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FONOLOGIA

ARTIGOS
A clínica da gagueira
e o livro infantil: considerações
*
a partir de um caso

Polyana S. de Oliveira**
Silvia Friedman***

Resumo

O objetivo deste estudo é descrever e discutir a utilização do livro infantil como instrumento terapêutico
na clínica fonoaudiológica da gagueira com crianças. Para isso apoiamo-nos numa concepção de
gagueira coerente com uma abordagem clínico-terapêutica centrada no sujeito. Com base na concepção
de gagueira e de clínica, apresentamos um caso clínico para mostrar como o livro infantil foi utilizado.
Constatamos que o uso da história do livro como metáfora da história de fala da criança, ou seja, o
deslocamento do significado contido na história do livro para as vivências de fala da criança permitiu
ressignificar o gaguejar como fala não patológica, constituindo-se em sentido singular para o sujeito da
pesquisa. As ressignificações reveladas no processo terapêutico mostraram a assertividade do livro infantil
como uma estratégia de linguagem para a clínica da gagueira.

Palavras-chave: clínica fonoaudiológica; gagueira; linguagem; subjetividade; criança.

Abstract

The purpose of this study is to describe and discuss the use of story telling books for children as a
therapeutic instrument in the fonoaudiological clinic with children who stutter. To do so we supported
our research with a concept of stuttering that is coherent with a clinic therapeutic approach centered in
the person. Based on this concept of stuttering and of clinical experience, we are presenting a case that
expresses how a story-telling book for children can be used. Our findings showed that the metaphor of
the story being told blended into the child’s story allowed the arousal of a new and single meaning for the
child as a non-pathological speech. The transformations reveled during the therapeutic process showed
the appropriateness of using telling books for children as a language strategy for stuttering therapy.

Key-words: Speech-language pathology clinic; stuttering, language, subjetivity, child.

*
Esse artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado (PUC-SP/2004) da primeira autora, sob orientação da segunda.
**
Fonoaudióloga clínica e educacional. Docente do curso de Fonoaudiologia Unilus/Santos-SP. Mestre em Fonoaudiologia pela
PUC-SP. Especialista em Linguagem – CFFa 761/99. *** Fonoaudióloga clínica. Docente do curso de Fonoaudiologia da
PUC-SP. Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Linguagem – CFFa 1993/02.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(2): 223-233, agosto, 2006 223


Polyana S. de Oliveira, Silvia Friedman
ARTIGOS

Resumen

El propósito de este estudio es describir y discutir la utilización del libro infantil como instrumento
terapéutico en la clínica fonoaudiológica de la tartamudez con niños. Para eso nos apoyamos en una
concepción de tartamudez coherente con un abordaje clínico-terapéutico centrado en el sujeto. Con
base en la concepción de tartamudez y de clínica, presentamos un caso clínico para mostrar como el
libro infantil puede ser utilizado. Se ha constatado que al usar la historia del libro como metáfora de las
vivencias de habla del niño, fue posible resignificar el tartamudear como siendo habla no patológica, lo
que se constituyó en un sentido sensilho para el sujeto de la investigación. Las resignificaciones reveladas
en el proceso terapéutico mostraron la asertividad del libro infantil como una estrategia de lenguaje
para la clínica de la tartamudez.

Palabras clave: clínica fonoaudiológica; tartamudez; lenguaje; subjetividad; niño.

Introdução ender a gênese da gagueira. Em linhas gerais, pro-


põe que uma ideologia de bem falar perpassa o
Ao analisar a literatura sobre a clínica da ga- imaginário das pessoas no cotidiano. Essa ideo-
gueira na Fonoaudiologia, podemos considerar que logia pressupõe que fluência é absoluta e mantém
ela se configura em pelo menos duas vertentes di- uma visão idealizada de falante. Esse tipo de vi-
ferentes. Uma, que chamaremos de abordagem cen- são cria a possibilidade de estigmatizar padrões
trada no sintoma, está comprometida com a mate- de fala, especialmente na infância, quando a pro-
rialidade deste e o entende como uma desor- dução de lapsos, repetições e hesitações no dis-
dem do processamento motor da fala (Meira, 2002; curso da criança são interpretados como gaguei-
Gargantini, 2001a; 2001b; Pereira et al. 2001; 2003; ra. Esse tipo de interpretação, por ser estigmati-
Bohnen, 2001; 2002; Jakubovicz, 2002; Keske- zante, pode ter como efeito a constituição de uma
Soares e Bagetti, 2002; Sassi e Andrade, 2004; imagem de mau falante pela criança. Constituída
Andrade et al. 2004; Andrade e Martins, 2005). essa imagem, o falante tem o desejo de controlar
Nela, relaciona-se a gagueira uma dificuldade mo- a fluência do discurso, a fim de impedir o apare-
tora na interligação dos sons e um aumento no tem- cimento de segmentos gaguejados e, desse modo,
po de execução desses sons, sílabas, palavras e fra- escapar do estigma. O fluir na fala, entretanto,
ses. Entende-se, assim, que a incapacidade na pro- acontece de modo espontâneo, ou seja, o falante
dução motora da fala e na temporalização preci- sabe falar, mas não sabe como faz para falar. Nes-
sam ser minimizadas/corrigidas. Recorta, desse sa condição, para controlá-lo, passa a prever o
modo, a gagueira do falante, isolando-a do contex- lugar da gagueira no discurso. A previsão de tre-
to discursivo, intersubjetivo e cultural ao qual tan- chos, palavras ou sons gaguejados, somada à ten-
to o falante quanto o seu dizer estão relacionados. tativa de impedi-los, gera gestos articulatórios ten-
Nessa abordagem, a fonoarticulação é o ponto de sos (muitas vezes bizarros), justamente porque a
partida e de chegada do clínico/terapeuta. intenção do falante é impedir que uma suposta
A outra vertente, que chamaremos de abor- gagueira se manifeste. Mas, ao realizar esses ges-
dagem centrada no sujeito, volta-se para o sinto- tos, por serem eles tensos, surge gagueira e pare-
ma-gagueira como linguagem e entende que há ce ao falante que realmente sabia em que lugar do
um sujeito que fala para um outro, que é seu in- discurso ela estaria. Isso sustenta sua visão estig-
térprete, ambos subjetivamente enlaçados pela lin- matizada de falante e mantém todo o processo.
guagem e seu funcionamento discursivo. Essa Assim, a interpretação que outra pessoa faz do dis-
abordagem se mantém no contexto do sujeito/fa- curso da criança como gaguejante pode ter como
lante e seu modo e tempo de dizer/ser no discur- efeito a inauguração de um modo de funciona-
so. Dentro dessa vertente, apoiamo-nos na abor- mento discursivo marcado por gestos articulató-
dagem de Friedman (1986, 1994, 2004) que des- rios tensos, se a subjetividade do falante estiver
taca em seu trabalho o papel da ideologia do bem submetida a uma imagem estigmatizada de
falar e da estigmatização do falante para compre- falante.

