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Uma Vida

pra Contar:
Maria Perez Rubia

Maria de Toledo Bonugli

Maria Klomfass

ou

Simplesmente Maria
2017
Dedico para as
minhas netas Juliana e Jennifer, a quem
dediquei meu amor, meu carinho e todas
as minhas forças. Elas são a razão desta
obra. Meu legado, minha herança.
Dedico também a todas as
Marias que, por este Brasil afora, renascem a
cada dia!
Santos, março de 2017
PRÓLOGO
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá
A Dona Maria me foi apresentada por meio de pontos, le-
ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quais-
quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gra- tras, palavras e acentos. Tivemos um único encontro, mas posso
vação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados dizer que a conheço melhor que muita gente.
sem a permissão escrita da editora, autora e familiares. Você pode dizer: “Mas por que escrever um livro para con-
tar a vida de uma pessoa qualquer”?

Edição, Revisão, Preparação de Texto e Pesquisa Bem, eu posso dizer que não é uma pessoa qualquer, nem
uma história qualquer.
Gisele Esteves Prado
A Vó Maria – assim aprendi chamá-la – tem uma história
singular.

Editoração e Diagramação Uma mulher sempre muito à frente de seu tempo que co-
meçou praticamente do nada e que chegou a ter imóvel e carro
Fox Assessoria de Comunicação S/C Ltda. em uma época que só os ricos possuíam.

Uma mulher independente, que não teve medo de re-


Capa construir a vida quantas vezes fosse necessário e muito menos de
contar sobre seus tombos, deslizes e batalhas para as suas netas.
Foto do acervo da autora.
Ela errou? Acertou? Isso não faz diferença, porque ela VIVE
Criação: Gisele Esteves Prado intensamente cada momento, seja ele triste ou alegre. Consegue
fazer dos limões jarras e jarras de limonada.

As fotos verdadeiras ela disse não querer colocar muitas


porque traziam lembranças tristes... então optamos, eu e a famí-
lia, por usar imagens meramente ilustrativas, exceto uma ou ou-
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
tra foto que são reais.
Os nomes, quase todos foram trocados.
Impresso por Polo Print
Os nomes dela, do 1º marido, da filha e das duas netas
foram preservados. O dela, porque é a autora. O do marido por
já ter falecido e da filha e das netas, por opção das mesmas, por
sentirem orgulho da herança deixada a elas em forma de história. PREFÁCIO
Ela me contou que quando saiu em viagem pelo Brasil
Maria, minha mãe… batalhadora, positiva, empreende-
afora, nos momentos de solidão começou a escrever este livro
dora, sempre pensando à frente. Na minha infância trabalhava
que deixaria para as netas como herança de uma bela história vi-
muito, tinha que manter a casa, pois na maioria das vezes só ela
vida. Terminou sua obra em 1994 e a mesma ficou lá, em alguma
trabalhava. Mas no Carnaval sempre achava tempo pra fazer uma
gaveta.
fantasia pra mim, e ainda bordava.
Um dia, eu estava cansada de não ter trabalho e perguntei
Na minha adolescência, sempre com a angústia de que eu
em uma rede social se alguém teria um trabalho para mim. Fui
poderia ficar sem ela, sua preocupação era me profissionalizar.
então abordada por um ex-aluno querido que perguntou se eu
Fui para um curso de corte e costura; depois fiz o curso Normal,
fazia revisão de textos. Ora, era meu ofício desde 1993! Paralelo
me formei professora e, por fim, médica.
ao ofício de professora.
Sempre ao meu lado, amiga, companheira. Sempre perto
Esse ex-aluno e agora amigo era nada menos que Tho-
de mim me apoiando em tudo. Fizemos muitas viagens juntas
mas Arraes, o marido da Jennifer, uma das netas da Dona Maria.
(eu, Ju, Je e ela), fomos em excursões para o Rio Quente, Rio de
Ele me contou a história e começamos a reconstruir aquele livro
Janeiro, Foz do Iguaçu, onde nos divertíamos muito.
que estava um pouco no computador, um pouco impresso e com
muitos erros de digitação, pois fora digitado em uma papelaria. Depois, com as meninas grandes, estava sempre atrás das
Os originais manuscritos não existiam mais e foram horas de áu- cortinas comigo para trocá-las nos shows de patinação.
dios trocados com a Jennifer no WhatsApp para solucionar “n”
dúvidas da minha parte. Todos os dias a Jenni levava para a Jack Este livro vai ser um apanhado do que foi e ainda está sen-
e para a avó uma lista imensa de perguntas. Todas respondidas. do sua trajetória.

Me apaixonei pela história, me embrenhei em estudos e Tantas Marias…Maria, Mariquinha, Maricota, até a bisa
todas as notas de rodapé e imagens são frutos da minha pesqui- Maria (como sua bisneta Sophia a chama) – mais um fato conse-
sa a partir das pistas dadas pela autora. guido por ela. Agora bisa do 2º, Bernardo, e sempre pronta para
mais.
Sinto-me muito feliz em poder participar da realização do
sonho da Dona Maria, da sua filha e netas. Sempre teve cabeça boa e, apesar dos problemas vividos,
goza de perfeita saúde até hoje e nunca teve nenhuma doença
Tenho certeza que você se apaixonará assim como eu por dos tempos modernos.
estas três, ou quatro, Marias.

Gisele Esteves Prado Jaqueline de Toledo Bonugli


SANTOS, 2017.
A Filha
Falar de uma mulher excepcional não é fácil, mas vou ten- Falar da minha avó…
tar.
Depois de ler o livro, eu conheci mais da vida dela e des-
Acredito que a minha avó seja a mulher mais forte com cobri o motivo de tanta força interna. Apesar de miúda e franzi-
quem já tive a honra de conviver. Sim, foi ela que transformou na, dentro dela mora ainda uma mulher forte e batalhadora, que
sua única filha e minha mãe em costureira, professora e médica. suportou tudo e todos até conseguir realizar os seus desejos de
moça e o desejo de sua filha querida: ser médica.
Foi ela, a garota pobre sem graça e talentosa, em meio a
um monte de irmãos, empregados em um sítio de bananas, que Hoje ainda vejo sua disposição: aos 89 anos ela arruma
se tornou responsável por tudo de bom que a vida nos deu. força pra brincar com a bisneta mais velha, de 4 anos e fôlego pra
passear, de um lado pro outro da casa, com o bisneto de menos
Talvez ela não conte todos os detalhes, todos os sacrifícios de 1 ano no carrinho.
que ela fez para transformar minha mãe em médica e muito me-
nos após meu nascimento tudo o que fez por mim! Sempre disposta a curtir todos os momentos com eles,
nunca se nega a me ajudar a olhá-los ou cuidar deles. Fico imagi-
Vovó, eu lembro de tudo: das minhas sextas-feiras felizes, nando o esforço físico e mental que ela faça por tudo isso.
quando você deixava eu ir de sandalinhas para escola, ao invés
de minhas botas ortopédicas de costume (que usei dos 2 aos 6 Me sinto privilegiada por ter um livro escrito por ela em
anos); de todas as terapias após as injeções que minha mãe me nossa homenagem, dedicado a nós, suas netas e filha e por Deus
dava; de levar o poodle Popy Xuxu para doação; de fazer de tudo me dar uma avó tão batalhadora e tão rica em histórias… um
para me embarcar de última hora em um navio com você; de con- exemplo de perseverança e vida! Muitas das histórias contidas
versar com Orlando Orfey porque eu queria ser artista de circo; aqui ela já havia me contado em nossas inúmeras viagens e pas-
de me levar várias vezes à gravação da Xuxa no Rio, sem contar seios . Perdi as contas de quantas vezes fui com ela para o SESC de
as revistas que comprava para minha coleção de fotos dela; todas Bertioga – lá eu era sua parceira de buraco, tranca, rouba monte,
as viagens que me levou; de todo amor que me deu até hoje, pois pif paf, bocha, malha… até de torneios participávamos! Ubatuba
te ver na sala do Sírio em São Paulo, esperando por mim em um – onde surfávamos, ela na sua prancha de isopor e eu na minha
exame que eu estava com tanto medo foi uma grande emoção!!! Mach 77; Rio de Janeiro pra ver a Xuxa e a pedido da minha irmã,
fã de carteirinha, fazíamos ela ir atrás das paquitas também, levar
De você, vovó, eu poderia escrever um livro inteiro. So- cartinhas escritas por ela e depois nos ligar contando como foi –
bre nossas histórias... Mas este livro é apenas sobre você, e como isso quando não íamos junto.
você conseguiu vencer e construir esta linda família!!! Devemos
tudo a você, nunca se esqueça disso, foi tudo graças a você, que Ah, vó... se você soubesse o quanto é especial e o quanto
sempre batalhou e nunca desistiu! nos enche de orgulho e nos faz querer seguir o modelo de luta
que a senhora é… Espero que todos curtam as histórias da mi-
nha avó como eu curto até hoje.
Juliana Bonugli Lopes
Jennifer Tiana Bonugli Alves Arraes
(A neta mais velha)
(A neta mais nova)
PARTE 1– MARIA PEREZ RÚBIA

INFÂNCIA NO SÍTIO

O trem que partira de Santos, em 1929, trazendo em um dos


seus vagões o pessoal capixaba, parou espalhando fagulha e fumaça
na pequena estação da Caixa D’Água1 em Itariri.

Estação Caixa D’água – Itariri

Da estação seguiram por uma estrada, mais uma subida e vi-


ram-se todos no centro de um grande terreiro, diante de uma casa, as
paredes em taipa, coberta com sapê e chão de terra batida.

Era o fim da jornada. Estavam no Sítio de Bananas. Cercando o


terreiro, um malcuidado jardim onde floresciam, entre muitas outras
flores, Boca de Leão, Camaradinhas, Onze Horas e Cravos de Defunto.
1 Caixa d’Água – Nome do lugarejo. Por ser a máquina a vapor, era obrigada a fazer uma parada
mais longa, a fim de reabastecer sua caldeira na grande caixa d’água, na estação existente.

Maria Perez Rúbia 11


À direita de quem do terreiro para a frente da casa olhasse era de despejo.
o bananal, que não era grande.
No Sítio nasceram meus irmãos Linda, Zezito e Chiquinho. Os
Beirando os pés de bananas, um caminho de aproximadamen- três foram batizados por filhos e esposa do Sr. Simões.
te 200 metros levava a uma cachoeira com pequena queda d’água que
Há tempos minha avó paterna, Maria Perez, vinha padecendo
corria pela baixada defronte à casa, formando um riacho.
vítima de uma irritante doença de pele. Outras complicações de saúde
Já eram 16h e estavam todos com fome. Alguém foi ao centri- apareceram neste início de 1934. Papai tentou convencê-la a fazer uma
nho comprar farinha e sal, um foi à cachoeira buscar água, outro catou consulta médica na Santa Casa de Santos. Porém, a teimosa malague-
gravetos e logo minha mãe Maria Rúbia estava assando uns pães no nha, com receio de que a deixassem lá internada, nem a muque quis
forno de barro que no quintal encontraram. subir no trem. Maria Perez faleceu em junho de 1934 quando comple-
taria 74 anos.
Aproveitando a parada que os dois trens da manhã (Santos /
Juquiá) faziam, mamãe, a nova Dona do Sítio, vendia aos passageiros Maria Arrebola, minha bisavó paterna, sobreviveu à sua filha
bananas, laranjas, mexericas... por 6 meses. Desde os tempos em Baunilha (ES), como já sabiam, ela
caducava. No entanto, essa sua caduquice parecia vaciná-la contra ou-
Meu pai José, com a espingarda que fora de meu bisavô Ma-
tras doenças, pois sempre gozou de boa saúde.
noel, caçava nas matas próximas, tatu, lagarto e outras caças menores.
No Rio Areado ele armava um covo2 e pescava traíras e bagres. Uma das suas manias era pedir à mamãe que fosse assar pães
para servir às visitas que se encontravam na sala, quando na sala não
Um carregamento de poucos cachos de bananas nos vagões
tinha visita nenhuma. Outra: da soleira da porta da casa de sapê, ela
do trem, estes somados à venda das frutas ia ajudando minha família,
chamava:
os Perez, na dura sobrevivência no Sítio.
– Vengan, vengan a mirar! (Venham, venham ver!)
Na máquina de costura de mão, quem mais lidava era minha
mãe, só para os de casa. Tudo que ela sabia em matéria de linha e agu- Os adultos não; diziam estar cansados de ver as musarañas3 da
lha lhe fora ensinado por sua sogra Maria Perez. bisabuela, mas os netos brincando pelo terreiro corriam a rir e a ver:
dentro da sala, bisabuela apontando um baú com a tampa erguida, eu-
Na intenção de receber a importância devida pelo comprador
fórica, exclamava:
do cafezal, Maria Perez (minha avó paterna) e seu filho Ricardo (meu tio
por parte de pai) fizeram uma viagem de volta a Baunilha/ES, porém – Miren, miren! Hay dinero adentro del baul! Nosotros quedamos
retornaram com as mãos abanando. O cafezal, que tínhamos lá, fora ricos, nos quedamos ricos... (Olhem, olhem! Há dinheiro dentro do baú!
vendido no Espírito Santo e com o dinheiro da venda pagaríamos o Sr. Nós ficamos ricos, ficamos ricos...)
Simões pelo sítio de bananas que agora morávamos.
Aos mais de 95 anos a bisabuela morreu como um passarinho.
Por culpa deste imprevisto, a dívida que restava a pagar ao
Bisabuela trouxera com ela muitos sonhos de riqueza, mas aqui,
dono do sítio, Sr. Simões, não foi saldada.
pobre bisabuela, nunca os alcançou. Ao menos nos seus devaneios in-
sanos ela conseguiu a sonhada riqueza: o baú cheio de dinheiro.
O 1º Despejo 1935 – Nem bem o corpo da bisabuela baixara a sepultura, na
estação do trem, às 10h30, desembarcaram 4 homens. Na plataforma
O português, a pedido de sua família (esta penalizada com a tomaram informações e seguiram direto para o Sítio dos Perez.
situação dos Perez, mais pelas crianças), esperou e continuava espe- Eram os encarregados em executar a ação de despejo.
rando até que findou o ano de 1933. Então ele perdeu a paciência e
tomou uma atitude drástica contra os Perez, deu entrada em uma ação 3 Termo espanhol que significa algo como “estar no mundo da lua”. Olhar para ou pensar ou es-
tar  nas musarañas: estar distraído, não prestar atenção: “Deixa de olhar as musarañas e presta
atenção à lição!” – Bobagens.
2 Armadilha feita com rede em que os peixes entram e não conseguem sair.

