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oucos se dão conta dos sofrimentos no Mundo para que este produto, que
todos acham tão simples e tão doce, esteja disponível com tanta facilidade,
e a tão baixo preço. Trata‑se de um artigo sobre o qual me encanta escrever.
E desvendar algumas histórias a ele associado. É daqueles produtos com os quais a
história tanto se preocupou e tantos registos lhe deu.
Sabe‑se pouco sobre a nascença do açúcar. Está identificado como originário
da Índia e manuscritos chineses referem a presença da cana‑de‑açúcar já no século
viii antes de Cristo. Também há notícias sobre a existência de cristais de açúcar no
continente indiano, no século v antes de Cristo, que permitiam um melhor arma-
zenamento e transporte. Parece que os chineses reivindicam a paternidade do açú-
car. Segundo consta, foi ainda neste continente que se terá passado do caldo de
cana‑de‑açúcar para os cristais de açúcar e, então, se desenvolve a sua preparação e
divulgação nas rotas comerciais da época que já incluíam a navegação. No século v,
terão sido monges budistas que da Índia passaram para a China o ensino da plan-
tação e cultivo da cana‑de‑açúcar, e o imperador Li Shimin torna-se um interessado
pelo açúcar. Segundo a História Natural, de Sukung, encontramos a seguinte transcri-
ção: «O Imperador Tai‑Hung enviou trabalhadores para que aprendessem a arte de
fabrico do açúcar a Lyu (Índia) e sobretudo a Mo Ki To (Bengala)», no século vii.
Segundo uma lenda, consta que Buda é procedente do país do açúcar, Gur, nome
pelo qual ainda alguns conhecem Bengala. Também se conta que o açúcar era
conhecido como o «mel que não necessitava de abelhas» para a sua produção. Mas
também a Bíblia se refere ao açúcar como a «doce cana» que ia do Oriente para o
Ocidente em caravanas.
Plínio, sem explicar como se produzia, ficava pela expressão: «Só se usa em
medicina», situação que foi mantida entre nós até ao século xv. Sobre a origem
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abituei‑me a comer aletria no inverno, especialmente na época natalícia.
E é raro apetecer‑me noutras épocas. A aletria comida em casa significava
conforto, um consolo caseiro de inverno, apesar de se comer fria. Talvez
porque me desabituei de passar cá o tempo frio, quando chego, volta a apetecer
‑me. É um dos doces que recordo desde a infância, ao lado do arroz‑doce, e que
também servia de mimo quando estávamos adoentados. Mas já que referi o arroz
‑doce, a aletria também se faz com gemas ou sem elas, e a variação do açúcar é
determinante para se sentir mais gulosa, ou não, a sua confeção. Apesar de não
constar do caderno de receitas de minha Mãe, consegui reconstituir a receita que
se confecionava em casa, com a ajuda da minha irmã Adelina.
Mas porque é que esta receita se faz em especial no Norte? É um enigma!
Tanto maior quando sabemos que a aletria nos foi, possivelmente, legada pelos
mouros, que não habitaram nem o Minho nem Trás‑os‑Montes, onde continua a
ser uma tradição. Vasculhei o principal tratado de cozinha mouro do período de
ocupação ainda em Espanha, de Ibn Razin al‑Tugibi (1227‑1293), e nada encon-
trei. Descobri em Marrocos, recentemente, uma aletria sem creme, cozida e mon-
tada em pirâmide, polvilhada com açúcar em pó e canela, amêndoa laminada, e
depois tudo regado com mel. Também em Marrocos, numa refeição de família,
provei cuscuz doces. Não os encontrei em restaurantes, mas vi‑os referenciados em
livros de cozinha marroquina.
A primeira referência escrita com a designação «aletria», ou «alatria», como
se diria em Itália, surge no livro de Domingos Rodrigues como «aletria doce», que
seriam os fios de ovos. Parece que o termo «aletria» deriva da palavra árabe al‑ibria,
apesar de este não constar da obra de Frei João de Sousa Vestígios da Língua Arábica em
Portugal, 1789. Curiosamente, Manuel Ferreira, na Cozinha Ideal, de 1933, livro feito
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Agradecimentos
Maria Adelina Nogueiro Gomes; Elísio Amaral Neves; Carlos Brás Lopes; Graça Sá-Fernandes.
Pela gentil cedência de espaço para a captação de imagens: Restaurante Paulinha, Cascais;
Restaurante Cozinha Velha, Queluz; Casa do Pão-de-ló de Alfeizerão, Alfeizerão; Pastelaria
Alcoa, Alcobaça; Casa Lapão,Vila Real; Convento dos Cardaes, Lisboa; Pastelaria Pousadinha,
Tentúgal e Lisboa; Restaurante Spazio Buondi Nobre, Lisboa; Taberna do Carró, Torre de
Moncorvo; Manteigaria do Loreto, Lisboa; Restaurante Zé Varunca, Lisboa.
Ao El Corte Inglés, Lisboa, pela cedência de diversos elementos para a produção fotográfica.
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