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A clínica da gagueira e o livro infantil: considerações a partir de um caso

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A partir disso, podemos compreender que as Na vertente centrada no sujeito, que desenvol-
duas vertentes de clínica mostram diferenças subs- veremos aqui de modo mais aprofundado porque é
tanciais quanto à forma de conceber o sujeito, a com ela que se alinha o presente artigo, propõe-se
linguagem e, em decorrência, os problemas de lin- uma estrutura de clínica que mantém a necessária
guagem. homogeneidade e a covariância entre os quatro ele-
Ao analisar a estrutura da clínica a partir de mentos para sustentar uma intervenção clínico-
Dunker (2000), vemos que ela compreende quatro terapêutica coesa e coerente.
elementos: a semiologia, a etiologia, a diagnóstica Com base nessa vertente, quanto à semiolo-
e a terapêutica. Esses elementos, conforme explica gia, entendemos que se trata de um sintoma de lin-
o autor, devem manter entre si relações de homo- guagem que se dá a ver no corpo/fonoarticulação,
geneidade e covariância para que a estrutura seja mas cujo funcionamento está submetido à lingua-
coerente. gem que faz movimento na relação do sujeito com
Na vertente centrada no sintoma, a estrutura o outro, relação essa que tem como efeito tornar
da clínica se apresenta a partir do seguinte quadro: gaguejada a forma como a fala se apresenta. Res-
quanto à semiologia, a gagueira é listada como re- saltamos que entender a gagueira como linguagem
petições, prolongamentos e bloqueios considera- não é desconsiderar sua face motora, mas entender
dos sinais lingüísticos de uma fala com desordem que tal aspecto não pode ser concebido de forma
motora, indicando um déficit/distúrbio do funcio- isolada dos processos de subjetivação do corpo (os
namento orgânico. Quanto à etiologia, defende-se quais, no presente artigo, se referem à constituição
que fatores genéticos, neurofisiológicos e ambien- de uma imagem de si como mau falante) que vão
tais estão na origem da gagueira, dando-lhe ori- encontrar na cultura e nas relações intersubjetivas
gem multifatorial. Quanto à diagnóstica, como essa sua marca fundamental. É dessa perspectiva que o
vertente depende, em grande parte, da tecnologia sintoma passa a ganhar status de linguagem e não
da medicina para poder determinar a causa do dis- de doença.
túrbio, o diagnóstico volta-se para a descrição e a Para compreender tal perspectiva,
classificação da queixa, por meio de testes e exa- (...) é preciso supor que a linguagem é fundante do
mes de linguagem que determinarão a severidade sujeito, que ela o determina como tal. Com isso,
da gagueira, o comprometimento do processamen- não se acredita em dois tempos para o homem, acre-
to auditivo central, das habilidades psicolingüísti- dita-se que a linguagem é um sempre já-aí, nada
cas, etc. A terapêutica visa à supressão dos com- preexiste a ela. (Salfatis e Palladino, 2001, p. 32)
portamentos constituintes e acessórios à gagueira,
Dessa perspectiva e para aprofundar a compreen-
tentando aproximar a fala do padrão considerado
são do sintoma-gagueira como linguagem, segui-
normal. Nessa vertente, a semiologia, a etiologia e
mos com Arantes (2003), que afirma:
a diagnóstica se alinham em torno de um corpo de-
ficitário, restando para a terapêutica apenas a mo- (...) se o sintoma é na fala, certamente o falante, sua
delagem do déficit de fala, e não sua cura, já que condição-sujeito, está implicado. Daí que a clínica
há uma impossibilidade de manipulação dos fato- de linguagem só se justifica a partir da solidarieda-
de entre processo de subjetivação e processo de es-
res genéticos e neuronais que, segundo essa ver-
truturação da linguagem. (P. 62)
tente, sustentaria a fala com gagueira. Vemos, as-
sim, falta de homogeneidade e covariância entre Nesse sentido, encontramos nos casos de gagueira
os elementos desse modelo clínico fonoaudiológi- um processo de subjetivação estigmatizador, que
co, porque, enquanto a semiologia e a etiologia se leva à estruturação de uma fala gaguejada.
apóiam na idéia de precariedade do funcionamen- Ao entendermos a gagueira como um sintoma
to neuronal/genético, a diagnóstica não tem como e este como um acontecimento de linguagem, te-
evidenciar tal disfunção por meio dos testes/exa- mos que assumir duas condições para o sintoma-
mes de fala/linguagem. Por sua vez, restará à tera- gagueira: sua opacidade e sua dispersão. A opaci-
pêutica garantir constantemente o monitoramento dade da linguagem se refere à impossibilidade de
da fala e o controle dos aspectos ambientais, já que apreendermos de modo imediato e linear as signi-
prescinde de uma intervenção direta (cirúrgica, me- ficações. Assim, também o sintoma gagueira não
dicamentosa) sobre o déficit corporal (Oliveira e se apresenta ao clínico de modo linear e transpa-
Friedman, 2005; Oliveira, 2004). rente, pois, ao revelar certos modos de ser do sujeito