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Chegando ao sítio entraram logo em ação. Foram retirando tida deixara em casa dois filhos de colo sendo um ainda de peito, libe-
tudo o que havia no interior da casa de sapê e o terreiro ficando atulha- rou-a a tempo de retornar pelo trem da tardinha. Quanto aos homens,
do de mesas, bancos, pinicos, roupas, bacias, etc. esses dormiram mesmo foi no xadrez.
A casa, por dentro, deixaram limpinha e considerando finda a
tarefa que lhes havia sido encomendada, aos despejados deram ordem
para que catassem suas tralhas ali no chão espalhadas e abandonas- A triste Festa Junina
sem o sítio. Ordem transmitida tomaram o rumo da estrada que ia da
estação para o retorno das 16h a Santos. Podia-se dizer que a felicidade de Maria Rúbia eram seus sete
filhos, e dava para perceber que dos sete era Zezito o seu xodó. O me-
Claro que assim que o apito possante da máquina anunciando nino estava numa idade de 3 anos em que toda criança parece, ou de
sua partida foi ouvido no sítio, vizinhos, amigos e até crianças, todos, fato é mais cativante:
ajudaram a recolocar as tralhas para dentro da casa.
– Hum... mamãe tem um cheirinho bom. Dizia ele cheirando e
E a família indiferente ao despejo continuava a morar no sítio abraçando a mãe.
de bananas. José, meu pai, procurou o que julgava sua propriedade,
já que dera a parcela de entrada, e naquela mesma semana fez uma Aconteceu em uma noite fria, como frias são as noites de vés-
viagem a Santos, foi consultar Dr. Castrese, um advogado. pera de São João. A meninada choramingava pedindo aos pais que
acendessem uma fogueira no terreiro, como sempre fora feito em noi-
tes de véspera dos três Santos Juninos4.
José Valentão Os três Santos Juninos

Aquele antigo gosto por uma caninha, ainda o tinha José. Es-
tando ele no centrinho era certo entrar no armazém de secos e mo-
lhados e molhar a garganta com uma talagada da “pura”. E se tomasse
mais que do três já virava brigão.
Certa manhã, por questão de preferência e vez, em um embar-
que de bananas no vagão, ele, sentindo-se tapeado, armou tremenda
briga no pátio da estação com o Sr. Inácio, um outro sitiante.
É de crer que ele já tivesse tomado mais do que as três porque
nessa briga o forte José estava apanhando, e apanhava feio, porque
o seu adversário só tinha 1 braço, o outro fora perdido em uma pesca
com rojões no Rio Areado. Meu irmão Joãozinho no pátio essa hora, em
disparada saiu em direção ao sítio, indo avisar mamãe o que acontecia.
Também correndo, Maria Rúbia chegou ao pátio e na briga
entrou para valer em defesa do marido, atingindo com pedradas o Sr.
Inácio, que talvez pela falta do braço se defendia com os pés. Ele, com
seus pesados botinões pisoteava a José, estirado de comprido no chão Nas brasas queriam estourar bombinhas, tric-trac, assar batata
ao lado dos trilhos. doce e milho verde.
O inspetor apareceu e resultado: os três brigões (minha mãe, Joãozinho e Arlindo iriam acender a mecha para soltar nos ares
meu pai e o Sr. Inácio) foram levados no trem das 11h a prestar contas 4 Santo Antônio (13/06), São João (24/06) e São Pedro (29/06). As festas ocorriam para pedir aos
na delegacia de Itanhaém. A autoridade de plantão ao saber que a de- deuses a fertilidade da terra e garantir boas colheitas nos meses seguintes.

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um balão charuto feito por eles com papel de seda e cola de farinha de Histórias da Cooperativa
trigo.
O balão subiu, a mecha foi acessa na chama de um isqueiro, Em 1936 mudamos para as casas geminadas da cooperativa.
mas não se ouviu estouro de bombinhas, nem tric-trac e ninguém co- À noite, defronte às casas iluminadas por lamparinas a quero-
meu batata doce ou milho verde porque a fogueira não foi acesa. sene, apareciam umas 10 meninas para brincar de roda.
A mãe, ao sentir o gelo da noite, mandou que fossem se aque- Nas noites em que chovia, nos juntávamos na casa de um ve-
cer embaixo das cobertas, pois só assim Zezito, que se encontrava lho colono para dele ouvir histórias que não eram contos de fada ou
adoentado e febril, a obedeceria indo também. Infelizmente de nada príncipe encantado e sim de assombração, mula-sem-cabeça, saci... de
valeram os cuidados da mãe, porque na madrugada desse dia 24, Ze- arrepiar de medo.
zito virou um anjo e com os anjos foi festejar o Santo, diretamente no
céu (assim padeceu). Quadro da Cooperativa pintado a óleo por D. Maria

O 2º despejo
O ano triste ainda não terminara, quando no terreiro atulha-
va-se, outra vez, berços, baús, panelas, bacias... Era novamente o des-
pejo. Os mesmos vizinhos, amigos, crianças ali assistiam ao inédito es-
petáculo, esperando dar aquela ajuda já nossa conhecida. Porém uma
surpresa aconteceu, uma triste surpresa pela qual ninguém esperava e
nem podia supor fosse acontecer.
Depois que a casa estava por dentro limpinha, os mesmos ho-
mens que a esvaziaram acenderam uma tocha e atearam fogo no sapê,
e da casa de taipa só um monte de carvão e cinzas restou.
A situação dos despejados ficou de fazer dó ao mais insensível
dos corações. Penalizados, outros sitiantes quiseram de alguma manei-
ra dar um apoio, oferecer uma ajuda à pobre família. Depois, na cama, na hora de dormir eu choramingava de medo.

Despejados: Así, niñas, les digo... es verdad que tenía la temosa Papai ficava irritado e ameaçava.
malagueña mucha razón, puesto que al fin se quedara... ni cafezal y ni fin- – Trate de dormir, senão vou aí te dar umas correadas5.
ca (sítio) de las bananas.
Não sei o que me dava mais medo, se a grossa cinta de couro
José terminou por aceitar a oferta que lhe fazia o Sr. Expósito cru, ou o escuro do quarto. Um colono me deu um conselho: “Quando
(dono da fazenda vizinha – São Pedro) porque além da moradia, dava você for a um velório, peça ao morto para levar seu medo com ele. É
inclusive emprego. tiro e queda”, garantiu o homem, mas eu lá queria saber de ver morto
Era uma oferta provisória, por isto meses depois mudaram-se algum?
para uma cooperativa. A cooperativa – distante 1km de Itariri, uma adiantada vila –
lidava com criação de gado leiteiro, plantação e beneficiamento de ar-
roz. Oferecia aos seus colonos morada em casas de alvenaria, vendinha
de mantimentos a fiado e deu emprego a todos os Perez.
5 Cintadas.

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Jeca Tatu Ninguém esperou ver para crer, foi uma correria morrinho abai-
xo, e aquela noite os escorraçados não se atrevendo a voltar e a en-
Meus irmãos João (16) e Arlindo (13) nos car- frentar a espingarda, dormiram espalhados um pouco em cada casa
ros de boi como candeeiros, meu pai José e de vizinhos.
titio Ricardo nas plantações. Tirando esses contras, no mais tudo corria bem na vidinha pa-
Ricardo, depois que morreu sua mãe, não cata dos “nossos” colonos.
teve mais escapatória, tinha que traba- Tinham saúde (havia o vagão de saúde pública com remédios e
lhar quase igual ao irmão. De corpo era consulta grátis estacionado regularmente no desvio da linha férrea de-
ainda franzino (um verdadeiro Jeca Tatu6, fronte às casas da colônia), comiam razoavelmente bem; além da carne
mas a custo da carne seca, feijão, fari- seca, às vezes uma peça de porco aparecia no balcão da vendinha.
nha de mandioca e do milagroso biotô-
nico Fontoura ia aguentando o tranco).
Maria e o Pé de Feijão

Notícias de Baunilhas (ES) O colono que se interessasse em plantar para consumo próprio
tinha autorização para usar as terras mais afastadas da colônia.
Lá uma vez ou outra, saudoso, meu pai pegava a caneta e tin- Com meus irmãos mais velhos, João e Arlindo, ocupados em
teiro das meninas e escrevia cartas a seu tio João que ainda morava em guiar os carros de boi, restava a nós meninas ajudar noutros serviços
Baunilhas no Espírito Santo. que não os caseiros.
Assim foi que de posse do endereço (não João, mas seu filho E assim fomos cuidar de uma plantação de feijões. Pitando seu
Orlando) em 1937 apareceu de surpresa na cooperativa trazendo notí- cigarrinho de palha a mamãe nos dava orientação.
cias boas e más de Baunilha. Descalça pela terra fofa já antes capinada, preparada pelos
Mamãe chorou de tristeza quando soube que seus pais e um adultos, eu já abrindo buracos com só uma pressão do calcanhar. Zira
irmão eram falecidos. vindo atrás, neles ia jogando os grãos de feijão e com um movimento,
também dos pés cobria os grãos com a terra. A colheita era um serviço
novamente nosso.
A “Marvada” da Pinga é que “Atrapaia” Além do feijão, plantávamos arroz. Este após ser colhido era le-
vado a beneficiar nas máquinas da própria cooperativa.
Ao fim de um dia inteiro, capinando, roçando de baixo de sol
ou chuva, papai dava uma passadinha na venda para além de matar o Em uma lata (18 litros) torrava o café e depois o pilava em uma
bicho7, ter um dedo de prosa com outros colonos. Numa dessas, voltou outra lata cortada ao meio no sentido comprido. Esta também servia
para sua casa já com muitos bichos na cabeça e armou uma briga feia como torradeira. Nela os grãos crus eram levados a torrar no fogão de
com a mulher que sobrou até para seus filhos. lenha. Durante um bom tempo eu e a Linda mexíamos (o olho da mãe
de vez em quando ali a ver o ponto certo) com um pedaço de pau im-
Tão biritado estava que escorraçou todos porta afora da casa, e provisado em colher.
para mais ser obedecido, empunhou sua espingarda e ameaçou atirar
em quem não obedecesse. Depois de torrados os grãos iam para socar. Na mão do pilão
revezávamos por umas duas horas, cada uma dando 30 piladas.
6 Jeca Tatu – personagem criado pelo escritor Monteiro Lobato para a propaganda comercial
do fortificante Biotônico Fontoura. No pasto ao redor das casas dos colonos, o gado leiteiro rumi-
7 Matar o bicho: tomar uma cachaça. Muitos bichos na cabeça = bêbado. nava e pastava livremente.

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Pisei (descalça) em um mijo velho de vaca e peguei um mija- Ora, era apenas nossa cachorra, Lili, que da nossa casa ainda
cão8 no pé que deu o que fazer para que sarasse. um pouco longe, viera nos encontrar.
Papai dia sim dia não na hora do seu almoço levava-me monta-
da no seu cangote à farmácia da Vila para os curativos. Por culpa deste
mijacão faltei a escola e repeti (1936) o 2º ano do primário. Saracura10
Descalças, pés no chão, assim íamos eu e Zira para o grupo es- – Saracuraaa..., perna fina, sacuraaa...
colar na Vila.
Era isto, todos os dias. Aquele moleque covarde, resguardado,
Não era tão humilhante, poucos eram os alunos calçados e es- escondido atrás do seu muro, a nos xingar quando íamos para a escola
tes eram considerados os riquinhos da vila, quase sempre os filhos de e passávamos defronte a sua casa.
comerciantes, do chefe da estação e outros que não os roceiros.
Mas um dia o pegamos de fato: voltando da padaria, vindo de
De volta de uma de suas viagens a Santos, papai trouxe a cada encontro a nós com um filão de pão na mão e lhe demos uma boa sur-
filha um par de sandálias brancas feitas com um tecido emborrachado, ra, Zira com guarda-chuva e eu com maladas. Nossa mala escolar era
mas eram reservadas exclusivamente para os passeios domingueiros feita com tabuinhas de madeira coladas em tecido.
ao centrinho da Vila.
Nunca mais ouvimos a saracura...
Nas festas escolares calçávamos os tênis simples brancos, que
eram a cada festa repintados com alvaiade9.
Cinema
O Lobisomem Uma notícia alvoroçou a gente humilde da Cooperativa:
Chegou o cinema na Vila de Itariri!
Era uma noite escura como breu, daquelas em que a lua no céu
brinca de esconder, voltávamos eu, Zira mais titio Ricardo, que fora nos Os moradores da Colônia, a maioria nunca tinha visto ou se-
buscar, de um ensaio para a festa de fim de ano, em 1937. quer ouvido falar o que era essa diversão e logo ficaram curiosos e in-
teressados. Eu então nem se fala e quis logo saber.
Caminhávamos ao lado dos trilhos, por um desvio da linha do
trem, quando ouvimos um forte resfolegar e vimos um vulto (a respirar Papai que era um Espanhol observador, inteligente, lavrador,
ofegante) que parecia um lobisomem e que vinha até estar ali do nosso mas sabendo ler e escrever, viajante e tendo sido até morador na atra-
lado. tiva cidade de Santos conhecia e sabia informar sobre o assunto:
Chorando nos agarramos as duas às calças do tio, e tão gru- – Papai, diz pra mim o que é cinema?
dadas nelas estávamos que ele tentava, mas não conseguia pegar o Ele soltou uma baforada do seu cachimbo, com ar importante,
isqueiro no seu bolso. para talvez esfriar um pouco aquele meu entusiasmo, respondeu:
Pois era ali naquela encruzilhada que o velho colono contava – São umas musarañas, que aparecem em um grande pano
aparecer sempre uma assombração. branco estendido no palco.
Enfim titio conseguiu pegar o isqueiro e acendeu-o. Vimos en- Mas a nós, suas filhas, ele cedeu e nos levou em um domingo a
tão o lobisomem. conhecer o tal de cinema:
8 Espécie de tumor ou abcesso na sola ou entre os dedos dos pés dos que andam descalços, A energia era fornecida por gerador próprio. O projetor era
segundo a crença popular, causados pelo contato com a urina do gado; mijicão. Micose. 10 Apelido dado à pessoa alta e magra com pernas compridas e finas. Relaciona-se ao pássaro
9 Pigmento branco, constituído de carbonato de chumbo, usado em pintura de exteriores. que tem esta aparência.

