e o desemprego


originado na crise industrial, no enxugamento da máquina estatal, bem como,
numa política industrial que possibilitou a oferta e compra de veículos capazes de
atender à demanda de rapidez e conforto de consumidores dispostos a pagar, um

0 Categoria de Bourdieu (1989, p. 28) que designa “ posições de força entre posições sociais que garantem aos
seus ocupantes um quantum suficiente de forças social – onde capital – de modo a que estes tenham a
possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder”.
18

pouco mais caro, por vans. Indica, ademais, como pode ser visto na citação que
segue, os agentes, as suas práticas e objetivos quando começaram a operar esta
modalidade de transporte.

“Estes trabalhadores, ou se organizam em grupo ou individualmente,


começam a comprar estes veículos, ao invés de comprar um carro
particular de passeio compram um veículo que ao mesmo tempo serve
de fonte de renda como serve também de instrumento para a família
dele. Cumpre os dois papeis e dá oportunidade da renda dele que
ele... Isso é uma coisa, outros são pequenos profissionais liberais que
não estão conseguindo se manter mais, advogados, contadores,
professores que dão aulas de música, profissionais liberais que não
estão agüentando mais, que o mercado não está comportando e eles
estão precisando de um escape para manter o padrão. É um outro
segmento que entra no mercado (..) por exemplo, o cara que pegou
um PDV da Petrobrás, ou da Light, pegou algo em torno de cento e
vinte mil reais depois de vinte anos de trabalho, ele poderia pegar e
abrir um pequeno comércio, rentável, talvez nem tão rentável,
empregaria mais uma pessoa, construiria um patrimônio para o
futuro da família. Mas não, quer um mercado imediato, que também
começou a saturar” (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste).

Identificam-se aqui dois tipos de agentes econômicos: trabalhadores


desempregados, que aplicaram seu capital num veículo que tanto pode ser fonte de
renda como atender às necessidades da família e profissionais liberais ou
funcionários públicos – de classe média - que usam o veículo para complementar
a renda, ou como alternativa de investimento de rápido retorno, no caso dos ex-
funcionários estatais. As duas operações, conjugadas, culminam na saturação do
mercado e em diminuição da rentabilidade0 do investimento. Por outro lado, a
construção de um patrimônio familiar0 e a procura por conseguir ou manter certo
padrão de vida0, constitui, em ambos casos um fim ser atingido.

0 E isto, como será visto no próximo capítulo, foi aspecto determinante da proliferação da lotada por vans.
0 Renda e necessidades familiares, um patrimônio para o futuro da família. Isto aponta também para uma visão
do trabalhador – masculino – como provedor.
0 Sócio-econômico familiar.
19

Este viés analítico será retomado depois. Antes, no entanto, será preciso ampliar o
alcance explicativo do perfil esboçado.

III. 3. c. Quem são: perfil dos operadores

Ao longo desta Tese afirmei a existência das categorias nativas vans e kombis que
caracterizam, diferentes formas de circulação, do perfil do usuário e do operador.
Contudo, os operadores de fretamento sobrepõem a aquela classificação a
diferença entre fretamento e lotada. As vans tanto podem efetuar fretamento,
quanto lotada. Nesta segunda classificação, mais específica, a primeira
apresentaria um nível sócio-econômico superior de proprietários e usuários.

A primeira diferença identificada refere-se à origem sócio profissional dos


operadores e das condições de ingresso.

“Por que o que aconteceu na época, o pessoal que se dedicou ao


fretamento – que é o nosso caso no Iguatemi - era de um nível um
pouquinho melhor, mais qualificado, diferente desse pessoal que foi
para a lotada” (Operador de Fretamento).
“Não sei é pelo perfil do cara, pela independência financeira, 60 a
80% desse pessoal entrou no mercado com carro quitado. Pessoal que
recebe aposentadoria, comprou o carro, não tinha problemas
financeiros” (Operador de Fretamento).
Já a lotada teria outro perfil:

“O pessoal que caiu na lotada que seria o pessoal que hoje faz linha,
esse pessoal foi mais.. profissional, pessoal; que era motorista. E
comprou vendendo meia água, vendendo armazém. O que o cara
tinha vendia e pegava a Van e ia para a rua. Essa era a diferença”
(Operador de Fretamento).

E hoje ainda existe muita, o motorista de Van e o motorista de Kombi


são complemente diferentes,(..) tem muita gente que saiu incentivada.
(..) Comprou a Van e foi para a rua. Essas pessoas têm, até, uma
noção melhor de organização. Essas pessoas entram numa
cooperativa tem uma noção clara de organização. (Presidente de
Cooperativa Zona Suburbana)

Procuraram se legalizar. Na Lotada, quem trabalha na linha é que


quer a regulamentação porque a linha nunca foi regulamentada...
(Operador de Fretamento)
20

O fretamento seria operado por grupos de pessoas, com mais recursos e poupanças
próprias, nas áreas consolidadas da cidade, onde o volume de turistas, clientes de
Shoppings e alunos de faculdades o permitem, sem a urgência do retorno. Já os
que adquiriram veículos à prazo, sobreviveriam da lotada. Estes últimos, seriam
também os mais sensíveis à falta da rentabilidade e à repressão. Foram estes,
portanto, os que lutaram pela legalização0., já que o fretamento foi legalizado em
1996, enquanto a lotada o foi, somente de forma parcial, entre 2000 e 2001.

Ao que tudo indica não há homogeneidade entre operadores de transporte


informal. Se o fretamento ou as vans permitiram cogitar que os
proprietários/operadores pertencem a estratos sociais mais elevados, esta
conclusão não se aplica, nem a todos os tipos de veículos, nem a todos os
operadores da metrópole.

Quanto ao operador das kombis, o Presidente da Cooperativa da Zona Suburbana


esclarece que

“(..) na kombi existe uma relação de que 70% das pessoas que
dirigem não serem donos da Kombi. São pessoas da comunidade,
como falei, que são motoristas. E os proprietários são outras pessoas.
Ou às vezes são pessoas que operam a Kombi mas tem sempre um
motorista. Senão não conseguem andar. A van não. Na Van, em 99,9%
dos casos opera o dono” (Presidente da Cooperativa de Zona
Suburbana).

Deixo de lado esta afirmação, que será tratada com maior profundidade no
momento de abordar as relações de trabalho, para aprofundar-me no perfil do
grupo, pelo cotejamento de dados das entrevistas com os originados da
sistematização de recortes de jornais e informação de alguns estudos acadêmicos.

Começarei pela afirmação recorrente de que os operadores da periferia da região


metropolitana seriam principalmente ex-motoristas de ônibus, ratificada nas
entrevistas com os presidentes da cooperativa da grande Niterói e da Cooperativa
da Baixada Fluminense.

“O perfil do nosso "topiqueiro" é ex-motorista de ônibus, demitido.


Na Baixada é assim e aqui também. A maioria trabalhava em

0 Isto será plenamente desenvolvido no capítulo seguinte.


21

empresas de ônibus, foi demitido, era explorado, era demitido,


comprava a sua van” (Presidente de Cooperativa Grande Niterói).

Este perfil parece ser corroborado por pesquisa de Balassiano (1999), tendo por
base amostra de 950 operadores.

Tabela 1
Experiência anterior0
Ocupação %
Motoristas 31,5
Comércio 7,3
Militares 3,6
Motorista de taxi 3,6
Bancário 3,6
Outros 38,8
Primeiro trabalho 7,3
Total 100,00
Fonte: Balassiano, 1999

Não creio, entretanto, ser possível generalizar esta afirmação, já que parece haver
diferenças de perfil entre vans e kombis assim como entre fretamento e lotada. Por
outro lado, o fato da categoria outros constituir a maior incidência relativiza a
importância dos ex-motoristas, sobre os quais não se pode afirmar que sejam
proprietários dos veículos, já que 32,75% da amostra não era proprietária e não há
dados sobre a origem profissional desses motoristas.

Tabela 2
Propriedade do veículo
Propriedade
Alugado 24
Próprio 67
Terceiros 8
Total 100,
Fonte: Balassiano, 1999b

O levantamento realizado por mim, com base em recortes de jornal entre 1994 e
2002, envolvendo 183 proprietários e operadores, permitiu identificar 46 casos em
que é mencionada a ocupação anterior.

0 A percentagem corresponde a uma amostra de 950 operadores.


22

Tabela 3
Experiência anterior
Ocupação No
Advogados 3 6
Bancários 5 11
Comerciantes 7 15
Contabilistas 1 2
Desempregados 1 2
Engenheiros 1 2
Esportista 1 2
Funcionários administrativos 2 4
Funcionário públicos 2 4
Mecânicos 1 2
Motoristas de ônibus 4 8
Policiais Militares 8 17
Professores 1 2
Seguranças 1 2
Secretárias 1 2
Taxistas 4 8
Metalúrgicos 1 2
Vereadores 1 2
Total 45
Fonte: O Globo, O Dia e Jornal do Brasil, 1994 - 2002

Nos dados coletados na imprensa policiais militares, comerciantes, bancários,


motoristas, taxistas, advogados e funcionários administrativos e públicos,
formariam a maioria dos proprietários. Contudo, tais dados só podem ser
corroborados se relacionados à ocupação anterior e ao tipo de veículo.
23

Tabela 4
Ocupação anterior por tipo de Veículo
Veículo Ocupação No % Veículo Ocupação No %
anterior anterior
Kombi Policiais Militares 8 80 Van Advogados 3 11,11
Comerciantes 1 10 Bancários 4 14,81
Esportistas 1 10 Comerciantes 4 14,81
Total 10 100 Contabilistas 1 3,70
Desempregados 1 3,70
Ô. Pirata (1) Motoristas de ônibus 1 100 Engenheiros 1 3,70
Total 1 100 Funcionários de 1 3,70
multinacionais
Funcionários públicos 2 7,40
Towner Bancário s 1 25 Metalúrgicos 2 7,40
Comerciantes 1 25 Motoristas de ônibus 2 7,40
Funcionários 1 25 Professores 1 3,70
Administrativos Universitários
Taxistas 1 25 Secretárias Executivas 1 3,70
Total 4 100 Securitários 1 3,70
Taxistas 2 7,40
S.I Comerciantes 1 33 Vereadores 1 3,70
Taxistas 1 33 Total 27 100
Motorista de ônibus 1 33
Total 3 100 Total 45 100
Fonte: O Globo, O Dia e Jornal do Brasil, 1994 – 2002
(1) Ônibus Pirata

A tabela reorganiza os dados de tal forma que estes apresentam coerência com as
afirmações anteriores. Com relação às kombis, a grande imprensa, destaca a
atuação de grandes proprietários. Este era o caso, por exemplo, de Joaquim
Mamede, ex campeão brasileiro de Judô que aos 73 anos, era dono de 8 kombis
que operavam na Ilha do Governador0 ou, ainda, o caso extremo de Reginaldo
Washington de Andrade, denunciado pelo jornal O Dia 0 como sendo dono 137
veículos que operavam em Campo Grande e, ao mesmo tempo, de uma
concessionária de kombis. Quanto aos policiais militares, é também nas kombis
que pareceriam ter maior presença0.

Os depoimentos, por sua vez, apontam não apenas para diferenças entre veículos
mas de condições de ingresso à operação, formas de circulação, localização e

0 O Dia, 19/10/2001
0 O Dia, 24/10/2001
0 Recorde-se que as kombis eram usadas desde muito antes da irrupção das van e que a normatização municipal
autorizava tanto grandes proprietários (empresas) quanto operadores particulares.
24

status. Os operadores de vans teriam origem sócio-econômica superior aos de


kombi. Esta impressão é confirmada pelos dados coletados na grande imprensa já
que como operadores proprietários de vans encontra-se maior número de ex-
profissionais liberais, ex-trabalhadores de “colarinho branco”, caracterizados,
antes, como classe média. Quanto à superioridade sócio-profissional dos
proprietários/operadores de fretamento, não foi possível encontrar nenhum indício
que ratifique esta opinião. Já em relação aos ônibus piratas, os dados – sem nenhuma
representatividade – confirmam apenas a presença de ex-motoristas de ônibus
operando.

Em suma, a distinção poderia ser disposta numa hierarquia aproximada, na qual o


fretamento ocupa o ponto mais elevado, a kombi o inferior, sendo que os
operadores de fretamento colocam-se no topo da hierarquia.

Quadro 2
Características distintivas dos Transporte informais
Serviço Proprietário Origem do Compra Legalidade Origem
capital
Turismo Operador Aposentadoria À vista Legalizado Década de 90
Poupança
Fretamento Escolar PDVs
Lotada Van Operador PDVs/ Crédito Reivindicam Década de 90
Ex. Motoristas legalização
Lotada Kombi Contratante Outras S. I. Não buscaram Década de 70
Fonte: Pesquisa para Tese – O Dia, O Globo e Jornal do Brasil, 1995 - 2002

A lotação por vans conformaria, então, um circuito econômico específico, criado,


na primeira metade da década de 90, pela migração de capitais oriundos da
poupança privada ou do investimento de fundos formados pelas demissões.
Quanto às kombi, representariam um circuito econômico diferenciado do anterior,
inferior – proposto por Santos – já que a hierarquização, em termos de técnica ( o
veículo), organização ( a cooperativa), serviço (lotada e fretamento) e perfil dos
usuários, assim o permitiriam.

Quanto à legalização, o fretamento, o transporte escolar e de turismo- os primeiros


a se tornarem visíveis e que foram, também, os primeiros a obtê-la. Enquanto,
foram os operadores de vans de lotada que levaram à cabo uma grande luta pela
legalização e o questionamento da circulação legítima na metrópole e à
25

organização em cooperativas. Quanto às kombis, que já eram utilizadas desde as


décadas anteriores - beneficiadas pelo uso do gás natural como combustível –
expandiram sua área de circulação, empreendendo, mais tarde, a luta pela
legalização e a sua organização em cooperativas. Contudo, até o momento, foi
possível reconhecer, nestas práticas, nada que garanta a possibilidade de teste da
hipótese de que manifesta-se, nestas práticas um ethos do empreendedor popular
urbano. Creio que será possível aproximar-me desse objetivo através da análise
das trajetórias profissionais.

III.4. Trajetória Profissional dos Operadores

Procedo à análise através da diferenciação entre operadores de vans ou de kombis,


buscando não apenas reconstruir trajetórias profissionais mas, reconhecer a sua
avaliação do mercado, das relações de trabalho e dos critérios utilizados na
explicação de sua própria ação.

III.4.a. Nas Kombis

Primeiro Caso:

“Eu moro em Bangu, há aproximadamente uns 25 anos mais ou


menos, mas sou natural de Minas Gerais- vim garoto ainda – para ser
metalúrgico.

Meu último emprego que eu trabalhei foi numa usina nuclear. Lá em


Angra dos Reis. Eu trabalhei em outras firmas. Em várias firmas.
Mas o último emprego que eu tive foi na Usina Nuclear, lá em Angra.
Depois do fracasso da construção naval, a área de metalúrgica ficou
muito difícil trabalhar. Quase que impossível. Eu cheguei a viver uns
anos difíceis para caramba. Para conseguir emprego, só através de
conhecimento ou com uma capacidade técnica muito boa. Só assim
para conseguir. E no meu caso, ficou mais difícil ainda pela idade
também. Tenho 48 anos e fica mais difícil. Mas é uma coisa no Brasil,
que não devia ser avaliado pela idade, devia ser avaliado pela
capacidade do cara e a condição física dele. Por que qual o trabalho
que eu não poderia fazer?
Nós estamos há sete anos na cooperativa. A gente estamos nessa vida,
de lotada desde..., há uns seis, sete, oito anos. Nove anos....É, nesta
cooperativa . Mas já trabalhando nesse trabalho de lotada tem uns
nove anos. Mais ou menos. Comecei num ponto. (...) É que a gente
ficou um tempo fora, aí começou a aparecer as cooperativas, o
pessoal a se organizar. Para dar um apoio para que libere essa coisa,
ainda mais com esse rumo que está tomando agora. Mas aí já vem
26

devagarinho. Já tem uns nove anos, mais ou menos que eu trabalho


nisso” (Diretor de Linha da Zona Oeste n 1).
Este depoente, morador do bairro de Bangu, iniciou a vida na indústria naval,
aponta como causa da mudança profissional as dificuldades de ingresso, no
mercado de trabalho, para metalúrgicos, no Rio de Janeiro, em função da
decadência do setor naval0 , exigindo grande qualificação e a inserção numa rede
de contatos (ter conhecimento nos termos do entrevistado0). Além disto, a
constituiria um impedimento adicional.

A solução encontrada foi, então, dirigir kombis, entrando num ponto (parada de
veículos com determinada trajetória administrada por um dono), como operador
individual; que paga uma quantia para ocupar o ponto 0. A entrada na cooperativa,
mais tarde, apoia e alimenta a esperança de liberação da lotada.

Segundo Caso

O relato a seguir é também de um metalúrgico, que, na mesma época, passou a


operar na mesma cooperativa do depoente anterior.