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e de sua situação de fala, encobre as condições sub- É desse lugar que a diagnóstica procede, le-
jetivas que a sustentam. O sintoma de linguagem vando em consideração o sujeito da/na linguagem
requer do terapeuta uma abertura para a polisse- distante de uma tentativa de homogeneizá-lo em
mia discursiva, pois os sentidos se darão na singu- tipologias, escalas de severidade ou padronizações
laridade do caso e na possibilidade de o terapeuta de habilidades motoras, comportamentais e lingüís-
realizar interpretações sobre o dizer do paciente. A ticas. O sintoma-gagueira é avaliado pela/na dialo-
dispersão se refere à diversidade de processos – o gia constituída na interação terapeuta-paciente, não
ideológico, o cultural, o histórico, o psíquico – que sendo considerado como subproduto de um mau
sobredeterminam as significações, ou seja, refere- funcionamento orgânico. O diagnóstico é uma lei-
se a uma série de sentidos e significados que se tura das condições de produção discursiva na qual
entretecem na constituição do sintoma. Desse o sujeito se encontra, considerando sua história,
modo, essa pluralidade de fatores heterogêneos atravessada pelas condições socioculturais, pelas
compõe o sintoma, tornando-o complexo e dinâ- relações familiares e pela inscrição do sintoma na
mico, passível de ser captado a partir do contexto linguagem e no corpo. Portanto, leva em conta o
no qua1 se apresenta. Assim também o sintoma sujeito e o seu dizer, o relato que faz de si e de sua
gagueira implica uma sobredeterminação simbóli- fala, suas associações, todas revelando para o tera-
ca, na medida em que uma rede de significações e peuta por onde caminha o sintoma.
sentidos vai a ele se prendendo. Por isso, a trama A terapêutica (therapeutiké, substantivo gre-
narrativa que se instaura a partir dessa rede vai li- go: “cuidar, tratar, curar”) é permeada por dois
gando a materialidade do sintoma (hesitações, blo- movimentos, a escuta da trama narrativa construí-
queios, repetições, etc.) aos aspectos subjetivos, da pelo falante e a interpretação, que é o ato de
discursivos, culturais, sociais de cada sujeito. confrontar significados para que sentidos possam
Essa sobredeterminação evidencia a impossi- emergir. A emergência de novos sentidos pode fa-
bilidade de se estipular uma direcionalidade para o zer circular o que estava paralisado, enquistado;
sintoma, como se a gagueira fosse fruto linear de sendo assim, a interpretação é ato submetido aos
acontecimentos internos (falhas no processamento efeitos da fala do paciente no terapeuta, que põe
motor, por exemplo), ao quais se somam conse- um discurso em funcionamento, gerando efeitos te-
qüências externas ao sujeito (complicações emocio- rapêuticos no paciente.
nais e sociais, por exemplo). Em outras palavras, Nessa direção, a terapêutica estrutura-se: 1. Pela
um acontecimento complexo como um sintoma de assimetria assumida pelo terapeuta diante do pa-
linguagem não poderia ter uma origem determina- ciente e da família (nos casos de gagueira infantil), ou
da apenas pelo organismo ou pelo psíquico, ou pela seja, o terapeuta não tem como objetivo correspon-
sociedade e cultura. Isso implicaria o esvaziamen- der ao apelo do paciente para que se adapte a sua
to da complexidade. Assim, quanto à etiologia, não fala com gagueira ao modelo idealizado sociocultu-
se procura uma delimitação topográfica para a ga- ralmente como normal. O terapeuta não correspon-
gueira e não se considera a justaposição linear de de à expectativa ilusória do paciente de encontrar
fatores ou causa multidimensional (Andrade, 2004) nele o oráculo que o libertará do mal que acomete a
na sua constituição. Quando o sinal gagueira (se- sua fala; 2. Pela confrontação de significados que
miologia) é lido desde sua face simbólica (lingua- mobiliza o terapeuta na dialogia para os aspectos
gem), sua origem é interpretada a partir da trama que revestem e implicam o sintoma com a estigma-
narrativa que se inaugura com a queixa do pacien- tização, com a ideologia, com a cristalização de uma
te e aos poucos se revela o modo como os aspectos posição de sujeito cuja fala manca, falta, vacila.
sociais, psicológicos e orgânicos estão ali entrete- 3. Pela desconstrução do sintoma-gagueira no cor-
cidos. Por intermédio da trama narrativa, portanto, po/fala, ou seja, por meio da abordagem da materia-
o sintoma-gagueira mostra seu significado, ou seja, lidade do sintoma, lidando com o corpo/fonoarti-
aquilo que ele contém de fechado e cristalizado na culação de forma sensível para que a fala se mani-
visão dos que dele falam e também mostra seu sen- feste em sua fluência/disfluência/gagueira e, assim,
tido, naquilo que ele tem de aberto, imprevisível, em qualquer uma dessas posições/movimentos pos-
inédito,1 e que determinará a singularidade do caso. samos garantir o sentido de autoria na/da fala do