20 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 21


péssimo. Tinha muitos intervalos. E era mudo. Porém, da mesma forma gada à beira do rio do Azeite e próxima à estação de trens de Itarari.
como gostei dos mocinhos, Tom Mix, Buck Jones, Bob Steele, as moci-
O Novo ganha pão dos homens era pesado e estafante. De uma
nhas Teda Bara, Pola Negri11; adorei ouvir as valsas e músicas clássicas
canoa amarrada à margem do rio, carregada com cachos de banana
tocadas durante a projeção das musarañas.
verde, vinda do sítio da região, cada um retirava um cacho, engancha-
va-o no ombro, punha na encosta e pelo acostamento da linha férrea
seguia até o pátio da estação onde os cachos eram acomodados fican-
Costurando do à espera de vagão disponível para embarque, este executado por
outra turma.
Na máquina de mão, mamãe fazia artes com a étamine12 para
vestidos, zefir13 para camisas, zuarte14 para calças e até paletós.
Com o pano de saco de farinha de trigo, ela confeccionava os A Casa com Varanda
uniformes das filhas Zira e Maria alunas do grupo escolar de Itariri. A
saia pregueada ela tingia de marinho com tinta Guarany e a blusa era Para casa com varanda no centro da vila à beira do Rio do Azeite
alvejada no quarador. mudamos em fins de 1938. Em um quartinho do fundo encontrei dei-
Contudo papai não estava satisfeito, ainda com tristeza recor- xado pelos antigos moradores um monte de revistas “A Scena Muda”.
dava seu bananal, seu sítio, que tão brutalmente lhe haviam tomado. E Encantei-me com as lindas fotos dos artistas do cinema americano.
como diz o ditado que a esperança é a última que morre, várias viagens
ele fez a Santos em consulta a outro advogado (Dr. Oscar A. Cox) numa Revista Scena Muda de 1937
última esperança de reaver seu sítio. Coisa que nunca aconteceu. Sr.
Simões, o homem mau da história, também dele nada desfrutou. Até
parece que foi castigo: após o despejo, Simões separou-se de sua famí-
lia indo morar em Santos em um quarto de pensão onde foi, em um dia
de 1940, encontrado morto.
O sítio que em todos esses anos ficara abandonado assim con-
tinuou por mais anos acumulando dívidas, criando mato, terminando
por ir a leilão. Na década de 1950 o seu grande terreiro foi atravessado
por larga e movimentada rodovia.

A decadência da Cooperativa
A decadência há tempos vinha se refletindo nos negócios da
cooperativa obrigando seu administrador a fazer um corte no pessoal,
motivo porque a nova residência dos Perez passou a ser uma casa alu-
11 Atores famosos do cinema mudo.
12 Étamine é o mais popular dos tecidos para bordar, pois serve para qualquer tipo de peça de
decoração ou uso pessoal.
13 Zefir tecido fino e geralmente transparente de algodão cardado, usado na confecção de
vestes leves, roupas íntimas, de crianças, etc.
14 Zuarte é tecido de algodão, por vezes mesclado, encorpado e tosco, ordinariamente azul
ou preto.

22 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 23


A Foto na Escola e a Formatura Na curva do rio chegando, olhei para cima, olhei para baixo...
nada mais no rio eu vi.
Um dia na escola, a turma do 4º ano foi reunida no pátio para A bacia e com ela as velhas panelas de ágata15, os talheres de
que o retratista tirasse um retrato em grupo. alpaca , pratos e canecas de alumínio.
16

Influenciada pelas fotos da revista, fiz uma caprichada pose de Tão pobre a cozinha da minha mãe tinha sumido.
artista. Estando as fotos reveladas e à disposição para compra, fiquei
triste. Em casa pedi à mamãe, pedi ao titio, ao irmão, ninguém tinha E agora? Pensei, como enfrentar a braveza da minha mãe? Na
dinheiro e não pude comprar as fotos que eu tanto queria. certa ela já soubera do acontecido, pois eu fizera tal alvoroço, e estaria
me esperando com uma varinha de amora, prontinha para me lascar
Em festa na escola, no fim de 1939, recebi o diploma usando nas costas.
um vestido (curto) de tafetá chamalote branco, na cabeça o laço de fita
engomado com farinha de mandioca. Estava mesmo.

O vestido era de segunda mão, quer dizer, já havia sido usado Escapei da surra atravessando a ponte de ferro, indo me refu-
um ano antes e para o mesmo fim por Zira. giar na casa do vizinho defronte à nossa.
De lá, eu espiava a mamãe que estava na entrada de casa do
outro lado do rio e também me olhava.
A Louça perdida no Rio O tempo fechou e passou a chover grosso. O rio enchendo,
anoitecia.
Desci a escadinha lavrada na encosta do rio, em uma tarde,
para lavar a louça nas águas correntes. Enfrentei a chuva e voltei. Em casa da mãezinha entrei. Mamãe
fez que não viu.
Na cabeça equilibrava uma grande bacia de alumínio, com
todos os itens da cozinha, acumulados da noite anterior e do almoço
desse dia. Deixando a Casa Avarandada
Em uma das mãos segurava uma vara de pesca e a isca de mio-
lo de pão. A pesca era uma distração minha, os peixinhos que pescava, O franzino tio Ricardo... para saber como estava ele era só dar
assava-os na chapa do fogão de lenha e depois os comia sozinha. um trabalho estafante ao mesmo. Acreditem, ele dava um duro dana-
À margem do rio chegando, em diminuta enseada, ali deixei a do e parece que essa ginástica até o fortalecia. Ah! Se lá do céu sua mãe
bacia, segui mais rio acima (um ponto mais fundo) para jogar o anzol. pudesse vê-lo! Como estava corado e bem-disposto!

Tão atenta fiquei aos beliscões dos lambaris, que o rio, devagar, Meu irmão João, no vigor dos 20 anos, dependendo do tama-
silencioso enchia e eu distraída não percebi. nho do cacho de bananas, carregava até dois por vez sendo um em
cada ombro.
Em um dado momento em que desviei o olhar para a enseadi-
nha o que vi arrepiou: Na idade dos anseios e fantasias, João vivia a sonhar com hori-
zontes mais amplos. Queria mais que fazer serenatas à luz da lua, que-
A bacia, e dentro dela toda a sua carga, estava sendo levada ria mais que nas novenas das terças na igreja, cantar o Kýrie Eléison17
pela correnteza e seguia rio abaixo navegando tal e qual um barqui-
nho. Rápido, larguei a vara e o anzol e pensando poder cercá-la numa 15 São panelas feitas de ferro ou alumínio e revestidas de esmalte.
curva que adiante o rio fazia, subi a encosta, passei pela frente da nossa 16 A alpaca (liga metálica) é uma liga ternária, composta de cobre, níquel e zinco. Seu nome
casa, tomei um atalho por entre a plantação de quiabos do japonês significa metal branco e também é conhecida como prata alemã.
vizinho e como eu corria. 17 Em grego: Κύριε ελέησον, tradução: Kýrie Eléison, “Senhor, tende piedade”. É uma oração da
liturgia cristã.

24 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 25


fazendo fita com as filhas de Maria, mais que assistir um filme mudo no 1941 – São Vicente lá vamos nós
cineminha da vila, queria mais que na estação esperar o trem da noite
chegar, queria mais. Enfim, o que João queria era só isto, ir morar, viver Os novos vestidos, o meu e da Linda em crepe da China ama-
na cidade. E sendo São Vicente a cidade mais próxima, para essa foi ele relo, o da Zira em fustão19 branco, estavam já prontinhos para serem
trabalhar na fábrica de vidros. Hoje a Saint Gobain. estreados no dia do embarque no trem.
Papai, passados uns 3 meses, seguiu o mesmo caminho do fi- Viajaríamos em fevereiro indo morar de vez na cidade calunga
lho indo cuidar dos tanques de atanado18 do curtume Japuí. (São Vicente). Fevereiro chegou e chegou também o dia da partida.
Os dois procuraram e encontraram uma casa para alugar e os Na plataforma da estação estavam vizinhos, amigos, colegui-
que ficaram na avarandada à beira rio preparavam suas trouxas. nhas, todos reunidos para a despedida final.
Os móveis foram vendidos (entre estes duas camas espanho- O trem chegou alegre batendo o sino e parou. Nos despedi-
las de espaldar alto) arrecadando, assim, dinheiro para a passagem de mos todos chorando em longos abraços. Subimos para o vagão, o trem
trem e primeiras necessidades de sobrevivência na cidade. Dessa ven- apitou e pôs-se em movimento. Da janela ficamos acenando Adeus...
da só escapou a nova máquina de costura, uma Pfaff de pedal. Adeus...
Na compra da Pfaff, foi entregue como pagamento a velha es- Naquele momento eu não sabia, mas era também um Adeus à
panhola de mão, que tantos bons serviços prestara à família. infância.

Máquina de Costura Pfaff com pedal


O novo Lar
1941 – No novo lar, de móveis, antes comprados na loja de usa-
dos por papai havia: uma cama de casal, duas camas de solteiro sim-
ples da marca Patente20, os colchões eram recheados com capim, um
fogão a carvão com duas bocas, uma mesa pequena, três banquetas,
um guarda-louças e alguns itens de cozinha.
As três meninas se deitavam, e foram muitas noites, nas duras
tábuas do assoalho em cima de dois velhos sobretudos espanhóis (es-
tes uma relíquia dos tempos de Málaga).
A cada mês foram comprados guarda-roupa, cadeiras, uma
mesa redonda, bufê, rádio (as três meninas cantaram de alegria no chu-
veiro quente), ferro elétrico (deste quem mais gostou foi Zira, a passa-
deira da família que há pouco tempo atrás soprava um pesado ferro a
carvão). Na hora de dormir os dois rapazes se apertavam (um pra lá
19 Tecido natural ou sintético, de algodão, linho, seda ou lã, encordoado, que tem o avesso liso
e o direito em relevo.
20 A cama patente de 1915 se tornou um marco na história do design do mobiliário brasileiro.
Foi projetada por Celso Martínez Carrera (1883-1955), espanhol da Galiza radicado em São Paulo,
que emigrara para o Brasil em 1906 e trabalhara na marcenaria da Companhia Estrada de Ferro
Araraquara, antes de abrir sua própria oficina. A Indústria Cama Patente L. Liscio S.A foi fundada em
18 Casca de angico e de outras plantas que, reduzida a pó, serve para curtir couros pelo tanino Araraquara e depois transferida para São Paulo, onde funcionou até 1968.
que contém.

26 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 27


outro pra cá) na cama pequena, na outra foi tio Ricardo, na grande o 1941 a 1962
casal e o caçula.
Em março, tirando a dona da casa e os dois pequenos, os de-
mais estavam já trabalhando. Ricardo como servente de pedreiro, Ar- Nós 3 irmãs: Linda 11 anos, Maria 13 e Zira 15 anos chegadas há
lindo junto ao pai no curtume, Zira e Maria em serviços leves nas casas pouco da roça para morar na cidade, encantadas ficamos com o auto-
de família. móvel, bonde, luz elétrica, água encanada, telefone, rádio...
Cama da marca Patente O mar, a praia eu nunca tinha visto, adorei... Mas foi pelo ci-
nema falado em tecnicolor que eu me apaixonei e pelas estrelas de
Hollywood.
Eu e Zira fomos logo trabalhar em casa de família, fazer serviços
leves.
Encerar 3 quartos, duas salas, corredor, dar lustro com pesado
escovão de ferro, entrar no trabalho às 7h30 da manhã e sair às 8h da
noite não era serviço tão leve assim.
Em 1944 fui fazer os tais serviços leves em casa de duas Aus-
tríacas.
O bom nesta casa era a enceradeira elétrica e a saída às 15h
com folga aos domingos. O ruim: eu não gostava era da comida es-
trangeira que elas preparavam, e não gostando eu preferia não comer,
comeria mais tarde em casa o feijãozinho de mamãe.
À mesa do almoço uma das patroas, a mais ranzinza, me criti-
cava:
– Tanta gente, tanta criança passando fome por culpa dessa
guerra sem fim e você com este luxo. Ah! Não gosta de chucrutes!

E o tempo passou, cresceram, alguns casaram, tiveram filhos,


1945 – Fim da 2ª Guerra
outros não, mas todos foram felizes até quando Deus quis.
Enfim chegou o fim da 2ª Guerra Mundial.
Os bravos soldados da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que
foram lutar na Itália estavam retornando vitoriosos à sua Pátria, suas
casas, suas famílias.
Os pais de minha amiga Eliza, preparavam uma festa regada a
vinho, para recepcionar o filho Walter que era um deles.
Entre foguetórios, papel picado os expedicionários chegaram
desfilando, Walter garboso, em um uniforme verde oliva, bonito com
seu bigodinho.

28 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 29


Amei-o assim que lhe dei o abraço de boas-vindas. Joan Bennett
Na noite da festa o baile seguia animado pela música que saía
da vitrola. Uma valsa especial estava programada para que Walter dan- Eu feliz, pois já me dissera ele
çasse com a moça que escolhesse. ser a sua escolhida. Zira bonita
com seus cabelos encaracola-
dos em permanente21, a boca
Eu em 1945 pintada em forma de coração,
bonita parecia a Joan Bennett22
chegou-se a mim e pediu:
– Mariquinha, deixa eu dançar
a valsa com ele?
– Nada disso, respondi.
– Ah! Deixa só a valsa...
Imaginem se eu iria deixar, e
ela queria justo a valsa!
Era mesmo muito engraçada!

O disco de 78 ro-
tações23 foi colocado no
prato da vitrola girou e a
música “Valsa da Espera”
vibrou no ar.

Disco de 78 rpm

21 Procedimento químico para ondular cabelos muito utilizado na década de 1940.


22 Joan Bennett (Palisades Park, 27 de fevereiro de 1910 - Scarsdale, Nova Iorque, 7 de dezem-
bro de 1990) foi uma atriz norte-americana que teve seu auge na década de 1940.
23 O disco de 78 rotações ou 78 rpm era uma chapa, geralmente de cor negra, empregada no
registo de áudio (músicas, discursos, efeitos sonoros, pista sonora de filmes, etc.). Em geral, foram
muito utilizados na primeira metade do século XX. O material utilizado em sua fabricação era,
em geral, a goma-laca, - os mais antigos eram feitos de ebonite - que dava uma característica rija,
vítrea e extremamente frágil ao formato. Eram executados inicialmente nos gramofones e, pos-
teriormente, nos toca-discos elétricos. Até 1948 era o único meio de armazenamento de áudio,
quando foi inventado o LP, mais resistente, flexível, e com maior tempo de duração.