“Eu também era metalúrgico, trabalhei na COFAP, acho que larguei


em 1996. É que eu trabalhava em Minas, em Lavras. Depois é que em
1996 eu fiquei desempregado, aí cheguei no Rio de Janeiro e comecei
a encarar as lotadas, que eram pessoas melhores para a gente
trabalhar. Era melhor porque no tempo o emprego era difícil. E a
gente tinha oportunidade de trabalhar em lotada, em kombi. E na
época - hoje é um pouco mais difícil - tinha pouco carro então pagava
o carro. Tinha até condição de ganhar um dinheiro numa situação
melhor.
Agora, hoje tem muito mais carro. Fica difícil. Mas é muito melhor
você trabalhar com você mesmo do que para os outros. O que é teu, é
teu. Você ganha aquele pouquinho para sobreviver, para tocar o
dinheiro. Dinheiro você tem que ter. Cada um tem a sua forma. É
muita coisa, é (...), peça que está cara, mecânico, qualquer coisa você
fica parado, tem que correr atrás. Então essa é que é a nossa vida. É
assim mesmo. É uma vida muito estressada. É tudo preocupação no
trânsito, preocupação...” (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona
Oeste n 2).

0 Cuja crise remonta aos anos 80.


0 Ter conhecimento, significa, possuir contatos localizados em posições chaves de modo a permitir aceder ao
trabalho.
0 Como foi visto no capítulo anterior.
27

Neste caso, a operação de kombis parece derivar de um cálculo cuidadoso: o


emprego está difícil e o trabalho na kombi paga o carro e ainda permite obter
renda. Ao cálculo, somam-se frases que, ao meu ver, revelam alguns dos valores
compartilhados por este grupo: “é melhor trabalhar para si mesmo: o que é teu é
teu”. Esta frase revela a valorização do trabalho por conta própria, enquanto a
idéia de “tocar o dinheiro” aponta para um dever de ganhar dinheiro, de maneira.
Não seria aceitável “ficar parado”, já que é preciso “ correr atrás” 0. Estes
princípios, reveladores do ethos social, serão aprofundados mais detalhadamente à
frente.

Ao mesmo tempo, ambos depoimentos testemunham uma espacialidade laboral


não restrita à metrópole. Tendo o próprio bairro como referência central e os
bairros próximos, como lugares de atuação, esta experiência alcança outras
cidades, estados e países como mostra o caso exposto a seguir.

Terceiro Caso

Trata-se de uma trajetória diferente: uma mulher que nunca esteve inserida no
mercado formalizado de trabalho mas, que ilustra bem a noção de “tocar o
dinheiro”.

“Olha, eu já tive trailler, fiquei cinco anos trabalhando num trailler


lá em Marechal Hermes. Como sempre a fiscalização..., sempre tive
problemas. Já fui camelô em frente ao cinema Madureira 1. Já vendi
roupa ali em frente. Já fui ao Paraguai, Argentina. Já trabalhei em
posto de gasolina. No posto de gasolina, eu tive que brigar com o
patrão porque (assédio) é um negócio que atrapalha muito. Tem umas
que gostam, aceitam. Tem outras que não. Foi o problema que eu tive.
O resto da minha vida eu sempre tive problema com fiscalização. Tive
barraca de cachorro quente. O único emprego de carteira assinada
foi o do posto de gasolina e o de promotora de vendas da Perdigão.

Então fui apresentada... comecei com um carro bem velhinho, e


conforme o andamento das coisas, a rotatividade, eu fui

0 É possível pensar que os deveres postos como tocar o dinheiro e correr atrás, apontam já para as dimensões
éticas que pautam as ações dos empreendedores populares urbano das que emergem as práticas econômicas,
típicas do circuito inferior e do circuito superior Marginal.
28

melhorando... Eu estou nesse ramo há seis anos. E há seis anos,


cooperativada. (Diretora de Linha n 3)

O “tocar o dinheiro” assume aqui a forma de “melhorar”. Trabalhar de forma a


trazer beneficio pelo esforço pessoal, mesmo que implique trabalhar ilegalmente,
como camelô ou mesmo, contrabandeando. Aponta, também, para a dimensão
geográfica das redes sociais, que incorporam, a partir do seu bairro, outros
municípios, outros estado e a tríplice fronteira, ao universo vivido.

Quarto Caso

A mesma busca por ‘melhorar’ encontra-se no depoimento que segue de um ex-


motorista de ônibus.

“Eu comecei a trabalhar com kombi quando eu fiquei desempregado.


Eu era motorista de ônibus, e devido a isso, eu adoeci e saí fora.
Era muita cobrança e mal remunerado. Tudo o que se faz é vigiado, é
cobrado. Você pratica alguma batida com o carro, é obrigado a
pagar. O salário é miserável e ainda você tem que tirar do seu bolso
para pagar. Lá você fica dividindo o seu salário com o empresário. Se
bobear você paga para trabalhar. Aí isso aí eu não aceitei. E tinha
aqueles inspetores que achavam que tinha que obedecer a eles. E eu
nunca fui de acordo com isso. Foi quando eu procurei sair. Há uns
quatro, cinco anos.
Eu fui da Marinha. Depois saí dali porque tinha um carro, montei um
negócio, achei que ia me dar bem e aí voltei para a kombi de novo.
Montei um bar lá em Bangu.
Como motorista de ônibus trabalhei uns 18 anos aos trancos e
barrancos. Eu saía e entrava. Saía e entrava. Sempre fui assim.
Achava que ia dar e agora, tenho também uma oficina mecânica.
Com um colega que trabalha comigo. Mas praticamente é tudo
serviço daqui” ( Diretor de linha n 4).

Observa-se aqui uma busca insistente por “melhorar”, não apenas no sentido de
acumular patrimônio mas, também, de trabalhar para si. Este ex-motorista de
ônibus, submetido às péssimas condições, daqueles que sofrem controle rigoroso,
exposição ao riscos de surdez e esterilidade. além de estresse 0, reconhece que,
durante 18 anos, buscou permanentemente uma alternativa de trabalho (a kombi
parece não ser diferente) No momento, é a segunda vez que encontra-se na

0 Ver Caiafa, 2002


29

cooperativa, depois de ter tentado um Bar que não deu certo, sendo também sócio
de uma oficina mecânica.

Em suma, os homens, fundadores do transporte por kombis, que pertenceram à


elite dos trabalhadores manuais - trata-se de dois metalúrgicos e de um motorista
de ônibus0 - ingressaram no mercado de trabalho ainda na década de 70. Já a
diretora de linha No 3, bem mais jovem, informa que jamais teve emprego, que
sempre trabalhou em atividades informais e não legalizadas 0. Pela falta de
empregos ou pelo devir da indústria metalúrgica, de uma forma geral, todos
relatam uma inflexão do mercado de trabalho que remete aos anos 80, ao fim da
indústria metalúrgica na Metrópole do Rio de Janeiro ou à sua crise e, ao mesmo
tempo, à informalização do mercado de trabalho. A mudança de condições não
parece alterar o projeto compartilhado de “melhorar” de vida, no qual as kombis
são tomadas como um possibilidade alternativa (reiterando a expressão
anteriormente utilizada).

A realização desse projeto segue caminhos diversos. Assim, no caso do Diretor de


Linha No 4, que relata o trabalho em empresas de ônibus como desgastante e
insalubre, esta realização assume a forma de uma busca sucessiva por abandoná-
lo, e estabelecer-se numa atividade própria já que, como também afirmou o
Diretor de Linha No 2, “é muito melhor trabalhar com você mesmo que para os
outros”. O alcance desse objetivo, como no caso anterior, foi procurado por
diversas tentativas e, alternâncias entre “o próprio negócio” e o trabalho como
motorista que, no momento, após 18 anos, representa continuar na kombi e a ser
sócio de oficina à serviço da cooperativa.

A ambição comum de melhorar passa, não apenas por construir um patrimônio,


senão também por alcançar autonomia, aponta para existência de um ethos social
pelo qual se definem projetos e deveres que dão sentido à trajetória profissional
para além das condições econômicas objetivas.

III.4.b. Nas Vans

0 Recordar que motorista de ônibus, pode não ser muito escolarizado, mas nas décadas de 80 e 90 recebia mais
salários mais elevados que um professor de escola.
0 A sua entrada ao mercado de trabalho ocorreu em condições nas quais “fugir da polícia” tornou-se uma rotina,
30

Como foi apontado anteriormente, tendo como base o testemunho de um operador


de fretamento, ex-funcionário administrativo da CIFERAL0, o perfil dos
operadores de vans parece ser outro. Será possível estabelecer traços comuns?

Na tentativa de responder à pergunta e caracterizar semelhanças e diferenças,


focalizo duas lideranças da categoria cuja trajetória profissional pode ser
reconstruída com maior nível de detalhamento.

Primeiro Caso

“A minha formação é administração, eu trabalhei 20 anos numa


empresa no aeroporto, a INFRAERO e sai demitido no governo
Collor. Fui demitido por envolvimento sindical e esse tipo de coisa.
De lá para cá eu participei do movimento dos demitidos no Governo
Collor. Fizemos em 94 uma lei de retorno até voltei para a empresa,
fiquei três meses e me mandaram embora de novo. Entrei na justiça:
ganhei todas as instâncias para voltar. Paralelamente a isso, eu
também, com a formação de administração fiz pós-graduação
(mestrado) e fui dar aula numa faculdade particular. Dei aulas sobre
as disciplinas em que atuava na INFRAERO, TGA e Administração de
RH já que eu trabalhava na INFRAERO em recursos humanos.
Quando chegou 94 eu continuava dando aula. Ai, com 40 anos já
estava na idade limite apesar de ser conhecido no mercado não era a
minha especialidade porque me especializei na área de cargos e
salários Trabalhei para o governo, estive 4 anos em Brasília no
Conselho Nacional de Política Salarial. Era o limite e continuava
dando aulas. Quando chegou 94 surgiu esse movimento dos
Demitidos Anistiados do Governo Collor - e eu estava muito
envolvido.. conhecia as pessoas - tinha que optar ou ia para Brasília
para participar mais do movimento ou ficava dando aula. Optei por ir
para Brasília. A gente conseguiu a lei. Fizemos invasões a ministérios
e uma série de coisas e ai conseguindo a lei, fomos para outro estágio
e ai voltei.

Quando voltei em 95, tinha um compadre meu que tinha comprado


uma Topic, tinha saído no plano de demissão incentivada do IRB
0 Companhia, produtora de carrocerias, que até meados de 90 foi estadual.
31

(Instituto de Resseguros do Brasil) e comprou uma Topic. Ele falou


”pô João, compra uma: você vai fazer o que agora? já saiu da
faculdade – eu já tinha pedido demissão duas vezes, era a segunda
vez que tinha saído. Eu comprei também um carro e fomos para a rua.
Só que a gente tinha uma visão. Mesmo nesse movimento você já via:
o sindicato dos telefônicos estava criando uma cooperativa. Estavam
com a idéia de formar uma cooperativa com as pessoas que foram
demitidas com a privatização das telecomunicações e prestar serviços
já vislumbrando a privatização: os telefônicos, os urbanitários. Eu
convivia com esses sindicatos todos. Nesse grande movimento que era
a nível nacional. Então a gente começou ai, todo mundo, a gente tem
que se organizar, ficar na rua por ficar na rua é um negócio um
pouco complicado. E ai a gente começou a se organizar também no
sistema de cooperativas. Nas Vans começaram em Jacarepaguá e na
Ilha do Governador a se organizar.

E lá houve eleição, e como eu morei 18 anos na Ilha do Governador.


Nesse momento operava na Ilha do Governador e tinha me mudado
para o Méier – e já tinha morado aqui na juventude. Ai fui lá e quem
foi eleito foi um aluno meu da faculdade. Um ex-aluno. Foi eleito e
me falou: não quer entrar para cá. E falei não, eu vou fazer uma lá no
Méier, lá está muito desorganizado: Esta foi a terceira cooperativa a
ser criada no Rio de Janeiro. Foi a Riovan Cooper Meier. Cooper
Ilha e a Cooper Jacarepaguá”. (Presidente de Cooperativa de Zona
Suburbana)0
Trata-se, aqui, conforme antes dito, de um grupo que fez parte da elite dos
assalariados. O depoente chegou a ocupar um alto posto na burocracia de Estado.
Ao ser demitido, engajou-se na luta sindical e, ao mesmo tempo, apostou em
prosseguir os estudos visando tornar-se professor universitário de uma faculdade
particular do subúrbio. Contudo, desistiu do magistério porque “os quarenta é a
idade limite”. Não fica completamente claro, entretanto, para o que os quarenta
anos constituem uma idade limite. Mas, infere-se, do depoimento que buscava
recuperar a posição perdida, ou manter o padrão, para recordar a expressão
utilizada pelo Diretor de Cooperativa já citado0.

0 Pensar o papel; dos sindicatos nas transformações dos anos 90.


0 Ou quiçá para integrar-se à vida universitária.
32

Depois de uma segunda tentativa frustrada de reintegração, em Brasília, retornou


ao Rio de Janeiro, onde um ‘compadre’ o convenceu da possibilidade de trabalhar
com Vans, iniciando uma nova frente de atividade: a organização de cooperativas
e centrais, que se tornam visíveis a partir de 1997. Refere-se a esta decisão,
dizendo que “tinha visão” o que significa ao meu ver, tanto a valorização da
experiência anterior quanto de sua condição social.

Parece ser importante que me detenha, neste ponto, para refletir a mudança
institucional que afetou o mercado de trabalho durante o período estudado. Não se
trata, apenas, da desindustrialização ocorrida na Região Metropolitana do Rio de
Janeiro mas, da privatização das empresas estatais e do enxugamento da
burocracia de Estado. Simultaneamente, alterou-se o prestígio do profissional do
serviço público. Como resultado, o emprego público que, durante décadas
constituiu o ápice das aspirações profissionais dos assalariados urbanos – que,
como demonstrou Machado da Silva (1971), formava, junto ao emprego em
multinacionais e ao trabalho administrativo, a imagem do bom emprego para
trabalhadores urbanos - deixou de ser valorizado como outrora. Esta inversão no
mercado de trabalho, veio acompanhada da valorização do próprio negócio e do
empreendedorismo.

Essa inflexão, se bem que não poderia ser inferida diretamente do depoimento
anterior, permite pensar que a transformação do mercado de trabalho afetou
representações sociais, na medida em que os agentes envolvidos viram ameaçados
seus projetos e aspirações. Essa ameaça não foi enfrentada pela via institucional
conformada por federações e sindicatos ,que, aliás, já havia sido derrotada durante
o Governo Collor. Foram acionadas as redes sociais e estimulada a saída
voluntária dos empregos, como ilustra a referência que o presidente da
Cooperativa as Zona Suburbana n 1 faz a um amigo que, acionando o plano de
demissão voluntária, o convenceu a comprar uma Topic.

Segundo Caso

A mesma inflexão pode ser demonstrado pelo seguinte depoimento.

“Eu estou aqui desde o início. 1995 1996. Entrei como topiqueiro. Eu
trabalhava, trabalho, no serviço público do estado. Mas eu
trabalhava longe, então eu vinha de van. Eu sempre achei que o
33

servidor público era o bode expiatório da política. Ele nunca foi


valorizado, nem respeitado. Eu estou com o salário atrasado 7, 8
meses... Então, me envolvi com a parte da legalização das vans,
acreditando que isso ia acontecer. E a coisa foi crescendo, crescendo,
a coisa demora e agora chegou no ápice”(Diretor de Cooperativa de
Grande Niterói)

Neste caso, aprofunda-se a explicação iniciada anteriormente. O emprego público


não tem mais o valor que teve e o empreendimento nos transportes apresentou-se
como uma possibilidade economicamente positiva.

Terceiro Caso

No depoimento seguinte, registra-se a desistência do emprego público.

“Eu era funcionária pública(...) era da Secretaria de Educação. Aí


pedi demissão, porque o meu cigarro, a minha passagem era o
ordenado todo. (...) Saí em 1993 e fui trabalhar na Banana Boat.
Depois que legalizou saí e entrei no transporte.

Bem, eu trabalhava também na ilegalidade, numa “ilegalidade


legal”.., não tem em Cabo Frio aquelas "Banana Boats"? Jet Ski. Era
gerente de uma empresa náutica que, também, era ilegal e eu
gerenciava lá a empresa. Ai depois legalizou, eu saí, aí me interessei
por van, um amigo meu era "topiqueiro", aquele negócio todo.

Comecei com a Towner que o custo dela na época custava R$ 15 mil


uma nova. Foi em 1995. Eu fazia Praça XV, Venda das Pedras -
Praça XV, e a passagem compensava. Ela fazia 13 por 1, são 55 km, a
passagem era o equivalente a R$ 3,00 hoje, então compensava
bastante. A gente chegava a ganhar por dia na faixa de R$ 250,00,
numa Towner.

A Towner (..) era quase 15 mil dólares. E. a moeda estava há R$ 1,00.


