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Doces da minha vida - FINAL.

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UMA VIAGEM DOCE,
DAS COZINHAS
DA NOSSA INFÂNCIA
PARA O MUNDO
A primeira vez que ouvi falar deste livro foi numa entrevista que fiz ao Virgílio
a propósito do anterior Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional. Nessa
altura ele disse-me esperar que o livro seguinte fosse sobre doçaria. E acrescentou
esta frase: «A doçaria tem uma linguagem muito mais poética.»
Aqui está, então, esse livro – doce de várias maneiras. E uma delas é, sem
dúvida, a linguagem. Este é também, entre muitas outras coisas, um livro cheio de
memórias de infância, de imagens dessa grande cozinha familiar que se enchia de
doces e de conversas sobre doces.
Há momentos em que nos é permitido espreitar para esse passado, e vemos
Virgílio, ainda criança, a comer a aletria, «esse consolo caseiro de inverno», que apare-
cia muitas vezes ao lado do arroz-doce, e que também «servia de mimo quando está-
vamos adoentados». Ou a pedir à Mãe que, mesmo fora da época natalícia, fizesse os
bolinhos de arroz, receita que vinha já da família do Pai. Ou ainda, a acordar bem cedo
para ir a correr até à cozinha e «espreitar o tabuleiro que continha os bolos que tinham
ficado a dormir», esses dormidos de Bragança, que depois tinha que esperar, paciente-
mente, que cozessem, para o prémio final que era «devorar um ainda meio quente».
É dentro de uma dessas cozinhas de aldeia transmontanas, «com uma grande
lareira onde havia sempre potes de três pés com água e ossos de presunto e alguma
confeção de cozedura lenta», que assistimos a um delicioso diálogo, num dos tex-
tos de que mais gosto do livro, o «concílio das mulheres da família», da noiva a
decidir que doces se vão fazer para a festa de casamento. Somos convidados silen-
ciosos nessa cozinha, onde ficamos a ouvir falar sobre esse tema (que subitamente
descobrimos muito mais complexo do que imaginávamos) que é o arroz-doce, por
um grupo de mulheres que sabem que é nos doces e não nos salgados que «se
desenvolve a delicadeza dos gestos».

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Mas não é só de doce poesia que se faz este livro. A arte de Virgílio é, quando
nos apanha distraídos a espreitar estas cozinhas e a ouvir estas conversas, agarrar-
-nos na mão e fazer-nos voar dali para fora para nos mostrar que a história dos
doces é também uma história do mundo. Voltemos à aletria, como exemplo, para
perceber que esse «consolo caseiro de inverno» é uma receita que nos terá sido
deixada pelos mouros e que o autor encontrou também, noutras versões, em via-
gens por Marrocos.
Seguimos viagem depois por livros de receitas ao longo dos tempos – neste
como em muitos outros doces deste livro – como investigadores à procura de pis-
tas, guiados por Virgílio, que, no meio da sua impressionante biblioteca, já nos
abriu o caminho encontrando todas as referências que nos vão permitir traçar a
história deste ou daquele objeto de desejo.
É um trabalho de investigação muito sério, e absolutamente essencial para
que não fiquemos apenas pelas lendas (embora elas também sejam importantes
para a história), o que Virgílio Gomes aqui faz. E aqueles que, como eu, o conhe-
cem, sabem que não é apenas nos livros que ele procura as pistas. É capaz de per-
correr o país, com encontros marcados em pastelarias, conventos ou casas de
doceiras para recolher mais uma informação que ajude a esclarecer mistérios ou a
derrubar mitos.
E quem diz o país, diz o Brasil, por exemplo, passagem obrigatória para se
fazer a história da doçaria portuguesa, porque foi para lá que ela viajou, e é lá que
ainda hoje encontramos muita informação importante. Veja-se outra crónica deli-
ciosa como é a da Expedição Gulosa Doce, em que Virgílio parte em busca dos
«famosos fartes, doces chegados à Terra de Vera Cruz antes de ser Brasil» para per-
correr casas de doceiras, ouvir os seus relatos, alegrar-se ou desiludir-se, mas vol-
tando sempre sabendo mais.
Por vezes, estas viagens levam-nos a sítios menos doces, como o Engenho
Livramento, no Ceará, Brasil, para recordarmos que a história do açúcar se fez em
cima do muito sofrimento dos escravos que trabalhavam nas plantações de cana.
Mas para falar de açúcar, esse elemento essencial da doçaria, temos que viajar ainda
mais longe, passando pela Índia e pela China, e entrando nas caravanas que trouxe-
ram a «doce cana» para o Ocidente, de onde haveria depois de atravessar o Atlântico.
E viajamos de volta a Portugal, para ouvirmos o autor fazer algumas das per-
guntas incontornáveis quando se trata de uma história da doçaria portuguesa: o
que é exatamente a doçaria conventual? É preciso clarificar as coisas, porque muito

