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pra Contar:
Maria Perez Rubia
Maria Klomfass
ou
Simplesmente Maria
2017
Dedico para as
minhas netas Juliana e Jennifer, a quem
dediquei meu amor, meu carinho e todas
as minhas forças. Elas são a razão desta
obra. Meu legado, minha herança.
Dedico também a todas as
Marias que, por este Brasil afora, renascem a
cada dia!
Santos, março de 2017
PRÓLOGO
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá
A Dona Maria me foi apresentada por meio de pontos, le-
ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quais-
quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gra- tras, palavras e acentos. Tivemos um único encontro, mas posso
vação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados dizer que a conheço melhor que muita gente.
sem a permissão escrita da editora, autora e familiares. Você pode dizer: “Mas por que escrever um livro para con-
tar a vida de uma pessoa qualquer”?
Edição, Revisão, Preparação de Texto e Pesquisa Bem, eu posso dizer que não é uma pessoa qualquer, nem
uma história qualquer.
Gisele Esteves Prado
A Vó Maria – assim aprendi chamá-la – tem uma história
singular.
Editoração e Diagramação Uma mulher sempre muito à frente de seu tempo que co-
meçou praticamente do nada e que chegou a ter imóvel e carro
Fox Assessoria de Comunicação S/C Ltda. em uma época que só os ricos possuíam.
Me apaixonei pela história, me embrenhei em estudos e Tantas Marias…Maria, Mariquinha, Maricota, até a bisa
todas as notas de rodapé e imagens são frutos da minha pesqui- Maria (como sua bisneta Sophia a chama) – mais um fato conse-
sa a partir das pistas dadas pela autora. guido por ela. Agora bisa do 2º, Bernardo, e sempre pronta para
mais.
Sinto-me muito feliz em poder participar da realização do
sonho da Dona Maria, da sua filha e netas. Sempre teve cabeça boa e, apesar dos problemas vividos,
goza de perfeita saúde até hoje e nunca teve nenhuma doença
Tenho certeza que você se apaixonará assim como eu por dos tempos modernos.
estas três, ou quatro, Marias.
INFÂNCIA NO SÍTIO
Aquele antigo gosto por uma caninha, ainda o tinha José. Es-
tando ele no centrinho era certo entrar no armazém de secos e mo-
lhados e molhar a garganta com uma talagada da “pura”. E se tomasse
mais que do três já virava brigão.
Certa manhã, por questão de preferência e vez, em um embar-
que de bananas no vagão, ele, sentindo-se tapeado, armou tremenda
briga no pátio da estação com o Sr. Inácio, um outro sitiante.
É de crer que ele já tivesse tomado mais do que as três porque
nessa briga o forte José estava apanhando, e apanhava feio, porque
o seu adversário só tinha 1 braço, o outro fora perdido em uma pesca
com rojões no Rio Areado. Meu irmão Joãozinho no pátio essa hora, em
disparada saiu em direção ao sítio, indo avisar mamãe o que acontecia.
Também correndo, Maria Rúbia chegou ao pátio e na briga
entrou para valer em defesa do marido, atingindo com pedradas o Sr.
Inácio, que talvez pela falta do braço se defendia com os pés. Ele, com
seus pesados botinões pisoteava a José, estirado de comprido no chão Nas brasas queriam estourar bombinhas, tric-trac, assar batata
ao lado dos trilhos. doce e milho verde.
O inspetor apareceu e resultado: os três brigões (minha mãe, Joãozinho e Arlindo iriam acender a mecha para soltar nos ares
meu pai e o Sr. Inácio) foram levados no trem das 11h a prestar contas 4 Santo Antônio (13/06), São João (24/06) e São Pedro (29/06). As festas ocorriam para pedir aos
na delegacia de Itanhaém. A autoridade de plantão ao saber que a de- deuses a fertilidade da terra e garantir boas colheitas nos meses seguintes.
O 2º despejo
O ano triste ainda não terminara, quando no terreiro atulha-
va-se, outra vez, berços, baús, panelas, bacias... Era novamente o des-
pejo. Os mesmos vizinhos, amigos, crianças ali assistiam ao inédito es-
petáculo, esperando dar aquela ajuda já nossa conhecida. Porém uma
surpresa aconteceu, uma triste surpresa pela qual ninguém esperava e
nem podia supor fosse acontecer.
Depois que a casa estava por dentro limpinha, os mesmos ho-
mens que a esvaziaram acenderam uma tocha e atearam fogo no sapê,
e da casa de taipa só um monte de carvão e cinzas restou.
A situação dos despejados ficou de fazer dó ao mais insensível
dos corações. Penalizados, outros sitiantes quiseram de alguma manei-
ra dar um apoio, oferecer uma ajuda à pobre família. Depois, na cama, na hora de dormir eu choramingava de medo.
Despejados: Así, niñas, les digo... es verdad que tenía la temosa Papai ficava irritado e ameaçava.
malagueña mucha razón, puesto que al fin se quedara... ni cafezal y ni fin- – Trate de dormir, senão vou aí te dar umas correadas5.
ca (sítio) de las bananas.
Não sei o que me dava mais medo, se a grossa cinta de couro
José terminou por aceitar a oferta que lhe fazia o Sr. Expósito cru, ou o escuro do quarto. Um colono me deu um conselho: “Quando
(dono da fazenda vizinha – São Pedro) porque além da moradia, dava você for a um velório, peça ao morto para levar seu medo com ele. É
inclusive emprego. tiro e queda”, garantiu o homem, mas eu lá queria saber de ver morto
Era uma oferta provisória, por isto meses depois mudaram-se algum?
para uma cooperativa. A cooperativa – distante 1km de Itariri, uma adiantada vila –
lidava com criação de gado leiteiro, plantação e beneficiamento de ar-
roz. Oferecia aos seus colonos morada em casas de alvenaria, vendinha
de mantimentos a fiado e deu emprego a todos os Perez.
5 Cintadas.
Notícias de Baunilhas (ES) O colono que se interessasse em plantar para consumo próprio
tinha autorização para usar as terras mais afastadas da colônia.
Lá uma vez ou outra, saudoso, meu pai pegava a caneta e tin- Com meus irmãos mais velhos, João e Arlindo, ocupados em
teiro das meninas e escrevia cartas a seu tio João que ainda morava em guiar os carros de boi, restava a nós meninas ajudar noutros serviços
Baunilhas no Espírito Santo. que não os caseiros.
Assim foi que de posse do endereço (não João, mas seu filho E assim fomos cuidar de uma plantação de feijões. Pitando seu
Orlando) em 1937 apareceu de surpresa na cooperativa trazendo notí- cigarrinho de palha a mamãe nos dava orientação.
cias boas e más de Baunilha. Descalça pela terra fofa já antes capinada, preparada pelos
Mamãe chorou de tristeza quando soube que seus pais e um adultos, eu já abrindo buracos com só uma pressão do calcanhar. Zira
irmão eram falecidos. vindo atrás, neles ia jogando os grãos de feijão e com um movimento,
também dos pés cobria os grãos com a terra. A colheita era um serviço
novamente nosso.