Ela fazia 13 km por 1 litro, que era uma economia brutal. E leva seis
passageiros que em um trajeto curto, era bem rentável. (..) Como
entrei no mercado com uma Towner e começou esse negócio de
legalização: "Vai ter legalização, mas vai ser por cooperativa". Desde
aquela época falavam isso. Só existia cooperativa do lado de cá. A
cooper. SG, lá de São Gonçalo. Isso foi em 1996, começo de 96. Aí
aquele negócio daquele boato de que ia legalizar, não ia, aquele
34

negócio todo. Foi passando o tempo. Aí eu procurei uma cooperativa


para entrar que foi a SG. Cheguei lá era R$ 1.500,00 para você
entrar. Fora ainda cento e poucos por mês. E tinha que pagar ponto,
pagar um monte de coisa. O meu carro era pequenininho. Aí eu não
pude entrar, devido ao dinheiro. Aí eu saindo, eu encontrei alguns
"towneiros" que não entraram pelo mesmo motivo, comecei a
conversar com eles: "Pô, por que não uma cooperativa? Todo mundo
é dono. Por que a gente não monta a nossa?” Comecei a conversar
com um, com outro, com outro. Aí eu comecei a estudar sobre
cooperativa e descobri que na COPPE, eles estavam com um
laboratório de transporte alternativo lá de Rio das Ostras. Então eu
fui recorrer a eles, em como montar uma cooperativa, como era a
parte de transporte alternativo, de cooperativa e tudo. Foi aonde eles
lá me pegaram, curso, tanta coisa para assistir, fazer, freqüência”
(Presidente de Cooperativa de Grande Niterói).
Trata-se, agora, do depoimento de uma liderança, fundadora de cooperativa. Neste
caso, é perceptível uma postura pessoal voltada aos negócios, que tem ‘atitude’. A
depoente abandonou o serviço público, já que este não compensaria
financeiramente, buscando outra inserção mais rentável no mercado de trabalho,
mesmo que irregular.

O mesmo cálculo comercial estimulou o seu ingresso à operação de vans,


realizado com um veículo pequeno0. A mesma visão orientou sua decisão de
formar uma cooperativa, acionando a COPPE e estabelecendo um rede pessoal
que vai de Rio das Ostras ao centro do Rio. Além de ponto de encontro, foi o
lugar onde ocorreram os conflitos e a articulação do movimento pela legalização.
Neste caso, há uma visão de negócio bem elaborada, de busca, senão da
autonomia, da garantia de rentabilidade.

Em comum com o depoimento anterior, apenas a conjuntura econômica e a


condição de ex- funcionário público e, mais tarde, o fato de atuarem ativamente na
organização da categoria e na legalização do modo de transporte. Contudo, e
apesar das diferenças, os depoimentos de operadores de vans confirmam que, nos
anos 90, experimentou-se uma grande transformação no mercado de trabalho na
qual os projetos profissionais realizados e concebidos no passado, que tinham no
emprego público uma forma importante de realização, desestruturam-se. E a busca
por melhores empregos ou atividades rentáveis estimula, através das redes de
amigos e conhecidos o ingresso na operação de transporte informal.

0 A Towner era um veículo produzido pela Ásia Motors com capacidade para apenas 6 passageiros.
35

Curiosamente, e independente da hierarquia estabelecida, antes, entre os


operadores de kombis e vans, é que ambos, além de viverem uma conjuntura de
transformação do mercado de trabalho, buscam estabilidade, autonomia e renda,
segundo parâmetros similares. Uma espécie de dever para com o dinheiro e com a
trajetória profissional, no qual, como mostrarei a seguir, pode ser reconhecido um
ethos social e uma ética.

III.5. A Ética

III.5.a. Deveres para com o Dinheiro

Efetivamente, percebe-se a presença de um senso de dever em relação ao


crescimento do volume de investimento, tanto entre proprietários de kombis como
de vans. O volume de dinheiro investido nos veículos estabelece a hierarquia a
que me referia em páginas anteriores. Tal hierarquia é confirmada quando a
diretora de linha da Zona Oeste n 1 “sonha” com a possibilidade de ir renovando
sua frota de Kombis até chegar à van.

“A gente quer ter uma van, e depois se legalizar, implantar aquilo, ou


o microônibus, eu acredito quer todo mundo vai trabalhar um pouco
mais para conseguir seus objetivos” (Diretora de Linha de
Cooperativa da Zona Oeste n 3).
Essa hierarquia funda-se, objetivamente, em possibilidades econômicas bem
calculadas, nas quais levam-se em conta a rentabilidade possível do investimento
realizado, estabelecida pela relação entre investimento e possibilidade de retorno 0,
o que me foi explicado nos seguintes termos:

“(...) vou explicar o porque. A kombi é um custo mais barato. Eu fiz


um acordo há meia hora atrás e fechei por 21 mil reais. Tem kombis
que custam R$42.000, 00. Vai trabalhar por R$ 1,00 então não dá”.
(Diretor de linha Cooperativa da Zona Oeste n1).
De modo que o operador de kombi não pode pretender cobrar o mesmo que uma
van, já que seu custo e condições de circulação são inferiores as observadas
noutras modalidades de veículos. Isto é, na visão nativa, relaciona-se – mediante o
cálculo de rentabilidade - as condições de produção – tecnologia e organização –
às possibilidades de consumo, isto é, ao preço que seus clientes poderão pagar.

0 Na linguagem nativa: “tocar o dinheiro”.


36

No mesmo cálculo, está embutida a possibilidade do aumento da frota, ou de


passar da kombi para a van, ou chegar a formar uma “frota de veículos”, de
maneira que, começando com pouco e com muito trabalho, seja possível melhorar.

“A gente sempre caiu dentro - eu e o meu marido - não é à toa que a


gente é cheio de carro, a gente sempre caiu dentro. Agora é que eu dei
uma paradinha. Eu, ele, não. Para resolver um lado da cooperativa
também. Mas ele caiu dentro. Porque ele é o motorista. Mas é o que
eu falei, comecei com um carro bem velhinho, aos poucos fui dando
aquele passo, igual a neném quando começa a andar, e não pretendo
parar. Como ninguém, com uma kombi0” (Diretora de Linha de
Cooperativa da Zona Oeste n 3).
“O dinheiro que eu peguei como metalúrgico eu comprei uma kombi
79 para trabalhar. Então a gente já viveu isso”. (Diretor de Linha de
Cooperativa da Zona Oeste n 1).
Em dezembro de 2001, este diretor de linha possuía duas kombis, sendo uma
nova, financiada com a venda de uma Kombi 1991, que permitiu dar uma entrada
de R$ 5.000, 00 e pagar 36 parcelas de R$ 630,00

Com estes dados é possível concluir que o transporte informal é rentável, o que
explica a afirmação da Diretora de Linha de Cooperativa da Zona Oeste de “não
querer parar”. Permite entrever um “dever”0 comum de fazer crescer o próprio
patrimônio, como pode ser percebido no seguinte trecho de entrevista publicada
na revista Veja de 19/03/97

“Estou só no começo, quem sabe ainda não vou ter uma frota de
Topic” (Cristina Pinheiro, dona de uma Towner 44, dona de casa)
“Em três anos espero que tenhamos uma frota de quarenta vans”
(Ana Paula Capiós. Professora, proprietária de Van da Barra da
Tijuca).
Esta dona de casa, que tinha comprado uma towner a crédito, esperava a
prosperidade no futuro. Há um projeto comum de prosperar trabalhando. Os
procedimentos para a realização desse projeto - que, ao contrário do que
habitualmente0 se pensa, não atinge apenas trabalhadores pobres – demandam que
se abra mão de diversos recursos para atingi-lo, como ilustra a trajetória mal
sucedida apresentada a seguir:

0 Atenção à metáfora: dos passos infantis...


0 Friso a noção de dever, pois manifesta a vigência de uma ordem que nos sentido de Weber , pode ainda
evidenciar uma ética, isto é uma ordem garantida internamente, em valores internos e sentimentos de dever.
(Weber, 1982. P.22)
0 Lautier por exemplo
37

“Mas nesse processo, demorado de legalização perdi uma van. O


carro deu problema, eu fiquei desassistido. O carro era usado, mas
era um carro caro, o investimento de 25 anos, de uma vida. A minha
idéia era trocar a iniciativa pública pela privada. Porque eu não
queria me aposentar pelo serviço público. Aquilo ali é uma coisa que
precisa ser pensada. Ali tem algumas pessoas que botam um paletó,
dizem para você vestir a camisa, dão gratificações, trazem amigos e
amanhã muda, e é outro fazendo pressão. Você fica com cara de
funcionário de carreira. Então eu não acredito no serviço público. Só
acredito na cúpula, está ali em cima e sabe o que quer. Acredito sim,
que se houvesse uma flexibilidade para repensar essa situação, então
eu queria mudar a minha atividade. E perdi a van justamente por
isso. Perdi a van, na época a gente moveu um processo contra um
grupo daqui de dentro, muito tendencioso, só pensava em causa
própria, fizemos uma proposta séria, acreditando na legalização e
acreditamos que agora com esse passo, nós vamos dar o pulo do
gato”. (Diretor de Cooperativas de Grande Niterói)
Eu poderia seguir citando depoimentos. Mas este último permite reconhecer o
ethos do trabalhador urbano, a existência de princípios que orientam a ação e a
conduta que, neste caso, conduzem à busca da auto-valorização, respeito e renda
adequada mas, também, à autonomia e ao projeto de uma aposentadoria melhor.
Mais especificamente, no caso dos transportes informais, o alcance deste futuro
depende, para os depoentes, da legalização do transporte. Se alcançada, permitiria
o “pulo do gato”. Esta figura de linguagem popular resume a expectativa de que
ocorra uma ocasião na qual surja a oportunidade de atingir um objetivo: é preciso
agir adequadamente, senão a oportunidade escapa. A esta postura de maximização
das oportunidades denominarei tática, complementar as estratégias, concebidas
como modos de agir para atingir um fim.

Neste caso trata-se de atingir estabilidade ou autonomia, que cada um alcança ou


poderia alcançar através de variados recursos0, já que parte de condições de
origem diferentes, o que um diretor de linha de kombi resume assim:

“(...) o povo também sabe, está chegando a conclusão do seguinte.


Vamos dizer assim, que tem que se virar, que tem que viver. Então
você vai com uma kombi para a rua, ele vai com uma van, eu vou
vender um churrasco” (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona
Oeste)

0 Assim se estratégia não mudam com variações do mercado de trabalho são, contudo, motivo de reavaliação
avaliação.
38

Cada um à sua maneira “tem que correr atrás”, como disse um diretor de linha,
algumas páginas antes. Trata-se do “se virar para viver”. Estas frases iluminam
um aspecto ético e moral das práticas dos trabalhadores urbanos. Para viver, não é
possível esperar pelo governo, nem que ninguém faça por nós: temos que “fazer
por onde”. Esta é a uma versão popular do “ajuda-te a ti mesmo”. E nesta ajuda,
neste merecer, é legítimo usar o recurso de que se dispõe. Trata-se, ademais de um
princípio de avaliação ampla, que deixa vislumbrar um conjunto de valores que
conformam o viver. O significado de “viver”, que obviamente é mais que o mero
subsistir, permanece, entretanto, obscuro.

III. 5. b. Meios e Fins: o lugar das estratégias

Há indícios da existência de um modo de operar0 típico do empreendedor popular,


que inclui dever para com o patrimônio e a valorização da autonomia, segundo
uma escala conformada pelas possibilidades individuais e pela idade. Esta
estabelece os 40 anos como idade de referência para a inflexão profissional
destinada a obter maior estabilidade e/ou a aposentadoria, associada a uma outra
atividade, como uma das formas de realização0 Mas estes cálculos não têm como
sujeito o simples indivíduo: a família é o núcleo central dessas estratégias.

De fato, a família, o patrimônio e os deveres para com estes representam um


momento significativo dos discursos, tal como ouvi dizer de uma das lideranças
da categoria, enquanto esperava a entrevista. “A gente faz tudo pela família e o
patrimônio”. Essa frase, na boca de um homem, resume o ideal do “provedor”,
atribui à família um valor supremo, capaz de justificar um amplo leque de ações 0
(tudo). Parece-me, ainda, mais significativa ao observar que foi usada numa
conversa com colegas sobre assuntos comerciais. Permite inferir que se trate de
uma concepção difundida e aceita, de uma ética, capaz de orientar ações. Seria um
elemento valorativo de uma racionalidade referida a valores, que orientam as
práticas econômicas no transporte informal. A mesma articulação pode ser
também percebida, no depoimento do Diretor de Cooperativa da Zona Oeste, já

0 Modus operandi ou habitus, segundo Bourdieu.


0 Algo semelhante ao apontado por Lautier (S. D, p. 3)
0 Não é possível determinar, de início, a sua amplidão e suas inflexões, mas permite inferir que mantenha
relação com o fenômeno cultural; identificado por Sérgio Buarque de Hollanda em 1937, e associado ao conceito
de patrimonialismo, ilustrado pela oposição arquetípica entre Cleonte e Antígona.
39

citado: busca-se construir um patrimônio para o futuro da família. Isto é, o futuro


da família apresenta-se como projeto0.

É notável que esta racionalidade – modo de pensar - seja de um tipo diferente, não
meramente instrumental, como se atribui, habitualmente, ao tipio de
empreendedor individual e ao empresário, que manteria a rápida separação de
entre as esferas profissional e familiar. Estas práticas pareceriam articular, à esfera
econômica, elementos valorativos da esfera doméstica, vínculos de amizade e
familiares.

Família e patrimônio, nos depoimentos, revelam elementos visíveis de uma ética


que estipula o dever de velar por ambos. O zelo no cumprimento do dever iguala
moralmente os empreendores0, conformando um conjunto vasto de práticas. A
ética identificada é parte integrante de um ethos social, um habitus urbano, que
não se afirma pela busca de um estatuto, como afirma Lautier, senão por algo mais
próximo ao que tradicionalmente se denominou mobilidade social ascendente.
Abre-se mão, para isto, de um conjunto variado de recursos 0, que não são
unicamente relativos ao trabalho, já que a família é o centro da ação. São, por
outro lado, estratégias que não se alteram com variações econômicas temporárias
mas que comportam mudanças no sentido da ação e longos períodos de busca.
Pode tanto valer-se de uma rede de contatos interpessoais como passar pela
educação ou pelo financiamento familiar, conformando trajetórias
intergeneracionais.

III. 5. b. 1. Estratégias Intergneracionais

Estas trajetórias supõem investimento em educação, tendo como objetivo obter


um emprego valorizado no mercado de trabalho. Estão, também, sujeitas a
inflexão e alteração como mostra o depoimento da Presidente de Cooperativa da
Grande Niterói

“Olha, se você for ver. Eu fiz na UFRJ, dois anos de Farmácia.


Depois saí para Direito e não acabei. A primeira vez que eu entrei na
UFRJ foi para Engenharia Química. É aquele negócio. Eu estava
tentando...” ( Presidente de cooperativa da Grande Niterói)

0 Os mesmos aspectos deviam ser levado sem conta na compra de um veículo que servisse para a renda e para a
família.
0 Trata-se de uma ética do empreendedor diferente da ética protestante embora lhe seja análoga, em muitos
pontos, na medida que incorpora a sorte.
0 Ou capitais para usar os termos de Bourdieu.
40

As tentativas nos vários cursos correspondem à expectativa de uma posição ou


lugar social que permita realizar o projeto implícito do que antes falava. 0

“Eu fazia faculdade e(...) era funcionária pública da Secretaria de


Educação. Aí pedi demissão, porque o meu cigarro, a minha
passagem era o ordenado todo. Eu saí em 1993. Aí fui trabalhar na
Banana Boat que depois legalizou, e eu saí. Aí entrei no (transporte”.
(Presidente de cooperativa de Grande Niterói)
Neste caso a estratégia inicial esteve dirigida à formação educacional e visou a
obtenção de um emprego público”, sendo reavaliada numa busca que levou a
outro caminho: firmar-se como liderança de classe e fundadora de cooperativa
(cuja trajetória, como operadora de transporte informal, já foi analisada antes).

O investimento em educação demanda algum tipo de apoio familiar (a família


como unidade reprodutiva) sem que o sucesso esteja, necessariamente, garantido,
como ilustra o depoimento do Diretor de cooperativa da Zona Oeste.

“O meu filho já está dirigindo kombi. Junto comigo. Ele tem 24 anos,
ele fez 2 grau só, fez técnico em mecânico industrial. E a única coisa
que ele conseguiu foi fazer um estágio. E assim mesmo porque eu
tinha conhecimento e consegui esse estágio para ele. E de lá para cá,
deixou currículo em vários lugares e não conseguiu. . Porque também
não tem uma experiência. Porque no Brasil é o seguinte: o que conta
mais para eles é a experiência até um determinado ponto. Daí para
frente a experiência passa a não contar mais. Não é? Porque aí o
cara com 40 anos já é considerado velho para o trabalho no Brasil.
Aí o cara velho, cheio de experiência só que não serve mais. Só que
quando o garoto tem 21 anos e ele ainda não tem aquela experiência,
aí eles pedem. E o cara esbarra nisso aí. Então esse meu filho está
nessa aí. E vários outros garotos novos que também trabalham no
transporte alternativo aí porque não tem uma outra opção” (Diretor
de Linha de Cooperativa da Zona Oeste n 1).

Neste caso, o investimento em educação, destinado a garantir que o filho pudesse


se integrar à indústria metalúrgica como operário qualificado, fracassou pelas
transformações econômicas. Aponta para um dos riscos da estratégia educacional:

0 A noção de busca e realização, posteriormente ao achado do lugar ...Apresenta grande analogia com a noção de
vocação.
41

a defasagem entre o momento em que se projeta e em que se realiza o


investimento em educação e o momento de seu retorno através de um posto de
trabalho. Nesses casos, quando as estratégias falham ou sua efetividade é limitada
pelas transformações econômicas, o trabalho não formalizado – o transporte
informal neste caso – apresenta-se como uma alternativa. Uma alternativa0 ao
desemprego como posto pelo Diretor de Linha de Cooperativa da Zona Oeste n1,
em trecho já citado que repito aqui.