1 Esse modo de definir significado e sentido é tomado da obra Todos os nomes, de José Saramago (1997).

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sujeito, sua autenticidade, distante do modelar/con- a ideologia do bem falar e o processo de estigmati-
trolar a fala para se atingir um padrão de normalida- zação particularizam/assujeitam aqueles cuja fala
de. Portanto, na terapêutica, a solução para a gagueira se apresenta gaguejada.
na perspectiva da linguagem, não está, de antemão, Para aprofundar a compreensão do manejo te-
no terapeuta, mas na possibilidade de o paciente pôr rapêutico em relação ao sintoma-gagueira nessa
em palavras a sua dor (gagueira sofrimento), de en- abordagem centrada no sujeito, retomamos a dife-
carnar a língua/linguagem em movimento no seu rença entre significado – o que é literal, fechado,
corpo e de entender que a gagueira contém em si um explícito – e sentido – o que permanece aberto, “in-
significado que o paralisa (a estigmatização, a ideo- capaz de ficar quieto” (Saramago, 1997), para arti-
logia do bem falar) e um sentido que lhe escapa, que culá-la à noção de subjetividade em Mezan (1997).
está ligado ao seu processo de subjetivação, sua his- O significado como face do signo lingüístico
tória, marca de singularidade. que corresponde a um conceito abrangente, que se
Assim, nesse modelo clínico, o sintoma é to- aplica de forma literal, homogênea e uniforme, está
mado como a “revelação de uma singularidade ins- ligado à dimensão particular da subjetividade, que
crita na linguagem” (Arantes, 1997, p. 27). A sin- uniformiza os sujeitos em torno do significado es-
gularidade é entendida, de acordo com Mezan tigmatizado da gagueira. O sentido sendo equívo-
(1997), como noção articulada a duas outras – par- co, heterogêneo, dúbio, está aberto a diferentes in-
ticularidade e universalidade –, sendo as três en- terpretações, submetido aos lapsos e, portanto, li-
tendidas como constituintes da subjetividade dos gado à dimensão singular da subjetividade. No tra-
indivíduos. balho clínico-terapêutico aqui proposto, essa dife-
O universal da subjetividade diz daquilo que renciação é fundamental para se compreender que
compartilhamos com todos os seres humanos: a o manejo do livro infantil2 se dá de forma a con-
linguagem, a necessidade de investir objetos psí- frontar os significados cristalizados sobre fala e
quicos, a capacidade de inventar, as necessidades gagueira, e abrir para novos sentidos, a fim de de-
básicas, o fato de sermos mortais, isto é, aquilo sestabilizar o que ficou estagnado na subjetividade
que é próprio da espécie. O singular da subjetivi- e dar lugar a novas experiências singulares, que
dade diz daquilo que é pessoal, único e intransfe- permitam ao falante sair da posição estigmatizada
rível, o que faz de cada pessoa uma e não outra. em que se encontra.
Refere-se à história de vida, às escolhas, às dis- Nesse modelo clínico, o discursivo impõe a
posições de cada um. Entre a dimensão universal noção de um sujeito pela e na linguagem, que en-
e a singular da subjetividade, está a dimensão do contra nela uma forma de posicionar-se frente ao
particular “o próprio a alguns, mas não a todos” outro – atando laços sociais – em uma tentativa de
(Mezan, ibid., p. 13). A dimensão do particular se completar-se e, assim, constituir sua subjetividade
refere ao que é determinado pela cultura, pelos e ser determinado por ela. Podemos então enten-
costumes, crenças e valores de uma dada socie- der o livro infantil como instrumento mediador de
dade ou grupo cultural. Assim, cada época e cada relações que não estão a serviço da higienização
cultura acabam por determinar “tipos” de subjeti- da fala do paciente, nem tem a intenção de conser-
vidade, que, por sua vez, são atravessados pela tar suas quebras da/na fala (Oliveira, 2004).
língua e pelos sentidos na medida em que estes,
conforme explica Mezan, fazem efeito e criam um Método
“molde” para as experiências de si, dando contor-
nos a determinados grupos. Neste estudo, o relato do caso, que compreen-
É nessa dimensão do particular que podemos de encontros com o paciente e com seus pais, tem
tomar a proposta de Friedman (1986, 1994, 2004) a perspectiva de trazer à tona o contexto em que se
para considerar que a ideologia do bem falar e o desenvolveu a proposta de intervenção por meio
decorrente processo de estigmatização da fala dis- do livro infantil. Como foi afirmado em Oliveira
fluente são moldes que estabelecem uma condição (ibid., p. 94), tal relato “não tem o intuito de vali-
de subjetivação comum aos falantes gagos, isto é, dar alguma teoria ou representar uma doença

2 Não é nossa intenção problematizar aqui outras possibilidades de utilização do livro infantil/histórias na clínica; para tanto, deve-
se consultar Oliveira (2004).