30 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 31


Dançamos só os dois no improvisado salão. Eu feliz, com os Os cavalheiros compareciam trajados de terno completo com
convidados fazendo roda à nossa volta, cantando e batendo palmas. gravata. As damas com vestidos cinturados; as saias evasê, godê, ma-
nolita; blusas com cascatas, jabô, renda entiotada; mangas tulipas, fu-
O namoro no fim desse ano terminou. Tínhamos um encontro
nil, presunto25...
os dois mais a Eliza para ir um domingo à matinê24 do cinema. Como
era meu caminho, passei pela casa dele para pegá-los. Carnaval desses anos levianos, tinha cheiro, música e fantasia.
Ele, já arrumadinho, disse-me ter uma visita a fazer, não poderia O lança-perfume26 deixava no ar aquele cheiro característico
por este motivo ir ao cinema, que eu fosse com sua irmã, e que à noite nos três dias da folia.
nos veríamos. Disse-me isto calmamente, mas eu não gostei e recla-
As músicas, as famosas marchinhas que ainda tocam no carna-
mei. Ele enfezou-se, perdeu sua calma e mandou alto e em bom som:
val de agora: A jardineira, O pirata da perna de pau, Alalaô.
– Então vá pra M...
As fantasias, hoje é raro, pouco se vê nas ruas ou nos salões,
Puxa, depois desta, vi que só me restava ir ao cinema sem ele. mas naqueles anos o carnaval sem fantasia não era carnaval.
Fui com a Eliza. Por sorte a amiga havia levado um lenço e emprestou-
– Ah! Mamãe, carnaval sem fantasia não tem graça...
-me, porque vos digo, o filme não era triste, mas como eu chorei.
Lá ía a mãe na sua Pfaff27 a costurar uma saia florida, uma blusa
decote redondo franzida, um lenço vermelho nos cabelos, no pescoço
Bailes e Matinês – Carnaval de 1948 colares dourados, nas orelhas brincos de argolão e pronto... Zira era
uma cigana. Ou uma saia de cetim com aplicações e franjas, um corpe-
Livre, leve, Zira também solta, as duas passamos a frequentar te com mais aplicações, colar feito com dente de boi, na cabeça cocar
os bailes e matinês realizados nos salões do Clube Humanitária (San- de penas e ali estava eu, uma índia.
tos) onde conjuntos ao vivo, tocavam: rumba, mambo, fox, bolero, À meia noite da 3ª feira teria fim a folia, era o início da Quares-
swing, samba... ma. E como na 4ª cedo tínhamos que estar as duas cedo no trabalho,
saíamos às pressas do salão a ver se alcançávamos o último bonde.
Vestidos típicos dos anos 1950
Para nossas viagens de ida ao trabalho (eu caixa no Sesi, e Zira
encarregada de chefiar a loja dos 4.40028) só tomávamos o bonde da
linha 1, por ser mais econômico, em vez do bonde 2 (via praia) que era
cobrada a passagem em dobro. O da linha 1, engatado ao grande, ia
com reboque um carro menor.
Uma chuvinha fina e persistente caía naquela manhã de feve-
25 Vestidos cinturados; as saias evasê, godê, manolita; blusas com cascatas, jabô, renda entio-
tada; mangas tulipas, funil, presunto são nomenclaturas de modelos típicos dos anos de 1950.
26 O  lança-perfume  apareceu em um carnaval do Rio de Janeiro em 1904 e é um produto
desodorizante em forma de um spray. O líquido (que é à base de cloreto de etila e acondiciona-
do sob pressão em ampolas de vidro), em função da combinação do gás, do perfume e de sua
essência, ao ser liberado forma um fino jato com efeito congelante. Usado na bebida ou cheirado
em lenços de seda, o lança-perfume dava um “barato”. Foi proibido em 1961 por ser considera-
do entorpecente. Até então era comercializado pela Rhodia e utilizado livremente nos salões de
carnaval.
27 Máquina de costura
24 Espetáculo, representação, sessão de cinema, reunião durante o dia, esp. na parte da tarde; 28 O dinheiro da época eram os “réis”. A loja de 4.400 era uma espécie de loja de 1,99 dos dias
vesperal, matinada, matinal. de hoje.

32 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 33


reiro quando subi no reboque do bonde e sentei-me na ponta de um O condutor Amílcar, com 28 anos na época, nascera em Bo-
dos seus nove bancos. Vestia uma capa impermeável de Shantung29 tucatu (SP). Aos 15 anos perdera a mãe, foi internado em um colégio
branco com chapéu combinando. Neste traje eu deveria estar uma gra- dirigido por padres, de onde fugiu aos 17 anos.
ça porque o condutor molhado pela chuva, indo e vindo pelo estribo
Aos 23, conheceu Celina, casada com 2 filhos – detalhe este
cobrando as passagens quase não tirava seu olhão de cima de mim. E
que não impediu a fuga dos amantes para Santos, onde foram morar
antes que o bonde chegasse ao terminal ele deu início a uma conversa
em um chalé no morro da Penha. Acabaram por trabalhar na Compa-
e o assunto é claro só poderia ter sido a chuva.
nhia dos Bondes.
– Como chove, hein?
Da união, em 1944 nasceu um menino chamado Miguel. Em
– É verdade, respondi. 1947 estavam separados.
– Em dias assim, este meu trabalho é horrível, vejam minhas Agradou-me a alegre companhia do condutor, ele era um tipo
mãos como ficam de tanto segurar no balaústre molhado. gozador.
E mostrou-me as palmas das mãos, de fato estavam péssimas. No nosso namoro, andávamos pelas ruas vicentinas, juntinhos,
os braços segurando um na cintura do outro.
Na manhã seguinte, mesmo horário, mesmo reboque, mais
uma de suas conversas. As comadres faladeiras cochichavam em seus portões, quando
nós, agarrados passávamos por elas.
Na terceira manhã deu-me uma caixa contendo 8 pêssegos sol-
ta caroço argentino. O turno no trabalho nos bondes trocava a cada semana. E
quando escalado para o turno da noite, o condutor ficaria uma semana
Pronto, ele havia descoberto o meu fraco, o gosto demasiado
inteira sem namorar. Isso não, porque ele, pedindo auxílio ao motornei-
por frutas.
ro, desengatava o reboque duas horas antes do devido e estacionava-o
Bonde com Reboque – Centro de Santos anos 1950 no galpão apropriado existente, no centro de São Vicente.
Não demorou e em abril estava despedido. No mesmo abril foi
ser vigilante da casa de detenção, emprego que lhe conseguiu seu pri-
mo investigador de polícia em São Paulo.
Nas folgas e folguinhas aparecia sempre nas mãos um favo de
mel, uma cestinha de morangos ou cachos de uvas Niágara.

29 Tecido de nome derivado de Chan-Tung, cidade da China, produtora de seda. Hoje, o termo
é utilizado para qualquer tecido grosso de aspecto irregular.

34 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 35


PARTE 2 – MARIA DE TOLEDO
BONUGLI
O Noivado e a Aliança de Corações

O pedido para o noivado aconteceu sem fogueira e sem balão


numa noite de véspera de São João, em 1948.
A aliança que me deu o noivo era linda, toda contornada com
corações em relevo. Pena que no 1º ano de casada fui lavar minha ca-
beça no tanque de lavar roupas e a aliança foi pelo ralo abaixo...
Para janeiro de 1949 foi marcado o casamento.
Com o noivo longe e noiva prendada que eu pretendia ser,
preenchi minhas noites frequentando um curso de corte e costura.
Aliança semelhante à dada pelo noivo

Mamãe em busca de casa para


alugar (para família) levou-me
a ver uma que possuía quar-
to e cozinha independentes
e talvez querendo conservar
esta filha junto à barra da sua
saia sugeriu:
– Vocês poderiam morar aqui
depois de casados, quem sabe
depois ele consegue um em-
prego na baixada30.
Realmente, era uma ideia bem
sensata. Mas, querida mãe,
como poderia eu atendê-la se
um dos meus interesses nesse casamento estava na oportunidade de
ir morar em São Paulo, na cidade grande que eu só conhecia pelo que
30 Nove municípios fazem parte da Região Metropolitana da Baixada Santista: Bertioga, Cuba-
tão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente.

36 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Perez Rúbia 37


lia nas revistas, ouvia no rádio, assistia na tela dos cinemas e que tanto A Briga e o Casamento
me atraía?
No ano de 1949 eu saí do Sesi. Os proclamas corriam, os con- Aproximando o ouvido, por entre as risadas, eu ouvi suas críti-
vites enviados: dia 29 o civil às 11 horas, o religioso na Igreja Matriz às cas ao noivo em conversa com mamãe.
16 horas. Pronta para uma briga, entrei na sala de supetão.
O vestido em cetim duchese cor de pérola estava sendo con-
31
– Sua enxerida, o que você tem de ficar matracando nos ouvi-
feccionado por uma costureira: blusa decote princesa, fechado por 16 dos da mamãe? Pensa que não ouvi?
botões imitando perolas, manga comprida afunilando até cobrir o dor-
– Ah é? Ouviu? Pois é isso mesmo que você ouviu.
so da mão. Saia godê longa com pequena calda. Vestido, buquê, grinal-
da e outros acessórios mais. Neles gastei o recebido do Sesi. – Linguaruda, se está se fazendo de esquecida, eu a lembro, foi
você de oferecida quem prometeu arcar com as despesas desta festa
O noivo pagou o cartório, igreja e nada mais, seu magro salário
sozinha.
ele gastava todo em condução, pensão, etc.
É, mas pelo menos as bebidas ele...
Não falei em festa? Que festa meninas? Com que dinheiro? Pa-
pai pobre no sentido exato da palavra não tinha, o noivo também tam- Cortei a sua frase.
pouco, do meu já contei: nada sobrava, portanto não haveria festa de – Você está cansada de saber que ele não tem dinheiro e eu
casamento. não queria festa, ademais não foi você, sua grã-fina de porão, quem
– Podem deixar a festa por minha conta, eu pago e providen- quis festa? Pois agora aguente.
cio tudo! – Ha! Ha! Riu ela, aguentar vai você porque ele não passa de
Meninas olhem quem estava falando: Zira! Era ela quem assim um irresponsável.
decidia. Essa doeu e danei-me.
Estava abonada, fora despedida das lojas 4.400 após mais de 6 – Você quer saber? Fique com sua festa e faça bom proveito
anos de serviço sem justa causa recebendo por este motivo uma boa dela; porque eu vou com ele já ao cartório pra casarmos e hoje mesmo
quantia como indenização. seguiremos para São Paulo.
E afim de cumprir sua palavra Zira encomendou doces, salga- Dito e feito, Adelino a pedido foi conosco, seria uma das teste-
dos, o bolo da noiva... munhas, a outra caçamos na hora na rua em frente ao cartório.
Faltavam dois dias para o grande dia. O Juiz comentou o adiantamento do dia, porém nada criticou,
No endereço da nova casa, o noivo com suas piadas fazia rir. fez-nos um bonito sermão (até o que a morte os separe) e casou-nos.
Linda (com seu namorado Adelino) e esta sua noiva. De volta à casa, na sala fui entrando arrogante falando:
Pela janela dava pra ver a mamãe na sala, sentada a sua Pfaff, – Estamos casados, vim só pegar minhas coisas e já vamos para
dando os últimos retoques na roupa nova do pessoal de casa, Zira com São Paulo.
a agulha dava-lhe ajuda nos chuleados.
E dei início a uma catança pelas gavetas.
Caramba! Que cara! É... a mana essa manhã parecia não estar
com bom humor! Um Deus nos acuda, mamãe pôs-se a chorar e Zira a esbravejar:
– Ela ficou louca mãe. A igreja os convidados como vai ser? Que
vergonha!
31 Cetim italiano. Eu calada na minha catança e já meio arrependida.

38 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 39


Linda também bronqueava, mas era com Adelino que aprova- Esquina da Av. Ipiranga com São João
va a besteira (isso ela dizia).
Zira continuava brava.
– Eu não disse, eu não disse mamãe? Ele é mesmo um irres-
ponsável.
Ele nem entrou, ficou na rua atrás do portãozinho me esperan-
do.
Mamãe, coitada, chorava tanto, seu rosto banhado em lágri-
mas. Não aguentei e saí de casa o mais depressa possível sem levar
tudo que me pertencia. O belíssimo vestido de noiva? Bem este se
transformou em uma chique combinação32 um tempo depois.

Vida nova em São Paulo Na 2ª feira comprei uma mala de papelão recapado e na com-
panhia de um tio (dele) retornei a São Vicente em busca do restante
dos meus pertences.
Na Via Anchieta, por trás da serra colorida pelas quaresmeiras Fiquei então sabendo que Zira dera sua festa, os convidados
em flor o sol se escondia do arrebol33. compareceram (também na igreja), estranharam, lógico, a ausência
Na poltrona do recém-marido eu calada, ia triste, sentindo uma dos noivos, mas comeram, beberam e muito se divertiram.
tal melancolia lembrando das lágrimas da mamãe. No bairro do Cambuci, em um quarto alugado na casa do pri-
Quando o ônibus estacionou no grande asfalto paulistano, era mo dele fomos morar.
fim do dia, estavam já acesas as luzes da cidade grande. Nessa semana Ami levou-me a conhecer outros parentes: um
Querem saber? Eu lhes digo. Claro que fiquei deslumbrada com simpático casal de tios e uma penca de primos e primas.
a cidade de São Paulo, a movimentada Av. Ipiranga, a iluminada Av. São Na casa dos tios, sempre aos domingos éramos bem-vindos
João, o aprazível Largo do Paissandu. para saborear uma macarronada com frango, servido em uma compri-
Foi justamente neste trecho, a Broadway Paulistana daquele da mesa na sala.
tempo, onde Mario o primo, possuía um escritório (o sofá foi transfor- Após a limpeza da cozinha íamos algumas das mulheres nos
mado em cama) onde aconteceu a nossa noite de núpcias. reunir aos homens na comprida mesa para um jogo de pif paf com ca-
cife34.
Estes domingos para mim eram passáveis, eu me distraía, po-
rém, os dias da semana me entediavam.
Varrer a casa da prima, tirar o pó dos móveis, lavar a louça, não
era nem de longe o que eu havia sonhado viver na grande São Paulo.
32 Espécie de vestido fino usado por baixo da roupa para esconder qualquer que fosse a trans- Queria sair mais à rua, conhecer lugares, ir ao cinema, trabalhar
parência.
fora, ter o meu dinheiro.
33 Cor avermelhada do crepúsculo. A hora em que o sol está surgindo ou sumindo no hori-
zonte. 34 Jogo a dinheiro.

40 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 41


Lucindo, primo de Amílcar, prometeu: iria ver um emprego Modelo ilustrativo de Brasière
para ele na telefônica, onde era funcionário.
Abril chegou e a chance de emprego não apareceu. Nessa épo-
ca, poucas eram as firmas que admitiam mulheres casadas em seu qua-
dro de funcionários.
Mais difícil ainda seria admitirem uma que estivesse grávida.
Era o meu caso. Abandonei o cigarro. Ugh! Me causava enjoos.
Abril – Na detenção, Amílcar envolveu-se em uma tramoia e
terminou ficando sem emprego.