O desemprego diminuiu no Rio. E por que? Porque abriu vaga para


mais kombis. Abriu para 20 mil pessoas, empregos. No transporte.
Então isso é muito importante também.(Diretor de Linha de
Cooperativa da Zona Oeste n 1)

Estratégias não mudam, então, do dia para a noite pois, supõem investimento e
cálculo de longo prazo (sofrem contudo, restrições quanto à possibilidade de
realização. Quando não são bem sucedidas, entram em jogo as tentativas de
reconversão e a inserção em redes sociais. Em verdade, (a possibilidade de
reconversão e) as estratégias são parte integrante do que denomino, aqui, ethos do
empreendedor popular urbano. Num primeiro e decisivo momento aciona-se a
rede familiar e social (em que está inserida) para ingressar no mercado de
trabalho, como mostrarei a seguir. Antes, contudo gostaria de me deter na análise
de uma estratégia mal sucedida.

Tentativas de reconversão e ingresso ao mercado de trabalho podem conduzir a


becos sem saída como ocorreu no caso de Richard Cleber Vasconcellos de
Lucena, rapaz de 21 anos que se suicidou ao ser perseguido e encurralado pela
polícia, depois de tentar roubar um carro na Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

O jornal O Globo de 10 de maio de 2001 informa que


“Richard trabalhava como motorista em uma cooperativa de kombis
na Ilha e perdeu o emprego recentemente. Segundo um amigo da
família o rapaz teria dívidas e não queria recorrer aos parentes e, por
isso, pode ter começado a roubar”.
A irmã Luciana Flávio Lucena de 31 – técnica em enfermagem -
disse: Foi uma fatalidade, ele era trabalhador, não era violento.

0 A inserção em atividades informais, ao contrário do que, normalmente, se pensa não é fácil exige a inserção
em redes sociais e a disposição para fazê-lo.
42

Richard era casado e sua mulher está grávida de oito meses. O pai,
Antônio é garçom aposentado há seis meses tinha financiado uma
kombi para Richard.
Richard se matou com um tiro na cabeça próximo ao Parque da
Catacumba após ser perseguido por policiais na avenida Epitácio
Pessoa. Ele e um comparsa estavam com um vectra roubado. O
cúmplice de Richard, ainda não identificado, escapou”.
Esta inclusão de dados não originados da mesma fonte que venho trabalhando,
serve, apenas, para reforçar a argumentação em curso. Considero esta tragédia
significativa pois, segundo a noção de projeto implícito que defendo, os 20 anos
(assim como os 40) marcam uma inflexão na trajetória profissional. Trata-se do
momento de busca por se estabelecer. Entre as ‘classes populares’, e os jovens
pobres particularmente, esta inflexão ocorre simultaneamente à constituição de
uma nova família0. Nestas circunstâncias, o apoio familiar - e também as pressões
- é decisivo. Neste caso, o rapaz, tendo recebido ajuda do Pai para financiar uma
kombi e tendo perdido o emprego como motorista, optou por roubar carros e não
pedir ajuda à família. O jovem definido por familiares como trabalhador, suicida-
se antes de ser preso0. Este caso confirma a reflexão de que e as táticas e
estratégias mobilizadas possuem referência etária0.

III. 5.b.2 A Rede: a família e os amigos0

Como já é fato bem conhecido, a inserção numa rede social é de fundamental


importância para a ocupação, e isto não vale apenas para os jovens. Recorre-se à
rede social é utilizada em todo momento de inflexão de trajetórias, como terei
oportunidade de mostrar logo a seguir. Independentemente da idade, a família
constitui ou pode constituir um ponto de apoio para ocasiões difíceis. O
Presidente de Cooperativa da Baixada Fluminense, cujo depoimento por razões
técnicas não posso citar, contou em entrevista que, ao terminar seu mandato de
vereador de um município da Baixada Fluminense, não tendo sido reeleito e
pertencendo a um partido de oposição, recebeu empréstimo de um primo para
adquirir uma van.

0 Nos dados tratados, pelas condições de realização da pesquisa as referência á família são periféricas, porém
reveladoras.
0 O que ilustra a gravidade ética da situação.
0 Permite inferir, que mais que um ética se está aqui perante um fato social, uma ordem garantida tanto
internamente quanto externamente.
0 Recordar que eu não defini bem este conceito. – apenas que se trata de em fato diferente da rede técnico-
organizacional.
43

Mas, a rede de relações aparece nas entrevistas, por vezes, de forma pouco clara
como exemplificam frases, “um amigo me chamou”, “me disseram”, “fui
apresentado”. Tais afirmações permitem inferir que, para ingressar no transporte
informal é preciso “ter conhecimento” ,tal como relatou o Diretor de Linha da
Zona Oeste n 1.

Ter conhecimento tanto pode significar a ter contatos pessoais quanto ter
informação e recursos. A explicação da decisão de formar uma cooperativa,
fornecida pela Presidente de Cooperativa da Grande Niterói e a expressão “ter
visão”, utilizada pelo Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana provam que
as redes não são horizontais e que o ingresso, num rede, acontece de acordo com a
informação que se dispõe e, obviamente, do capital, na forma de bens e,
principalmente, de habilidades e controle territorial. Como pude demostrar em
capítulos anteriores, os “donos de ponto” e “donos de garagens” são capazes de
controlar a repressão e permitir o ingresso na operação do transporte informal0.

O topo dessa rede é controlado por investidores – capitalistas locais. O


investimento, principalmente em kombis, por parte de comerciantes, constitui uma
prática corrente0. É comum, na imprensa, a referência à ”máfia das vans”, o que
indica o fato de serem usadas para lavagem de dinheiro do tráfico. Pode ser que
este fato seja verdadeiro, mas, ao que tudo indica o investimento no transporte
informa é uma prática muito estendida – mesmo entre a classe média –e o mesmo
o ocorre com táxis. Trata-se, de todo modo, de um investimento enraizado no
lugar - sem corresponder à busca de uma rentabilidade abstrata, - fundado em
redes localizadas, formas de dominação, alianças e subordinações. São, então, os
capitalistas, os poderosos, ou “outros”, com posições sociais mais elevadas ou
socialmente melhor posicionados, que controlam a rede social que sustenta a
expansão do transporte informal0.

III.5.c. É possível Falar em Ética

0 Na cooperativa, a figura principal é o presidente e entre estes, são os que se dedicam à política sindical.
0 Eu mesmo conheço um dono de bar nas cercanias da rua Riachuelo dono de 4 kombis que realizam lotadas
para os bairros das redondezas.
0 Há também o mesmo fenômeno em Vans, como ilustra o caso Sônia Leite Proprietária de 3 vans que
realizavam o trajeto Austin – Centra que combinava a renda do aluguel dois veículos com o salário recebido
como Chefe do gabinete do deputado estadual Farid Abrahão David (PSDB). O fato veio à tona quando um dos
veículos sofreu um grave acidente ocasionado a morte do motorista e vizinho da proprietária - Irair Belarmino
Jr , 24 - e o ferimento dos 12 passageiros (O Globo, 09/09/1997)
44

Do já dito, depreende-se a existência de uma dimensão imaterial da ação, de uma


ética do empreendedor popular, que conduz a uma espécie de sentimento de dever
para com o crescimento do patrimônio familiar, pela inserção numa atividade
rentável. Não se trata, então, da ética protestante, embora seja perceptível a sua
filiação cristã. Encontra-se estipulado o dever de “se virar”, com os recursos
disponíveis. Não se trata do profissionalismo individual burguês, já que esta ética
tem a família e os amigos como referência central, manifestando nisto um
profundo enraizamento na cultura nacional0.

De fato a família assume, ao menos nas representações, reconhecidas pela


pesquisa de Tese uma posição central. A família constituiria o lugar definidor das
estratégias. Ela é o ponto de capitalização de ganhos e legitimadora das ações;
servindo, simultaneamente, de pólo articulador de estratégias inter-generacioanais
e de flutuações etárias. Quanto a estas, os dados confirmam, não apenas a
existência de clivagens etárias, mas também que os 40 anos, constituem uma
referência importante para a estruturação de um projeto que visa a autonomia
profissional, além do fortalecimento da família, de modo a assegurar uma velhice
tranqüila. Há então, de modo geral, a busca de estabilização da trajetória
profissional no que concerne à posição - como ensinara Machado da Silva (1971)
- sem perder de vista as oportunidades ou, aliás, buscando maximizá-las. Por
outro lado, como complemento das relações familiares, a construção de redes é
também indispensável. Trata-se de relações que, tomadas como amizade ou ódio,
determinam a posição sócio-econômica, que, como se verá, permeia todas as
relações de trabalho.

III.6.a. Relações de Trabalho: redes e cooperativas

As cooperativas de proprietários formaram-se, inicialmente, como uma


articulação de proprietários/operadores de uma mesma linha. Posteriormente,
visando a legalização, segundo um padrão de eficiência empresarial, organizaram-
se em cooperativas.

“As pessoas, primeiro, se organizam em linhas, depois em


cooperativas. Bom, esta daqui... Primeiro se formou, depois que se
criou cooperativa. (...) Tem uma lei federal que rege o
cooperativismo, tem que ter vinte pessoas para criar, tem que ter o
0 Recordar o lugar da família na formação das elites urbanas em Hollanda,
45

capital social mínimo. Você registra, tem que tirar alvará, CGC e
você tem que estar filiado a Organização das Cooperativas, a
OCERJ. Quando a gente viu a perspectiva de regulamentação, a
gente resolveu colocar tudo em dia, por que é o seguinte, é sair de
baixo do nível do caranguejo da lama e dizer: porra! To começando a
ser cidadão! Porque a gente nunca se negou a pagar os nossos
impostos, nada disso. Quando a gente viu essa possibilidade a gente
começou a colocar tudo em dia. Por que qual o sentido que tinha se
não tinha essa possibilidade, não é? Qual o sentido que tinha? E aí
entenderam. O que é isso? Não, agora a gente pode, vamos botar o
pessoal de fora, vamos regularizar nossas linhas, vamos botar um
contador direto aqui dentro.

Nós estamos caminhando na verdade para que a cooperativa se torne


uma empresa cooperativada, uma cooperativa-empresa, gerenciando
linhas, então, por exemplo, não existe aqui o dono do ponto, não
existe na Cooperativa da Zona Oeste”.
Primeiro, uma cooperativa é bom, (...) firma convênio com uma
empresa por fora, estágio, convênio com a Universidade Federal do
Rio de Janeiro, que tem um departamento como a COOPE que é
reconhecido internacionalmente, para gente é como pegar uma
medalha de primeiro lugar e colocar na parede”. (Diretor de
Cooperativa da Zona Oeste)
A mesma postura de busca da eficiência pode ser entre outros presidentes de
cooperativa entrevistados.

“A gente estava na rua e a gente começou na rua: a gente começou a


ter uma visão de empresa. Eu vim de uma empresa, a maioria das
pessoas veio de uma empresa. (..) Foi por que a gente sentiu a
necessidade de trabalhar com empresas e a gente dava uma nota fiscal:
ou você abre uma empresa para você ou trabalha num sistema de
cooperativismo. Por isso foi escolhido o cooperativismo. Quer dizer, as
pessoas se cooperativaram pelo simples motivo de ter que entregar
uma nota fiscal para entrar numa empresa, para levar gente para o
trabalho e não sei que. Só que a gente cresceu e se estabeleceu com
qualidade. Hoje a Riovan não tem nenhum interesse em linha. A gente
trabalha no Shopping, por exemplo no corredor de 12 pessoas no
Shopping, a gente trabalha em faculdades: PUC, UNIG, Gama Filho.
A gente trabalha com transporte de alunos. Com empresas, com
gravadoras” (Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana).
A presidente da Cooperativa da Grande Niterói, fazendo referência à rede informa
que a organização em cooperativas
46

“(...) começou esse negócio de legalização: "Vai ter legalização, mas


vai ser por cooperativa". Desde aquela época falavam isso”.

Como já foi dito esta fundadora de Cooperativa participou de um curso de


formação de cooperativas de transporte realizado em Rio das Ostras pela COPPE/
UFRJ. Contudo, e com base nessa experiência, a presidente afirma que dada a
natureza da operação, a cooperativa não corresponde exatamente aquilo para o
que foi orientada a formação recebida.

“Olha, sinceramente a cooperativa de transporte alternativo nada mais


é do que uma empresa, estilo de ônibus, só que com microônibus, no
estilo das vans, aonde tem vários donos. É uma empresa. (...) Porque o
lucro é individual. A organização é como uma empresa mesmo de
ônibus. Só muda que não se concentra o lucro em um dono. Se rateia.
(...) A organização nossa é, ela é muito, bem..., vamos dizer,
capitalista” (Presidente de Cooperativa da grande Niterói)
Em suma, as cooperativa, formadas no bojo da expansão do transporte informal,
são um instrumento de institucionalização das práticas envolvidas, tendo por
objetivo a legalização, administrando o transporte à maneira de uma empresa. Isto
vale, até mesmo, para cooperativas de fachada ou cooperativas que formalizam
um ponto, cujo “dono” converte-se em Presidente da cooperativa0.

As relações, ao longo dessas redes, apresentam-se, nos depoimentos, sobretudo


como relações pessoais. Entretanto, com as cooperativas, estas relações
adquirirem alguns aspectos ou formas institucionais, na medida em que os pontos
hierarquizados da rede organizam-se como uma cooperativa de proprietários,
regida por estatutos e chefiadas por uma direção eleita, composta por um
presidente e uma diretoria que recebe pró-labore variável, segundo a
rentabilidade.

A institucionalização da rede deixa fora um número razoável de pessoas, como


pode ser visto nos gráficos que seguem.

0 É interessante frisar que formação de cooperativas gozou de bastante apoio institucional.


Gráfico 1
Organograma da Cooperativa da Grande Niterói

Pranchetas nos Pontos (1)

Cooperativados
Dir.

Diretor Presidente

GerenteDir.
de
Proprietários

Não Cooperativados
Cobradores
Motoristas Auxiliares
Dir. Comercial

Fonte: Pesquisa para Tese – 2001


(1) Prancheta: aquele que registra chegadas e saídas nos pontos.
Gráfico 2
Organograma da Cooperativa da Zona Oeste

Cooperativados
Cooperativados
Não
Dir.

Diretor Presidente

Cooperativados
Inspetor
Despachantes
Diretor e Vice-diretores de Linha
Dir.
Gerente de

Não Cooperativados
Cobradores
Motoristas Auxiliares

Fonte: Pesquisa para Tese - 2001 Dir. Comercial

O organograma de uma cooperativa é muito simples, se comparado ao de uma


empresa. Compõe-se de três diretores e um gerente. Aos diretores correspondem
Proprietários
as funções administrativas, financeiras e comerciais, enquanto a operação do
serviço é controlada pelo gerente de caixa. Habitualmente, os diretores são
membros da própria cooperativa, como representado no gráfico 1. Contudo, no
caso da cooperativa da Zona Oeste a direção é terceirizada0 (ver gráfico 2).

Quanto ao controle nos pontos, a sua execução é variável. Enquanto na


cooperativa da Grande Niterói, são os “Pranchetas” – cooperados não
proprietários – que realizam a fiscalização nos pontos, na cooperativa da Zona
Oeste são os despachantes, existindo ainda, uma outra função na organização, que
é o Diretor de Linha: cargo correspondente ao fundador da linha que zela por ela0

0 Observei esta forma de organização apenas nesta cooperativa.


Um outro aspecto interessante desta institucionalização em forma de cooperativa,
é que a figura do presidente adquire extremo destaque, por acumular os papéis
fundador da cooperativa e de protetor, por ter enfrentado a antiga diretoria. Enfim,
a figura do presidente inspira respeito aos cooperados, sendo ao mesmo tempo a
cabeça visível nas lutas pela legalização e nas várias organizações de presidentes,
que lideram o movimento pela legalização.

Segundo o presidente de Federação de Transporte Alternativo do Estado do Rio de


Janeiro (FECOTRAL) “chega-se a presidente por educação, por capacidade
porque ninguém quer o cargo ou pela força”. As condições são heterogêneas,
como aponta o depoimento que segue.

“Como existem cooperativas, também, que são donas de ponto. Aí no


caso, não é a cooperativa em si. É o presidente que é o dono do
ponto. A arrecadação do ponto vai toda para ele. É uma coisa meio
camuflada, eu não consigo, na minha concepção de cooperativa, ver
ou usar uma empresa para ser dono da rua” (Presidente de
Cooperativa da Grande Niterói).
Esta situação é apontada como ocorrendo em muitas cooperativas que operam nos
Galpões da Central

“Na central, na verdade é uma empresa que montou e alguém foi lá e


se associou a ela, aqui não: a cooperativa gerência”. Diretor de
Cooperativa da Zona Oeste)
Enquanto no ponto

“(..)o cara não tem compromisso, não tem compromisso em organizar,


não tem compromisso em construir, você pára no ponto, paga a ele e
vai embora e roda e qualquer um pode rodar. Na cooperativa, na
Cooperativa da Zona Oeste, quem trabalha naquela linha trabalha
naquela linha. O ponto é só um referencial”. (Diretor de Cooperativa
da Zona Oeste)
A presidente da Cooperativa da Grande Niterói descreve sua organização como
democrática e a contrapõe a uma cooperativa rival definindo sua direção como
autoritária.

“É aquele negócio. Se você for a outras cooperativas, (...) aí você vai


ver que tem segurança em cada ponto. Nós aqui não trabalhamos
assim. É justamente acho que pela formação que eu tive lá na
COOPE, de ser bem democrático, bem...