A “Marvada” da Pinga é que “Atrapaia” Além do feijão, plantávamos arroz. Este após ser colhido era le-
vado a beneficiar nas máquinas da própria cooperativa.
Ao fim de um dia inteiro, capinando, roçando de baixo de sol
ou chuva, papai dava uma passadinha na venda para além de matar o Em uma lata (18 litros) torrava o café e depois o pilava em uma
bicho7, ter um dedo de prosa com outros colonos. Numa dessas, voltou outra lata cortada ao meio no sentido comprido. Esta também servia
para sua casa já com muitos bichos na cabeça e armou uma briga feia como torradeira. Nela os grãos crus eram levados a torrar no fogão de
com a mulher que sobrou até para seus filhos. lenha. Durante um bom tempo eu e a Linda mexíamos (o olho da mãe
de vez em quando ali a ver o ponto certo) com um pedaço de pau im-
Tão biritado estava que escorraçou todos porta afora da casa, e provisado em colher.
para mais ser obedecido, empunhou sua espingarda e ameaçou atirar
em quem não obedecesse. Depois de torrados os grãos iam para socar. Na mão do pilão
revezávamos por umas duas horas, cada uma dando 30 piladas.
6 Jeca Tatu – personagem criado pelo escritor Monteiro Lobato para a propaganda comercial
do fortificante Biotônico Fontoura. No pasto ao redor das casas dos colonos, o gado leiteiro rumi-
7 Matar o bicho: tomar uma cachaça. Muitos bichos na cabeça = bêbado. nava e pastava livremente.
A decadência da Cooperativa
A decadência há tempos vinha se refletindo nos negócios da
cooperativa obrigando seu administrador a fazer um corte no pessoal,
motivo porque a nova residência dos Perez passou a ser uma casa alu-
11 Atores famosos do cinema mudo.
12 Étamine é o mais popular dos tecidos para bordar, pois serve para qualquer tipo de peça de
decoração ou uso pessoal.
13 Zefir tecido fino e geralmente transparente de algodão cardado, usado na confecção de
vestes leves, roupas íntimas, de crianças, etc.
14 Zuarte é tecido de algodão, por vezes mesclado, encorpado e tosco, ordinariamente azul
ou preto.
Influenciada pelas fotos da revista, fiz uma caprichada pose de Tão pobre a cozinha da minha mãe tinha sumido.
artista. Estando as fotos reveladas e à disposição para compra, fiquei
triste. Em casa pedi à mamãe, pedi ao titio, ao irmão, ninguém tinha E agora? Pensei, como enfrentar a braveza da minha mãe? Na
dinheiro e não pude comprar as fotos que eu tanto queria. certa ela já soubera do acontecido, pois eu fizera tal alvoroço, e estaria
me esperando com uma varinha de amora, prontinha para me lascar
Em festa na escola, no fim de 1939, recebi o diploma usando nas costas.
um vestido (curto) de tafetá chamalote branco, na cabeça o laço de fita
engomado com farinha de mandioca. Estava mesmo.
O vestido era de segunda mão, quer dizer, já havia sido usado Escapei da surra atravessando a ponte de ferro, indo me refu-
um ano antes e para o mesmo fim por Zira. giar na casa do vizinho defronte à nossa.
De lá, eu espiava a mamãe que estava na entrada de casa do
outro lado do rio e também me olhava.
A Louça perdida no Rio O tempo fechou e passou a chover grosso. O rio enchendo,
anoitecia.
Desci a escadinha lavrada na encosta do rio, em uma tarde,
para lavar a louça nas águas correntes. Enfrentei a chuva e voltei. Em casa da mãezinha entrei. Mamãe
fez que não viu.
Na cabeça equilibrava uma grande bacia de alumínio, com
todos os itens da cozinha, acumulados da noite anterior e do almoço
desse dia. Deixando a Casa Avarandada
Em uma das mãos segurava uma vara de pesca e a isca de mio-
lo de pão. A pesca era uma distração minha, os peixinhos que pescava, O franzino tio Ricardo... para saber como estava ele era só dar
assava-os na chapa do fogão de lenha e depois os comia sozinha. um trabalho estafante ao mesmo. Acreditem, ele dava um duro dana-
À margem do rio chegando, em diminuta enseada, ali deixei a do e parece que essa ginástica até o fortalecia. Ah! Se lá do céu sua mãe
bacia, segui mais rio acima (um ponto mais fundo) para jogar o anzol. pudesse vê-lo! Como estava corado e bem-disposto!
Tão atenta fiquei aos beliscões dos lambaris, que o rio, devagar, Meu irmão João, no vigor dos 20 anos, dependendo do tama-
silencioso enchia e eu distraída não percebi. nho do cacho de bananas, carregava até dois por vez sendo um em
cada ombro.
Em um dado momento em que desviei o olhar para a enseadi-
nha o que vi arrepiou: Na idade dos anseios e fantasias, João vivia a sonhar com hori-
zontes mais amplos. Queria mais que fazer serenatas à luz da lua, que-
A bacia, e dentro dela toda a sua carga, estava sendo levada ria mais que nas novenas das terças na igreja, cantar o Kýrie Eléison17
pela correnteza e seguia rio abaixo navegando tal e qual um barqui-
nho. Rápido, larguei a vara e o anzol e pensando poder cercá-la numa 15 São panelas feitas de ferro ou alumínio e revestidas de esmalte.
curva que adiante o rio fazia, subi a encosta, passei pela frente da nossa 16 A alpaca (liga metálica) é uma liga ternária, composta de cobre, níquel e zinco. Seu nome
casa, tomei um atalho por entre a plantação de quiabos do japonês significa metal branco e também é conhecida como prata alemã.
vizinho e como eu corria. 17 Em grego: Κύριε ελέησον, tradução: Kýrie Eléison, “Senhor, tende piedade”. É uma oração da
liturgia cristã.
O disco de 78 ro-
tações23 foi colocado no
prato da vitrola girou e a
música “Valsa da Espera”
vibrou no ar.
Disco de 78 rpm
29 Tecido de nome derivado de Chan-Tung, cidade da China, produtora de seda. Hoje, o termo
é utilizado para qualquer tecido grosso de aspecto irregular.
Vida nova em São Paulo Na 2ª feira comprei uma mala de papelão recapado e na com-
panhia de um tio (dele) retornei a São Vicente em busca do restante
dos meus pertences.