São Carlos
Sem dinheiro para o aluguel, o que fazer? Voltar para São Vicen-
te? Isto bem que eu queria, mas e ele?
– Vamos para São Carlos, assim você conhecerá minha irmã
Alba e meu cunhado Zeca, eles moram no centro e possuem uma chá-
cara com casa nos arredores. Quem sabe poderemos morar na chácara, O futuro papai? Como passava ele seus dias?
em troca cuidarei das plantações e ti-ti-ti e ta-ta-ta. Se não der certo, Sempre brincalhão (com os meninos) na parte da manhã en-
você não gostar, prometo que voltaremos pra São Vicente. tretia-se varrendo o quintal, ajudando na pequena horta (da casa do
Confiando nesta promessa fui, aliás fomos. centro) juntando e queimando as folhas caídas dos abacateiros e man-
gueiras.
Um raquítico mandiocal, uns poucos pés de laranja, abóboras,
abacaxi (estes já bicados pelas gralhas). Nisto se resumia a chácara jun- À tarde, após ele ver a irmã e os sobrinhos cruzarem o portão
tando ali algumas galinhas e dois pangarés. E a pequena casa já habi- da rua indo para a escola, corria a se aboletar no banco traseiro do Crys-
tada por um zelador. Disto gostei, porque não era do meu agrado virar ler 1928 capota conversível e aí fazia uma boa “siesta”.
uma chacareira. O cunhado (fiscal viajante) e a cunhada (professora) O carro era usado por Zeca só nos fins de semana para passeio
eram pais de 4 meninos em idade de escola primária. com os meninos ou em idas à chácara.
Alba acomodou-nos em um dos quartos da casa grande do Às noites (não todas) ele saía a bebericar uma pinga nalgum
centro, e ali fomos ficando... ficando... setembro chegou e nós dois ain- bar mais retirado, ou em casa de algum vizinho, e só quando visse “sua”
da lá estávamos. casa às escuras é que se atrevia a voltar. E pé ante pé seguia para o
Do serviço da casa uma empregada dava conta. Bom isso, pois nosso quarto, onde eu deitada na cama, rosto virado para parede, até
assim me sobraria tempo para cuidar do enxovalzinho do nenê. ressonava fingindo dormir.
Alba levou-me com ela às lojas e comprou morim para fraldas, A ele os cunhados davam uns trocados, senão como sustenta-
flanela, cambraia, opala, fustão, rendas, linhas, agulhas... meus dias em ria ele o seu outro vicio, o cigarro Lincoln?
São Carlos eu os passava a confeccionar brassière35, camisinha, pagão, A mim, para satisfazer meus desejos de grávida que era um sor-
toucas, babadores, cueiros dos nenês. vete, lembro bem, dinheiro não ofereciam (verdade que também eu
não pedia), mas nem uma moeda para um picolé.
35 Palavra derivada do francês. Uma espécie de casaquinho de lã feito de tricô ou crochê.

42 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 43


A barriga crescendo a roupa ficando apertada, eu sem poder O Retorno a São Vicente e
comprar nova. Desmanchei uma saia pregueada coloquei um elástico
na cintura e essa ficou sendo a roupa de todo o dia, só trocava a blusa. o Primeiro Bebê
Cinco meses nessa penúria. Eu não suportava mais. Para piorar Apesar de me sentir uma espécie de fracassada, eu retornava
sentia saudades de casa. feliz e ansiosa por rever a mãe, o pai, o tio, os irmãos e as irmãs.
De lá recebia cartas. Linda as escrevia, mas era a mamãe que na Com alegria e muitos sorrisos, à noitinha estava já abraçando a
certa, saudosa, as ditava. todos um por um.
Venha minha filha, voltem, aqui ele terá mais chances em con- Na sala estava já armada a prometida cama. Uma cama de sol-
seguir emprego. A casa que agora moramos é pequena, mas dá pra teiro!? Evidente que nela deitei-me eu, com meus sete meses de bar-
armar uma cama para vocês na sala. riga. Ami acomodou-se sem vergonha, não maliciei, quero dizer sem
Fui me preparando para o retorno à casa paterna. De um len- acanhamento, no soalho ao meu lado, extenuada pela viagem, ador-
çol novo de tergal branco (presente de Alba) fiz eu mesma um vestido meci e logo estava sonhando com o futuro que prometia ser feliz.
para gestante (de boa valia serviram-me as aulas no corte costura) . O Sonhei, muitas noites sonhei, sonhava que dava à luz a um ne-
modelo copiado de uma revista, pregas batidas na frente, elástico atrás ném com cabelos claros. O nome já escolhido era Marcia Cristina. Em
ficou até moderno, diferente das batas largonas das grávidas de então. nome masculino nem cogitava, tanto era meu desejo que viesse uma
Em meados de setembro todos meus pertences e também o menina.
enxovalzinho do neném estavam ajeitados na mala de papelão. Eu Um bercinho ocupava já o canto da sala, comprei-o com o lu-
prontinha para a volta a São Vicente. cro de um jogo de crochê que fiz por encomenda, também já havia
Mas ele, ora vejam! Ainda indeciso. Determinada a retornar de crochetado uma manta de ponto de leque, para abrigar o meu bebê
qualquer maneira eu disse-lhe: quando saísse do hospital.
– Se você não quiser ir, não vá, porque eu irei mesmo que so- Zira estava na fila do hospital. Um conhecido seu já garantira
zinha. minha internação para quando chegasse a minha boa hora.
Alba preocupada com esta minha decisão, certa manhã sen- Nada pagaríamos pela internação e pagar com o quê, se Ami
tou-se frente a mim, e sabiamente deu-me conselhos. continuava na folga?
Um deles, foi que eu não deveria retornar a São Vicente sozi- No dia 10, em um sábado, eu com as dores fui levada (a pé) por
nha. Entendi perfeitamente, não deveria retornar sem o tratante do seu Ami ao hospital. No caminho ele deu esmola a um mendigo na calçada,
irmão. e para me agradar disse-me sorrindo:
Dias depois convencida afinal de que ele também iria (estava – É para dar sorte, para que seja uma menina.
só fazendo charminho) Alba deu a ele dinheiro para passagens e ou- Na madrugada do domingo, quando o sol no horizonte nascia,
tros gastos. uma menina também nasceu.
Em um bonito amanhecer de outubro na estação ferroviária Não é que, igual aos meus sonhos, a nenê tinha os cabelos cas-
de São Carlos subimos no vagão do trem. Era o início da volta a São tanhos claros?
Vicente.
O parto foi realizado por Dona Rosa uma parteira no próprio
quarto da enfermaria, e só eu de paciente.
Um tempinho depois, Márcia Cristina, enroladinha na manta de
leque, estava do meu lado em uma cama. Mamãe, que auxiliara Dona

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Rosa no parto, da beira da cama fitava enternecida a sua neta. (duas sirigaitas de São Vicente) a nadar.
Dona Rosa abriu a porta do quarto e por ela vi que entrava Ami, – O quê? Esse sem vergonha não trabalha e ainda fica de na-
ainda notei que parecia encabulado, mas continuava já adormecida. moricos? Deixa ele chegar. Pra rua é pra onde ele vai.
Natal, Márcia Cristina já com 13 dias e seu desligado pai não Dei a nenê pra vó segurar e o pouco de roupa que a ele perten-
fora ainda no cartório registrá-la. cia soquei dentro da mala de papelão, deixando uma muda pendurada
em uma cadeira. Esperei. Ele não demorou e vinha que vinha ressabia-
Apressei-o, decidiu ir, mas fora já da casa, do pátio voltou e...
do.
– O nome é mesmo Márcia Cristina?
Fui logo soltando o palavreado.
– Você sabe que sim, por que ainda pergunta?
– Muito bonito. Agora você virou professor de natação? Em-
– Bom, quem sabe você poderá ter mudado de ideia. prego que é bom, nada. Pra mim chega. Aí está sua mala, o que é seu,
Jacqueline White
troque-se e suma da minha vista.
Trocou-se calado e de saída foi à cozinha despedir-se da sogra
que tinha a nenê no colo, então começou a chorar, chorando passou
por mim, pegou sua mala e se foi.
Nesse momento, Zira por ali, entrou
na conversa com seus palpites de Já à noitinha apareceu um garoto com um bilhete seu. Ele esta-
sempre. va na esquina e queria me falar.
Maninha, você não acha que Márcia Não vou, disse resoluta à mamãe que nada me respondeu nem
Cristina está já um tanto batido? contra, nem a favor. Porém, a vizinha, viúva com 2 filhos menores, me-
teu-se a dar-me conselhos sem que eu os pedisse.
– Põe Jaqueline36, é nome de estrela
de Hollywood. – Vai, Mariquinha.
Que palpite feliz! Foi ouvir o nome e – Não vou, já disse.
adorar então fez uma bela chanta- – Vai, só pra ouvir o que ele tem a dizer. Dou esse conselho a
gem emocional. você, porque tenho experiência, sei o quanto é difícil criar sozinha.
Então foi este que ficou: Jaqueline. E para mais me convencer a viúva citou o conhecido chavão:
Ao som de Asa Branca, Quixabeira e – Ruim com ele, pior sem ele.
outros baiões que vinham do alto falante do parque de diversões ao
lado da casa eu passava horas a embalar a nenê, alheia ao problema do Fui.
marido ainda desempregado. Ele prometeu-me que em uma semana estaria trabalhando.

As Sirigaitas da Praia de São Vicente O Novo Emprego do Marido


Era uma acalorada tarde de janeiro quando Zira, retornando da De fato, na mesma semana ele era o novo funcionário da Via-
praia, interrompeu meu doce acalanto. ção Estrela. Mamãe alugou casa grande na João Ramalho e a troco de
– Seu marido estava lá na água ensinando fulana e beltrana um pequeno aluguel deu-nos um quarto só para nós morarmos.

36 A atriz que minha irmã se referia era Jacqueline White.


Março de 1950 – na sala de espera da creche Vó Libânia eu

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aguardando consulta com o pediatra e queixava-me a outra mãe. atencioso, brincalhão, levava à praia, ao parquinho e até, quando esta-
va em casa, fritava batatinhas para ela.
– Creio que estou grávida. Puxa eu não queria, minha nenê tem
só 3 meses e além disso eu queria voltar a trabalhar em alguma loja. Estes seus agrados à filha, refletiam em mim como uma espécie
de chantagem emocional.
A outra mãe segredou-me conhecer uma parteira que...
Eu me anulava, se ele era um bom pai, tudo estava bem.
Pedi-lhe o endereço e na casa de tal mulher compareci.
Usando um bico de pato, ela injetou-me um líquido pela vagi-
na e no dia seguinte as regras desceram. O Fogão Novo e o Meu Emprego
– Volte, disse ela, todo mês para nova aplicação, isto se não
quiser filhos. Década de 1950
Voltei e nunca o marido soube destas escapadas.
Agosto – Os desaforos na hora do almoço terminaram. Mas isto
Na loja Sears, na seção de domésticos, Zira fazia demonstração só porque Zira deu para mamãe um fogão a gás de botijão, comprado
culinária usando liquidificadores, panela de pressão entre outras coi- na loja da Liquigás, onde ela demitindo-se da Sears foi trabalhar.
sas.
Por falar nisso, voltei lá e deram-me um lugar como vendedora
Eu à procura de uma vaga nessa loja estive no departamento na seção de roupas infantis.
pessoal, pretendendo ser uma vendedora.
Aos fins de semana eu continuava pedalando a Pfaff, mas só
Nada feito, porque na firma havia um regulamento não permi- em roupas para Jackinha.
tindo irmãs entre seus funcionários.
Eram jardineiras, vestidos de marinheiro, maiô de praia, etc.
Então, enquanto não aparecesse algo mais rentável, decidi ser Sempre modelitos caprichados cópia dos figurinos franceses Le Petit
em casa, na Pfaff da mamãe, uma modista e consegui umas modestas France, vendido nas bancas de jornal.
freguesas.
O figurino da época era diversificado, direi até complicado, ru-
fos, drapeados, recortes, enchimentos, a saia godê guarda-chuva sem- Jack Doente
pre ficava com ponta, tratava-se a ponta aqui, ela aparecia lá. Para sorte
minha, a mamãe entendida no ofício, dava-me uma boa ajuda. Janeiro – Caidinha no berço, com febre, corpinho inchado, Ja-
Se antes era difícil conviver com a chantagem emocional, o ckinha estava doente. Seu pai trouxe em domicílio um pediatra, seu
tempo e o entendimento só provaram que poderia piorar depois que conhecido e passageiro da viação, que diagnosticou a doença como
o marido virasse trabalhador. Porque ao fim do seu turno na agência, nefrite (doença inflamatória dos rins).
ao ir para casa ele passava antes no bar e com o dinheiro da caixinha (o Fora os remédios, o doutor recomendou uma dieta rigorosa,
envelope com seu pagamento eu o queria fechado em minhas mãos), bife só na chapa, purê de batata à vontade, mas nada de sal ou gordura.
tomava seus bons copinhos de rabo de galo37, sempre chegando atra- Passou-se uma semana, a doente enjoada de purê insosso e melhora
sado para o almoço, implicando não só comigo, mas também com a nenhuma.
sogra. Com esta porque demorava em colocar seu prato feito na mesa,
o culpado desse atraso não era a cozinheira e sim o fogão a carvão que O pediatra retornou, fez suspense e aconselhou que o melhor
lerdeava em reavivar suas brasas para poder fritar o bife. seria internar na Santa Casa.
Se com nós duas era grosseiro, com a filha ao contrário era Internar? Se hoje assusta, imaginem há muitos anos. A avó ain-
da das antigas, ficou firme que não, que não.
37 Bebida feita de pinga com Cynar.