0 Existe também o Inspetor, cooperado não proprietário que atua como segurança e informante em casos de
fiscalização quando se trata de linhas ou veículos irregulares.
Foi, fui eu que fundei. E eu fui reeleita o ano passado. Agora na
última assembléia eu tive uma prorrogação do meu mandato por mais
quatro anos. A gente aqui é bem democrático. Nós por exemplo,
ganhamos as linhas. Aí eu tenho as linhas, nós ganhamos e há
quantidade de veículos. E até para decidir quem ia ficar com as
linhas eu fiz assembléia. O critério foi definido pela maioria, tudo
meu é assembléia. A influência de um presidente num curso de
cooperativismo é completamente diferente daquele presidente
autoritário que acha que isso é a minha empresa, que a cooperativa é
minha”. (Presidente de Cooperativa de Grande Niterói)
A relação entre presidentes se expressa em termos afetivos, cujo estado determina
também a articulação das cooperativas em organizações sindicais0.

“Nós éramos da Fecontral, só que existe, eu na minha concepção, das


outras seis cooperativas que fazem parte da nossa federação..., como
é que você pode fazer parte de uma mesma federação com outras
cooperativas. Você fere totalmente os seus interesses. Você pode,
como é que eu vou sentar com você, você vem com a sua cooperativa
e bota na minha, me desrespeitando e eu vou sentar com você para
ser sua amiga.
É, mas eu acho também que ele não teve opção. O sindicato do jeito
que está, isso eu não quero, porque aí eu vou ter que compartilhar
mais duas linhas, com duas cooperativas que eu odeio mortalmente
eles e eles odeiam a mim”. (Presidente de Cooperativa de Grande
Niterói)
Em muitos casos as desavenças, entre não amigos, resolvem-se com violência.

“Nós éramos dez. Não, minto, 16 depois passou para 10, porque
morreu um, o outro foi preso e o outro também morreu. Tudo
assassinado. É aquele negócio. Discordar nem sempre é saudável no
nosso meio. E a gente faz uma oposição, que nós cuidamos dos nossos
interesses mas dentro da legalidade. De repente fere o interesse
econômico que não seja de outros. Por isso que nós criamos a
Fecovan.” Todos nós, eu estava até falando para o Maurício, todos
nós. (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)
O mesmo, parece ter acontecido no interior das cooperativas.

“Quer ver uma coisa? Aquele muquirana que a gente expulsou agora,
que faturou uma grana da cooperativa, tende a falir logo porque tem
uma visão muito mercantilista da vida, e a vida não é só mercantil, a
vida é outras coisas”. (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)
Praticamente todas as cooperativas ao longo de sua curta história, tiveram
diretores expulsos ou facções e, muitas vezes isto, expulsões violentas.
“Numa das Cooperativas de Vista Alegre o Robson, esse foi um...
Roubou para cacete a cooperativa aqui também. Aqui teve

0 Por ocasião da pesquisa de tese cinco organização sindicais atuavam no Estado do Rio. A FETRANS- Rio no
município do Rio de Janeiro, A FECOTRAL, a FECOVAN, a CONVAN e a SINTRAL na escala estadual.
intervenção. Um ano depois não dava mais para gente. O cara me
apresentou uma nota fiscal para concertar uma torneira de
R$1.500,00. Foi complicado. E ai a gente entrou na justiça entrou na
OCERJ. Foi sorte que tinha só um ano de mandato e ai tinha eleição
para três anos. Como a gente não conseguiu nada na justiça, ele
entrou com uma liminar. Ai a gente decidiu : nós tivemos que partir
para uma eleição que é a forma mais correta. Eu já tinha feito um
ponto na Graça Aranha, talvez o mais famoso de Van”. (Presidente de
Cooperativa da Zona Suburbana)
Em suma, as redes não formalizadas, que deram origem à operação do transporte
informal, passaram por um processo de formalização ou institucionalização ainda
inconcluso, preservando muitos traços de sua origem. Entre eles, destacam-se as
relações comerciais, que assumem a forma de relações de afinidade ou rivalidade
pessoal.

III.6 b. Relações da Rede não Cooperativada

De qualquer modo, em geral, a cooperativa é uma associação de proprietários que


institucionalizam redes já estabelecidas. Por outro lado, essas associações de
pequenos proprietários de veículos, com iguais direitos, raramente faz uso de
mão-de-obra assalariada, abrindo mão de várias outras formas de trabalho
subordinado, de modo que a relação entre proprietário e auxiliar é pessoal e
variável.

Pode haver trabalho assalariado, mas é raro. Predomina o aluguel do veiculo ou


uma divisão do faturamento.

“Olha, aqui eu tenho bem mesclado. Tenho proprietários que ficam em


casa e escolhem um motorista. Aqui a maioria mesmo é proprietário.
Trabalha e utiliza o motorista, o auxiliar porque a gente começa muito
cedo, 4:30h, 5:00h. E os motoristas auxiliares, durante o dia, para ele
pegar à noite, de novo.
A Sara, por exemplo, utiliza o motorista dela. Ela bota o motorista e
trabalha com ele, cobrando. Porque ela acha cansativo dirigir. Então
existe também, como existem proprietários que dão na mão do
motorista, o motorista paga lá, dá o dinheiro a ele. Existem várias
(Formas de se relacionar).
Existem proprietários aqui que não dão o carro de jeito nenhum na
mão de ninguém. É bem variado.

Aqui é assim: eu te alugo a minha van. Você tem que pagar o


combustível e o óleo. Quebrou? Na maioria, é o proprietário que arca.
Têm alguns que dividem a manutenção com o motorista. E têm outros
que deixam a cargo do motorista, que é a pior coisa que tem. Porque -
você como motorista - quebrou o carro, tem a peça original e a
alternativa que é muito inferior, vai tirar o menos possível do bolso”.
(Presidente Cooperativa da Grande Niterói)
A relação entre proprietários e motoristas auxiliares é também motivo de tensões e
exige, algumas vezes, intervenção da Cooperativa nas relações de trabalho.

“Mas tem outra coisa que eu acho que é a criação de um mercado


novo de profissionais. As empresas falam assim: - os carros das
cooperativas estão obrigando a gente a desempregar. Não é verdade,
eles cresceram com a frota de ônibus, não é verdade, e muito pelo
contrário, eles desempregam e a gente absorve, o que não falta é
trocador e motorista vindo aqui, uniformizado, na cooperativa
procurando emprego, se cadastrar como motorista auxiliar, por
incrível que pareça. Um motorista de ônibus deve estar ganhando uns
novecentos reais. E um motorista da cooperativa entre mil reais e mil
e duzentos reais.

Numa empresa ele nem sabe o nome do dono da empresa ele sabe que
o nome da empresa é Joaquim, mas pode ser Joaquim José, Joaquim
de Paula, Joaquim... qualquer Joaquim. Aqui não, ele faz o trabalho
dele, no final paga a diária para o permissionário, se a relação for de
diária, ou percentagem, seja qual for...

A relação entre o proprietário e o motorista auxiliar é de livre


negociação.(...) A cooperativa agora está intervindo e está
estabelecendo, ao contrário do que foi aprovado no nosso congresso
nacional, aqui a gente está intervindo e determinando um padrão de
percentual. Estamos intervindo porque a livre negociação estava
criando problema”. ( Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

Em termos gerais, a cooperativa de proprietários recorre a relações de trabalho


não assalariadas: o aluguel de veículo, ou partilha da renda do dia, corresponde a
uma porcentagem previamente pactuada, reproduzindo o tipo de relação existente
entre proprietários de táxis e seus auxiliares. A mesma tendência verifica-se em
relação às funções

Expande a variedade de funções, e conseqüentemente, de relações de trabalho. Por


exemplo, em frente à Rodoviária Novo Rio, por exemplo, existe uma função
única: os “papagaios”, ou seja, pessoas encarregadas de atrair e contatar possíveis
clientes, levando-os até os veículos que partem com destino a Angra dos Reis ou
Campos. Estes recebem do motorista a quantia de R$ 1,00 por passageiro0.

Concluindo, as relações personalizada0 existentes em todas os tipos de


operadores, proprietários ou não, até mesmo por seus aspectos éticos, parecem
permear todas as relações de produção do transporte informal na metrópole do Rio
de Janeiro. O curioso é que, se os critérios morais são idênticos as condições de
realização não o são. Entretanto, parecem estes critérios ser instrumentos de
legitimação das práticas.

Descrevi os indícios de uma ética do empreendedor urbano que ao contrário do


que normalmente se pensa, não corresponde apenas aos valores dos pobres. Parece
ser o ideal do empreendedor popular, capaz de acumular uma considerável
fortuna. Os elementos desta ética servem na legitimação das posições e das
relações de trabalho.

IV. Conclusão

Da tentativa de conciliação entre teoria dos circuitos e conhecimento acumulado


sobre as práticas que dão forma aos mercados de trabalho não formalizados,
mediada pelo conceito de involução metropolitana e a teoria dos circuitos, é
possível constatar que, de fato, há relação entre modernização e formação de
novos circuitos. A indústria automobilística foi a grande promotora e beneficiária
da modernização nos transportes, sem contudo, investir em grande inovação
tecnológica no que diz respeito especificamente ao produto.

A inovação deu-se a partir de uma política micro-econômica das empresas


automobilísticas, que passaram a disputar um único mercado mundial e como tal
organizaram a produção globalmente, como outrora o fizeram em cada pais. A
oferta de mini-ônibus para o transporte de passageiros conformou uma das
disputas mais acirradas por mercados, encontrando um vasto potencial de
expansão de seu negócios.

0 Isso sem contar a rede de troca de vales transportes. Há empresas especializadas na compra e troca de vales
transporte. A troca do vale pela passagem ocorre nos pontos movimentados da metrópole. Quem cumpre essa
função recebe R$ 0,15 por cada vale de R$ 1, 50.
0 É freqüente observar motoristas ou cobradores que tratam de maximizar oportunidades. Quebra galho para se
estabelecer como auxiliares.
A ação vertical, que determinou os transportes por vans, não explica, entretanto
toda a dinâmica observada. Além das necessidades e da oferta de transportes, o
período coincide com transformações na percepção social do mercado de trabalho
e das estratégias que haviam norteado escolhas profissionais durante um longo
período. O que permitiu determinar o funcionamento do mercado de trabalho
metropolitano brasileiro como composto por dois pólos hierarquizados: o
emprego público e o emprego em multinacional como alternativas viáveis.

Foi visto que, nos anos 90, o desemprego originado na desindustrialização, pela
saída voluntária de funcionários ou pelo enxugamento das multinacionais, foi
transformando o quadro em que se pautaram as estratégias. Projetos não forma
alterados mas, os meios, difundindo a busca do próprio negócio. Isto obrigou à
uma reconversão de estratégias acelerada, apesar de não eliminar hierarquias. Ao
contrário, reproduziu-as, diferenciando-se através dos tipos de veículos, forma de
circulação e clientela atendida.

Assim sendo, as estratégia envolvem e ampliam um conjunto de práticas já


existentes mas, restritas aos táxis, às kombis e aos ônibus piratas. Ao invés de
veículos velhos, clandestinos e ilegais, os operadores de transporte informal
valem-se de veículos novos, tentando crescer e “melhorar”, estimulando a
formação de cooperativas, lutando pela legalização, servindo de modelo aos
operadores de kombis.

A ação vertical, conforme conceitua Santos, iniciou um movimento determinante


de uma sensível proliferação de circuitos marginais superiores e inferiores,
alimentados pela prática da revenda. Disso se depreende que, na escala
metropolitana, é a concessionária quem estabelece o vínculo entre circuito
superior e inferior. Por ações verticais, este tipo de empresa, relaciona-se a outras,
que podem ser pensadas como horizontais mas, que possuem também a sua
hierarquia.
Esta, hierarquia entre os circuitos e entre redes, institucionalizaram, ao menos em
parte, o seu nível superior, excluindo boa parte das relações de trabalho. Surgem
assim situações paradoxais, nas quais a cooperativa serve como instrumento de
defesa doe interesses, fortalecendo os proprietários individuais enquanto o trato
pessoal e a amizade, aspectos típicos da economia não formalizada, são
preservados tanto nas relações institucionais entre presidente e cooperados quanto
entre proprietários e seus subordinados
1

Capítulo 10

Conclusão

Tratar o transporte informal na metrópole do Rio de Janeiro, nos anos 90,


entendendo o papel dos transportes e da informalidade na circulação e suas
conseqüências para a experiência urbana, exige a mobilização de um grande
conjunto teórico. As perguntas simples operam um recorte analítico complexo,
cujos eixos - urbanização, circulação e sujeito social - articulam uma problemática
mais geral, que relaciona entre a estrutura sócio-espacial e ação social.

Partindo-se da questão do vínculo histórico e teórico entre urbanização e


modernidade subordinadas à industrialização e, mais especificamente, às
necessidades do capital, conclui-se pela reafirmação do axioma que relaciona a
atividade econômica dominante e o estado da urbanização. Mais precisamente,
trata-se de um processo de atualização técnico, econômico e comportamental - de
uma modernização - cujo ajuste, como nas demais dimensões do social, não é
direto nem imediato. Trata-se de um processo complexo e desigual, já que a
urbanização contemporânea é um fenômeno mundial, associado e multi-escalar.

O processo tanto pode ser interpretado como próprio de um novo marco


institucional destinado a promover a fluidez e a racionalização do espaço urbano,
acomodando-o às necessidades do capital num regime de acumulação flexível –
que teria como corolário a desregulamentação do transporte e a fragmentação
espacial - quanto como uma forma de resistência social e econômica que frustra
ou dá outro sentido às necessidades dos agentes econômicos, às formas de
apropriação da cidade por seus habitantes, o que possibilitaria resistir a
fragmentação espacial e à exclusão social.

As alternativas perdem seu caráter excludente quando tratados como uma


modernização que acontece em associação com a involução metropolitana. A
expansão do transporte informal relaciona-se, assim, à modernização econômica
ocorrida nos anos 90 e compreende mudanças na estrutura produtiva, na estrutura
sócio-profissional, nas necessidades - alterando e diversificando o consumo – e no
mercado de trabalho.
2

A modernização da indústria automobilística deve ser considerada uma das


principais causas de sua expansão. As transformações desse importante elemento
do circuito superior não obedecem à modernização tecnológica no produto. De
fato, a inovação técnica e organizacional ocorreu muito mais ao nível da
produção, tendo como marco a disputa mundial por mercados. Esse quadro
completa- se, em parte, na escala nacional, quando as políticas empresariais e
governamentais de crédito estimulam a formação de um circuito superior
marginal, inicialmente atuante no turismo, no turismo by-night e em formas
especiais de transporte como fretamento e transporte para deficientes. Estas novas
modalidades, pela própria dinâmica econômica, chegaram rapidamente à
saturação, perdendo rentabilidade.

A descoberta de novos mercados, de carências e necessidades em determinados


lugares da metrópole e horários, foi conseqüência, então, do processo anterior.
Além disso, o circuito inferior, já existente, articulou- se rapidamente ao circuito
superior marginal, recém formado e alimentado por veículos usados,
relativamente novos, dando um outro perfil às antigas práticas e nova solução às
velhas carências e estimulando o transporte informal tanto na metrópole, quanto
em outras regiões do Estado.

A transformação desencadeada pela indústria automobilística explica parcialmente


o surgimento do transporte informal, que requeriu uma política de crédito e
condições econômicas e permitiu a formação de um mercado disposto a consumir
seus serviços. Entretanto, a influência desta transformação não corresponde,
necessariamente, à promoção da fluidez urbana. A mobilidade estimulada por esta
indústria pode ocasionar a expansão da frota de veículos, resultando na perda
progressiva de velocidade do trânsito. Alcançar a fluidez urbana engloba políticas
para o transporte, as vias e o trânsito. Este é um processo que passa por
planejamento, controle, fiscalização, negociação e por decisão política.

A dimensão técnica da política de trânsito e transporte metropolitano constitui


apenas um momento num processo muito mais complexo. O sentido da política é
definido no jogo que ocorre na escala nacional, estadual e municipal. Além disso,
a divisão institucional contribui para diferenciar as condições de acesso e
mobilidade na metrópole. Assim, se a fluidez é considerada um aspecto
3

fundamental da rentabilidade urbana, esta não se oferece por igual em todas as


metrópoles, municípios e lugares.

A dimensão e a importância do jogo político na produção da fluidez


metropolitana, se não publicamente reconhecidas, são tratadas pela ANTP, cujo
discurso sobre o transporte metropolitano, assume uma aparência democrática e
moderna, promotora do aumento da acessibilidade, da mobilidade e da qualidade
de vida urbana. Este discurso visa, em realidade, promover, nas metrópoles
brasileiras a eficiência e a competitividade mediante aumento da fluidez e
diminuição dos tempos de circulação de pessoas e mercadorias. Esta organização,
que se apresenta como a sociedade civil organizada, divulga e publicita,
verdadeiramente, as necessidades dos atores hegemônicos: trata-se de reduzir o
custo Brasil.

A promoção da fluidez ótima opera, assim, no próprio processo de


regulamentação, ou melhor, da legalização do transporte informal. Antes que
obedecer à vontade de desregulamentar, a legalização busca compatibilizar
institucionalmente os informais ao arcabouço legal que estabelece a prerrogativa
estatal na prestação do serviço de transportes ou uma delegação a empresas
privadas sob a forma de concessão. A sua normatização corresponde, então, à
regulamentação de um conjunto de práticas já existentes.