Na Via Anchieta, por trás da serra colorida pelas quaresmeiras Fiquei então sabendo que Zira dera sua festa, os convidados
em flor o sol se escondia do arrebol33. compareceram (também na igreja), estranharam, lógico, a ausência
Na poltrona do recém-marido eu calada, ia triste, sentindo uma dos noivos, mas comeram, beberam e muito se divertiram.
tal melancolia lembrando das lágrimas da mamãe. No bairro do Cambuci, em um quarto alugado na casa do pri-
Quando o ônibus estacionou no grande asfalto paulistano, era mo dele fomos morar.
fim do dia, estavam já acesas as luzes da cidade grande. Nessa semana Ami levou-me a conhecer outros parentes: um
Querem saber? Eu lhes digo. Claro que fiquei deslumbrada com simpático casal de tios e uma penca de primos e primas.
a cidade de São Paulo, a movimentada Av. Ipiranga, a iluminada Av. São Na casa dos tios, sempre aos domingos éramos bem-vindos
João, o aprazível Largo do Paissandu. para saborear uma macarronada com frango, servido em uma compri-
Foi justamente neste trecho, a Broadway Paulistana daquele da mesa na sala.
tempo, onde Mario o primo, possuía um escritório (o sofá foi transfor- Após a limpeza da cozinha íamos algumas das mulheres nos
mado em cama) onde aconteceu a nossa noite de núpcias. reunir aos homens na comprida mesa para um jogo de pif paf com ca-
cife34.
Estes domingos para mim eram passáveis, eu me distraía, po-
rém, os dias da semana me entediavam.
Varrer a casa da prima, tirar o pó dos móveis, lavar a louça, não
era nem de longe o que eu havia sonhado viver na grande São Paulo.
32 Espécie de vestido fino usado por baixo da roupa para esconder qualquer que fosse a trans- Queria sair mais à rua, conhecer lugares, ir ao cinema, trabalhar
parência.
fora, ter o meu dinheiro.
33 Cor avermelhada do crepúsculo. A hora em que o sol está surgindo ou sumindo no hori-
zonte. 34 Jogo a dinheiro.
São Carlos
Sem dinheiro para o aluguel, o que fazer? Voltar para São Vicen-
te? Isto bem que eu queria, mas e ele?
– Vamos para São Carlos, assim você conhecerá minha irmã
Alba e meu cunhado Zeca, eles moram no centro e possuem uma chá-
cara com casa nos arredores. Quem sabe poderemos morar na chácara, O futuro papai? Como passava ele seus dias?
em troca cuidarei das plantações e ti-ti-ti e ta-ta-ta. Se não der certo, Sempre brincalhão (com os meninos) na parte da manhã en-
você não gostar, prometo que voltaremos pra São Vicente. tretia-se varrendo o quintal, ajudando na pequena horta (da casa do
Confiando nesta promessa fui, aliás fomos. centro) juntando e queimando as folhas caídas dos abacateiros e man-
gueiras.
Um raquítico mandiocal, uns poucos pés de laranja, abóboras,
abacaxi (estes já bicados pelas gralhas). Nisto se resumia a chácara jun- À tarde, após ele ver a irmã e os sobrinhos cruzarem o portão
tando ali algumas galinhas e dois pangarés. E a pequena casa já habi- da rua indo para a escola, corria a se aboletar no banco traseiro do Crys-
tada por um zelador. Disto gostei, porque não era do meu agrado virar ler 1928 capota conversível e aí fazia uma boa “siesta”.
uma chacareira. O cunhado (fiscal viajante) e a cunhada (professora) O carro era usado por Zeca só nos fins de semana para passeio
eram pais de 4 meninos em idade de escola primária. com os meninos ou em idas à chácara.
Alba acomodou-nos em um dos quartos da casa grande do Às noites (não todas) ele saía a bebericar uma pinga nalgum
centro, e ali fomos ficando... ficando... setembro chegou e nós dois ain- bar mais retirado, ou em casa de algum vizinho, e só quando visse “sua”
da lá estávamos. casa às escuras é que se atrevia a voltar. E pé ante pé seguia para o
Do serviço da casa uma empregada dava conta. Bom isso, pois nosso quarto, onde eu deitada na cama, rosto virado para parede, até
assim me sobraria tempo para cuidar do enxovalzinho do nenê. ressonava fingindo dormir.
Alba levou-me com ela às lojas e comprou morim para fraldas, A ele os cunhados davam uns trocados, senão como sustenta-
flanela, cambraia, opala, fustão, rendas, linhas, agulhas... meus dias em ria ele o seu outro vicio, o cigarro Lincoln?
São Carlos eu os passava a confeccionar brassière35, camisinha, pagão, A mim, para satisfazer meus desejos de grávida que era um sor-
toucas, babadores, cueiros dos nenês. vete, lembro bem, dinheiro não ofereciam (verdade que também eu
não pedia), mas nem uma moeda para um picolé.
35 Palavra derivada do francês. Uma espécie de casaquinho de lã feito de tricô ou crochê.
O Vidente
Eu recordava de casos iguais aos meus, acontecimentos com
outras mulheres como o caso de famosa atriz de Hollywood40, anos
atrás ainda rendia assunto nas páginas de mexericos da revista Cine-
Quando as luzes se apagaram, o mexicano veio sentar-se na lândia. Esta atriz, Ingrid Bergman, ao escapar com seu amante, Roberto
cadeira vaga que a amiguinha reservou do seu lado. As duas trocamos Rosselini, para Itália, deixou para trás, com o pai, sua filha com 9 anos
de lugar, claro. Este cuidado, tomei-o por temer que Ami estivesse vi- na época.
giando a mim e não aos poços de petróleo. Eu a admirava, que corajosa!
E depois da casa da mãe não saí, antes de ouvir dela um ser- Alguém, não lembro quem, indicou-me outro alguém, que po-
mão. deria dar-me apoio nesse revés de amor.
– Tenha juízo, minha filha, procure viver bem com o seu marido, À porta da casa desse tal (era um místico) fui bater. Ele mandou
é o melhor que você tem a fazer. entrar em uma sala e sentar em uma poltrona, sentando-se ele em ou-
Mas e o outro, mãe? O que faço? Ele está arrasado. tra à minha frente. Tomando minhas mãos nas suas, perguntou-me em
voz pausada e grave.
– Deixe que se arrase.
– O que a está afligindo? Conte-me tudo.
– Ah! Coitado gosta tanto de mim.
Contei.
– Que coitado nada, mande ele às favas.