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do que encontramos nas pastelarias como sendo conventual não o é. E aí entra mais
uma vez o trabalho de investigação de Virgílio, procurando nos arquivos dos con-
ventos, nos antigos livros de receitas, para estabelecer tanto quanto possível que
determinado doce nasceu realmente naquele convento, e que transformações
sofreu quando depois se espalhou pelo país.
Tive a sorte de ter a companhia do Virgílio numa dessas excursões pelo país,
neste caso uma viagem não muito longa, mas muito interessante, em busca da his-
tória do pão de ló de Alfeizerão, esse doce que terá nascido de um erro, quando
um bolo destinado ao rei D. Carlos é retirado demasiado cedo do forno, e o inte-
rior fica mal cozido. Mas foi um daqueles erros sábios, porque não só o rei muito
apreciou, como o bolo se tornou uma especialidade local – a cuja confeção eu e o
Virgílio assistimos na Casa do Pão­‑de­‑ló de Alfeizerão, e que é um desses exem-
plos em que o saber e a experiência, a exatidão e o rigor que se escondem por trás
da delicadeza dos gestos da doceira nos deixam, como ele escreve na sua crónica,
«boquiabertos».
É importante sabermos qual o papel do chocolate na nossa doçaria, ou
dessa exótica baunilha, ou até que ponto podemos inovar sem trair o espírito
original de um doce (temos o caso dos pastéis de nata, por exemplo). E é essen-
cial prestar homenagem a todos os que continuam a manter as tradições, por
mais trabalhosas que elas possam ser – é a eles que temos que agradecer o facto
de muitos doces regionais continuarem a existir. É também para isso que existe
este livro.
Saímos dos conventos, desse universo de tachos de cobre e complexos pon-
tos de açúcar para entrar nas cozinhas populares, e encontrar os doces regionais e
populares, aos quais Virgílio quer devolver uma dignidade que alguns foram per-
dendo. Vamos descobrindo também as muitas histórias de santos que estão ligados
à doçaria, das ganchas de São Brás, bispo e mártir famoso por ter salvado uma
criança tirando-lhe uma espinha da garganta, às fogaças de Palmela, votivas a Santo
Amaro.
É um mundo doce, este, em que as farófias se podem chamar «nuvens», ou
«ovos nevados», e em que as receitas viajam na cabeça de uma freira de um con-
vento para o outro, ou são copiadas à mão de antigos livros, durante gerações – tal
como o livro de receitas da Mãe de Virgílio, a partir do qual ainda hoje os filhos vão
fazendo doces, preservando uma memória que pertence à história do país, mas que
é, ao mesmo tempo, uma memória de cada um. É, afinal, uma memória dessa

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infância em que esperávamos ansiosos que a alquimia dos ovos, da farinha e do
açúcar se desse mais uma vez no fundo dos tachos, e que o calor do forno fizesse
depois crescer o bolo mais desejado.
Obrigada, Virgílio, por não nos deixar esquecer.