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O pai retraiu-se, emudeceu. – Como você é fria, igual uma geladeira – ou – você fica dura,
parece que estou em cima de uma tábua.
Ficou comigo a decisão, e já quase optava por sim internar,
quando o tio Arlindo chegou à noite acompanhado do Dr. Stuch, clíni-
co geral, que atendia os funcionários da fábrica de vidros, de imediato
o clínico suspendeu a dieta rigorosa. Uma nova casa – 1955
A avó foi depressa para a cozinha. Um tempo depois estava de Vitrola Automática
volta, quando a menina viu a avó entrar no quarto com um prato de
batatinhas fritas ficou de pé no berço e de alegria bateu palminhas.
Em junho, muda-
No mês seguinte Jack já estava brincando na matinê do Carna- mos para uma pe-
val, fantasiada de havaiana, mas ainda barrigudinha. quena casa aluga-
Na época não havia um diagnóstico preciso. Jack fez a dieta do da, de 2 quartos,
primeiro médico por um tempo e por fim foi desinchando aos poucos. na rua Tamandaré.
O importante é que estava curada. Nunca chegamos a ter certeza se Na Sears comprei
era ou não nefrite. fogão, geladeira,
máquina de costu-
ra, etc. De 2ª mão,
Um Pé de Meia Ami comprou uma
vitrola automáti-
ca (nela cabiam
1954 – Emprestando dinheiro a prazo, economizando os juros, empilhados vários
já tínhamos feito um pezinho de meia e adquirido em prestações dois discos 78 rotações,
lotes de terra no bairro Chico de Paula, na Zona Noroeste de Santos. caindo automati-
Nos empréstimos, Sr. Moacir, dono dos cines Anchieta e Janga- camente no prato giratório para tocar após o final de outro). A vitrola
da, era nosso cliente. era parecida com esta da foto.
Em Santos a agência da Viação Estrela estava a apenas duas Rute, amiga minha e das manas, apareceu na casa na hora da
quadras da loja Sears, sendo assim era fácil que aos meus ouvidos che- bagunça da mudança e deu uma ordem geral. A ela ofereci um salário
gassem zum-zum-zuns dos casos amorosos de certos agenciados. e Rute ficou ajudando nos serviços caseiros de vez.
Eram a Neide, a Elizabeth e outras que esqueci o nome e não
vale a pena nestas linhas lembrar. Contudo, nunca me dei ao trabalho
de ir comprovar. Queria mais era que ele me deixasse em paz na cama, Trabalho de Turno na Petrobras – 1956
falando claramente no sexo. Tábua, geladeira e de outras coisas frias
ele me taxava, porque nestes anos que dormimos juntos na mesma Maio – Se com razão ou sem razão “o agenciador” foi mandado
cama, nem uma vezinha sequer eu senti prazer. pra rua sem indenização. Bem, se esta houve, eu não vi a cor do dinhei-
Isto talvez acontecesse porque ele sem uma palavra de agrado, ro.
gesto de carinho, me agarrava como se eu fosse um saco de batatas, Nesse mesmo mês por meio das boas amizades conseguidas
arreava seus quase 70 kg em cima dos meus 44 kg, fazia seu gozo sofri- na Viação, ele era um dos vigilantes da Petrobras.
do e estando satisfeito, deitava-se (só à noite) e logo estava roncando.
E como ele roncava! Eu não fingiria que me agradavam essas relações, Seu novo turno de trabalho nunca entendi, ele retornava para
pelo contrário, retorcia meu corpo, franzia o nariz. Ele reclamava. casa em horários tão descontrolados!

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Porém, se meia-noite, madrugada, manhã cedinho, ou 9h da em direção à Praça Mauá, onde ficávamos na fila em conversas dispara-
noite, quando eu na cama lia a Cinelândia, enfim, fosse a hora que fos- das à espera do ônibus que nos levaria a São Vicente. No ponto próxi-
se, ele se encostava e queria, droga me aborrecia, porque lá se ia o meu mo à Praça Bernardino descíamos, e em um banco escuro da praça nos
sono e a minha paciência. Ele perdia também a dele e esbravejava. despedíamos após um tempo de amassos e beijos.
– Ah! É assim? Depois não se queixe, fique você sabendo que O Mexicano (assim apelidei Jairo por sua tez morena, seus bas-
quem não tem em casa procura na rua. tos cabelos negros e o cheio bigode) ficou por mim apaixonado. Em
lamúrias de amor queria que abandonássemos tudo e fôssemos juntos
Então estávamos empatados porque se a ele faltava o sexo, a
viver em outra cidade qualquer.
mim fazia falta o carinho.
A década de 1950 foi muito romântica e influenciava os tolos
corações de namorados e amantes.
Revista Cinelândia
No cinema os filmes eram lacrimosos, na rádio as músicas eram
baladas tristes e sentimentais, era a onda dos boleros mexicanos, as
revistas de fotonovelas como Grande Hotel narravam casos de amor
plenos de renúncia e abnegação.
Revista Grande Hotel da Década de 1950

Todo Mundo Precisa de Carinho


Com saudades relembro os 6 anos em que fui vendedora e sub-
chefe na Sears. Apesar do muito a fazer, lá entre os balcões e contas eu
era feliz. Havia uma boa camaradagem entre os colegas e chefes em
geral.
Às tardes, em grupinhos saíamos moças e rapazes à rua para
tomar uma média38 com pão e manteiga na leiteria Campo Belo.
O jeito tranquilo de Jairo, um dos rapazes, me cativou e aquele
carinho que me faltava em casa, na rua encontrei.
As lamúrias sentidas e expressas por Jairo eu ouvia calada, no
Ao final do dia, nós dois, lado a lado pelas calçadas seguíamos íntimo concordando e pensando: como seria bom viver ao lado do Jai-
38 Média em São Paulo é café com leite. Em Santos média é o pão francês. Neste trecho ela
ro tão calmo e tranquilo e melhor seria livrar-me da convivência com
refere-se ao café com leite, certamente por ter morado em SP e se habituado com o vocabulário Ami.
local.

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Conto a vocês o xaveco que Ami aprontou no início de 1957: desconfiava que ele se tornara visita assídua.
recebeu 10 mil cruzeiros, dinheiro dos juros que nos devia o Sr. Moacir
Na manhã de 17/05 ele chegou da rua às 10h, deitou, dormiu,
e não sei onde o gastou, porque não me entregou como deveria. Um
roncou, acordou, almoçou, saiu. Nem o vi, não vi porque não quis.
carão levei do dono ao cobrar dele a dívida que já fora paga, briguei
para o dinheiro retornar às minhas mãos.
O caso do Mexicano iria para 5 meses, quando uma noite (noite Ânfora (meramente ilustrativo)
que me será difícil esquecer pois era a data 15 de maio de 1957, véspe-
ra do meu 29º aniversário), estávamos na fila em um amor, tão absor-
vidos, que só me dei conta da presença de Ami quando ele já parado,
feito um dois de paus, estava cara a cara do nosso lado. Caramba, me-
ninas que susto levei! Rápido saí da fila, deixando lá o Jairo e segui em
busca do outro ponto de ônibus e com Ami atrás de mim azucrinando
meus ouvidos com palavrões. Em casa o ambiente esquentou e ferveu
de verdade.
No fogão eu colocava uma leiteira com água para ferver, (iria
fazer um escalda pés para aliviar as dores das varizes) porém, ao ouvir
mais um palavrão, danei-me e agarrei pelo cabo a leiteira e atirei-lhe
com água quente e tudo foi ao chão, ele de shorts deu um pulo para
trás e o gozado foi que os pés que terminaram escaldados foram os
dele.
Dona Felícia (boa senhora moradora defronte), percebeu o
bafafá e interviu espairecendo os ânimos esquentados pelo resto da
noite. Esta noite quase não dormi ele ao contrário roncou tanto que no No quarto da Jack refugiei-me esse tempo costurando um ves-
quarto da Jack eu ouvia. tidinho rosa com nervuras e pregas para a Jackinha.
No dia do meu aniversário acordei zumbi, não fui trabalhar Quase noite (Rute já havia saído) ele retornou, em uma antipa-
(estava com ideias de demitir-me) e desse dia nada mais lembro. Se tia, arrogando valentia, contando-me que estivera na Sears, em busca
do dia pouco lembro da noite, para compensar, guardo boas recorda- de uma satisfação cara a cara com o meu amante (notem que ele assim
ções. À volta da mesa da sala, cantando “parabéns a você” e comendo o dizia) e empostava a voz nos adjetivos, mas que Jairo covarde, ao
bolo (Rute fez o seu e meu preferido regado com suco de laranja), Jack vê-lo passou a mão no paletó e sumiu da seção.
e as coleguinhas Marilene, Valéria, Valquíria e outras; mamãe; Nucha
(cunhada); Rute; D. Felícia e suas 4 filhas a caçula era Marilene e Linda. Para variar xingou-me mais um pouco.
Zira chegou tarde, quase não pegou uma fatia do bolo. Ela trazia-me Eu que desde à tarde me distraía ouvindo discos na automáti-
como presente uma linda ânfora39 de porcelana com incrustações de ca, ao cair no prato o disco 78 rotações “Fósforo Queimado” da Ângela
flores também em porcelana. Maria, para a arreliá-lo aumentei o volume do som.
Não falei em marido? Bem à volta da mesa ele não teria a des-
façatez de enfiar a sua cara de hipócrita. Talvez fosse o seu turno da
noite, não lembro ou quem sabe estaria na casa da Elizabeth, onde eu
39 Vaso cerâmico, bojudo, de gargalo estreito e base pontiaguda, com uma ou 2 asas simé-
tricas, usado pelos antigos gregos e romanos para conservar líquidos (vinho, azeite, água etc.) e
cereais.

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Disco 78 rotações “Fósforo Queimado” de Ângela Maria – Diga a ele que vá me esperar na Praça Bernadino.
Compositor: Paulo Menezes, Milton Legey e Roberto Lamego
E no banco às escuras da praça matamos as saudades, troca-
mos beijinhos e fizemos tolos planos de fuga.
Hoje não te quero mais / Eu preciso de paz
Já cansei de sofrer. Na manhã seguinte (sábado) fui à Sears e pedi a demissão.
Vives na rua jogado
Se eu me fosse com o Jairo, como era minha pretensão nesses
És um fósforo queimado / Atirado ao
dias, pretendia levar além de um dinheiro em mãos, também uma nota
chão.
promissória de 100 mil vencida e assinada pelo Sr. Moacir.
Tu para mim és ninguém
Procure um outro alguém Como ia cobrá-la era caso para pensar depois.
Que te ajude a viver.
Na tardinha do sábado, Ami em casa, se fazendo de bonzinho,
Pouco importa
pediu-me, queria ver tal papel, a promissória.
Que sofres assim / Zombastes de mim
Precisas sofrer. Neguei claro, não era besta.
Em vez de tentares a sorte / Procuras a Ele insistiu, queria só ver de longe podia ser.
morte.
És a gorjeta deixada / Em um botequim. Ficou querendo, e assim que ele, furioso, saiu batendo a porta
Foste cruel para mim / Não te lembras da rua, escondi o papel entre o forro e a gaveta (da cômoda da Jack).
agora / Hoje não me interessa / Se sofres Um pouco mais tarde, já noite, Marilene entrou com o aviso da
assim. ronda.
Quando mais uma vez ele referiu-se ao mexicano como “aquele Parece que o meu amado amante escolhia uma hora em que o
seu amante covarde”, retruquei-lhe. odiado marido não estava em sua casa para aparecer.
– Ele é muito mais homem que você! Meninas, não fiquem maliciando que por estar o marido ausen-
te o outro na casa entraria. De sem vergonha poderiam me taxar, mas
Eu referia-me às ações e ao caráter do Jairo, mas ele machão de louca não.
e maldoso entendeu por outro lado, e agindo tal e qual um cornudo,
cuspiu-me no rosto. Jairo não poderia em casa entrar porque as vizinhas (entre elas
D. Felícia) juntavam suas cadeiras na calçada (toda noitinha) frente às
Que ódio isso deu. Tive ganas de dar-lhe um murro na cara, casas e ficavam proseando por horas. Quando a TV apareceu nos lares
mas ele era mais forte, por isso usei a arma de otário e bronqueei: da baixada, esse hábito terminou de vez!
– Asqueroso, nojento, você não passa mesmo de um imprestá- O encontro foi mesmo na Bernardino. Jairo sorriu um tanto
vel. Porco, sujo, nojento. apático, acabrunhado contou-me: ele também pedira demissão.
Ao ver-me irada, como sempre fazia, escapou pela porta da rua. Domingo o almoço foi na casa da vovó. A mamãe já ciente das
Marilene, amiguinha da Jack, era minha amiga também, boa minhas doideiras (notei) estava arredia.
parceira no jogo da canastra, sabida demais para seus 11 anos, neste À tarde, Jack ficou brincando com os priminhos e fui à matinê
caso do mexicano ela ficou minha cúmplice. do Jangada com a Marilene.
Se brincando nas calçadas ela avistasse o mexicano rondando
pela esquina, corria a me avisar.
Nessa noite assim que Ami saiu ela entrou e saiu com o recado:

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Propaganda do Cine Jangada no Jornal “A Tribuna” que fica difícil e mais difícil ficará se houver filhos na história.
Aos 7 anos e meio Jack era já tão voluntariosa e não iria que-
rer deixar o seu paizinho de jeito nenhum. Vá lá que por milagre eu
a convencesse a seguir comigo e o estranho para ela. Então me dava
uma paúra, um medo que Ami pedisse auxílio ao primo investigador
e Mário, que era um Sherlock, iria descobrir nosso paradeiro nem que
fosse nos confins, e ainda eu já me via frente ao juiz sendo acusada de
adultério e sequestradora. Eu raciocinava que para poder seguir tran-
quila, com meu tranquilo mexicano, só seria possível se deixasse a filha
na companhia do pai, (não se espantem, eram só pensamentos meus e
foi justo por isso, por pensar demais que dizem: morreu o burro).

O Vidente
Eu recordava de casos iguais aos meus, acontecimentos com
outras mulheres como o caso de famosa atriz de Hollywood40, anos
atrás ainda rendia assunto nas páginas de mexericos da revista Cine-
Quando as luzes se apagaram, o mexicano veio sentar-se na lândia. Esta atriz, Ingrid Bergman, ao escapar com seu amante, Roberto
cadeira vaga que a amiguinha reservou do seu lado. As duas trocamos Rosselini, para Itália, deixou para trás, com o pai, sua filha com 9 anos
de lugar, claro. Este cuidado, tomei-o por temer que Ami estivesse vi- na época.
giando a mim e não aos poços de petróleo. Eu a admirava, que corajosa!
E depois da casa da mãe não saí, antes de ouvir dela um ser- Alguém, não lembro quem, indicou-me outro alguém, que po-
mão. deria dar-me apoio nesse revés de amor.
– Tenha juízo, minha filha, procure viver bem com o seu marido, À porta da casa desse tal (era um místico) fui bater. Ele mandou
é o melhor que você tem a fazer. entrar em uma sala e sentar em uma poltrona, sentando-se ele em ou-
Mas e o outro, mãe? O que faço? Ele está arrasado. tra à minha frente. Tomando minhas mãos nas suas, perguntou-me em
voz pausada e grave.
– Deixe que se arrase.
– O que a está afligindo? Conte-me tudo.
– Ah! Coitado gosta tanto de mim.
Contei.
– Que coitado nada, mande ele às favas.
O caminho de volta pra casa, eu o fiz, absorta, matutando no
conselho das favas. Já em casa, ao abrir a porta da sala, com esta cena 40 A atriz em questão era Ingrid Bergman. Casou-se em 1937 com Petter Lindström, com quem
me deparei: teve uma filha, Pia. Em 1949 divorciou-se e casou com o diretor italiano Roberto Rossellini, uma
união que causou muita polêmica, pois ambos eram casados quando se apaixonaram e abando-
Ami no rosto estampado um sorriso de vitória, na mão ostenta- naram as respectivas famílias para viverem juntos. Essa paixão fez com que Ingrid fosse acusada
va a nota promissória. Eu não estava aguentando mais, já me sentindo de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas e levou-a a ficar anos sem filmar
à beira de um ataque de nervos. Afirmo a vocês que falar, pensar em nos Estados Unidos. Com Rossellini teve três filhos: Roberto e as gêmeas Isotta Ingrid e Isabella,
abandonar marido, falar é fácil, porém, na hora do ver e acontecer é hoje a atriz Isabella Rossellini. Esse casamento durou até 1957, quando se divorciaram. Foi casada
com Lars Schmidt de 1958 até 1975, quando também se divorciou.