O caminho de volta pra casa, eu o fiz, absorta, matutando no
conselho das favas. Já em casa, ao abrir a porta da sala, com esta cena 40 A atriz em questão era Ingrid Bergman. Casou-se em 1937 com Petter Lindström, com quem
me deparei: teve uma filha, Pia. Em 1949 divorciou-se e casou com o diretor italiano Roberto Rossellini, uma
união que causou muita polêmica, pois ambos eram casados quando se apaixonaram e abando-
Ami no rosto estampado um sorriso de vitória, na mão ostenta- naram as respectivas famílias para viverem juntos. Essa paixão fez com que Ingrid fosse acusada
va a nota promissória. Eu não estava aguentando mais, já me sentindo de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas e levou-a a ficar anos sem filmar
à beira de um ataque de nervos. Afirmo a vocês que falar, pensar em nos Estados Unidos. Com Rossellini teve três filhos: Roberto e as gêmeas Isotta Ingrid e Isabella,
abandonar marido, falar é fácil, porém, na hora do ver e acontecer é hoje a atriz Isabella Rossellini. Esse casamento durou até 1957, quando se divorciaram. Foi casada
com Lars Schmidt de 1958 até 1975, quando também se divorciou.
– Não quero ir... vamos voltar... eu não quero ir... Como este, houve outros caloteiros mais.
A Falência
A milagrosa Santa Edwiges não atendera minhas súplicas, mi-
lagres, não me concedera e era eu quem a perdoava, eu entendia que
naquela encalacrada situação Santo nenhum poderia dar jeito.
Então por que tentava salvar o que já estava mais do que per-
dido?
Uma noite de março, Ami fechou o cadeado trancando por fora
a porta da Kelly pela última vez. E saímos sorrateiros pelos canteiros
do jardim, deixando o pouco que restou lá dentro a quem por direito Eu estava com ideias de retornar a São Vicente, mas Ami era
pudesse interessar. contra. E naquela de tão bonzinho que ele estava, em 5 dias empre-
Vem-me à lembrança o que comentava um velho morador das gou-se junto a uma equipe e foi oferecer poços artesianos em casas de
redondezas quando em conversa fiada com o vendeiro ele afirmava: bairro da periferia, onde não chegava a água encanada.
“Aqui nesta loja tem caveira de burro, nenhum negócio vai pra Vi um anúncio no jornal: “Aluga-se quarto para casal, próximo
frente”. Sempre acreditei que esse velho estava com razão. a Brigadeiro e Av. Paulista”. O local era convidativo. Fui ver o quarto, era
espaçoso, aluguei-o.
Se vocês não acreditam, deem uma chegada até lá e vejam,
com seus próprios olhos, como o Minhocão acabou com o bom comér- Jack matriculou-se no curso noturno do colégio estadual situa-
cio local e arrasou também com a praça ajardinada. do na Av. Paulista, onde já estudavam Lena e Marcia as filhas de D. Ire-
ne, a dona da casa. Ficaram amiguinhas.
Se antes entre seus canteiros floridos crianças corriam alegres,
hoje debaixo do seu viaduto dormem tristes mendigos. Quanto ao emprego para mim, não me apressei, teimava em
ser uma vendedora da Loja Mappin, onde eu sabia que pagavam boas
Para não dizer que saímos com uma mão na frente e outra atrás comissões.
daquela falência, ainda salvamos uns trocados e fomos nos acomodar
em uma pensão.
Dor no Peito
– Irene, venha aqui depressa por favor.
1961 – Fevereiro. Foi à noite, por volta das 21 horas. Ami senta-
do na poltrona do quarto espaçoso fumava um Lincoln, entre as traga- Ela subiu, e ao ver seu inquilino gemendo a mão no peito,
das cofiava44 o bigode, enquanto lia X-9 sua policial preferida. “diagnosticou”.
Na cama grande recostada nos travesseiros eu folheava a Que- – É dor no estomago, vou fazer um chá de louro, você vai ver
rida, quando ouvi ai... ai... ai. que assim que tomar ele vai melhorar.
Desviei o olhar para a poltrona pois era Ami quem gemia. Irene desceu à cozinha e logo retornou com uma xícara do chá
prometido, que o coitado até tomou, mas em nada melhorou.
– O que foi? O que está sentindo?
Irene teve a boa ideia que o levássemos ao Hospital Matarazzo
– Muita dor e falta de ar, respondeu sufocado a mão no peito, e ali perto. Fomos cada uma segurando por um braço do doente e assim
levantando veio sentar-se na beira da cama do meu lado. chegamos ao Pronto Socorro. Ami foi prontamente atendido, medica-
Bem era falta de ar, fiz-lhe vento abanando-o com a Querida. do, fez um breve repouso e dessa ele escapou.
44 Afagar, alisar (cabelo, barba ou bigode), passando a mão; acofiar.
No verão 1968-69, a coqueluche47 da moda foram as saias de
crochê em linha. Eu estava no manejo das agulhas e passei fins de
48
O Presente de Jack
Fusca 65 – vermelho cerâmica com teto solar
Minha mãe, Maria Rúbia, a quem Jack carinhosamente chama- – É, tem carro! Respondia outra.
va de vovó Conceição, antes de ir dormir coava um café e o servia à – Apartamentos alugados.
turma animando-os:
– Filha na faculdade de Medicina.
– Trouxe um cafezinho pra vocês, pra espantar o sono.
Elas só não percebiam o evidente. Eu tinha porque economiza-
No total em 5 faculdades foram feitas inscrições para os vesti- va. Enquanto elas desfilavam bonitas roupas, sapatos altos até para ir
bulares: São Paulo (2) – Santos – Mogi das Cruzes – Jundiaí. ao trabalho, eu ia de uniforme e sapato Chispa50. Elas renovavam o pen-
Contávamos que, se a sorte ajudasse, em pelo menos uma Jack teado toda a semana, eu mesma picotava meu cabelo. Elas jantavam
conseguiria ingressar. frango assado, eu comia um pastel. Elas moravam em apartamentos,
eu me apertava em uma casa de cômodos.
Nesse fim de 1970, dei início a uns passeios mais distantes de
São Vicente, pelo litoral Sul, Mongaguá, Itanhaém, etc.
Lógico, meninas, que eu barbeira não iria me expor aos perigos A Partida de Mamãe
de dirigir na movimentada rodovia praiana dos fins de semana. Quem
ia ao volante do Fusca teto solar era um motorista profissional que diri- Maio – Aquela mãe tão querida que tanto fizera por mim sem
gia os ônibus da linha São Vicente e São Paulo. nada pedir em troca, a não ser carinho, adoeceu.
Miro tinha a cara amassada tal como se diz: um maracujá de ga- Uma doença que mais parecia uma gripe, febre, mal-estar.
veta. Era um cara intransigente, irreverente, mas eu gostava desse cara. No entanto, exames feitos revelaram ser doença mais grave:
50 Modelo de sapato barato.
100 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 101
O Fusquinha!!! Que era um bem material, isso eu entendia, mas
Combinamos o casamento só no civil na manhã do dia 17 de ao vê-lo arrebentado, amassado... não pude evitar um sentimento de
junho de 1972 e não haveria nenhuma espécie de recepção. tristeza. Me custara tanto pagá-lo... não estava no seguro...