Alexandra Prado Coelho


Lisboa, 14 de agosto de 2014

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AÇÚCAR

P
oucos se dão conta dos sofrimentos no Mundo para que este produto, que
todos acham tão simples e tão doce, esteja disponível com tanta facilidade,
e a tão baixo preço. Trata­‑se de um artigo sobre o qual me encanta escrever.
E desvendar algumas histórias a ele associado. É daqueles produtos com os quais a
história tanto se preocupou e tantos registos lhe deu.
Sabe­‑se pouco sobre a nascença do açúcar. Está identificado como originário
da Índia e manuscritos chineses referem a presença da cana­‑de­‑açúcar já no século
viii antes de Cristo. Também há notícias sobre a existência de cristais de açúcar no
continente indiano, no século v antes de Cristo, que permitiam um melhor arma-
zenamento e transporte. Parece que os chineses reivindicam a paternidade do açú-
car. Segundo consta, foi ainda neste continente que se terá passado do caldo de
cana­‑de­‑açúcar para os cristais de açúcar e, então, se desenvolve a sua preparação e
divulgação nas rotas comerciais da época que já incluíam a navegação. No século v,
terão sido monges budistas que da Índia passaram para a China o ensino da plan-
tação e cultivo da cana­‑de­‑açúcar, e o imperador Li Shimin torna-se um interessado
pelo açúcar. Segundo a História Natural, de Sukung, encontramos a seguinte transcri-
ção: «O Impe­rador Tai­‑Hung enviou trabalhadores para que aprendessem a arte de
fabrico do açúcar a Lyu (Índia) e sobretudo a Mo Ki To (Bengala)», no século vii.
Segundo uma lenda, consta que Buda é procedente do país do açúcar, Gur, nome
pelo qual ainda alguns conhecem Bengala. Também se conta que o açúcar era
conhecido como o «mel que não necessitava de abelhas» para a sua produção. Mas
também a Bíblia se refere ao açúcar como a «doce cana» que ia do Oriente para o
Ocidente em caravanas.
Plínio, sem explicar como se produzia, ficava pela expressão: «Só se usa em
medicina», situação que foi mantida entre nós até ao século xv. Sobre a origem

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indiana, também o poeta Lucano (30­‑65) precisa que o açúcar é hindu como os
habitantes do Ganges: «Os que bebem os sumos doces de uma débil cana.»
Dos romanos que habitaram entre nós não temos notícias relativas a açúcar, e
mesmo nas poucas e primeiras receitas de doces que chegaram até nós só aparece
o mel. Na Península Ibérica, o açúcar já era conhecido e utilizado pelos mouros que
aqui habitavam e que o receberiam através do comércio do Mediterrâneo. Aliás, o
açúcar veio desenvolver um comércio extraordinário e que enriqueceu alguns esta-
dos independentes do que é hoje a Itália.
Em Portugal, desde a sua fundação, já se conhecia o açúcar de cana pela pre-
sença dos mouros. A sua utilização era mais destinada a questões de saúde e obri-
gatoriamente usado para problemas digestivos como, por exemplo, a azia, ou para
questões de ordem emocional. Quanto a este último uso, ainda hoje um copo de
água com açúcar é o primeiro remédio para crises de ansiedade ou estado emocio-
nal alterado. Sabe­‑se que casas abastadas o receberiam através de Génova e também
da Sicília. De referir que aqui ao nosso lado, ainda durante a ocupação moura, são
conhecidas as plantações de cana­‑de­‑açúcar em Granada. É, no entanto D. João I,
em 1404, que apoia a primeira plantação de cana­‑de­‑açúcar no Algarve, conce-
dendo esse privilégio ao genovês Giovanni de Palma. Não tendo grande sucesso
esta investida, é na ilha da Madeira que mais tarde se inicia a produção, após a sua
colonização a partir de 1425. Em 1452, o infante D. Henrique autoriza que Diogo
de Teive «montasse uma fábrica de açúcar na Madeira». Em 1496, D. João II, por
carta régia, retirava «aos estrangeiros a possibilidade de residirem na ilha da
Madeira, com o fim de manipulações e agiotagem sobre a manipulação açucareira
local». Tal era a importância do açúcar, como novo produto, que, por carta régia,
D. João II destina «para a coroa o exclusivo da exportação do açúcar destinada aos
portos do Levante». Curiosamente, Gil Vicente (1465­‑1536), possivelmente o
autor da época em que mais alimentos se encontram registados na sua obra, nunca
mencionou o açúcar, citando apenas o mel. Supostamente pelos altos custos de
produção, D. Manuel I, em 1498, ordena limites à produção de açúcar na ilha da
Madeira.
Após ter sido estabelecido o mapa de colonização do Brasil, em 1530,
desenvolve­‑se a plantação de cana­‑de­‑açúcar, reconhecida que é a qualidade dos ter-
renos e do clima, e sabe­‑se que o primeiro engenho terá sido estabelecido em 1533.
É, no entanto, apenas em 1545 que se tem notícia concreta da exportação do açúcar
brasileiro a partir da capitania do Espírito Santo. Está confirmada a importância da