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Ingrid Bergman Corte de Cabelo La Garçonne

Saímos de mãos dadas caminhando pela Rua 13 de maio. Sen-


ti nesse caminhar ondas de ternura percorrerem meu corpo. Ela dan-
do-me sua mãozinha... senti como se confiasse em mim, que poderia
rebentar trovada, chover canivetes e mesmo que um raio caísse sobre
Ao fim da confissão, ele segurando uma corrente tendo nela mim, ainda assim a minha mão estaria ali sempre à sua mão, para guiá-
enfiada uma medalha, balançou-a pra lá pra cá, diante do meu nariz. -la por um bom caminho.
Pensei que fosse dormir, mas aconteceu que desatei numa
choradeira que só teve fim ao ouvir a voz do místico:
A Decisão
– Acalme-se, tenha esperança e fé que tudo irá se resolver de Na próxima aparição do mexicano pedi à Marilene que levasse
uma ou outra maneira. este recado:
E outras palavras mais ele disse no intuito de levantar um astral – Diga a ele que vá me esperar, naquele bar defronte à fábrica
caído. No entanto, para erguer aquele meu astral desabado, seria ne- de vidros.
cessário usar a força de um guindaste.
Nessa tarde quando no bar entrei já o encontrei, sentado a uma
das mesas, com o rosto tristonho, diante de uma garrafa de cerveja.
Ternura Sentei-me, da cerveja tomei um copo e tomei também cora-
gem para lhe dizer a minha decisão.
Dia 25/05/57 fui à tarde buscar Jack à sua saída do berçário São – Jairo, eu pensei muito, refleti na nossa situação e decidi... eu
Gabriel, quando ela apontou no portão; seus cabelos claros cortados a não sei como começar...
“La Garçonne” cobertos por boina azul, uniforme pregueado preso por
suspensórios, sapatos de verniz com pulseirinha; sorriu quando me viu, – Você quer terminar tudo.
feliz ao ver que sua mãe fora buscá-la, pois era sempre a Rute que ia. – Não vejo outra solução, por mais que eu pense, disse-lhe já

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vendo lágrimas brotando nos seus olhos. Praça Marechal Deodoro Fim dos anos 1950
– Mas e agora Maria que já pedimos a demissão?
– Fomos precipitados agora me falta coragem para ir adiante.
– Por que terminar? Poderíamos continuar a nos encontrarmos
às escondidas.
– Com ele agora sabendo de tudo? Se nos “pegar” outra vez,
será bem capaz de uma reação inesperada. Não Jairo, é melhor você
me esquecer.
As lágrimas que estavam indecisas rolaram de vez pelo seu ros-
to. Digo a vocês que a conversa, se não foi assim, foi mais ou menos
assim, e ao vê-lo chorar, segurei para não chorar também.
O caso com o mexicano teve seu fim naquela mesa de bar,
onde deixei-o a terminar sua cerveja e saí pra rua sentindo as pernas
bambas, a cabeça zonza, os olhos avermelhados...
Não digam que isto era efeito da cerveja, pois dela eu tomara
apenas um copo.
Eram a tristeza e o ódio que me oprimiam: A tristeza era por
Jairo, que por minha culpa ficara sem o seu emprego e ainda por cima A menina Alice, filha do zelador do prédio nº 150 da praça, to-
abandonado. das as tardes brincava entre os canteiros com Jack, sua nova amigui-
O ódio este era por Ami, a quem eu considerava o único causa- nha. No 6º andar desse prédio morávamos desde o final de julho.
dor da minha decisão. No térreo estava instalada a mercearia Kelly e éramos nós seus
Pisando com raiva os paralelepípedos que calçavam a Taman- novos proprietários.
daré, eu fiz a mim mesma um juramento. Jurei que viria o dia em que Pela posse da mercearia pagamos 700 mil cruzeiros e os 500
eu poderia vingar-me do meu marido. restantes seriam pagos em 50 prestações mensais. Para completar o
Era só ficar de tocaia, aguardar por uma das “boas” que na certa tanto da entrada, vendemos um dos lotes do bairro Chico de Paula em
um dia ele me aprontaria. Aí então eu me vingaria, cobrando tudo na Santos). O aluguel da loja era 10 mil e incluía o uso de uma linha tele-
mesma moeda, tim-tim por tim-tim. fônica. A mercearia tinha 5m x 20m. Quando fechamos o negócio a en-
contramos bem sortida e aparelhada: balcão revestido com mármore
de Carrara (disse-nos o proprietário), máquina de moer café, cortador
De volta a São Paulo: Comerciantes de frios, balanças, queijeira, etc.
Em toda a extensão da parede corriam prateleiras repletas de
No ano de 1957, na cidade de São Paulo, a Marechal Deodoro boas mercadorias: vinhos, azeite galo, conservas, doces em caldas, etc.
era aprazível, arborizada e ajardinada praça. A queijeira ocupada por balcões de parmesão faixa azul, bolas do cre-
Nos galhos de suas árvores frondosas pássaros gorjeavam ao moso queijo Símbolo, formas de queijo de Minas fresco. O balcão frigo-
final do dia. Nestes dias primaveris de setembro crianças em algazarra rífico abarrotado com cervejas, refrigerantes, salames, linguiças, queijo
corriam entre seus canteiros floridos. prato, etc. Ladeando a porta da frente, 2 pilhas altas de latas, uma do
bom óleo Delícia, a outra da nobre cera para assoalho Blume.

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Entregas, reposições, atendimento e o que mais aparecesse enervava além de entristecer.
disto se ocupavam 2 garotos.
Em consequência do caso, houve mais uma demissão: Rute
A meu cargo ficaram as contas, somar cadernetas, fiados de chorou sentida quando por força da mudança vi-me obrigada a dis-
balcão, anotar pedidos por telefone, fazer compras. Os fornecedores pensá-la.
vinham expor seus mostruários diretamente no tampo do balcão. Eu
E a cúmplice e amiguinha fiel. Com ela fui ingrata, não lhe dan-
também colaborava no atendimento aos fregueses, Ami (olha ele aí,
do nem novo endereço, por medo que ela o transmitisse a outrem (vo-
quem diria?) era um faz tudo incluindo a limpeza ao final do dia, aliás,
cês sabem quem).
já noite.
Notem que o romance teve um final inusitado porque: a heroí-
Querem vocês saber como fomos parar comerciantes na gran-
na ao invés de fugir com o amado amante, fugiu com o odiado marido.
de São Paulo?
Foi assim:
Aquele atribulado maio findou, junho chegou. Eu com tempo A Mercearia e a Vida Nova – 1958
disponível e alguns cruzeiros em mãos, saí por São Vicente, a procura
de bazar, quitanda, laticínios, etc. Algo pequeno que eu pudesse to- Na parede da mercearia, o novo calendário tinha já circulado
car pra frente sozinha, encontrava-me nessa andança, quando eis que em berrante vermelho o dia 15 de maio (dia do flagrante).
naquele caso de Mexicano, como se não bastasse já ter havido duas Coisa de Ami para me provocar.
demissões, mais uma aconteceu: a do marido traído.
O hipócrita deixara cair a sua máscara de bonzinho.
Se findou o prazo do seu contrato ou se foi demitido, nada ele
me disse nada lhe perguntei. Jack estudava em um colégio dirigido por freiras. Seu pai a le-
vava e buscava, à tarde via TV na casa de Alice ou brincava no jardim
E o mais interessante no caso foi que esse cara malvado virou com amiguinhos.
um cara tão bonzinho!
Março – Em algumas tardes o merceeiro vestia uma camisa lim-
Certo dia ele chegou-se a mim todo meloso choramingando. pa, uma calça mais ajeitada, por vezes um paletó e lá ia ele ao centro,
– Você tratou-me sempre com tanta frieza, mas creio que é por pagar contas de luz, água, telefone, visitas ao contador. Ele tinha boas
esse seu jeito esquisito que eu gosto de você! desculpas para fugidas.
Noutra tarde ele veio com mais nhenhenhém. Eu? Não ia ao cinema, saía a dar volta, descer a serra? Raro, pois
até domingo aparecia o que fazer.
– Acredito que seu caso com o rapaz da Sears não passou de
um namorico, porque você nunca gostou de fuc-fuc. Nada parecia me atrair fora da mercearia. Como se quisesse es-
quecer algo ou alguém eu me afundava nas contas atrás do balcão de
Nada lhe respondi, ele que pensasse o que quisesse que pouco mármore Carrara.
me interessava. Também eu não seria burra de o contradizer, pois esta-
va me arriscando a tomar outra cuspida. Numa dessas tardes em que o marido fora ao centro e a fre-
guesia dera uma folga, quem e que eu vejo entrando pela porta da
A promissória ($100 mil) foi paga pelo Sr. Moacir e então, com mercearia? Ele, o Mexicano. Com aquela mesma tez morena, mesmos
mais dinheiro, Ami bonzinho juntou-se a mim a procura de um negócio bastos cabelos negros e o cheio bigode!
maior em Santos. Nada encontrando na baixada que “me” agradasse,
decidimos ir procurar na Capital. Que saudade! Uma vontade de dar-lhe um abraço.
Confesso: havia outro motivo para essa escapada: O Mexicano Ao invés disto que fiz eu? Censurei por ainda me procurar.
inconformado ainda teimava em fazer ronda na Tamandaré, isso me – Por que não me esquece, como te pedi?

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– Ah! Maria, penso que você não sabe o que é amar alguém. Sem ver lucro algum. Essa era a dura realidade após um ano de
Reclamou ele naquele jeito tranquilo que um dia me cativara. árduo trabalho.
Após lamentar mais um tanto o fim do nosso romance, ele pela Para renovar o estoque já fora vendido o 2º lote do Bairro Chico
mesma porta que entrou, saiu. de Paula e por medida de economia despedido um dos garotos.
Anos mais tarde fiz o possível para reencontrá-lo, contratei de- Com razão nos alertara o ex-proprietário quando do início da
tetive, eu mesma segui uma pista, inútil, nunca mais o vi. transação.
Maio – Sempre à noite após brincar com Alice, Jack aparecia – Tenham cuidado com os fiados, não abram novas contas,
na mercearia e fazendo lição ou lendo gibi, esperava fecharmos, para conservem os que já tem. Esses são bons fregueses. Isto eu garanto.
juntos subirmos ao apartamento.
Não pensem que estou tirando o corpo fora, mas não era mais
Era esta a hora escolhida pelo vendeiro para fazer a faxina. à mulher e sim ao proprietário que interessados iam pedir a abertura
de nova caderneta, e Ami, o bonachão era pessoa do tipo que não sa-
Limpava o cortador, varria, passava pano no piso, retirava o lixo,
bia dizer não, abria.
reabastecia o frigorífico com bebidas, etc.
Lembro, foi em março, um senhor metido em um terno de li-
Iniciava a tomar cerveja, tomava uma e outra geladinha, tinha
nho claro cheio de pose, bem falante com sua lábia convenceu o mer-
aí início a sua provocação. Visando a mim, claro, eu sempre ouvia:
ceeiro a lhe dar crédito.
– Não está satisfeita? Por que não volta pro seu amante lá de
Este novo freguês já começou comprando do bom e melhor
Santos?
que havia na mercearia Kelly.
Ou então:
No 1º mês, tudo bem, pagou. No entanto, no correr do 4º mês
– Está com saudades do seu amante lá de Santos? ela já estava devendo o 2º e o 3º, continuava comprando e prometen-
Era insuportável, queria abandoná-lo, mas ali na hora da raiva, do pagar amanhã.
nada de parar para pensar. Não pagou e “puft” sumiu.
Isso eu tentei, por mais de uma noite, pegando na mão de Jack, Ao ser cobrado direto no seu apartamento, o zelador do prédio
saía com ela em direção à rua xingando: informou que esse morador havia mudado na calada da noite e nem
– Seu imprestável, sapo inchado (ele estava gordinho e como ele ou o síndico souberam informar para onde.
era olhudo daí o apelido que lhe dei e que eu sabia ele detestava), vou Os favores do primo investigador foram solicitados por Ami.
embora pra São Vicente e pode ficar com essa droga de mercearia. Mario descobriu o paradeiro do fujão. E de que isso adiantou, se Ami ia
Na verdade, eu já me cansara de só trabalhar não ver lucro al- lá e o caloteiro se escondia ou se encontrava prometia pagar? No final
gum, mas a Jack, pelas calçadas, quase arrastada por mim ia aos berros. nem um tostão de sua dívida ele pagou.

– Não quero ir... vamos voltar... eu não quero ir... Como este, houve outros caloteiros mais.

Ainda assim eu conseguia chegar com a chorona até o ponto


do táxi, que nos levaria até a Praça Clóvis de onde partiam os ônibus Conversas ao Pé do Balcão
para a Baixada, mas quem disse que eu fazia a chorona entrar no carro?
Se deitava, se rolava, esperneava e se alguém visse pensaria que eu a Setembro – Recordo as freguesas, tão simpáticas, tão amigas,
estava sequestrando. com elas em conversas ao pé do balcão eu era outra pessoa, mais co-
Eu me via obrigada a retornar à mercearia e ter que enfrentar a municativa, mais aberta a um bate papo ligeiro.
cara de um cinismo gozador que Ami fazia.