– Ah! Não! Vou servir um bom almoço aos parentes e podem Do local da batida foi levado por um guincho a uma oficina, de
convidar alguns amigos. onde saiu dois meses depois irreconhecível. Hertz pagou tudo e tam-
Meninas! Vejam quem estava falando! Zira. Era ela quem assim bém o conserto do Opala parado. Perdera o teto solar e sua cor não era
determinava, não parece a vocês a cena de casamento em 1949? mais vermelho cerâmica e sim branco como um pombo da paz.
102 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 103
Nada, Fabinho nem se mexeu. O pai danou-se e meteu-lhe um Eu sou rebelde porque
chute. O chute acertou em cheio, mas foi a longarina da cama.
o mundo quis assim
Resultado, Hertz viu-se obrigado a usar uma bota de gesso por
40 dias. Gina, a marimbondona rebelde, há muito havia abandonado
os bancos escolares.
Lobo em pele de cordeiro Convencida por mim foi estudar datilografia.
Retornava reclamando.
Liza, a mais minha amiga.
– Ah! Mari, aqueles banquinhos sem encosto me dão uma dor
Ela, toda boca da noite, pela porta da frente, vestida com jaleco nas costas...
branco, livros e cadernos debaixo do braço, saía...
O pai ao pagar direto na escola o que seria o 4º mês pelo pró-
– Tchau, estou indo para a escola. prio diretor foi avisado:
Nisto era o que eu e seu pai acreditávamos. O colégio ficava na – Não é justo que eu receba o seu dinheiro se sua filha quase
mesma rua do sobrado. não compareceu às aulas.
Certa tarde de setembro lá ao colégio me dirigi à sala da secre- Em casa chegando ele tentou dar as suas taponas na Gina, mas
taria para tomar informações sobre as notas. ela escudou-se em mim e escapou ilesa. Também conseguiu um em-
Foi-me exibido o livro das chamadas. Faltas desde o início de 73 prego em uma financiadora e lá conseguiu também um noivo.
e a cada mês maior era o número das faltas.
Retornei à casa, na sala encontrei Hertz sentado na sua cadeira Sobrou pra mim
do papai, lendo seus livrinhos de bang-bang. Contei-lhe.
Nossa, para que fui fazer isso? 1974 – Sobrou tapona pra mim porque o que eu temia acon-
teceu.
Deu um pulo levantou-se da cadeira, em dois pulos subiu a es-
cada que levava ao quarto da Liza, que estava lá nessa hora. Pelo portão da rua, pela porta da sala, vindo da agência, entrou
Hertz aos berros.
Subi atrás. Mas já o encontrei dando cada tapona no rosto da
Liza. Gritei. – Onde está você, sua “p...” de motorista.
– Pare, pare... Contaram-lhe meu caso com o cara de maracujá.
Nos dias seguintes é que Liza (rosto inchado) não poderia ir as Um seu colega fora o alcaguete.
aulas. Não fazia diferença pois ela não foi essa semana, esse mês e nem – Cadê você, sua “p...” gritava já na cozinha.
no ano seguinte.
No tanque, eu e a Liza torcíamos a calça jeans dela.
Ficou em casa, ajudando em algum serviço leve, até que em
1974 foi trabalhar no comércio vicentino. Eu a segurando pelo cós, pela cintura, nos quedamos a olhá-lo
boquiabertas.
A Liza ainda...
– Não grita pai, olha os vizinhos.
Ele fez de conta que não ouviu.
104 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 105
Liza na sua ingenuidade insistiu: ramos no sobrado.
– Isso são invenções desses seus colegas invejosos. No quintal ficaram chopp, refrigerantes e salgadinhos.
Novamente foi como se o pai não a tivesse escutado. Na sala em mesa enfeitada, o bolo da noiva e os docinhos. Gina
foi morar no apartamento da sogra perto da Biquinha.
Liza desistiu, a briga não era com ela e resolveu se mandar pra
rua.
Do quintal fui pra sala e ele atrás xingando. Estilo Bucólico
Machista, como se ele não tivesse tido o seu caso antes de me
conhecer. O sobrado, quando conheci seu dono, era desbotado, necessi-
tando de pelo menos uma demão de tinta. Quem o visse passado mais
Cansei. Colocando as mãos nos ouvidos, gritei. de um ano não o reconheceria. O dinheiro da venda da minha quitine-
– Pare, chega, chega... te em São Paulo foi gasto em uma reforma.
Ele avançou a mão erguida. Pensei é agora a vez das minhas Novos pisos, novas portas e janelas. Na frente parte alta foi
taponas. acrescentada, uma sacada em estilo colonial e nela colocamos rede,
pilão, cadeira de balanço, samambaias.
Mas o que ele fez foi apertar-me a boca como a querer que me
calasse e tanto apertou, tanta força que me travou a mandíbula. Na entrada da rua um caramanchão55 florido servia de abrigo
para o Fusca.
A seguir deixou a sala subiu para o quarto, mas já no pé da es-
cada, virou-se para mim e apontou o dedo: Amigos entendidos elogiavam.
– Fique sabendo que amanhã vou falar com ele, quero tirar essa – Hertz sua casa ficou bonita, está assim em estilo bucólico56.
história a limpo. Sendo nossa união com separação de bens, Hertz, ao firmar a
E foi. Mas, claro, Miro negou tudo, que de tolo ele nada tinha, escritura, deu-me 50% em direitos sobre o sobrado.
muito pelo contrário e deve ter-lhe contado mentira bem convincente Os motivos do porquê Jack não ter ido morar no sobrado foram
porque voltou de tal conversa jururu. vários, ela estar bem na casa dos tios, não ter acomodações a seu gosto,
No quartão dos fundos eu arrumava uma colcha de retalhos. e para evitar o inevitável ciúme entre enteadas.
Para lá ele foi, sentou-se e, ora vejam, chorou. Contudo, aos sábados, domingos, dia santo de guarda, férias,
Lágrimas de Crocodilo54. Se pensam vocês que me comoveram feriados, em que não houvesse aula na faculdade ela aparecia em de-
suas lágrimas enganam-se. Estava mais preocupada com minha man- moradas visitas à casa de sua mãe e já acontecia o inevitável ciúme.
díbula travada. Hertz que com os filhos era severo e durão, com a enteada
Só podia tomar líquidos, sarei com terapias feitas no Hospital mostrou-se justamente o contrário: era amável, proseador.
São Lucas. Eu já via olhares de esguelha, pisar duro, negação de cumpri-
Os preparativos para o casamento da Gina acalmaram os âni- mento.
mos exaltados do marido enfezadinho. Jack deu início a um namoro com Jardel, um rapaz dos cabelos
Ele elegante em terno azul claro, conduziu a noiva até o altar da crespos muito parecido com Rivelino um jogador bonito da Copa.
igreja Matriz de São Vicente. 55 Estrutura leve construída em parques ou jardins, geralmente de madeira, que se pode cobrir
de vegetação e usar para descanso ou recreação.