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Polyana S. de Oliveira, Silvia Friedman
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nomeada pela medicina de gagueira”, quer, antes jando muito. Na primeira entrevista familiar, os pais
de tudo, explicitar um modo de interação e circuns- contaram que seu rendimento escolar era ruim, com
crever um espaço terapêutico, não como muitas queixas da escola. Aos 5 anos, tinha uma
gagueira leve, quase imperceptível. Na época, os
(...) extensão da realidade, mas tomado como lugar pais e familiares não se preocuparam, pois acha-
de encontro entre terapeuta e paciente, geográfica e
vam que o problema se resolveria com o tempo.
simbolicamente constituído para ser continente e
potencializador da ação clínico-terapêutica. Aos 7 anos, a professora comentou que, ao ficar
nervoso, acontecia a gagueira. Quando a fala se
A partir da memória e de anotações da tera- apresentava gaguejada, a mãe pedia para que fi-
peuta feitas durante e após sessões com a criança e casse calmo, pedia para que não gaguejasse. O pai
sessões com os pais, apresenta-se um caso clínico, referiu não saber o que fazer e pedia para que fa-
selecionado dentre outros dois, que fazem parte do lasse devagar, que se acalmasse. Segundo o pai, a
estudo original da primeira autora (ibid.), pela cla- criança estava patinando nas palavras, comentan-
reza com que evidencia o trabalho com o sintoma- do que não sabia se o filho tinha gagueira de ver-
gagueira exposto até aqui. O percurso terapêutico dade, pois ela aparecia nos momentos de nervosis-
deu-se em dezoito meses, com sessões semanais mo. A mãe interveio, dizendo que a gagueira apa-
de trinta minutos e quatro encontros com os pais, recia muitas vezes, quando estava agitado, quan-
sem a presença do paciente. Nas entrevistas com do recebia um não dos pais, aí começava a gague-
os pais, a terapeuta abriu espaço para que eles fa- jar. Com voz de indignação, comentou que um
lassem sobre a criança, permitindo que elaboras- garoto, vizinho deles, chamou Fernando de ga-
sem simbolicamente o sintoma. Isso se evidencia guinho, enfatizando a palavra. A criança havia
pela montagem explicativa que estruturam em tor- feito dois meses de fonoterapia e quase um ano
no das condições de fala/gagueira do filho. de psicoterapia, mas os pais interromperam os tra-
O critério de análise de ambas as situações toma tamentos por acharem que não havia mudanças
como base a proposta de Mezan (1997) no que se na fala e nem no comportamento. Fernando ouvia
refere às dimensões particular e singular da subje- atentamente os pais. Em certo momento, comen-
tividade. A dimensão particular, que no nosso caso tou que teve que ler na classe e gaguejou, mas
diz respeito à ideologia do bem falar e à estigmati- continuou lendo. Comentou também que o garo-
zação do falante, dá contornos ao sintoma. A di- to vizinho sempre o chamava de gaguinho; que
mensão singular diz respeito aos sentidos que se gaguejava ao telefone e com os parentes e que “aí
dão na/pela história de fala dos sujeitos. Essas di- todo mundo fica mandando eu falar mais deva-
mensões, conforme propõe o autor, são assumidas gar”. Perguntado sobre o fato dos pais procura-
como implícitas à constituição de subjetividade. rem fonoterapia, disse achar bom, pois assim po-
Essa concepção de subjetividade permite mos- deria parar de gaguejar e acrescentou que tinha
trar as condições intersubjetivas e dialógicas em que vergonha de gaguejar na frente de outras crianças
o trabalho com o livro infantil se deu, por permitir e que xingava com um palavrão quem o chamas-
apreender as condições particulares que envolvem se de gago e ficasse zoando com ele.
o sintoma gagueira e os aspectos da confrontação de Desde os primeiros encontros, Fernando se
significados, instauradas por intermédio do livro. mostrava bastante falante, sua fala se apresentava
O estudo está de acordo com as normas éticas do acelerada e rupturas tensas o faziam repetir sílabas
Conep, conforme consta no protocolo nº 0131/2003, e às vezes hesitar, principalmente quando o assun-
tendo sido firmado o Termo de Consentimento to se referia à chácara dos pais e à cachorra que
Livre e Esclarecido entre as partes interessadas. acabara de ganhar. Sem ter nome definido para a
cachorra, propunha fazer listas de nomes e queria
Resultados saber qual seria a escolha da terapeuta. Continuava
a reclamar do vizinho que o chamava de gaguinho
Fernando,3 10 anos, filho único, foi trazido e não de Fernando. Cada vez que havia discussão
pelos pais para fonoterapia porque estava gague- na rua por causa do jogo de futebol, dizia que

3 Nome fictício.

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A clínica da gagueira e o livro infantil: considerações a partir de um caso