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produção açucareira no Brasil, e em 1570, D. Sebastião concede «isenção de tribu-
tos aos engenhos do açúcar, a estabelecer no prazo de 10 anos». Em 1628, é regis-
tado com entusiasmo que o Brasil já conta com 235 engenhos, «antes mais que
menos», sendo que no ano seguinte se encontram registados 346, e Olinda é con-
siderada a capital açucareira. A riqueza conhecida do açúcar e a tentativa de assalto
por piratas na travessia do Atlântico levaram a que Filipe III de Portugal estabelecesse
em carta régia que os barcos carregados de açúcar do Brasil fossem obrigados a fazê­
‑lo agrupados em frota. Nesta época, o ilustre pensador que foi o padre António
Vieira (1608­‑1697), que já tinha solicitado o regresso dos judeus a Portugal,
manifesta­‑se no Brasil em defesa dos direitos dos povos indígenas, combate a escra-
vidão e chega a defender a abolição da escravatura. É de sua autoria este texto que
revela bem a sua intervenção social e que reflete o ambiente no qual se produzia o
açúcar: «Se adoçais a boca com açúcar, não é doce o que tomais, mas é fel, e verda-
deiro e humano; e se o tendes posto em alguma bebida, o que bebeis é sangue.»
Se no tempo de D. João II já se discutiam os abusos do consumo do açúcar,
criam até nas crianças a vontade para o seu consumo. É no reinado de D. Manuel I
que se proíbe a venda de doçaria a homens, como forma de limitar o seu consumo.
É então criada a profissão das «alfeloeiras». Nas Ordenações Manuelinas escreveu­
‑se que «algumas mulheres podem vender alféloa, nas ruas ou praças, como em
suas casas, ou pousadas, sem que sofram qualquer pena por isso». Entretanto,
conhecidas que são as instalações de novos conventos, e facilitado o acesso a mem-
bros da família real e da alta nobreza, serão as cozinheiras e empregadas dessas
meninas que irão desenvolver o que se chama doçaria conventual. A tradição de o
açúcar ser já uma tradição feminina, associada à facilidade com que chegou aos
conventos, desenvolveu com gemas de ovos, frutos secos e frutas cristalizadas uma
doçaria de uma categoria e riqueza inigualáveis e que dará um novo livro em
futuro próximo.
Em 1720, é publicado o alvará que isenta de direitos a exportação, e em 1751
é concedida a Henrique Smith a instalação da primeira fábrica de refinação de açú-
car, em Lisboa, e dois anos depois a segunda a Manuel Leitão de Oliveira, também
em Lisboa. Uma alteração social muito importante para o Brasil foi a declaração de
liberdade para todos os índios, em 1758. Possivelmente pelo excesso de produção,
é proibida a cultura de cana­‑sacarina no estado do Maranhão. Entretanto em
Portugal, em 1761, é abolido o tráfico de escravatura e declarados libertos e forros
os escravos que entrarem em Portugal. A abolição de escravatura no Brasil registou­