Gina estava muito bonita. A recepção aos convidados a prepa- 56 Bucólico significa campestre, rural, gracioso. Refere-se à natureza e às belas paisagens do
54 Choro hipócrita, lágrimas fingidas. campo. Significa também ingênuo, simples ou puro.
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Jardel bem simpático, foi outro a cair nas boas graças do dono Chega a primeira neta
do sobrado.
26 de Julho de 1976 – Dias dos Avós e dia de Santa Ana. Dia
bem sugestivo para se ganhar a 1ª neta.
O Rompimento
Na noite desse dia, na Santa Casa nasceu a filha de Jack e Jardel,
Junho – Gina, já mãe de uma nenê, andava às turras com a so- uma menina com cabelos crespos e olhinhos pretinhos que pareciam
gra e o marido. Pretendia separar-se e voltar a morar no sobrado. até ter sido pintados a nanquim.
Certa noite isso ela pediu ao pai tendo como resposta um curto Na manhã do dia 27, já na cama da enfermaria, Jack feliz acon-
e grosso não. chegava sua nenê, Jardel não arredava o pé da beira da cama, amigos,
parentes entravam e saiam em visitas e comentários se ouviam:
Reagiu malcriada atirando pedras no Fusca, se pegando aos ta-
pas com Jack. – É uma gracinha!
O pai acabou por lhe dar uns bofetões. Só assim ela se foi e – Uma carinha redonda.
nunca mais voltou ao sobrado e nem mais falou com o pai. – Rechonchuda...
Eu e a vó Linda desde cedo ali corujamos nossa 1ª netinha. Em
certa hora Dr. Ary apareceu em visita à sua colega e olhando para o
Jack Vai Casar lado, onde estávamos eu e Linda, ele fez este comentário:
Janeiro de 1976 – Linda, irradiando felicidade e vestindo um ro- – Ela se parece com a senhora!
mântico vestido em renda branca, Jack na igreja da Pompeia casou-se A vó Linda sorriu orgulhosa, pois era com ela que o Doutor di-
com Jardel. zia a nenê se parecer.
Ele também bonito trajava um Smoking da cor de leite. O nome, Jack preferia Aline, Francine, mas o pai, que estava ir-
Até o altar a noiva foi pelo braço do tio Zezé. redutível em Juliana, venceu.
A recepção foi realizada em um elegante Buffet, onde gar-
çons uniformizados passavam pra lá e pra cá, servindo apetitosos sal-
gadinhos fritos na hora, coquetéis variados, meia de seda, aperitivos, Aguenta Coração
Whisky, cerveja, etc.
Novembro – A vida do Hertz teve recomeço neste quase fim
Nesta festa extrapolei, pois tantos salgadinhos fritos na hora de 1976, no Hospital Beneficência Portuguesa (SP), às custas do antigo
comi, coquetéis e meias de seda tomei que além de enjoada fiquei bê- INAMPS (atual INSS) em cirurgia cardíaca realizada pela equipe chefia-
bada. E foi tanto, que Hertz viu-se obrigado a levar-me da festa. da por Dr. San Juan, foi retirada a válvula mitral doente do peito de
Em casa entrei de colo carregada por ele. Hertz e em seu lugar implantada uma artificial. Entre preparo, opera-
ção, U.T.I. repouso, foram mais de 20 dias.
Foi assim que perdi o melhor da festa, o estourar do champa-
nhe, a fatia do bolo da noiva e a partida barulhenta do carro dos noivos O que sobrou para mim foi carregar sacolas pesadas com pija-
para a lua-de-mel em Ubatuba. mas, refrigerantes, frutas, livros de bang-bang por ônibus, metrô, ladei-
ras, viadutos, corredores, até chegar à cama do doente.
Jack e Jardel, ao regressarem da lua-de-mel foram morar em
um apartamento no bairro Gonzaga. Hertz teve alta bem a tempo de poder comparecer a uma es-
plendorosa festa de Gala no Anhembi, a festa da Formatura dos alunos
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da Faculdade de Medicina de Mogi das Cruzes. Três dias depois, com o aval do pai, Fábio e Liza mudaram-se
para o centro, em uma quitinete minha e que por coincidência encon-
Entre estes alunos estava a Dra. Jaqueline.
trava-se vaga a espera de inquilino.
Maio de 1977 – Lembro bem do dia 29 e até da hora, 1 da ma-
drugada, Jack chorando batendo à porta do sobrado.
– Não quero mais saber dele... Consultório
Brigas com Jardel. Mais reformas no sobrado: o quarto dos fundos com entrada
Em um quartinho (antiga copa) onde mal cabiam uma cômo- independente foi ampliado e transformado em consultório médico,
da, um guarda-roupa e cama de solteiro, ali acomodei as duas. com sala de espera e de consulta, banheiro, cozinha, área de serviço,
prateleiras para remédios. Hertz construiu maca, reformou escrivani-
Dias mais tarde, apertando mais um pouco, ainda coube um nha, estendeu fio telefônico.
berço.
Retirando alvará, conseguimos convênios os Banespa, Cosipa
A vó Linda aparecia algumas noites a pedir à nora que retornas- e Unimed.
se ao seu apartamento e ao marido. Pediu em vão, Jack jamais voltou
para nenhum dos dois. Na frente foi pendurada uma placa com o nome da pediatra
Jaqueline.
E os clientes foram aparecendo.
Então é Natal
Seria uma noite feliz, pois foi para isso que eu e Hertz nos es- Aposentadoria
meramos tanto. Ele estirando o cordão de luzes coloridas na sacada,
temperando pernil, estocando a geladeira, eu enfeitando a mesa com Fim de 1978 – Hertz aposentou-se do serviço da agência. Assim
sinos e festões, sobre ela já postas as castanhas, avelãs, nozes, paneto- foi que saímos em excursões e longas viagens no Fusca Bege Ipanema
nes, vermutes. para a cidade de Santa Catarina, terra dele; e para o distrito de Bauni-
O presépio e a árvore de natal eu já armara havia dias. lha, estado do Espírito Santo, minha terra natal.
Portanto seria uma noite de paz, não fosse ter havido uma ba- Nas viagens a dois, como se fossem férias conjugais, nos sentía-
te-boca entre Liza e Jack. mos muito bem. Porém retornamos à rotina caseira diária.
No calor da discussão, Jack agarrou pelo gargalo o litro de ver-
mute e brandindo-o no ar avançou para Liza, o litro escorregou-lhe da Outra Válvula
mão e espatifou-se no piso da sala. Sobrou para mim a limpeza.
