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Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre


a subjetividade humana.
Vincent Colapietro
São Paulo: Intermeios, 2014.

André Arias Fogliano de Souza Cunha

Peirce e a abordagem do self é o primeiro trabalho de Vincent Colapietro


publicado no Brasil. É mérito da editora Intermeios, coordenada pela professora
semioticista Cecília Salles. O livro, escrito no findar da década de oitenta do século
passado, chega, afinal, em boa hora para os interessados em entender uma parte complexa
e um tanto obscura da obra do filósofo Charles Peirce: a saber, o processo de constituição
do si mesmo 1 . Colapietro objetiva estruturar, pela perspectiva da lógica peirciana,
malgrado as adversidades implicadas, a dinâmica da formação da subjetividade humana.
A proposta é corajosa e de extrema falibilidade, uma vez que Peirce não forneceu
propriamente uma definição clara, distinta e final da mente humana em seu denso edifício
teórico. A complexidade do tópico se deve, em larga medida, ao fato de que a obra de
Peirce se espraia nas inúmeras páginas de manuscritos não publicados e em livros mal
editados que não fazem jus ao rigor conceitual mobilizado. Em menor medida, como
decorrência, o assunto é interpretado geralmente de maneira inconsistente ou equivocada,
sem levar as últimas consequências os ensinamentos do autor, dada a dificuldade de
apreender o desenvolvimento categorial da abordagem em sua evolução no tempo. Tendo
em vista esses dois pontos, e apesar deles, Colapietro resolve esclarecer como a questão
aparece e se desdobra dentro da arquitetura filosófica peirciana.
Para construir a análise, Colapietro organiza a argumentação em cinco capítulos,
são eles: A teoria dos signos de Peirce é verdadeiramente geral?; Semiose e
subjetividade; A relevância da semiótica de Peirce para a psicologia; Peirce e a
explicação do self: uma perspectiva evolutiva; Interioridade e autonomia. Em cada um
deles é tecida uma rede de intercessores, com os quais se articula um debate confrontando
interpretações de pensadores da alçada de Saussure, James, Eco (talvez o principal
interlocutor da obra), Kristeva, Fisher, Morris, Bernstein dentre outros. O objetivo dessa

                                                                                                               
1
Self, palavra mantida em língua nativa, dada a dificuldade de tradução para o português.
 

conversação é expor, por um lado, o equívoco dos críticos de Peirce ao afirmarem que a
concepção de self dele é pouco elaborada, insuficiente e contraditória e, por outro,
sustentar que não só tal abordagem é robusta como atualíssima, radicalmente inovadora e
pouco explorada dentro do arcabouço conceitual da lógica. Trocando em miúdos,
Colapietro tem o trabalho de tornar explícito o que se encontrava implícito e mal
explicado na maquinaria da teoria geral dos signos.
Nesse sentido, o primeiro passo é apresentar os aspectos gerais da tríade
fundamental da obra de Peirce, a saber, objeto-signo-interpretante. Essa inovação permite
escapar de uma concepção mentalista ou subjetivista de como a consciência opera. A
mente é tratada, aqui, como resultado de um processo de ação sígnica da natureza das
coisas. Todavia, o problema da mente, nesse ponto específico, ainda é examinado em seu
aspecto formal e abstrato, não ganha os contornos singulares do self humano. No
capítulo seguinte, trava-se um debate instigante com Umberto Eco. Colapietro investiga a
validade da tese corrente nos textos do italiano de que a lógica não poderia abranger o
usuário concreto do signo, isto é, a subjetividade da pessoa. Esta seção reconhece com
Eco que a teoria geral e formal dos signos não considera os participantes históricos e
concretos da semiose, todavia – e essa é a hipótese de Colapietro – é possível extrair dela
conceitos indispensáveis para a compreensão da constituição do self. O autor defende
que, embora a insistência de Eco contra esse tópico, a lógica peirciana dispõe de
elementos teóricos suficientes e adequados para o desdobrar de uma perspectiva
semiótica da mente humana. Essa parte do trabalho situa o leitor dentro do diagnóstico
categórico dado por Peirce à lógica, destacando tanto os fundamentos da disciplina
quanto seu desenvolvimento subsequente. Aprendemos, assim, tanto o que seria o extrato
basilar para um exame semiótico da subjetividade quanto o que não faz parte da
abordagem do self.
No terceiro capítulo, Colapietro retoma a querela entre Peirce e James e, de algum
modo, a articula com ideias do próprio Saussure, para estabelecer a relação entre a
semiótica e a psicologia, uma vez que a psicologia toma para si a tarefa de explicar o
funcionamento da consciência humana. A partir desse debate, Colapietro indaga-se sobre
o estatuto científico de ambas as áreas do saber, de emergência sincrônica, além de
destacar como o desenvolvimentos teórico delas diverge. Para Peirce, a semiótica nomeia
 

os dispositivos mais formais e abstratos da dinâmica da mente intencional. É a ação do


signo que determina a composição do interpretante final. A psicologia corre o risco de
ficar presa num subjetivismo excessivo se não se apoiar na teoria geral dos signos para
apreender a formação dos hábitos e condutas da mente intencional. Sem a semiótica a
psicologia não poderia chegar muito longe.
Afastada, então, qualquer concepção subjetivista do self, é possível expressar
propriamente a perspectiva peirciana da constituição da personalidade. Este quarto
capítulo pode ser visto como o ponto forte do livro, uma vez que articula e exprime algo
inédito, se diferenciando das abordagens consagradas ao tema. Colapietro constrói uma
genealogia do conceito de mente em Peirce, nuançando três momentos no trabalho, 1867-
68, 1891 e o pragmaticismo. Seja como for, tudo decorre do seguinte diagnóstico, bem
formulado por Max Fisher, a saber, de que tudo que uma coisa é, ela é também um signo.
Para Peirce, “o self é, antes de tudo, um signo em processo de desenvolvimento”
(Colapietro, 2014, p. 111). Não abstratamente, cartesianamente, uma coisa pensante.
Antes, o signo encarnado num organismo vivo, num corpo, que serve como meio de
expressão do signo ao mesmo tempo em que serve – o organismo – como meio para o
mundo expressar-se. Afirma-se o gonzo que estrutura a teoria da personalidade em
Peirce. Tudo decorre dessa operação. O self é o efeito da semiose mais complexa da
natureza: a subjetividade humana ou inteligência como a causa final desse processo
(ainda que aberto a novos devires).
O que o instiga nesse plano é saber como o processo de semiose conduz o sujeito
a um crescendo de inteligência, de autonomia e de autocontrole. A preocupação de
Colapietro é ressaltar o ineditismo de se pensar o sujeito como comunidade, refutando à
marteladas, definitivamente, qualquer concepção privilegiada de indivíduo ou de uma
individualidade enrijecida ou fechada em si. O self é um continuum em crescimento.
Portanto, é uma construção coletiva. O fundamental a reter desta obra é que a abordagem
do self em Peirce nos remete a uma ética e a uma estética, já que para ele o humano deve
dirigir o pensamento lógico tendo em vista atingir o autocontrole e a razoabilidade para
consolidar e otimizar as relações e instituições sociais. Mais atual impossível.

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