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gaguejava e que os meninos riam dele. Comentava no modo como descreviam a relação entre o filho
que os meninos falavam “vai, gaguinho, você nem e o avô. A mãe sempre se referia a ele como “o
sabe falar e quer saber de futebol”! avô de Fernando” e nunca como “meu pai”. Esse
O dizer do outro – “você nem sabe falar” – foi nó do/no discurso foi desatado, na medida em que
tomado como disparador do trabalho de sensibili- a terapeuta abriu espaço para que eles falassem
zação proprioceptiva da fala de Fernando, visando sobre o fato. Mãe e pai passaram a relatar fatos
ressignificar esse dizer por meio da vivência de sua que envolviam a doença do avô, a relação deste
efetiva competência para falar. Começamos a vi- com o neto e com o casal, a dificuldade em lidar
venciar no corpo o que era necessário para que a com a ausência imposta pela morte. Desse modo,
fala fosse produzida, os órgãos envolvidos, os sons a intervenção terapêutica com os pais se deu por
que surgiam a partir dos movimentos das cordas meio das interpretações – confrontação de signi-
vocais, lábio, mandíbula, língua. Também imitá- ficados – que permitiram destrinçar a queixa e,
vamos a fala de personagens de programas de tele- ao mesmo tempo, sinalizar para sentidos que no-
visão, falávamos devagar, depressa, com voz agu- ticiavam uma demanda.
da, voz grave, etc. Desse modo, fomos dando sen- Após os dois primeiros encontros com os pais
tido ao modo competente como a fala de Fernando (foram ao todo quatro, durante o período aqui rela-
acontecia, a sua possibilidade de fazer variações tado), Fernando comentou que, depois de terem
na fala, por meio de vivências corporais e fonéti- falado com a terapeuta, eles estavam diferentes.
co/fonológicas. Indagado sobre o que ele via de diferente, disse
Enquanto seguiam as sessões com a criança, “minha mãe não fica mais me enchendo o saco por
os encontros com os pais aconteciam em parale- causa da gagueira e o meu pai está mais tranqüi-
lo, dando volume, tonalidade e configuração ao lo, acho que ele nem lembra mais da gagueira, ele
sintoma. Durante esses encontros, foi possível per- só reclama da escola”.
ceber, no discurso dos pais, elementos que se repe- Com o passar das sessões, Fernando relatou
tiam no discurso de outras famílias com queixa situações de fala gaguejada nas quais reconhecia a
de gagueira e que fazem parte do que anterior- diferença entre falar com força e falar sem força
mente definimos como dimensão particular da nos gestos articulatórios. Dizia que quando ficava
subjetividade implicada na constituição do sinto- nervoso o som prendia e que quando passava o
ma. Esses elementos foram a preocupação com o nervoso o som soltava. Contou que na escola não
saneamento da fala gaguejada; com as situações se candidatava para ler por receio de gaguejar, e
sociais/escola; o questionamento sobre o porquê decidiu que não participaria do teatro (o que era
da gagueira; o não saber como lidar com a situa- obrigatório). Também começaram a surgir comen-
ção; o desejo de saber se há cura. Percebemos tam- tários sobre o avô materno, mostrando a forte rela-
bém, no discurso dos pais, questões singulares ção que havia entre eles, conforme já havia podido
ao caso, como, por exemplo, o relato de que o perceber no discurso dos pais. Dizia: “ele brincava
aparecimento da gagueira de Fernando se deu no o tempo todo comigo”; “meu avô me levava na
período da doença, internamento e morte do avô escola”; “o meu avô sabia como fazer isso...”;
materno. “nem parece que ele morreu”!
Ao longo desses encontros, os pais afirma- As sessões seguiam trazendo o trabalho com a
ram que a criança estava melhorando e que esta- propriocepção fonoarticulatória, quando havia in-
vam confiantes no tratamento. As incertezas quan- teresse por parte do paciente, e outras atividades
to à possibilidade de fala do filho, a preocupação escolhidas por ele. Quando Fernando pedia à tera-
com as chacotas dos amiguinhos, o medo de que peuta para sugerir uma brincadeira, ela lhe pergun-
a fala ficasse uma coisa “caricata” (segundo pala- tava se gostaria de ouvir uma história. Em uma dada
vras do pai), foram sendo dissipadas. No decorrer sessão, ele aceitou e disse que a terapeuta podia
dessas conversas, quando a preocupação com a escolher qualquer livro, já que ele mesmo não pre-
gagueira já não era mais o foco central, o que sur- cisaria ler, caso contrário, escolheria um bem fini-
giu foram as memórias sobre o avô. As dificulda- nho. Contou-se a historia do livro Pezinho-Espa-
des da família em lidar com essa perda apareciam lhado4 .

4 Pezinho-Espalhado. Ingrid e Dieter Schubert. Holanda/São Paulo, Ática, 1986.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(2): 223-233, agosto, 2006 229


Polyana S. de Oliveira, Silvia Friedman
ARTIGOS

O livro narra as aventuras de uma bruxinha que O livro traz um personagem-herói (ovelha) que
foge do bosque das bruxas por não agüentar as zom- vive o conflito de não corresponder ao que o outro
barias sobre o tamanho de seus pés e sua incapaci- (a cabra, o porco, as ovelhas) espera dele, o confli-
dade de realizar mágicas, como todas as outras bru- to de estar impedido de pertencer ao grupo por apre-
xas. O livro foi escolhido pelo tipo de conflito e sentar uma falha/marca vexatória. Como na histó-
pelo modo de sua resolução, o qual permitiu ao ria Pezinho-Espalhado, também aqui o persona-
personagem-herói atingir um patamar diferente de gem-herói acaba vivendo uma nova experiência de
existência nas relações com os outros personagens. si, que lhe permite questionar o lugar que lhe foi
Assim, a bruxinha descobre, por meio da amizade reservado pelos outros personagens.
travada com uma menina, outra maneira de enten- Fernando fazia comentários sobre os persona-
der e lidar com seu sofrimento. gens Porco e Cabra, dizendo que eles eram impli-
Fernando participou ativamente dessa primei- cantes, irritantes. Isso o fez lembrar dos meninos da
ra sessão com o livro. Entusiasmado, comentava rua. Inventou apelidos para eles, o porco foi asso-
sobre as imagens, dava opinião sobre o comporta- ciado com fulano, a cabra com sicrano. Ria muito
mento dos personagens. Disse que se a bruxinha ao imaginar um porco com a cara de tal amigo, de
fosse boa na magia poderia mandar um feitiço nas pensar a cabra com a cara de outro. Elegeu o perso-
outras bruxas para que elas parem de “encher o nagem Velho Carneiro como o personagem mais le-
saco”. Colocou-se no lugar da personagem Nina (a gal. Indagado sobre o motivo de tal escolha, disse:
menina que ficou amiga da bruxinha) e escolheu
um desejo para ser realizado “morar na chácara, (...) ele tentou ajudar a Ovelha, não é fácil ter que
não precisar estudar e brincar com a cachorra”. ser uma coisa que você não gosta de ser. Eu gostei
Na sessão seguinte, perguntou se a terapeuta dele porque ele fez a Ovelha se sentir melhor, ele
enganou ela só pra ela perceber que orelha não
poderia contar/ler novamente a história da bruxi-
branca é tudo normal. Ela queria tanto mudar a
nha. Assim, realizamos uma nova sessão com o li- cor da orelha, porque ela estava sendo xingada,
vro, na qual outros detalhes da história foram ex- sendo zoada.
plorados. Conversamos sobre os meninos da rua,
sobre ler em voz audível na escola. Fernando co- Sobre a passagem da história em que a ovelha
meçou a se referir ao significante – gagueira – como pede para somente ser chamada de orelha de estre-
a força que tem na fala. A gagueira passara a ser la, a interpretação de Fernando foi “a ovelha botou
encarada como uma condição de fala e não mais pra quebrar, ela acabou com aqueles dois [a ca-
como uma condenação da fala. Na sessão seguin- bra e o porco], eles ficaram com a cara no chão,
te, pediu para ver os livros que a terapeuta possuía. eles nem tinham resposta”.
Escolheu um dos livros da coleção Bruxa Onilda Na sessão seguinte à utilização do livro Ore-
e, nas sessões seguintes, passou a ler um em cada lha de Limão, Fernando pediu outro livro e per-
sessão terapêutica. guntou “e o livro da semana passada?” A terapeuta
As conversas sobre as histórias eram entremea- respondeu “o que é que tem ele?” Fernando dispa-
das com assuntos ligados à fala, aos pais e sua me- rou num fôlego só:
lhora na escola. Comentou “melhorei na escola, nem
sei por que, mas estou melhor de comportamento”. (...) eu achava que gagueira era doença, que não
As reclamações dos professores haviam diminuído tinha cura, eu gaguejava toda hora, estava muito
e, sempre que acontecia leitura de textos em voz au- gago, até para cantar eu gaguejava um pouquinho.
dível na classe, ele se candidatava para ler. E a minha mãe falou você precisa de uma fono pra
Numa das sessões seguintes, a terapeuta nova- tirar esse costume. Mudei da água para o vinho!
Comparado com antigamente estou muito melhor,
mente propôs uma história. Fernando aceitou e disse
antes ficava muito chateado, hoje eu estou melhor,
para lerem os dois: “um pouco você um pouco eu”. mas às vezes estou gaguejando e não fico triste e
A leitura foi iniciada por ele, que leu a primeira nem preocupado. Até meu pai gagueja, porque es-
página, a terapeuta a seguinte e assim por diante, tava nervoso com a agenda da escola. Não é doen-
alternando a leitura. Trabalhamos com o livro Ore- ça para ser curada, não precisa de um soro contra
lha de Limão5 . gagueira.