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‑se apenas em 1888, já país independente desde 1822, e que possivelmente preci-
pitou o fim do império. Em 1770, é concedida licença para se estabelecer a primeira
refinaria no Porto, propriedade de João Batalha Freire. Em 1790, é proibida a
admissão de novas e novos noviços nos mosteiros e conventos, ato que precede a
extinção das ordens religiosas em 1834, data que veio determinar a saída de recei-
tuário para fora dos conventos mas que marca também o decréscimo de criativi-
dade posterior de grande doçaria, à exceção do pudim abade de Priscos, que, não
sendo conventual, é um grande doce e possivelmente a melhor criação doceira
depois da extinção das ordens religiosas.
Para a fabricação do açúcar, as canas, depois de chegarem ao engenho, são
lavadas e depois passam por tapetes rolantes para serem picadas e de seguida des-
fibralizadas, o que significa abri­‑las o máximo possível para obter o maior rendi-
mento. Passa para a moenda para, com adição de água quente, continuar a
extração. Da moenda obtém­‑se um primeiro caldo, melaço, que vai para a pro-
dução de açúcar e os seguintes enviados para a destilaria para fabrico de aguar-
dente de cana. O caldo para o açúcar passa por várias fases, para cristalização e
obtenção do produto final.
O açúcar apresenta­‑se habitualmente sob a forma de açúcar mascavo ou açú-
car mascavado, de coloração variável entre o caramelo e castanho­‑dourado, petri-
ficado e que resulta da cristalização do mel de engenho, também conhecido por
mel de cana. O açúcar cristal apresenta­‑se sob a forma de cristais transparentes, de
valor económico interessante e o mais usado em doçaria. Ainda nos surge o açú-
car em pó, muito fino e usado também em confeitaria e para alguns doces.
O açúcar veio, de facto, a revelar­‑se o principal produto depois das Desco­
bertas. Em algumas regiões ainda era fácil no século xvi identificá-lo como espe-
ciaria. Alterou o hábito dos portugueses e desenvolveu­‑se num quotidiano com
tanta força que raramente nos damos conta disso. Durante os tempos, sempre foi
alvo de glorificação, de pretexto para denúncias de política ou de saúde e até de
caracterização da sociedade. Permito­‑me transcrever um texto de Manuel Mendes,
publicado no seu livro Roteiro Sentimental – Os Ofícios, em 1967: «É de prodígio,
assombra o que pelas vitrinas se expõe, na incrível variedade das lambarices de
toda a espécie... Custa a respirar a atmosfera densa, o odor pegajoso a melaço que
exalam os bolos de mil variedades, desde os apreciados pastéis, a derreter nata e
creme, uns de massa folhada, outros vítreos de ponto de rebuçado, aos docinhos
de ovos, amêndoa e coco, aos confeitos, caramelos e chocolates, como ao pão de

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ló que embucha e às queijadas de recheio espesso – todo o sortido, em suma, des-
tes açucarados prazeres... observo o regabofe voluptuoso, a bacanal glutona com
que a clientela se ceva destas doces delícias... No deleite e no voraz aprazimento
de tal mastigar, há o quer que seja de ritual, expresso nos gestos convencionais e
na benta consolação destas devotas... Ingurgitam e ao mesmo tempo grasnam,
como numa comunhão orgíaca.»
Não poderia terminar sem uma referência que faz parte do quotidiano dos
portugueses neste tempo. A facilidade com que logo ao pequeno­‑almoço se con-
some doces é surpreendente. Citei várias vezes a doçaria das famílias, confecio-
nada em casa. Depois a doçaria conventual e o exemplo da grande riqueza
doceira nacional. Não menos importante é a doçaria ou pastelaria que se confe-
ciona em vários estabelecimentos de alimentação e bebidas e que continuam
produzindo em «Fabrico Próprio». A dimensão destes doces é extraordinaria-
mente importante e aqui fica a minha homenagem a tanta gente que continua
com fabrico próprio.