O fato do processo de legalização do transporte informal permanecer incompleto,


além de explicar a continuidade da luta política por uma regulamentação mais
abrangente, permite reconhecer que, ordenar ou racionalizar o sistema de
transporte significa diminuir a frota em prol da manutenção da rentabilidade das
empresas, sem considerar o aprimoramento do serviço ao usuário, em termos de
qualidade, velocidade, pontualidade e preço, ou mesmo, desobstruir as vias. Por
“em forma” os transportes informais é, então, outorgar-lhes uma prebenda, na qual
o Estado responsabiliza- se pela repressão à concorrência e pela manutenção dos
lucros tendo a fluidez e a rentabilidade como o maior bem urbano a ser alcançado.

Não basta, então, a regulamentação do transporte informal para eliminar os


problemas do sistema. O padrão de segregação pré-existente reproduz- se nos
interstícios da lei, das normas e da rotina administrativa. Soma-se a isto, a
fragmentação institucional, cujo problema não consiste na falta de qualificação
4

técnica das prefeituras mas, na concentração diferenciada de recursos econômicos


e políticos. Muitos municípios populosos - ou mesmo áreas pobres do município
sede - dependem do alinhamento com o governo estadual para a obtenção de
recursos. E, por outro lado, nesses mesmos lugares, articulam-se, nas câmaras e
nas eleições, poderosos interesses econômicos, que estimulam a urbanização pela
expansão do mercado de terras e transportes, produzindo e perpetuando a
imobilidade relativa dos pobres.

Essa articulação complexa de agentes e interesses políticos e econômicos produz


o o espaço urbano cujas, transformações morfológicas foram evidenciadas pelo
estudo da localização das formas de circulação do transportes informal,
comprovando a importância da acessibilidade e da mobilidade na estruturação
urbana. Isto é, a urbanização se dá superposta às redes viárias e as condições de
acesso por elas oferecidas. Assim, se boa parte da extensão metropolitana, ocorreu
no passado com base na rede ferroviária, é possível afirmar, hoje, que se dá, em
determinadas áreas, relacionada ao sistema rodoviário da metrópole, em torno do
qual fixam-se atividades comerciais e definem-se áreas residenciais, na extensão,
maior do que formalmente considerada região metropolitana do Rio de Janeiro.

Verifica-se, também, a alteração do uso econômico dessas redes, uma vez que
áreas industrias, que ocupavam ou tendiam a ocupar lugares acessíveis, dão lugar,
pouco a pouco, a centros comerciais e de consumo, que se beneficiam do aumento
da mobilidade permitido pelas vias e pelos uso de veículos automotores - carros,
vans, kombis ou ônibus - atendendo grandes áreas de expansão periféricas,
popular ou abastada, no caminho de regiões de veraneio, o que ocasiona, ao longo
do tempo mudanças no uso do solo em seus arredores.

Essas novas centralidades, condensadoras de fluxos, não apenas localizam-se em


pontos acessíveis. Tendem a atrair, para si todas as formas de transporte
automotivas existentes. Estas mudanças, não alteram, contudo, práticas mais
antigas. Nem o centro nem os sub-centros periféricos perdem importância. Ao
contrário, quanto mais extensa e diferenciada torna-se a urbanização, mais
importante o Centro parece se tornar concentrando os fluxos metropolitanos.
Apesar da diversificação e do aumento dos fluxos internos, alteração da dinâmica
e da integração funcional da metrópole, o Centro do Rio de Janeiro permanece
como seu pólo unificador.
5

Verifica-se assim, a diferenciação física e seus significados. Porém, desde a


perspectiva dos transportes, não é possível afirmar que haja perda de comunicação
e proximidade e, tampouco, o fim da antiga centralidade. Questiono, com iesta
afirmação, a hipótese da fragmentação, considerada típica da organização sócio-
espacial pós-moderna. Há transformações na extensão e na morfologia intra-
metropolitana mas, estas não permitem afirmar que haja perda de comunicação.
Assim retomo a questão da apropriação e da reapropriação do espaço, já que, nas
relações de proximidade, demarcadas pelas sucessivas espacializações, as ações
econômicas desenham novas solidariedades enraizadas no território.

De fato, a formação do transporte informal – a sua organização em cooperativas -


possui momentos e facetas que permitem falar de apropriação e, até mesmo, de
luta pelo direito à cidade. Mas, estas lutas esbarram em limites e na disputa pelo
usufruto dos benefícios da cidade. Assim, a formação de um pequeno
empresariado periférico produz acessibilidade e mobilidade; porém, a inexistência
de uma estrutura política e legal que conceba o crescimento urbano, que disponha
de abertura suficiente para se adaptar a este fenômeno, gera a ilegalidade. O
sistema de transportes, tal como opera, incorpora apenas as deficiências da gestão
pública e do livre mercado. A regularidade resultante reflete a inexistência do
usuário como sujeito e a expansão dos transportes num padrão empresarial que
beira a ilegalidade e que caracteriza-se pela apropriação privada dos benefícios da
circulação. Por outro lado, este padrão é perfeitamente coerente com a ordem
social de classes vigente e com a conseqüente a imobilidade relativa dos pobres.

Não é possível, então, negar a determinação econômica das condições que


possibilitaram a emergência do transporte informal, principalmente a busca da
rentabilidade dos operadores que se sobrepõe às necessidades dos habitantes,
gerando carências nos pontos mais afastados e pobres e hiper-conexão nos
centros. Contudo, não parece possível falar de uma única lógica, orientadora da
expansão metropolitana: a promoção da fluidez permanece um projeto inacabado
e, sistematicamente, em permanente realização. Por outro lado, se bem que a
modernização da indústria automobilística explique, em parte, o surgimento e a
expansão do transporte informal, uma compreensão mais adequada deste
fenômeno deve considerar a modernização de maneira mais ampla, englobando
mercado de trabalho e consumo, já que a década de 90 constituiu um período de
6

modernização - e de promessas de modernização - que transformou a relação entre


Estado e economia, padrões de consumo e relações de trabalho.

A teoria dos circuitos e da involução metropolitana apresenta limites ao tentar


estabelecer quais seriam as práticas, os grupos e as atitudes que conformam os
circuitos inferior e marginal superior. Quem, como e mediante que relações
conforma aquelas as práticas? A combinação entre ação vertical e ação horizontal,
que determinou, em parte, os transportes por vans, não explica suficientemente
toda a dinâmica observada. A tradição sociológica mostra que grupos e práticas
não nascem apenas de suas potenciais condições objetivas. Isto é, se um modo de
ser e de proceder coletivo afirma-se e evidencia-se é porque há um ethos social::
grupos e práticas precedentes. A emergência pública e mobilizada de operadores
do transporte informal reivindicando a legalização, não pode então ser explicada,
apenas, por suas causas imediatas e materiais.

Ao tratar do mercado de trabalho metropolitano há que mencionar duas grandes


transformações: mudaram a estrutura de empregos e as representações do mercado
de trabalho. Com efeito, a reestruração econômica afetou tanto trabalhadores
manuais quanto trabalhadores administrativos e até mesmo de cargos gerenciais.
No Rio de Janeiro, como de resto em boa parte do Brasil, houve, nos anos 90,
desindustrialização, o que significou a diminuição do trabalho manual na indústria
e o enxugamento da máquina administrativa de empresas públicas e privadas.
Ambas transformações foram acompanhadas de um processo de informalização
que envolveu a terceirização e a valorização do empreendedorismo, da pequena
empresa e do trabalho cooperativado.

Nesse contexto, alteraram-se, também, as representações do trabalho e do


mercado de trabalho, de maneira que ao mudar as condições de contratação e as
práticas dos trabalhadores, muda a estrutura do mercado de trabalho. A alteração
em representações do trabalho, pode ser considerada, em parte, fruto da
manipulação da indústria cultural que promoveu o empreendedorismo. Mas, não
constituiu uma percepção arbitrária: funda-se na experiência concreta do
desemprego (ou ameaça de desemprego) decorrente da reestruturação econômica
e da desindusrtrialização. Não mudaram os projetos mas, os meios e as condições
para realizá-los, estimulando o recurso a estratégias já utilizadas no sentido de
estabelecer o próprio negócio, obrigando á reconversão de projetos se dividiam,
7

no caso dos mercados de trabalho metropolitano, entre dois pólos hierarquizados:


positivo e superior, o emprego público e o emprego em empresas multinacionais e
o trabalho autônomo, o biscate e o bico como alternativas viáveis em momentos
ou circunstâncias pessoais difíceis. A mudança não eliminou, tampouco
hierarquias sociais que separavam trabalhadores de colarinho branco e
trabalhadores manuais ou menos escolarizados. A hierarquia, no transporte
informal envolve tipos de veículos, forma de circulação e clientela atendida.

A proliferação do informal no transporte não resulta mecanicamente do aumento


do desemprego nem das necessidades do capital, como muitos sustentam. Esta
transformação - marcada por continuidades na tentativa de influir ou alterar, a seu
favor, as forças econômicas - permite confirmar a existência de um ethos ou
habitus do trabalhador autônomo ou do pequeno empreendedor urbano. Tanto o
projeto quanto as estratégias acionadas são conhecidas: o fortalecimento da
família pelo acúmulo patrimonial é o objetivo (fim) maior, alimentado por
deveres (ética) para com o dinheiro na busca por melhorar, a obrigação de se
virar, através de recurso à família e a rede de amizade (ter conhecimento).

A transformação conjuntural do mercado de trabalho estimula as táticas, acionam


outras formas de trabalho já existentes mas, limitadas aos táxis, às kombis e aos
ônibus piratas. A partir de então - em algum momento da primeira metade da
década de 90 - o transporte escolar, o fretamento, a lotada e o cabritinho não são
mais realizados com veículos velhos, clandestinos e condições irregulares mas,
sim, com veículos novos, cujos proprietários tinham, como objetivo, “melhorar”
tanto em termos pessoais quanto empresarias, no que se refere à qualidade do
serviço e à atenção ao usuário. No mesmo ensejo, cooperativas foram organizadas
e acontecem lutas, pela legalização, seguidas pelos operadores de kombis.

Essa postura explica-se, em boa medida, pela adesão aos valores, promovidos nos
primeiros anos da década de 90, do empreendorismo, do consumo e da eficiência,
entre os quais a comodidade e a rapidez são fundamentais.. Contudo, as promessas
se desvaneceram, ou não se realizaram para todos. Curiosamente, esses elementos
do discurso dominante tornaram-se instrumentos da luta legitimadora das
aspirações de reconhecimento e legalização do transporte informal, cabendo
ressaltar que as mobilizações receberam amplo apoio dos usuários.
8

Os pequenos empresários frustrados, reivindicando a correção desse


empreendimento, deram origem a um processo de organização que ultrapassou as
cooperativas para construir organizações de classes ativas, aptas para negociar e
enfrentar o aparato jurídico-legal, e as negociações com o governo estadual, e
municipal. A classe média, deslocada de seu lugar lugar tradicional e ameaçada de
marginalização, exigiu a legalização, esgrimindo a legitimidade de suas iniciativas
econômicas e mostrando-se ofendida pela inoperância das autoridades, mobilizou
seu capital social, cultural, além do econômico.

Se, em números absolutos, a presença de setores de classe média parece pouco


significativa, a reconstrução histórica permite apreender a sua importância
qualitativa na organização e na luta política: instaurou um senso de injustiça
mobilizador. Este processo expressa, também, e até certo grau, a apropriação da
metrópole por seus habitantes. O conhecimento dos lugares, das carência e suas
especificidades permitiram, aos informais, chegar onde, anteriormente, nenhum
serviço chegava e, assim, o atendimento de carências específicas. Quantp ás
condições espaciais, o encontro no centro da cidade constituiu também uma
condição importante, que permitiu a reunião e a consolidação do movimento.

A luta pela legalização do transporte informal teve um alcançe que foi além das
necessidades dos atores hegemônicos. Disputou-se o direito à cidade. Entretanto, a
organização e a luta política esbarraram nos limites históricos da política e da
organização econômica. Na política, a expropriação do poder dos sujeitos das
lutas sociais pelos representantes e o atrelamento – maior ou menor - ao quadro
político instituído oposto à mobilização e eivado de clientelismo e atrelamento
eleitoral. No econômico manifesta-se a prestação de um serviço coletivo
subordinado à rentabilidade e conveniência individual.

Em suma, a emergência, crescimento e consolidação do transporte informal no


Rio de Janeiro dos anos 90 é, então, um fenômeno complexo e um processo
inacabado de modernização e involução metropolitana Sua natureza e dinâmica
não podem ser compreendidas, plenamente, mediante uma abordagem
unidisciplinar: sociológica, geográfica ou econômica. Exige que se reconheça seu
caráter multifacetado e mutável, enfrentando o desafio de por em ação diversos
instrumento analíticos, fontes e técnicas. O resultado não esclarece totalmente a
9

problemática. Mas, permite aumentar a compreensão e evitar os caminhos que


conduzem ao erro.
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12

ANEXO
13

Tabela 1

Participação dos transportes e as comunicações na PEA do Estado e a


Região Metropolitana do Rio de Janeiro

- 1988 - 1999
Estado RMRJ
Ano No de ocupados % No de ocupados %
1988 Total 5 617 577 100,00 4 553 013 100,00
transportes e comunicações 284 307 5,06 243 157 5,34
1990 Total 5 359 745 100,00 4 244 122 100,00
transportes e comunicações 314 928 5,88 269 903 6,36
1995 Total 5 727 638 100,00 - -
transportes e comunicações 310 434 5,42 - -
1996 Total 5 673 146 100,00 - -
transportes e comunicações 315 035 5,55 - -
1997 Total 5 605 282 100,00 - -
transportes e comunicações 351 480 6,27 - -
1998 Total 5 584 569 100,00 - -
transportes e comunicações 322 891 5,78 - -
1999 Total 5 629 997 100,00 4 265 682 100,00
transportes e comunicações 354 076 6,26 291 166 6,83
Fonte: IBGE - PNAD.

Tabela 2
Taxa Anual de Desemprego Aberto, por Ramos de Atividade
Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 1983 -1997
Ano total I. Construçã Comércio Serviços Outras
transformação o civil atividades
1983 6,17 7,11 9,76 6,76 4,46 1,92
1984 6,67 7,64 11,15 7,29 4,73 2,07
1985 4,86 5,10 7,67 5,52 3,34 1,96
1986 3,49 3,71 3,52 4,05 2,70 1,37
1987 3,24 4,88 3,59 3,91 2,36 1,19
1988 3,09 3,70 3,00 3,74 2,59 1,22
1989 2,76 3,32 3,13 3,58 2,15 0,96
1990 3,50 4,83 4,11 4,57 2,66 1,19
1991 3,79 4,98 4,22 4,34 2,94 1,86
1992 4,03 5,55 4,88 4,57 2,05 1,68
1993 4,10 5,68 4,40 497 3,18 1,63
1994 3,41 4,82 3,66 4,03 2,64 1,51
1995 341 4,82 3,66 4,63 2,64 1,51
1996 3,74 4,66 3,66 4,67 3,05 1,42
1997 3,71 4,92 4,21 4,50 2,96 1,28
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa Mensal de Emprego -
PME – (Dados anuais com médias mensais)
14
15

Tabela 3
Quem Participa do Debate Promovido pela Grande Imprensa
Nome Número Profissão
Alberto Rabaça 1 Sociólogo – e professor
Albuíno Azeredo 1 Ex.Gov. Espírito Santo

Subsecretário de Transportes do Rio

Eng. Transportes
Álvaro Santos 1 Presidente do Metrô –Rio
Antp 1 Instituição técnica
COPPE 1 Instituição técnica
César Maia 1 Ex prefeito do Rio

Economista
Cristóvão Buarque De Hollanda 1 Ex Reitor da UNB virtual candidato do
PT
Edson Santos 1 é vereador pelo PT
Fernando Mac Dowell 3 Primeiro presidente do Metrô

Prof de ET no IME
Francisco Pinto 1 Secretário Estadual de transportes
Geddel Vieira Lima 1 (BA) é líder do PMDB na Câmara dos
Deputados
Guilherme Fiuza 1 Jornalista
Henrique Azevedo Ávila 1 Mestre em Eng. Transportes
José Rodrigues Sobrinho 1 Eng. De Tráfego do CET-Rio
Lélis Marcos Teixeira 1 Pres. do Sindicato das Empresas de
Transporte de Passageiros do Município
do Rio de Janeiro.
Luiz Paulo Correa Da Rocha 3 vice-governador do Estado do Rio de
Janeiro

Mun de Transportes
Márcio de Queiroz 5 Secretário Espacial de Transportes do
Município (1996-2000)

Eg. Transportes

COPPE
Márcio Sequeira Santos 1 Eng. Trasnportes

COPPE
Miguel Bahury 1 Ex Secretário detransportes
Paulo Afonso Cunha 1 Sec. Mun. De Transportes
Raul De Bonis 1 Ex secretério estadual de transportes e
prof . da COPPE
Ricardo Cravo Alvim 1 Jornailsta e escritor
Ronaldo Balassiano 3 COPPE
Luiz Alfredo Salomão 1 Eng. Trasnporte

Secretário Estadual
Sérgio Balloussier 1 engenheiro.
16

Silio Boccanera 1 Jornalista


Total de referências 36

Total de formadores de opinião 25


Fonte: Pesquisa para Tese
17

Quadro 2
Trânsito e Transportes nas Propostas de Campanha dos
Candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de 2000

LUIZ PAULO CONDE (PFL)


1)criar uma agência de transportes em conjunto com os demais municípios da
Região Metropolitana.
2) implantar o projeto Rio Bus e
3) buscará recursos para a ampliação do metrô em dois trechos, entre Estácio e
Carioca e entre Inhaúma e Barra da Tijuca.
4). Também quer transformar o trecho ferroviário Central-Deodoro em metrô de
superfície.
CESAR MAIA (PTB)
1) promover a integração metrô-ônibus e
2) manter a tarifa única. 3) expandir o metrô até Jacarepaguá, partindo da Zona
Sul ou de Irajá.
4) vias expressas: as linhas Verde (da Tijuca até a Rodovia Presidente Dutra) e
Marrom (que cruzará Santa Cruz e Bangu e chegará à Avenida Brasil).
5)e instalar o ônibus da liberdade, transportando gratuitamente alunos da rede
pública e particular.
BENEDITA DA SILVA (PT)
1) bilhetagem automática, que permitirá a integração tarifária
2) discutir com técnicos e com as comunidades a elaboração de um projeto de
racionalização das linhas de ônibus.
3)Um conselho metropolitano de transportes deve planejar soluções integradas
para a Região Metropolitana.
LEONEL BRIZOLA (PDT)
1) entendimento maior entre as autoridades do Rio e dos municípios da Região
Metropolitana, já existe lei criando a agência metropolitana de transporte.
Bastaria implantá-la.
2) integração
3)acabar com a cobrança de pedágio na Linha Amarela

RONALDO CEZAR (PSDB)


1) Transsformar o sistema ferroviário em metrô.
2)criar as linhas de metrô Jacarepaguá - Madureira e Jacarepaguá - Barra, com
projeto já elaborado.
3)rodoviária em Vigário Geral.