5 Orelha de Limão. Katja Reider e Ângela Von Rehl. Alemanha/São Paulo, Brinque-Book, 1999.

230 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(2): 223-233, agosto, 2006


A clínica da gagueira e o livro infantil: considerações a partir de um caso

ARTIGOS
Discussão de brincar na clínica. O discurso do paciente, apre-
sentado no recorte final do texto acima, serviu como
Concebendo a gagueira como um sintoma de exemplo da imprevisibilidade no espaço terapêuti-
linguagem, afastada da noção de doença/desvio da co. A terapeuta imaginava que, ao perguntar sobre
fonoarticulação, pudemos compor um perfil do o livro lido na sessão anterior, o caminho do diálo-
caso, por meio do discurso, a partir de entrevistas go seria falar sobre o livro, pedir o livro para relê-
iniciais com o paciente e sua família. A avaliação, lo, confirmar se o livro estaria à disposição ou ou-
realizada a partir dos diferentes textos produzidos tra coisa do gênero. Mas o discurso do paciente e a
na dialogia, revelou a posição de falante ocupada ênfase que ali sua subjetividade depositou assina-
pelo sujeito nas relações que estabelecia com o laram o quanto uma mudança no significado en-
outro – relações intersubjetivas – e a forma como quistado do sintoma levou a uma alteração da po-
esse outro interpretava o sintoma-gagueira. A ava- sição discursiva em que o sujeito era colocado. Esse
liação, ao levar em consideração o funcionamento movimento potencializado pelas histórias permi-
de linguagem do sujeito, não descartou uma leitu- tiu ao paciente se deslocar da marca estigmatizada
ra de como a fonoarticulação se apresentava no cor- que o significante – gagueira – comportava.
po/fala, o que não significou transformar a fala em As estratégias de cunho proprioceptivo aqui
amostra quantitativa de sílabas/palavras com vis- utilizadas direcionaram-se, como já dissemos, ao
tas à sua classificação em tipologia e freqüência de corpo/fonoarticulação, com vistas a gerar novas
rupturas. vivências em relação à atividade de falar. Essas
Nas intervenções junto à família, levou-se em vivências exploraram a capacidade fonoarticulató-
consideração que nos casos de gagueira infantil ria do paciente o que, por sua vez, permitiu que
quem procura o terapeuta são os pais. O sintoma, novos sentidos sobre a materialidade da fala fos-
então, foi lido e tratado da perspectiva do sujeito e sem gerados. A estratégia de utilização do livro in-
da perspectiva dos pais, visto que a relação inte- fantil, por sua vez, partiu da assunção de que é na/
subjetiva com eles funciona, para a criança, de for- pela dialogia que as transformações discursivas se
ma bastante significativa na sua constituição como dão. Isso levou o terapeuta a tomar a queixa – o
sujeito (Faria 1998/2001) e é do lugar que ela ocu- que está explicito no discurso – para constituir uma
pa no dizer do outro (no caso, os pais) que ela po- demanda, aquilo que é revelado em cada caso, o
derá assumir uma “posição subjetiva singular” que fica implícito no funcionamento discursivo do
(Arantes, 2003). sujeito. Os dois caminhos (corpo e discurso) fize-
Dessa forma, o trabalho com os pais não se ram parte do método clínico de modo inseparável:
enquadrou na clássica orientação aos familiares, estratégias voltadas para o corpo tratam o sujeito
porque o modelo clínico assumido não permite que ao produzirem novos sentidos, sobre a fala, assim
se tome a família como coadjuvante no processo também estratégias imbricadas com o discurso/sub-
de compreensão e lida terapêutica da gagueira. A jetividade produzem efeitos no corpo, sendo im-
família foi implicada no processo terapêutico à possível separar cartesianamente corpo e subjeti-
medida que lidamos com o sintoma no enredamento vidade.
de discursos/posições nos quais família e sujeito A transformação do quadro inicial com rela-
se encontravam submetidos, para desse modo pos- ção à gagueira – a revelação do que estava submer-
sibilitar o atendimento à criança. so/tácito na queixa; a mudança de posição discur-
Como todo sintoma é marca de singularidade, siva do sujeito, o corpo/fala livre das tensões, das
cada grupo familiar sempre trará seu próprio mo- marcas da gagueira que impunham ao sujeito uma
vimento em torno do sintoma, caracterizando, as- falta, a superação do sofrimento, o descongelamen-
sim, uma dada família e não outra, levando aos di- to do significado estigmatizado – permitiu que o
ferentes manejos terapêuticos, considerando-se o paciente (bem como sua família) entendesse/con-
movimento de escuta e de interpretação na inter- cebesse que não necessitava mais do processo te-
venção terapêutica. rapêutico; desse modo, configurou-se a alta neste
No manejo clínico com crianças, a dialogia é processo.
atravessada pelo lúdico, que pode fazer presença Vimos, no caso de Fernando, que sua história
de muitas maneiras. Entre essas, e no caso aqui re- de fala denotava uma trajetória de sofrimento com
latado, o livro apareceu como uma forma possível relação à gagueira. O discurso da criança e dos pais