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ALETRIA

H
abituei­‑me a comer aletria no inverno, especialmente na época natalícia.
E é raro apetecer­‑me noutras épocas. A aletria comida em casa significava
conforto, um consolo caseiro de inverno, apesar de se comer fria. Talvez
porque me desabituei de passar cá o tempo frio, quando chego, volta a apetecer­
‑me. É um dos doces que recordo desde a infância, ao lado do arroz­‑doce, e que
também servia de mimo quando estávamos adoentados. Mas já que referi o arroz­
‑doce, a aletria também se faz com gemas ou sem elas, e a variação do açúcar é
determinante para se sentir mais gulosa, ou não, a sua confeção. Apesar de não
constar do caderno de receitas de minha Mãe, consegui reconstituir a receita que
se confecionava em casa, com a ajuda da minha irmã Adelina.
Mas porque é que esta receita se faz em especial no Norte? É um enigma!
Tanto maior quando sabemos que a aletria nos foi, possivelmente, legada pelos
mouros, que não habitaram nem o Minho nem Trás­‑os­‑Montes, onde continua a
ser uma tradição. Vasculhei o principal tratado de cozinha mouro do período de
ocupação ainda em Espanha, de Ibn Razin al­‑Tugibi (1227­‑1293), e nada encon-
trei. Descobri em Marrocos, recentemente, uma aletria sem creme, cozida e mon-
tada em pirâmide, polvilhada com açúcar em pó e canela, amêndoa laminada, e
depois tudo regado com mel. Também em Marrocos, numa refeição de família,
provei cuscuz doces. Não os encontrei em restaurantes, mas vi­‑os referenciados em
livros de cozinha marroquina.
A primeira referência escrita com a designação «aletria», ou «alatria», como
se diria em Itália, surge no livro de Domingos Rodrigues como «aletria doce», que
seriam os fios de ovos. Parece que o termo «aletria» deriva da palavra árabe al­‑ibria,
apesar de este não constar da obra de Frei João de Sousa Vestígios da Língua Arábica em
Portugal, 1789. Curiosamente, Manuel Ferreira, na Cozinha Ideal, de 1933, livro feito

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com o propósito de formar os profissionais, apresenta a mesma designação de
Domingos Rodrigues, «aletria doce», mas a receita corresponde à aletria que hoje
se confeciona, e com gemas. Curiosamente, num manuscrito fradesco de 1743,
compilado por António de Macedo Mengo, surge «Aletria» e «Aletria Doce», que
correspondem, respetivamente, à nossa aletria atual sem gemas e aos fios de ovos.
Tem também as variações da «Aletria» de carneiro, de galinha e de vaca, para as
quais se utiliza o caldo respetivo para cozer a aletria. Posteriormente, em 1780,
Lucas Rigaud apresenta uma receita de «Crema de aletria», semelhante à aletria
atual com gemas mas uma finalização diferente, além de estar enriquecida com flor
de laranja coberta e biscoito de amêndoas, tudo picado. Para finalizar, junta claras
em castelo e leva tudo ao forno até ter «boa cor».
Vindo rapidamente para o século xx, e no primeiro livro deste século, Carlos
Bento da Maia, em 1904, apresenta três receitas a que chama «Aletria de leite»,
«Aletria de leite com ovos» e «Aletria de ovos – Fios de ovos ou ovos reais», cujos
títulos não necessitam de mais explicações. Quase todos os livros de inventários de
cozinha portuguesa incluem a receita. Maria de Lourdes Modesto, na Cozinha
Tradicional Portuguesa, apresenta uma receita, de Entre Douro e Minho, com aletria com
ovos e mais açúcar que aletria e que fica bem escorrida de leite, e enfeitada com o
desenho de dois corações em canela. Maria Emília Cancella de Abreu redige receita
idêntica, mas com a nota de se confecionar em todo o país. Emanuel Ribeiro, no seu
curioso estudo O Doce nunca amargou..., publicado em 1923, refere­‑se assim: «Doce de
aletria cozida em água e açúcar e distribuída em travessas ou pequenos pratos,
ornamentado com grades ou arabescos executados com canela. Vulgar em dias de
festa principalmente entre gente humilde.» Depois remete para a receita que é con-
fecionada com gemas e água de flor de laranjeira, produtos raramente associados à
alimentação humilde. Do Convento de Santa Clara de Elvas, também nos chega uma
receita com a designação de «aletria de ovos», que acaba por ser um creme com
farinha de arroz com gemas e açúcar e sobre o qual são colocados os fios de ovos.
Do Convento de Santa Mónica de Évora temos uma «aletria doce», feita como a
atual, com gemas, mas com a particularidade de juntar sumo de laranja, e receita
idêntica aparece também no Mosteiro de São Pedro das Águias, em Tabuaço.
Mas se herdámos esta tradição dos árabes ou da influência dos estados inde-
pendentes do que é hoje a Itália, onde se encontra pelo mundo esta prática?
O Dictionnaire du Gastronome, 2008, apenas se refere à massa para guarnecer sopas e
por vezes para sobremesas doces. Na edição de 1938, o Larousse Gastronomique, além