Fonte: O Globo 20/08/2000, elaboração própria


18

Quadro 3
Principais metas sugeridas
objetivo Tipo de ação Classificação
qualidade no tp
 Aumentar a velocidade  Mobilidade
 Aproximar pontos de  Acessibilidade
acesso Aumentar espaço físico
 Qualidade de vida
segurança
 Redizir número de  Qualidade de vida
mortes no trânsito
 Fiscalização da eficiência
 Implantar Vistorias de técnica
Segurança
meio ambiente
 Reduzir emissão de gás  Qualidade de vida
carbono
 Fiscalização da eficiência
 Implantar Vistorias de técnica
Segurança
urbanismo
 Aumentar a fluidez pelo  Mobilidade
controle da localização de polos
geradores
circulação
 Reduzir o número de  Mobilidade
congestionamento das vias
principais das cidades grandes
energia
 Redução de energia  Eficiência técnica
consumida nas viagens
motorizadas
gestão
 Capacitar  Eficiência
técnicos técnica
Fonte: ANTP, 2002 elaboração própra
Figura
Municípios do Estado do Rio de janeiro com Presença de Transporte Informal Intermunicipal– 2000 -2002
(área sombreada)
Fonte: Pesquisa pata Tese
(obs) Mapa cedido pelo
observatório de Políticas
Urbana e Gestão Municipal –
IPPUR/UFRJ- FASE
Linhas Intermunicipais Extrametropolitnas com Destino ao Centro da Cidade do Rio de Janeiro – Estado do Rio de
Janeiro –
2000 – 2002

Fonte: pesquisa para Tese


Vetores de Expansão na Região Metropolitana do Rio de Janeiro -
1987

Fonte: Pereira, 1987

Vetores de Expansão na Região Metropolitana do Rio de Janeiro– 2000 - 2002

Fonte: Pesquisa para Tese


Diagnóstico de Altos Funcionários dos Governos Municipais e Estadual Sobre
Origem e Condições do Surgimento e Expansão do Transporte Informal
DETRO
“Uma das coisas que você estava me perguntando: por que será que,
simultaneamente, esse fenômeno foi ocorrendo em vários lugares? Talvez a gente
encontre a maior resposta dentro da globalização. Com a globalização você
igualou a informação para todos os países, a velocidade foi muito grande,
coincidentemente nós estávamos vivendo uma administração a nível federal que
permitiu a abertura dos produtos industrializados de fora, aberto, nós tínhamos
uma reserva de mercado que com isso foi quebrada. E a predominância naquele
momento era de veículos asiáticos. De origem asiática. Então, por isso, cada vez
mais me convenço de que foi a globalização. Com a globalização, a mão-de-obra
asiática ficou muito atrativa, os produtos vieram com preços atrativos, aí ganhou
a confiança.

Naquele mesmo momento o mesmo governo que abriu as importações.(..) que


abriu às indústrias estrangeiras, também, demitiu, enxugando a máquina pública.
Foi a época de desestatizar os órgãos e (...) um grande contingente de pessoas foi
ficando desempregada e caindo na atividade informal.

A atividade informal, ela sempre existiu. Em grande ou pequena escala ela


sempre existiu. (...) É uma válvula de escape para o desemprego que se instala no
Brasil, seja na célula municipal ou no país, que naquele momento cresceu muito.
Tanto o camelô, nas ruas, como começou a ter transporte alternativo.

E por que o transporte alternativo caiu no gosto? Porque um grande número das
pessoas desempregadas pertenciam ao nível médio técnico superior. Então, era
muito mais fácil ele se ver na condição de possuir um veículo, de colocar alguém
para dirigir ou ele mesmo ser o condutor porque ele já tinha habilitação. Ele
tinha crédito para comprar. Eu vejo que o "boom" naquele momento era esse
pessoal que estava precisando dessa sobrevivência. Porque muitos achavam que
com as indenizações poderiam sobreviver. Aí você vê muito abre e fecha negócio.
Então eu vejo que a informalidade ficou atrativa, o transporte alternativo é uma
informalidade de um status melhor do que um camelô de rua, ao nível de status.
Então isso foi caindo no gosto.
E talvez isso mereça também ser pesquisado. Eu vi isso, por causa dessas
cabeças pensantes do transporte alternativo: eles fizeram um transporte ao molde
do que a população queria. Eles entraram nas fraquezas dos transportes
instalados regulares. Um nicho(de mercado). Se o usuário ficava refém dos
horários pré - estabelecidos pelos ônibus, como eles têm menos ocupação nos
veículos, eles conseguem ter mais freqüência. E aí o usuário, começou a abrir
uma oferta para o usuário muito maior. O usuário que perdeu a van das cinco,
ele sabe que as cinco e três, as cinco e cinco a próxima está passando.

Então, a percepção do usuário em relação ao transporte alternativo é que ele me


respeita mais. E se eu perco um, eu tenho outro em seguida. Ele é mais rápido,
porque ele sai dos engarrafamentos. E também, isso sem fundamento em
pesquisa, mas pelas informações que a gente vai tendo, pelo que a gente conversa
nas comunidades, o que a gente conversa no meio alternativo, a gente vê que o
usuário passou a encarar o transporte alternativo que lhe dá mais status, um
transporte - tipo Robin Hood, que veio para poder ir ao mercado, com tarifas
mais baixas do que o ônibus; que obrigou o ônibus a ir a reboque porque obrigou
os ônibus a baixarem as tarifas.

Agora, também tem uma outra percepção. O transporte alternativo veio como
algo novo. Mas no caso do Rio de Janeiro, ele não permanece como um produto
novo, porque ele quer copiar as linhas dos ônibus. Isso aí é uma coisa que eu
venho batendo muito com o setor do transporte alternativo. Eles ficam
disputando os mesmos itinerários, as mesmas linhas das empresas de ônibus, das
linhas de ônibus. Então eu acho que para a gente continuar com transporte de
van sendo uma tecnologia prestando um serviço novo, nós teremos que dar um
outro pulo. Teremos que dar uma alteração de vôo, para buscar, cada vez mais,
garantir a rapidez do transporte. Cada vez mais tirar carro da rua, cada vez mais
permitir a racionalização do transporte, a hierarquização do transporte, e não
ser mais um equipamento a disputar o mesmo mercado. O mesmo segmento, o
mesmo deslocamento.

Numa grande escala, a urbanização está sempre muito interligada com


transporte. Infelizmente o transporte vai a reboque da urbanização. Primeiro
pensam em assentar as pessoas, em fazer os grandes shoppings e condomínio e
depois é que vão se preocupar com transporte. (...) A gente vê uma grande
expansão na Zona Oeste. Curiosamente, a Zona Oeste, é uma zona populosa, com
uma densidade demográfica e com o advento da tarifa única é a região que teve
mais benefícios do usuário em termos de tarifa...(....). E para que ela tenha
sucesso é preciso que aquela caixa de compensação entre as empresas, funcione
muito bem. Não tenho dados. Sou uma mera moradora do Rio de Janeiro, estando
dentro da administração pública estadual. A impressão que a gente tem é que por
alguma razão, em algum momento não ficou atrativo, ou a tarifa não
acompanhou os custos operacionais, o transporte da Zona Oeste por ônibus
deixou de ser bom. Deixou de ter a mesma qualidade da época em que foi criada
a tarifa única. E ali a van começou a vir com a oferta, e aí o que já não estava
bom, acabou ficando péssimo. Então são algumas operadoras que resistem ainda
à operação.

Quando a gente olha a região metropolitana, eu vejo que a van se localiza, se


concentra mais em áreas em que há uma fragilidade da operadora. Se a gente for
naquela área de São Gonçalo - Itaboraí, coincidentemente a maior operadora da
área não vem operado bem. Então, coincidentemente o que a gente vem
observando é isso. A van cresce na medida em que o operador local não consegue
sustentar uma operação de qualidade.

Em outro momento, você estava falando de cooperativa: na área da van, ninguém


se mexe. Na área daquela empresa, ninguém vai. Ali eu vou ter prejuízo e não sei
o que. Os cooperativados vêm me dizendo. Então, eles foram encima de alguma
fragilidade. Ou de algum atraso em, o transporte acompanhar, a ocupação do
solo.

Eu costumo atribuir um pouco as causas das perdas da qualidade, por


gigantismo de empresas e elas foram abocanhando as empresas menores da área
e foram ficando absolutas em certas áreas. E empresa encara o transporte como
um negócio. E como negócio(..), tudo o que ele tem de patrimônio é negócio.
Então agente observa que os empresários no Estado do Rio de Janeiro têm
orgulho de dizer é que é umas das frotas mais novas do país, ou foi. (...) Essa
renovação da frota é também interessante para o empresário. Porque ele
assegura o valor do patrimônio dele. É que a gente observa naquela área de
Niterói e São Gonçalo. Por uma série de negócios que foram realizados num
determinado momento, com renovação de frota e dívida dolarizada, quando
houve a desvalorização do Real, em 24 horas, em menos até, duplicou a dívida
daquela empresa.

Aí você vê. Você está sozinho naquela área. Você acabou soberano naquela área.
Você está com a sua capacidade de endividamento esgotada. O seu crédito cai na
praça. A sua mão-de-obra acaba não sendo paga em dia. Tudo isso foi refletido
na qualidade de operação dele. E ele não tem nem como descarregar numa outra
empresa, fazer uma parceria porque ele foi se isolando. Ele foi ficando dono
daquele mercado. E aí quem é que vai entrar nisso aí? É o informal. Eu não vejo
no setor de transporte de ônibus uma, um companheirismo é uma luta (...) Deve
haver aí um componente, ai somente um sociólogo ou um antropólogo estudar
como a maioria dos empresários é imigrante. E a maioria começou com lotação e
que é .um tipo de honra, de vaidade saber que ele é vencedor nesse terra, que ele
tem um patrimônio consolidado. Eu observo que é mais fácil aceitar perda de
demanda para transporte informal do que para um colega que é empresário
também.

Uma outra coisa que ajuda na concentração do transporte alternativo, e aí pode


ser até do transporte clandestino através do ônibus, são áreas que em que o
poder público não tomou decisões em implantar em áreas que hoje são pólos de
atratividade para o deslocamento de transporte. Um exemplo é a Barra da
Tijuca.

Por que a Barra da Tijuca tem muito van e muito ônibus? Por que? Porque
inexiste o transporte oficial público. Inexiste.

Eu quando vim para cá, eu coloquei como bandeira é resolver o problema do


deslocamento para a Barra da Tijuca porque a gente não pode permitir que o
informal entre exatamente na área em que a população está desassistida. A
relação casa trabalho está ignorada. Tem certas áreas que a gente precisa
exatamente fazer uma pesquisa para perceber. Mas tem outras áreas que a gente
percebe, tem que fazer pesquisa para quantificar. É diferente. Então essas áreas
novas que são pólos de concentração, eu vejo que o poder público fica muito
atrasado nas suas decisões. Então a Barra já tem uma licitação feita para linha 4
do metrô, já se pensou via hidroviária. Mas o que se faz com o transporte
rodoviário formal, que atende aquela área para que a gente não permita que o
clandestino não...

A van é como um táxi de lotada. (pela) versatilidade. Isso só reforça o que eu te


falei. Eles vieram com uma inovação, só que hoje eles pensam igualzinho a uma
linha de ônibus. Isso vai ser ruim. Eles vão perder a maior atratividade que é
essa flexibilidade. É chegar e falar: "Aí, vai descer alguém aqui?” Ou então: "Me
deixa um pouquinho, lá". É um táxi, um táxi.(...) Infelizmente foi uma tecnologia
nova, mas que ela não avançou numa modernização.

Na análise inicial que estava fazendo, quando a van surgiu, ela surgiu sendo
conduzida pelo próprio adquirente. E que veio com esse pensamento intelectual,
a gente cansou de ver em reportagem, engenheiro operando vans,
administradores (...) Quando veio, ela veio com inovação, com pessoas de nível
médio ou superior que sabiam o que queriam porque sabiam que não contavam
com aquele tipo de transporte. Então ela veio a oferecer uma coisa que não
sentiam necessidade. Hoje, (...) essa cabeça pensante ou se inseriu em outro setor
ou repassou o negócio, ou ela está em menor número com o poder de chefiar, de
dirigir essas cooperativas. E os veículos hoje são operados por pessoas que
pagam diárias. Nós vamos começar a vivenciar o mesmo problema do táxi. Esse
pessoal é explorado com diária. E aí a gente vai observando que esse condutor é
outro, a idade também é outra, a faixa etária. Tem umas pessoas com muita
idade, tem outras mais jovens. Aquele que está querendo entrar no mercado de
trabalho e aquele que está saindo do mercado de trabalho. Então está mudando o
perfil do condutor, está mudando em todos os sentidos. Tanto em escolaridade
quanto na idade. E aí fica mais difícil agora, vai ficar mais difícil a gente ter um
convencimento de que eles não podem trilhar na mesma história dos ônibus,
não”.

SMTU

São duas vertentes: o que a gente está chamando hoje de transporte alternativo:
parte deles está na legalidade (...) mas ainda tem um volume enorme de pirataria.

Quanto à origem eu acho que isto ocorreu por duas coisas conjugadas. Em
primeiro lugar, porque nosso transporte da cidade, é basicamente transporte por
ônibus, até porque o transporte por trem, por metrô e barcas, ele sofreu, em um
processo histórico ele se deteriorou muito por trem e barcas e o metrô surgiu
muito recente, ele não faz parte da nossa história inicial, ele é bastante novo.
Então esses transportes de massa, que deveriam ser o transporte de massa, por
questões históricas foram depreciados, e por questões de investimento o metrô
veio tardiamente e esses passageiros passaram a ser transportados por ônibus.
Então, ele passou a suprir uma função de transporte de massa que não podia ser
a dele. Isto é uma distorção da nossa história da área de transporte. E como ele
era monopolista, o trem ruim, o metrô ainda surgindo e a barca ruim, em uma
cidade que tem mar aberto. Monopolista ele não cuidou com a devida atenção da
qualificação do seu serviço. Para te dizer nem as linhas são licitadas, nós temos
meia dúzia de linhas licitadas, as outras foram concedidas, em 2000 foram
prorrogadas por mais vinte e cinco anos.

No Município do Rio de Janeiro, (as linhas) Foram concedidas há cinqüenta anos


atrás! E após a promulgação Constituição e Lei das Licitações, isto não foi
corrigido e ainda foi prorrogado por mais vinte e cinco anos (...) Inclusive, esta
prorrogação está na Justiça porque a Prefeitura, em 2001, questionou por
considerar inconstitucional. Mas como essa área é poderosa, em termos
financeiros, todos esses movimentos de Justiça eles acabam ficando muitos
estendidos.

Nós temos meia dúzia de linhas que foram licitadas em 97, umas linhas novas que
se licitou, umas que conseguiram e outras não. Estamos agora em movimentação
com um processo para licitação de uma linha específica e um outro processo mais
amplo que deverá ainda em 2002 acontecer. Mas as que existem que são em torno
de quatrocentas, quatrocentas e trinta linhas não são licitadas.

Com um setor poderoso financeiramente, monopolista, fazendo um transporte


distorcidamente como de massa, sem o ser, evidentemente foi desqualificando seu
serviço. E não investiu principalmente em áreas da cidade em franco
crescimento, e também em áreas da cidade com o poder aquisitivo mais baixo,
mais precisamente a Zona Oeste da cidade, em crescimento e com pessoas de
poder aquisitivo mais baixo, áreas mais pobres e mais longínquas do Centro da
cidade, linhas de quarenta e cinco, cinqüenta quilômetros. Como aquilo ali não
interessa financeiramente, ficou muito desatendido. Outra área como esta aqui
que a gente está, que é a área de Jacarepaguá, também em franco
desenvolvimento com pouco atendimento. E outra área da cidade que por ser
circunscrita, que é a Ilha do Governador, também é mal atendida por transporte.
E circunscrita com acesso afunilado, ali a barca é absolutamente fundamental.
Com esta desqualificação por um lado e com a ausência de qualificação, porque
uma coisa é você não ter, e outra é, que a que você tem seja ruim: mau
atendimento, ônibus lotado, motoristas e trocadores mal educados, dirigem mal.