Hertz considerando esta atitude da enteada um tanto agressi- 1979 – Era uma 2ª feira, Hertz com internação já marcada para
va para ele, e não querendo interferir, escapou para os lados da praia. 4ª feira, na Beneficência Portuguesa, mais uma troca da válvula, talvez
Eu, que nem notara que Fabinho também sumira, só me dei esta a causa do seu nervosismo, nessa 2ª à tardinha.
conta quando o vi apontando no portão da rua com a viatura da polí- Para o lanche da noite eu pedia-lhe que fosse comprar o pão na
cia, que fazia ronda na Praça Barão do Rio Branco ali perto. padaria B. Ele (na cadeira do papai), turrão teimava que iria na Padaria
E a noite natalina foi passada, boa parte dela, com as duas bri- C. E nesse vai, não vou terminei mandando-o:
guentas prestando contas ao Delegado de plantão. – Então vá pra P... que o p...
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Danou-se e veio pra cima de mim (eu no sofá deu-me com o Um Novo Amor para Jack e
punho fechado) umas socadas no meu cocuruto.
a Segunda Neta
Jack estava ausente, na casa da amiga Vanda, mas retornou
bem a tempo de ir comigo dar queixa da agressão na delegacia. Ain- 1981 – Silas, conhecido comerciante em São Vicente era o novo
da não existia a delegacia da mulher, mas na comum mesmo fui bem amor de Jack.
atendida.
Poucos meses depois de o conhecer, foi com ele morar no meu
Ao voltar para casa não mais o encontramos, soube depois que apartamento com vista para o mar da praia do Itararé e levou com ela
foi chorar as pitangas na casa da sua irmã. Decerto falar mal de mim. E a Juliana.
só retornou na 3ª à noite. Na 4ª cedo acordei e percebi que ele colocara
o necessário na sua maleta, para a internação. Todas as tardes em que houvesse consulta marcada, aparecia
para atender seus clientes e trazia a Ju.
Eu, indo ao banheiro, ao olhar-me no espelho, vi não uma, mas
sim duas olheiras negras, causadas pelas socadas. Que ódio. 1982 – Pelo ultrassom, os de casa e os amigos já sabiam que o
bebê na barriga da Jack era uma menina – Jennifer.
Do banheiro dirigi-me à sacada e lá fiquei aguardando sua saí-
da. Depois fui para o hospital de ônibus. Dia 12 de Março, no hospital dos Estivadores, na sala de cirurgia
Jack se submetia a uma cesariana. Ela tinha ao seu lado a amiga Vanda
Quando ele, portando sua maleta, cruzou o portão da rua, às (funcionaria do Hospital) dando-lhe um apoio nessa hora difícil, embo-
suas costas gritei bem alto: ra feliz.
– Tomara que você morra! Próximo dali na sala de espera eu mais Silas, aguardávamos.
Putz, que boca a minha. Ele nervoso, sentava levantava, andava, fumava e para mim
Essa 2ª troca da válvula mitral, também às custas da Previdên- nem olhava, muito menos sorria.
cia, foi realizada pela equipe do Dr. Jatene e transcorreu normalmente. Passado um tempo, que para o nervoso pai deve ter parecido
Zangada, não carreguei as sacolas. um tempão, apareceu Vanda e trazia novidades.
Logo após a cirurgia, na UTI, ele contraiu uma brava infecção, a – Uma menina tão bonitinha, engraçadinha, ela é uma graci-
endocardite bacteriana. nha... Vanda eufórica só falava da nenê, mas eu era uma mãe preocu-
Aos nossos telefonemas, a cada saída do boletim médico (três pada...
vezes por dia) a resposta era sempre grave, isto por 5 dias. – Mas Vanda, e a Jack? Ela está bem?
Mas antes quero contar que no 3º dia do grave, a delegacia Claro mãe boboca que estava bem, se não Vanda não estaria
mandou intimação. Queriam saber se eu iria continuar ou iria desistir tão alegre...
da queixa. Como continuar se o marido nem morrera e eu já me consu-
mia em remorsos? Desisti. – Mas, venham, venham – dizia Vanda – que a maca com as
duas já vai para a enfermaria e vai passar aqui no corredor.
No 6º dia da UTI ele melhorou e mandaram-no para enfermaria.
Fomos. A maca de fato já vinha e parou bem junto a mim e a
E lá voltei eu com as sacolas por ônibus, metrô, ladeira. Porque Silas. Na maca, deitada, Jack feliz e a seu lado a sua nenê.
ele, que era forte como galho de goiabeira, vergava, mas não quebrava
e venceu a endocardite. Tinha razão Vanda, uma gracinha, os olhinhos pretinhos, pare-
ciam duas jabuticabas, a boquinha, os cabelos enroladinhos, o narizi-
nho... ai não resisti e falei:
– Silas, ela se parece com você!!!
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Só aí, então, Silas me olhou e sorriu um largo sorriso de satis- para a Beneficência de São Paulo, onde foram realizadas as três trocas
fação. da válvula mitral, sendo que a última há pouco mais de um ano. Jack
fretou uma ambulância equipada com oxigênio, enfermeira e até um
O nome da nenê gerou pequena rusga, pois Jack queria o
cardiologista. Jack e eu fomos na boleia ao lado do motorista.
nome Jennifer, mas Silas preferia Tiana.
Com a sirene ligada, a ambulância subiu a Imigrantes e, che-
E pela paz conjugal ficou o nome da nenê Jennifer Tiana.
gando à recepção do Hospital Paulistano, foi o paciente direto para o
leito da UTI.
Mais uma internação Passados 4 dias melhorou da dispneia, sendo então transferido
para a enfermaria.
Entre três cirurgias para troca da válvula mitral, aconteceram Porém não se passaram 5 horas e foi obrigado a retornar à UTI.
também várias internações do Hertz na Santa Casa de Santos onde
Jack era uma das plantonistas, quando só assim Hertz era aliviado das Havia contraído a brava endocardite.
crises da dispneia. Recomeçaram as indagações telefônicas a cada saída do bo-
Liza trabalhando, casada e com uma filha, mesmo assim era a letim médico. E igual a vez anterior a resposta era grave, grave. Não
que mais comparecia frente ao leito do pai na enfermaria. podíamos entrar na UTI (só Jack como médica).
Fábio bem pouco e Gina desde a briga de 1975, nunca mais. Liza, no domingo dia 6 de maio, lá estava a saber notícias do
pai. Revezamos nestas idas.
Dezembro 1982 – A 3ª troca da válvula mitral, como as 2 ante-
riores foi realizada no Hospital Beneficência Portuguesa (SP), também De lá, na tarde do dia 6, Liza ligou-me: O médico analisava que
as custas do INAMPS (INSS) e a equipe responsável foi a chefiada pelo seu pai piorara bastante, que poderiam esperar o pior, era bom que eu
Dr. Macruz. subisse.