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de sugerir a utilização nas sopas, também a refere na preparação de pudins e suflês.
Não encontrei manuais com receituário de doçaria associado, à exceção de Espanha,
onde Ginés Vivancos afirma que foram os árabes que introduziram a aletria na
Península Ibérica e que continua a ser confecionada nas regiões de Múrcia e
Andaluzia, fazendo parte da lista de doçaria regional.
Além da Espanha, também o Brasil ainda prepara a aletria, e, neste caso, por
influência dos portugueses. O livro Cozinheiro Nacional, de autoria ainda desconhe-
cida, atribuída por vezes a Paulo Salles, e publicado entre 1874 e 1888, ensina
como fazer a aletria caseira e depois o uso igual ao da aletria que se vende já em
massa. No extraordinário livro Delícias das Sinhás, com receitas da segunda metade do
século xix e início do século xx, editado em Campinas em 2007, encontramos duas
deliciosas receitas. Uma, a de «aletria d’ovos», é uma mistura de aletria doce com
fios de ovos, e outra «aletria» que é a forma mais tradicional de confecionar aletria
doce com gemas. Encontrei ainda na Turquia uma sobremesa muito doce confecio-
nada com aletria a que chamam tel kadayf.
Não quero terminar sem partilhar como se fazia em minha casa. Para esta
receita, coloca­‑se uma panela ao lume com água. Quando ferver juntam­‑se cento e
cinquenta gramas de aletria e deixa­‑se ferver durante cinco minutos. Há quem
coloque um pouco de manteiga para garantir que os fios da aletria não se colam,
ou então vai­‑se mexendo com um garfo para se separarem. À parte, misturam­‑se
cinco centilitros de leite, cinquenta gramas de manteiga, um pau de canela, a casca
de um limão e levam­‑se ao lume até ferver, em seguida adicionam­‑se duzentos gra-
mas de açúcar. Escorre­‑se a água de cozer a aletria e junta­‑se a mistura do leite.
Deixa­‑se arrefecer ligeiramente e, à parte, batem­‑se quatro gemas que se juntam
delicadamente à aletria de forma a não cozerem. Leva­‑se ao lume, mexendo com
cuidado, para engrossar um pouco e garantir a cozedura das gemas. Um segredo:
quando havia água de rosas, deitavam­‑se uns pingos. Depois de cozida a massa,
retira­‑se a casca do limão, põe­‑se a aletria numa travessa e após arrefecer enfeita­‑se
com canela. Há quem coloque também uma vagem de baunilha, que se retira antes
de servir.
A aletria ainda está viva e, hoje mesmo, num restaurante frente à minha casa,
o Nógado, uma das sobremesas ao almoço será «Aletria», como a Justa Nobre tam-
bém me presenteou.
Descubram agora o melhor vinho generoso para acompanhar, pois a aletria
saberá muito melhor. Muitas vezes acompanha com licores caseiros.