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(2): 223-233, agosto, 2006 231


Polyana S. de Oliveira, Silvia Friedman
ARTIGOS

permitiu a configuração de uma demanda, revelan- A intervenção clínico-terapêutica aqui apresen-


do as possíveis implicações do grupo familiar com tada esteve circunscrita por uma abordagem em que
o sintoma da criança. Além disso, propiciaram a lida há lugar para o simbólico, para a língua/discurso,
com os aspectos ligados à queixa, como, por exem- na qual o uso do livro infantil se inseriu. A partir
plo: como lidar socialmente com a fala gaguejada, do relato de um caso clínico, pudemos mostrar
como entender os momentos de gagueira da crian- como a utilização do livro infantil pôde contribuir
ça, compreendidos como um envoltório do sinto- com uma reflexão sobre instrumentos terapêuticos
ma. Entendemos que, para Fernando, as histórias fonoaudiológicos, nas questões ligadas à fala/lin-
representaram uma ponte entre as situações de fala guagem.
que o oprimiam e as novas experiências, nas quais a O livro infantil foi aqui tomado como uma es-
fala re-significada era livre, fluente. O livro infantil tratégia terapêutica que singulariza a intervenção
permitiu dar continuidade e fazer fluir o trabalho de fonoaudiológica para além dos programas de in-
desconstrução da gagueira empreendido na vertente tervenção preparados de antemão, nos quais o fo-
de uma clínica centrada no sujeito, desestigmatizan- noaudiólogo poderia encontrar uma proposta pronta
do o sintoma; desalienando o significante como in- para usar. Mas, para que a estratégia do livro infan-
dício de doença/defeito; retirando o sujeito da posi- til não se transforme em regra/norma de aplicabili-
ção discursiva de falante patológico. Por meio do dade, é preciso que o terapeuta busque situar a ga-
livro infantil, o lúdico e a narração ganharam força gueira no contexto do acontecimento-linguagem e
como figuras da clínica. entenda que as concepções e os valores por ele as-
As histórias possibilitaram ao terapeuta e à sumidos determinarão escolhas teóricas e práticas.
criança a retomada dos contextos de fala, com e sem Desse modo, a prática clínica não é mera encena-
gagueira, funcionando para o sujeito como um cata- ção de uma teoria, e esta não é simples tradução do
lisador do processo de cura. A importância do livro que ocorre na prática. Há uma exigência dialética:
não está apenas em seu conteúdo, mas na possibili- a prática não prescinde de uma teoria e ambas es-
dade de ele se estabelecer como lugar de confronta- tão continuamente se interpelando.
ção de significados. Ressaltamos que o objetivo do
trabalho com o livro não é uma identificação meca- Referências
nicista – automática e previsível – da criança com a
história, mas a possibilidade de ela fazer ressonân- Andrade CRF, Martins VO. Avaliação da fluência da fala:
influência da extensão da amostra e dia de testagem. Rev Soc
cia com o que ali está posto. Funcionando como um
Bras Fonoaudiol 2005;10(2):91-6.
instrumento de linguagem, o livro infantil, na clíni- Andrade CRF, Sepulcre AS, Romano MVR, Juste F, Sassi FC.
ca da gagueira, pode promover o deslocamento para Percepção de pais de crianças gagas e fluentes sobre as
novas posições subjetivas, já que recursos afetivo- características de temperamento de seus filhos. Rev Soc Bras
Fonoaudiol 2004;9(4):205-11.
subjetivos são mobilizados. Ele se constitui, assim,
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232 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(2): 223-233, agosto, 2006


A clínica da gagueira e o livro infantil: considerações a partir de um caso

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Recebido em dezembro/05; aprovado em agosto/06.

Endereço para correspondência


Polyana Silva de Oliveira
Rua Contos Gauchescos, 817, São Paulo, SP
CEP 04369-000

E-mail: clifono@terra.com.br

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