Essa nova válvula era em metal cirúrgico e a operação transcor- Fomos Jack, eu e ela. Na subida da Imigrantes o Passat encren-
reu sem complicação, normal, e como as outras, por 20 dias carreguei cou, pifou, obrigando-nos a acenar para o ônibus. Passavam todos lo-
sacolas com livros, pijamas, frutas, de ônibus, metrô, ladeiras, etc. tados, pois era domingo à tarde. Custou, demorou até que um parasse
para levar-nos até o metrô Jabaquara.
No dia de Natal, Hertz já se recuperando no quarto da enferma-
ria, levei uma sacola especial com pernil, farofa, castanhas, maionese e E entre metrô, viaduto, ladeiras chegamos já bem noite à frente
até uma garrafa de champanhe. E nesse dia feliz, juntos almoçamos e da porta fechada da UTI e aí já encontramos sentados em um dos ban-
até tomamos a champanhe. cos os meus 3 enteados. Até Gina, que em vida não visitava mais o pai,
“agora” na hora da morte ali estava.
O dia de Ano Novo, Hertz já o recebeu comigo e a turma de
casa, entre os fogos da praia do Itararé. E que caras! Certo que o momento não era para sorrisos. Até a
Liza que senti sendo policiada pelos dois irmãos.
Seria inevitável ciúme? Seria porque só Jack como médica en-
2ª Viuvez – Cena Do Velório trava na UTI?
Após meia-noite os 4 cochilaram nos bancos, não eu.
Abril 1984 – Uma persistente dispneia obrigou Hertz a inter-
nar-se na Santa Casa de Santos. Dias se passaram e seu estado não me- As horas passavam e lentamente veio a madrugada, eu ainda
lhorava. com a esperança de ver aquela porta fechada se abrir e por ele sair um
médico da equipe a nos dizer que, como da vez anterior, Hertz vencera
O cardiologista orientou sua colega Dra. Jaqueline que o me- a endocardite.
lhor a fazer seria que ela providenciasse a remoção do seu padrasto
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Meus olhos estavam secos, minha cabeça tinindo, jamais es- Bem, chega de prosa e verso e retornemos à cena do velório,
quecerei, foi uma noite de cão. que quase virou cena de pugilato.
Amanheceu, manhã do dia 7 às 9h30 enfim a porta foi aberta À pergunta desaforada do enteado respondi como exigia a
para dar passagem ao médico em pessoa: ocasião, fazendo drama.
– Quem é a esposa do Hertz? – Não me interessa o que vocês pensam, o que importa é o que
sinto no meu coração.
Levantei-me.
Jack, mais atrás, abriu caminho adiantou-se e xingou Fábio.
– Fizemos todo o possível, mas essa endocardite veio muito
forte. Sinto muito, o Hertz acaba de falecer. E mais Jack não fez porque foi segura por Silas:
Caixão, traslados e outras burocracias, Jack mais lúcida provi- – Não se meta que não é com você.
denciou.
– Mas é com a minha mãe, esbravejou Jack.
Sala para velório, cemitério, enterro, Linda em São Vicente, cui-
Nisso, Liza, esquecida talvez das taponas, colocou as duas mãos
dou.
na cabeça e chorando pediu.
A noite do velório foi para mim estressante eu já com a véspera
– Por favor respeitem-no ao menos depois de morto.
sem dormir.
Calou-me, calaram-se.
Dia 07 às 10 horas – hora marcada para o enterro, acerquei-me
da cabeceira do caixão para a despedida. Também porque os homens da funerária, com a tampa do cai-
xão nas mãos, resolveram que era bem hora de fechar o caixão para
Por entre as lágrimas notei que enfiado num terno azul, Hertz,
saída para o cemitério.
podia-se dizer, era um morto bonito. Também os amigos e parentes es-
tavam ali solidários com minha dor. Meus olhos bateram de frente com O enterro saiu e Hertz foi levado à sua última morada e sem
os olhares de ódio com que me fitavam Fabinho e a cunhada. mais discussão foi sepultado no tumulo 28 – Quadra – 6 do Cemitério
da Areia Branca.
Da boca de Fábio ouvi palavras de ironia:
– Você agora deve estar bem satisfeita, não?
Ora, vejam vocês, que culpa tinha eu?
Se quando conheci Hertz, ali deitado a minha frente, em seu
leito derradeiro, não tinha ele já se submetido a uma operação cardía-
ca?
Baseado em que me acusava o enteado? Nas brigas rotineiras
entre marido e mulher? Isso até poderia ser. Mas só eu? E o morto?
Porque morrera virara um Santo? Fábio por certo esquecera o chute na
longarina da cama.
Não o culpo. Também eu não estava ali chorosa, esquecida da
mandíbula travada.
O enteado, isso sim, deveria era me agradecer os 12 anos que
ao meu lado seu pai sobreviveu. As tantas sacolas que por metrô e la-
deiras carreguei.
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dade do Rio de Janeiro as levei e foram muitas vezes.
A vida assim transcorria calma e serena e eu me sentia livre,
PARTE 4 – SIMPLESMENTE MARIA leve e solta.
Passou-se o tempo e os manuscritos desta minha história per-
EPÍLOGO maneciam guardados com carinho em uma gaveta, confesso que por
estar em um período de calmaria não tive vontade de acrescentar algo
Viagens mais, até que em 2014 minha neta Jennifer casou-se com Thomas Ar-
raes e passou a assinar Jennifer Tiana Bonugli Alves Arraes. Da união
Depois da morte de Hertz, de- dos dois Deus me deu o privilégio de ser bisavó duas vezes: Sophia e
cidi que viajaria Brasil afora. Bernardo57. Nasceram lindos e saudáveis.
A Juliana optou por ser uma mulher livre e independente e por
De malas enquanto não pensa em casar-se.
nas mãos visitei
muitos lugares Minha filha Jaqueline continua sendo minha grande compa-
nos anos 1980, nheira.
1990 e 2000. Fui Ah! Todos vivemos em São Vicente!
d o Rio Grande do Sul
ao Amazo- nas: Manaus – AM,
Belém – PA, Ilha do Marajó – PA, For- A Família Reunida
taleza – CE, Natal – RN, Maceió – AL, Belo
Horizonte – MG, Vila Rica – MG, Diamantina –
MG, São João Del Rei – MG, Araxá – MG, Vitória
– ES, Baunilha – ES, Serra – ES, Vila Velha – ES,
João Pessoa – PB , Re- cife – PE, Olinda – PE, Garanhuns
– PE, Salvador – BA, Caldas Novas – MG, Rio de Janeiro
– RJ, Petrópolis – RJ, Campos – RJ, Niterói – RJ, Paraty –
RJ, Curitiba, Guaíra – PR, Porto Alegre – RS, Pantanal – MT, Pal-
mas – TO, Foz do Iguaçu – PR.
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