Bom, soma-se a isto uma tendência deste final de século XX início do XXI, uma
tendência do cidadão, do usuário, de querer atenção mais personalizada, é um
pouco desta cultura que é globalizada como cultura mas é individualista como
sentimento. Então essa questão bastante individual, a questão do indivíduo
extremamente fortalecida, você começa a exigir que você tenha um atendimento
mais especifico. Ora, quem pode comprar carro compra carro, isso simboliza
status, etc. Então tem um boom de carros entulhando a nossa cidade. Quem não
tem isso, quem não tem transporte está procurando um atendimento melhor, com
mais agilidade, mais pessoal. Porque se você sai de uma comunidade e vai para
uma região mais central, mesmo que perto de onde você mora, ou para outra, e
se você conhece o motorista e estabelece com ele um vínculo, você se sente
melhor do que você ser um ser anônimo em um equipamento com maior
dimensão. Então essa coisa do individuo ganha espaço e ganha atendimento
pessoal... Eu não estou dizendo em um veículo tipo Kombi, não é nem tão
qualificado assim, mas é individualizado, porque é de menor porte. E outros por
questões mesmo de conforto, conforto e rapidez, que é o caso das Vans. Têm
conforto, são veículos com razoável conforto, com ar-condicionado, mais rápidos
porque não seguiam regra nenhuma, a regra que está ali dentro, não é uma regra
estabelecida externa, é uma regra de dentro para fora não é uma regra de fora
para dentro, portanto cada vez mais fortalecidos os interesses pessoais em
detrimento dos interesses mais coletivos, sem sombra de dúvidas. Eu acho que é
por isto que é um fenômeno do inicio dos anos 90, porque eu acho que é uma
questão da nossa cultura, que não é nossa porque tem no Brasil em outras partes
do mundo...

Rapidez, flexibilidade, personalizado, tudo que favorece o indivíduo. Sem você ter
uma política pública para o setor, definida claramente, com prioridades,
investimento e etc, isto ganhou extrema força e passou a ser alvo na verdade,
mais para o final dos anos 90 aqui na Cidade do Rio de Janeiro, de uma
campanha contra, oriunda dos segmentos que têm a perder com isto que é o
segmento dos ônibus. Táxi no início, mas depois não, porque não é dali que eles
estão tirando passageiros. O táxi está com problemas porque houve um
crescimento desordenado, então tem uma oferta que não corresponde à demanda,
mas é por outras questões, inclusive políticas. Mas na verdade o alternativo não
pega passageiro do ponto de táxi, pega passageiro volumosamente do ponto de
ônibus. Porque eu não ando de transporte alternativo mas eu ando muito de táxi
e não vou me deslocar para ele. Quem está se deslocando é o do ônibus, este que
se desloca. É claro que há o resquício, mas não é o volumoso, o volumoso é o que
está saindo do ônibus. Então o empresariado do ônibus começou a se mover com
muita pressão política sobre o setor público no sentido não de incorporar mas de
excluir. E como toda movimentação contra os interesses individuais volumosos
perde. Porque o povo, essa massa que se transporta por este tipo de veículo não
está interessada se o ônibus está se ferrando, aliás, não está nem preocupada por
uma análise de que para a cidade quanto mais o transporte de massa funcionar
melhor, o interesse é pessoal. Não há uma visão (mais ampla), não é da nossa
cultura mesmo, no caso carioca ou brasileiro.

Então, essa força política e financeira do segmento ônibus sobre o poder público,
gerou um processo de repressão que nada mais fez do que fazer crescer mais
ainda. Multiplicou-se porque o povo não estava no jogo, é sempre bom quando a
gente acha que vai ganhar um jogo combinar com o adversário. No caso a
população resolveu não dar respaldo a isto e continuou a se locomover neste tipo
de transporte. Eu acho que esta é a origem, a gente não pode dizer que foi só
porque o empresário atendeu mal. Não, é também uma conseqüência de final de
século, origem de outro individualista, porque se não a análise fica pobre. É claro
que o atendimento era ruim, é claro que o poder público não investiu no
transporte de massa, tudo isso, mas eu acho que é um somatório, eu acho que é
mais complexo. Não adianta hoje, por exemplo, nós termos algumas ações no
sentido da integração na direção do trem, na direção do metrô e na direção da
barca, mas é extremamente difícil, porque não é da nossa cultura, porque nunca
houve esse investimento nesta direção, então, as pessoas não querem ficar
trocando de veículo, elas querem sentar em um e chegar ao seu destino.

Então é da nossa cultura. Se você tem uma tradição: “olha, o sistema ferroviário
é forte, continuou... aí entrou o metrô, forte” (...) que tem que ser rápido! Esse
processo de integração ele não acontecerá. O sistema alternativo funcionando, o
sistema ônibus funcionando, o sistema trem funcionando muito bem, o sistema
barca funcionando muito bem, o metrô funcionando muito bem, tudo isto
combinado e qualificado - e qualificado inclusive em termos de tarifa, que será
um grande estímulo, não só conforto e rapidez, mas também uma tarifa
compatível - se conseguirá no médio prazo fazer isto, mas no curto prazo não se
faz.
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Conjuntura política em 2003: a Inflexão

Passados um ano e meio da realização das entrevistas, o “período de graça” do


transporte informal parece ter chegado ao fim. Durante os três anos que
transcorreram desde o momento em que foi tomada a decisão de regulamentar e
do encerramento do processo, a Metrópole do Rio de Janeiro, se viu, em diversas
oportunidades, repleta de vans e kombis, suas linhas e seu problemas se tornaram
de domínio púbico. Mas, a partir de maio de 2003, aquele ciclo pode ser
considerado encerrado. No município concluiu a segunda prorrogação das
autorizações enquanto no Estado encerrou a concessão de linhas com a adoção da
identificação de linhas por cores diferentes de acordo à área do Estado de
operação. O resultado, visível, é, como esperado, a diminuição da frota e um
ordenamento, aparente, do sistema operante nas grandes visas de circulação
metropolitana.

O período citado transcorreu sem que se registrassem os conflitos e


manifestações, que nos primeiros anos marcaram a evolução do transporte
informa, a não ser em ocasiões específicas como quando terminou o prazo de
circulação das Towners, em fevereiro de 2003, em que houve carretas em direção
à prefeitura do Rio para negociar a prorrogação do prazo. No mesmo lapso de
tempo, linhas intermunicipais que, dada a distância de operação superior a 75km
não puderam ser legalizadas, voltaram à ilegalidade, sem, contudo, deixarem de
operar0.

A calma aparente desapareceu, a partir de junho de 2003. Sucessivas campanhas


conjuntas do DETRO, a Polícia Rodoviária Federal, a PM, o SMTU e várias
Secretarias de Transportes de diversos municípios do Estado retomaram a
fiscalização e repressão sistemática. Ao mesmo tempo, a conjuntura política em
relação aos transportes coletivos urbanos parece ter mudado drasticamente: o
transporte informal, não desperta mais a mesma solidariedade entre os usuários, o
transporte por ônibus melhorou sensivelmente, pelo menos nas áreas centrais da
região metropolitana, enquanto o Sindicato das empresas de ônibus da cidade do
Rio de Janeiro (RIOÔNIBUS), depois de vários anos de propaganda, constante,

0 Como é ocaso das vans e carros particulares que operam as linhas Rio –Campos e Rio – Macaé.
nos jornais televisões e rádios aponta, agora, seus esforços para eliminar a
gratuidade do sistema inetermuncipal de transportes0.

Nesse novo contexto político, em que a questão da circulação urbana não se


apresenta mais como uma questão crucial e a repressão ao transporte informal não
alcança a ressonância que teve em tempos passados os conflitos radicalizados não
no centro mas na periferia.

O primeiro conflito que obteve destaque na imprensa, ocorreu em Angra dos Reis,
quando operadores de transporte informal tomaram a prefeitura em protesto contra
a proibição do transporte votada pela câmara dos vereadores, depois de ter
apoiado,em campanha, o atual prefeito que prometera a regulamentação do
transporte em troca. Na mesma semana, e por dois dias consecutivos operadores
do transporte intermunicipal da região metropolitana realizaram passeatas frente
ao Palácio Guanabara para cobrar o fim da repressão à Governadora fazendo
idêntica reivindicação que os operadores de Angra, sob a consigna: “sem
legalização: sem voto”.

Estes acontecimentos não são carentes de significado, servem para reforçar a tese
recentemente defendida sobre a relevância da dimensão política presente na
definição do transporte legítimo e da técnica adequada de circulação e operação
do serviço. Com isto é necessário sondar a importância da política urbana na sua
conformação levando em conta sua coerência histórica, mesmo sem planejamento.
Lembro que isto se ratifica empiricamente, a hipótese já provada teoricamente: o
urbano não é determinado diretamente pelas necessidades do capital. E gostaria de
agregar: suas características são produzidas e reproduzidas politicamente.

0 O Globo de 8 de julho de 2003 noticia um protesto dos empresários de ônibus do município de Araruama
contra o crescimento do transporte informal.
Kombis Durante as Greves de Ônibus de 1990

Fonte: O Dia, 12/07/1990


Lotações na Rocinha - 1977
Da Rocinha ao Leblon no lotação Rocinha, apenas. transitando,
nesses lotações tosos em: muito bom estado
dos pingentes: como meu bem pode ver... Mas ainda cabem
Norma Couri uns 2 mil facilzinho, facilzinho. Estofo
A cigarra tocou três vezes e o octogésimo quinto passageiro rasgado, só um pouquinho. só um pouquinho,
ganhou seu lugar de pingente no velho lotação de 30 lugares. ninguém repara nisso não. A cigarra
Oitenta do lado de dentro, cinco pendurados nas janelas e (campainha de corda) sempre funcionando, é o
porta, o lotação 2 962 desceu mais um pouco a Rocinha rumo que importa. São poucas viagens para cada
ao Leblon, seu Fernando cuidando bem das curvas que motorista, um total de 400 passageiros por dia
bordejavam o precipício. Infelizmente, não podia controlar os em cada carro, apenas 30, 35, 40 no máximo
raspões nas costas dos excedentes. de cada vez. Do lado de tora?
-Uma lotação de 45 passageiros não da para pagar óleo e Viaja não, lotações nossos viajam de porta
gasolina, tem que ter "equilíbrio" de gasto e gente. Motorista a fechada, e a féria do dia vai certinha prós
partir de 51 em Portugal e 57 no Brasil, sei disso - desde o donos (seu Sobral é dono de três e os outros
tempo em que o Lacerda eliminou os lotações - diz seu quatro pertencem a donos diferentes). Tirante
Fernando. o óleo diesel para abastecer, dá liquido Cr$
Velhos estofamentos rasgados, -. estopa aparente, chão 150,00. As vezes só dá papel, nota de carro,
remendado, - escadas frouxas. os sete lotações da linha 548 pneu..Palavras do despachante Nildo, tomador
("têm 11 anos", diz seu Fernando) fazem suas viagens diárias de conta de todos os sete , lotações "em ótimo
das 5h15m até às 10h da noite, com espaço de 15 minutos estado" (dois estão enguiçados), que ou não
entre uma e outra. vê, ou finge que não vê, ou acha que só ele vê.
Dobre-se tudo, abram-se portas e acrescentem-
- Ninguém queria este pedaço de linha, Então os
se uns pingentes para se ter a medida exata do
únicos transportes coletivos que sobraram foram estes funcionamento da linha Rocinha-Leblon.
-dizem os motoristas, Seu Jorge, motorista, diz que com uns "70
Os passageiros estão de sandália de borracha e camisetas com passageiros ainda dá para rodar". Seu Nildo
inscrições em Inglês (Free spirit, I'm sorry), de chapéu de prossegue I contando suas fantasias e verdades
palha e cigarro enrolado em casa, fazendo ponto na Rocinha da vida dura de quem trabalha ou depende do
junto com os lotações no Serra Branca Bar, Rua Dias, às trabalho da linha de 548. - Pique é às 6h15m
6h15m da manhã, da manhã; e de noite, à" cinco, sete e 10
- Hora do pique -diz o trocador Jose (camisa com inscrição horas, sei lã. Toda hora é hora, passageiros
Staniey Show Cycies accessories& Motor Carriages, Nove. também faz bico antes de tomar lotação de
17, Royal Agricultural Hall), notas de Cr$ 1,00, preço da volta, Aqui na Rocinha tem muita gente, olha
viagem, enroladas entre os dedos no velho estilo dos só: um barraco em cima do outro fazendo
desaparecido bondes, Agora devem ter uns 80, 90 passageiros. caracol, fora os que morreu naquela enchente
Cada carro transporta umas 500 pessoas por dia, no feriado de São Sebastião, né? Conheço tudo
José ganha Cr$ 50.00 por dia e seus passageiros vão entrando por aqui, graças a Deus e sei que nenhum
e saindo sem i controle, muitas vezes pelas janelas pesadas, motorista tem carteira assinada. nem eu.
emperradas e: constantemente abertas. Homem que é homem tem que ter carteira
Onze bancos duplos, um grande ao fundo para cinco pessoas, assinada.
outro de dois lugares ao lado do motorista, o lotação vai
superlotando sua capacidade em cada parada. Tem que ter respeito. Policial entra a qualquer
- Calculo, nenem. uns 3 mil habitantes da hora no lotação e bate às pampas por
vadiagem, ou por coisa qualquer. Há multa
confusão nos lotações, volta e meia há brigas.
- Patrulhas por toda a estrada da Gávea. posto
policial logo ali e a 15a. DP lá embaixo. As
pessoas se ajeitando leve, leve, fácil, fácil,
nesses sete lotações que não são feito a linha
545 da Rocinha, onde carros são acrescentados
sempre que se precisa.
- Mais ainda cabe gente. seu Nildo?
- Ah! cabe, Pode vir que ainda cabe gente.
Pomoção do transporte Informal - 1993
A Trajetória de um Clandestino quadrados na Zona Norte de São Paulo, comprado
em 1991 com a indenização da CMTC. Para isso
São quase quatro horas da madrugada. Um aplica tudo o que ganha no fundão. “Na verdade,
despertador acorda os moradores de uma casa quem cuida disso é a minha mulher. Todos os dias
simples no bairro de Morro Grande, periferia de São entrego a feira para ela”, salienta.
Paulo. Adalberto pereira Barbosa, um paulista de 33 Adalberto resolveu tornar-se um clandestino ao
anos, levanta apressado. Antes de tomar café vai até perceber que não conseguiria um novo emprego
a rua e liga seu ônibus para uma jornada que só facilmente. Hoje já domina o assunto. Sabre, por
acabará ás 21 horas. Desde que se tornou um dos 3 exemplo, quais linhas são as mais visadas pela
mil ônibus clandestinos que circulam pela capital fiscalização. Regularmente a Prefeitura promove
paulista, ao lado dos 10 mil da frota oficial, há 12 blitz surpresa, já que a atividade é apenas tolerada, e
meses, essa é a rotina diária desse ex-motorista da apreende alguns clandestinos que costumam retornar
CMTC, empresa onde trabalhou durante oito anos. às ruas em dois ou três dias. Ele já teve o seu veículo
Casado, pai de dois filhos, Barbosa tem de começar apreendido uma vez. Atualmente para cada dia de
cedo para fazer as 17 viagens e transportar os 600 apreensão, o dono do veículo paga uma taxa de Cr$
passageiros diários que lhe garantirão uma 600 mil à Prefeitura. Adalberto também sabe quais
rentabilidade de Cr$ 170 milhões, no final do mês. são as melhores linhas. “Boa linha para a gente é
Com essa quantia cobre a s despesas do combustível, aquela que é curta, que gasta pouco combustível e
o salário do cobrador e a limpeza do ônibus que onde faltam ônibus”, ensina. A que ele opera liga a
totalizam Cr$ 70 milhões. Paga o aluguel da casa de estação Barra Funda do metrô ao Jardim Rincão, no
três cômodos e ainda tem uma folga de caixa para extremo norte de São Paulo e é longa, mas o grande
eventuais problemas mecânicos. Além disso, tem a número de passageiros compensa. Os outros 12
prestação do ônibus Mercedes-Benz modelo O-363, ônibus clandestinos e 15 regulares que lá circulam
ano 78 financiado numa revenda de usados por Cr$ são, na sua opinião, insuficientes. Apesar dos riscos
200 milhões. que corre, Adalberto está otimista em relação ao
Esse não é o primeiro clandestino que Barbosa futuro. Além da casa própria, quer ter outros ônibus
possui. No ano passado, teve um 82, mas enfrentou e, quem sabe, se a prefeitura legalizar os
problemas com o s´cio. Apesar desse começo clandestinos, fazer parte de uma cooperativa, como
tumultuado como empreendedor, ele não quer voltar uma pioneira criada na Zona Leste paulisata.
a ser empregado. “Como empregado não dava pra
sonhar, fazer planos mais ambiciosos”, diz. Seu
grande sonho é erguer uma casa no terreno de 180 Lázaro Evair de Souza
metros

Pequenas Empresas Grande Negócios. Ano V, agosto 1994, pp. 47 -48

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