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Índice Geral
Prefácio...................................... 7 Pão de ló.................................... 121
Pão de ló de Alfeizerão............... 126
Açúcar........................................ 13 Pastel e pastéis............................ 129
Aletria........................................ 19 Pastéis de Santo António............. 133
Amêndoas de Moncorvo Pastéis de nata............................ 137
e confeitos............................ 24 Pastel de nata – Um manifesto.... 142
Areias de Cascais........................ 27 Pastéis de Santa Clara.................. 145
Arroz­‑doce................................. 30 Pastéis de Tentúgal...................... 148
Doce arroz................................. 36 Pastéis de toucinho.................... 151
Baunilha..................................... 43 Pitos de Santa Luzia.................... 154
Bexigas de São Lázaro................. 46 Pratas.......................................... 158
Bolo de mel................................ 50 Pudins........................................ 160
Bolinhos de arroz....................... 53 Pudim de leite?.......................... 165
Bolo de prata.............................. 56 Pudim de maçã.......................... 172
Cavacas e cavacórios de São Rebuçados da Régua.................. 174
Lázaro................................... 60 Romã......................................... 176
Chocolate................................... 64 Rosquilhas de fritar.................... 179
O melhor bolo de chocolate Sopas doces................................ 182
do mundo............................. 70 Súplicas...................................... 186
O que será a doçaria conventual?... 72 Tortas......................................... 189
Donas Amélias............................ 75 Rocambole e bolo de rolo.......... 193
Dormidos de Bragança............... 78 Tortas de São Martinho
Económicos................................ 81 ou de Penafiel....................... 197
Farófias....................................... 85 Tortas de Guimarães................... 201
Fartes.......................................... 90 Toucinho do céu........................ 204
Fios de ovos............................... 92 Trouxa de ovos........................... 208
Fogaças de Palmela..................... 98 Compotas e licores..................... 212
São Brás e as ganchas................. 100 Negócios... de açúcar!................ 215
Juaninhas de Cascais................... 103 Expedição gulosa doce............... 220
Marmelos e marmelada.............. 106 Bibliografia................................. 228
Mel............................................. 113
Merendeira de abóbora.............. 115
Ovos­‑moles................................ 118

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Índice de Receitas
Arroz­‑doce.................................................................................................... 35
Bolinhos de arroz.......................................................................................... 55
Bolo de prata................................................................................................. 59
Dormidos...................................................................................................... 80
Encharcada do Alentejo................................................................................. 84
Dom­‑rodrigos............................................................................................... 97
Juaninhas da Paula........................................................................................ 105
Marmelada branca......................................................................................... 111
Marmelada vermelha..................................................................................... 112
Merendeiras de abóbora................................................................................ 117
Pão de ló de Alfeizerão.................................................................................. 128
Pastéis de Santo António................................................................................ 136
Pastéis de toucinho....................................................................................... 153
Pitos de Santa Luzia....................................................................................... 157
Pudim marfim............................................................................................... 169
Pudim abade de Priscos................................................................................. 171
Rosquilhas de sertã ou de fritar..................................................................... 181
Súplicas......................................................................................................... 188
Torta de laranja............................................................................................. 200
Toucinho do céu........................................................................................... 207
Trouxas de ovos............................................................................................ 211

Agradecimentos
Maria Adelina Nogueiro Gomes; Elísio Amaral Neves; Carlos Brás Lopes; Graça Sá-Fernandes.
Pela gentil cedência de espaço para a captação de imagens: Restaurante Paulinha, Cascais;
Restaurante Cozinha Velha, Queluz; Casa do Pão-de-ló de Alfeizerão, Alfeizerão; Pastelaria
Alcoa, Alcobaça; Casa Lapão,Vila Real; Convento dos Cardaes, Lisboa; Pastelaria Pousadinha,
Tentúgal e Lisboa; Restaurante Spazio Buondi Nobre, Lisboa; Taberna do Carró, Torre de
Moncorvo; Manteigaria do Loreto, Lisboa; Restaurante Zé Varunca, Lisboa.
Ao El Corte Inglés, Lisboa, pela cedência de diversos elementos para a produção fotográfica.

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