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Houve um dia em que elas curiosas indagavam. Livro “O Poder do Pensamento Positivo”
– Mas o que foi isso Maria? O que aconteceu com seu olho?
Eu respondia gaguejando.
– Isto é... sabe. Eu fui pegar uma lata de ervilhas no alto da pra-
teleira segurei mal e a lata tinha que cair bem aqui e apontava o olho
machucado.
A mim me parecia que elas não acreditavam nesta história que
inventei, mas foi a melhor desculpa que encontrei para justificar aquela
olheira negra, que na verdade fora causada por uma cebolada. Uma
cebola que o comerciante irritado ao ouvir chamá-lo de sapo inchado
me atirou e que foi certeira a atingir meu olho esquerdo.

O Surgimento dos Peg-Pag


Preces eu fiz, velas acendi pra Santa Edwiges que uma das fre-
guesas amigas me dissera ser a Santa protetora dos endividados. Por-
que de mal a pior prosseguia a situação financeira da mercearia. Para
piorar um Peg-pag41 fora inaugurado nas proximidades. Era forte a con-
corrência com estes estabelecimentos superiores que a cada dia mais
surgiam em cada canto da cidade. Após acender a vela e orar para Santa Edwiges, eu lia algumas
páginas e hoje relembrando considero que essa leitura foi de fato uma
Estavam obrigando pequenos merceeiros a fecharem definiti- boa autoajuda.
vamente suas portas.
1959 – Devíamos à beça, mensalidade, aluguel da loja, impos-
Outubro – Aproveitando que iríamos em férias para São Vicen- tos, duplicatas vencidas (algumas já tramitavam pelo cartório de pro-
te, entregamos o apartamento, já com atraso no pagamento do alu- testo).
guel. Para um guarda-móveis levamos utensílios e móveis exceto um
guarda roupa, uma cama de casal, uma cômoda, estes foram para o As contas de luz e água paguei senão ficaríamos às escuras e à
fundo da loja e ali ficou sendo nossa precária moradia. Foi mais uma seca.
medida de economia, pois ainda nos restava a última esperança de evi- O telefone não estava mudo porque Ami ia ao centro pagar sua
tar a derrocada final. conta. Mas mudo ele parecia, pois eram poucos os pedidos.
Minha leitura à noite não era mais a Cinelândia, porque para Para satisfazer um freguês ainda fiel e que nos pedia uma en-
combater o desânimo e aliviar o stress, o meu livro de cabeceira passou trega de mercadoria (batata por exemplo) e não tivéssemos em esto-
a ser. “O poder do pensamento positivo”42 do escritor Norman Vincent que, mandávamos o garoto com sacola comprar na barraca do Cabral
Peale, livro que me foi emprestado por uma das freguesas amigas. (próxima dali) e a batata era vendida a um precinho maior, isto para se
ter um lucrinho.
41 Peg-pag é como eram chamados os primeiros mercados em que o próprio cliente pegava
suas mercadorias e pagava no caixa.
Com tanto “não tem, não tem” a freguesia foi (com justa razão)
fazer suas compras no sortudo Peg-Pag.
42 O livro é editado até hoje e atualmente é considerado o precursor do famoso livro de auto-
ajuda “O Segredo” de Rhonda Byrne. Só nos restando algum freguezinho de leite, laranjas, pó de

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café e outras mercadorias fornecidas quase sempre com pagamento à Praça Marechal Deodoro, atualmente, sob o Minhocão
vista, porque crédito na praça não tínhamos.
As prateleiras antes repletas com boas mercadorias, nesse fe-
vereiro exibia garrafas de pinga, vinagre, rolos de papel higiênico, pa-
cotes de fubá e outras mixarias que pareciam unir-se em conjunto para
tapar os buracos. A queijeira vazia, tornou-se inútil e foi encostada em
um canto de área de serviço.
O balcão frigorífico não estava de todo vazio, porque o vendei-
ro ainda o estocava com refrigerante e cerveja. Esta última por ele apre-
ciada e não deixaria faltar. Uma pilha de latas ocupava um dos lados da
porta e era também de cera para assoalho, porém não da nobre Blume
e sim de enferrujadas latas na fajuta Líder.

A Falência
A milagrosa Santa Edwiges não atendera minhas súplicas, mi-
lagres, não me concedera e era eu quem a perdoava, eu entendia que
naquela encalacrada situação Santo nenhum poderia dar jeito.
Então por que tentava salvar o que já estava mais do que per-
dido?
Uma noite de março, Ami fechou o cadeado trancando por fora
a porta da Kelly pela última vez. E saímos sorrateiros pelos canteiros
do jardim, deixando o pouco que restou lá dentro a quem por direito Eu estava com ideias de retornar a São Vicente, mas Ami era
pudesse interessar. contra. E naquela de tão bonzinho que ele estava, em 5 dias empre-
Vem-me à lembrança o que comentava um velho morador das gou-se junto a uma equipe e foi oferecer poços artesianos em casas de
redondezas quando em conversa fiada com o vendeiro ele afirmava: bairro da periferia, onde não chegava a água encanada.
“Aqui nesta loja tem caveira de burro, nenhum negócio vai pra Vi um anúncio no jornal: “Aluga-se quarto para casal, próximo
frente”. Sempre acreditei que esse velho estava com razão. a Brigadeiro e Av. Paulista”. O local era convidativo. Fui ver o quarto, era
espaçoso, aluguei-o.
Se vocês não acreditam, deem uma chegada até lá e vejam,
com seus próprios olhos, como o Minhocão acabou com o bom comér- Jack matriculou-se no curso noturno do colégio estadual situa-
cio local e arrasou também com a praça ajardinada. do na Av. Paulista, onde já estudavam Lena e Marcia as filhas de D. Ire-
ne, a dona da casa. Ficaram amiguinhas.
Se antes entre seus canteiros floridos crianças corriam alegres,
hoje debaixo do seu viaduto dormem tristes mendigos. Quanto ao emprego para mim, não me apressei, teimava em
ser uma vendedora da Loja Mappin, onde eu sabia que pagavam boas
Para não dizer que saímos com uma mão na frente e outra atrás comissões.
daquela falência, ainda salvamos uns trocados e fomos nos acomodar
em uma pensão.

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Mappin Praça Ramos de Azevedo – Anos 1950/1960 O Poço Secou – 1960
Os poços artesianos secavam, quer dizer, pouco rendiam. Ami,
pensando em melhor emprego, foi tirar carteira de motorista e na pró-
pria autoescola de aluno ele virou professor.
Já seis meses, eu marcando passo na marcação. Etiquetar 2.000
cuecas, 1.000 shorts, e outras milhares de peças, mesmo sendo à má-
quina era cansativo e mal pago. Com a oportunidade em trabalhar
no escritório da mesma marcação, fui aprender datilografia43, as aulas
eram após o almoço, eu sentia tanta sonolência que cochilava em cima
das teclas. Desisti.
Já desanimava e a loucura me fazia pensar em demissão, pois
esqueceram da promessa e eu cansei de persistir.
A essa época os salões de beleza estavam sempre repletos. As
mulheres querendo estar na moda com seus cabelos presos em coque
enrolados em banana, ninho, ou virados em gatinho. Ser cabeleireira
era profissão rendosa. Fui aprender. Após algumas aulas comecei a
prender bigodins, enrolar bobs, tingir cabelos. Definitivamente não era
minha vocação. Desisti. Não da ideia de ganhar mais, mas da profissão
de cabeleireira.
E por que não ser uma instrutora e dar aulas? Ensinar outros a
dirigir um carro. Como para ensinar em primeiro era preciso aprender,
ingressei em uma Autoescola.
Mas eu tinha cada ideia! Adivinhem qual autoescola e quem
era professor. Cada aula era cada arranca-rabo!
– Solta o breque de mão, não percebe que está dirigindo com
o carro brecado?
Ah! Eu adorava ficar longe o dia todo de Ami. Que paz eu sentia Eu era bem distraída!
depois daqueles quase dois anos. Eu até agradecia a Santa Edwiges, Noutra aula:
por ter-me livrado da convivência cara a cara com Ami as inteiras 24
horas do dia. – Olha o buraco... desvia... desvia...vinha tarde o aviso, eu já pas-
sava com o Ford Prefect 51, carro utilizado pelas autoescolas, no centro
Esperei até setembro a vaga no Mappin, mas o que consegui foi um do buraco. E lá vinha bronca.
lugar na marcação.
Eu também não era boa e largava aulas, instrutor, carro em
Pagavam pouco em relação às vendas, mas aceitei confiando que logo meio a rua e saia xingando:
iria para as vendas.
– Seu imprestável, você é que não tem competência para ensi-
nar, seu professor de meia tigela.
43 Técnica de escrever com máquina datilográfica.

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Ford Prefect 51 Ele gemia e me espiava com aquele seu olhão como a pedir
ajuda.
Fui ao topo da escada e gritei para dona de casa que estava na
sala abaixo vendo TV.

Revista Querida de Fevereiro de 1961

Outubro, nos exames, motor, percurso e tal – passei. Confesso:


passei, mas foi com ajuda do quebra galho. Da carta profissional não
cheguei a fazer uso, não dei aula a nenhum infeliz, porque neste mês
consegui a almejada vaga de vendedora na seção de roupas infanto-
-juvenis.

Dor no Peito
– Irene, venha aqui depressa por favor.
1961 – Fevereiro. Foi à noite, por volta das 21 horas. Ami senta-
do na poltrona do quarto espaçoso fumava um Lincoln, entre as traga- Ela subiu, e ao ver seu inquilino gemendo a mão no peito,
das cofiava44 o bigode, enquanto lia X-9 sua policial preferida. “diagnosticou”.

Na cama grande recostada nos travesseiros eu folheava a Que- – É dor no estomago, vou fazer um chá de louro, você vai ver
rida, quando ouvi ai... ai... ai. que assim que tomar ele vai melhorar.

Desviei o olhar para a poltrona pois era Ami quem gemia. Irene desceu à cozinha e logo retornou com uma xícara do chá
prometido, que o coitado até tomou, mas em nada melhorou.
– O que foi? O que está sentindo?
Irene teve a boa ideia que o levássemos ao Hospital Matarazzo
– Muita dor e falta de ar, respondeu sufocado a mão no peito, e ali perto. Fomos cada uma segurando por um braço do doente e assim
levantando veio sentar-se na beira da cama do meu lado. chegamos ao Pronto Socorro. Ami foi prontamente atendido, medica-
Bem era falta de ar, fiz-lhe vento abanando-o com a Querida. do, fez um breve repouso e dessa ele escapou.
44 Afagar, alisar (cabelo, barba ou bigode), passando a mão; acofiar.

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Desempregado novamente compra de algo mais proveitoso. Como por exemplo: um apartamento.
Era de crer que Ami andasse de fato nervoso. Era por volta das
Jeep Nissan Patrol – 1961 (ilustrativo) 22h, a mesma cena repetiu-se no quarto espaçoso. Ami na poltrona
fumando, cofiando o bigode, lendo X-9, sentindo as dores e falta de ar.
Irene não se encontrava em casa, mas nós, ele apoiando-se em
meu braço e não parecendo tão mal como da vez anterior, seguimos
para o Hospital Matarazzo.
O recepcionista, que era outro desta vez, não quis dar ao doen-
te atendimento grátis, dizendo-nos que a medicação só seria possível
se pagássemos o preço da consulta ao médico de plantão.
Eu ao ter conhecimento do preço assim reagi:
– Ah, não! É muito caro!
Verdade que eu, na minha santa ignorância, não atinava que as
dores que Ami sentia não eram simples dores de estômago, mas sim as
perigosas de um infarto.
O recepcionista que por dever e compaixão poderia ter nos
alertado para o perigo do não pronto atendimento, fez exatamente o
contrário e indicou-nos a drogaria São Paulo no centro aberta 24 horas.
– Nesta farmácia, disse, pagando o precinho do remédio e sua
aplicação, o sofredor seria medicado.
Fumacento, sacolejante, estribo de charrete, volante de ja- Que fazer? Retornamos à casa pensando em ir com Nissan, es-
manta, banco do motorista distante dos pedais. Para uma pessoa pe- tacionado na frente de casa. Subimos nele. Jack mais Lena e Marcia
quena não era possível dirigi-lo. chegando do colégio, as três querendo dar um passeio, aboletaram-se
no banco traseiro.
Estou faltando do Jeep Nissan que Ami comprou em março de
E quem vocês pensam que sentou no banco do motorista? Não
1961 e que me disse iria pagá-lo em 12 prestações.
fui eu. Já contei não me adaptava ao Nissan. Como por perto não havia
Setembro/61 – As atividades da autoescola foram encerradas outra pessoa habilitada, o motorista só poderia ter sido Ami. Debru-
em junho, portanto há exatos três meses estava Ami sem emprego. çado sobre o volante gemendo ele dirigiu pelas ruas do centro, feliz-
Ele dizia estar esperando a resposta de uma proposta. Desta forma, ci- mente um pouco desertas a quase meia-noite. Foi certamente com a
garros, lanches e até alguns cruzeiros para a gasolina do Nissan eu lhe proteção da Santa da Penha que chegamos os cinco sãos e salvos na
dava do meu. rua Barão do Itapetininga. De fato, na Drogaria Ami foi rapidamente
As mensalidades atrasadas do Nissan era o que mais o enerva- atendido aplicaram-lhe a injeção fez o repouso, e logo ele estava bom
va. E enervava porque eu iria dar-lhe para que saldasse a dívida feita e pronto para outra.
com a compra daquele mostrengo que aliás, diga-se aqui, ele nunca
teve gentileza de condicioná-lo afim de que eu pudesse praticar diri-
gindo-o.
O meu “suado” dinheiro, eu o estava economizando para a

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Cine República Pois este elegante personagem não era outro se não Ami. O
Jeep Nissan, não sendo possível saldar teria de devolvê-lo ao seu an-
O Cine República situado na praça de igual nome, era em outu- tigo dono, e creio que o fez porque o Jeep sumiu. Se nessa devolução
bro um dos novos e bonitos cinemas existentes no centro da cidade de recebeu algum troco, eu não vi a cor desse dinheiro.
São Paulo. Sua frente envidraçada iluminada a gás neon, saguão mo-
biliado com sofás de napa bordô, porteiro e lanterninhas, bomboniere,
saleta do gerente... Um teto
Neste mês fazia estreia nesse cinema um elegante gerente: sor- 1962 – O que será? Será que ele já está na andropausa? Já do-
riso aberto no rosto, usando óculos de grau o que lhe dava um certo ar brou o cabo da boa esperança? Sequelas dos dois infartos? Ou será que
doutoral, trajando terno e gravata, sapatos de verniz e careca reluzen- tem uma amante?
tes.
Perguntas essas eu me fazia, à noite na cama, as pernas latejan-
tes das varizes, após a correria das vendas, tentando desvendar a razão
Obras do Cine República para o antes fogoso marido ter esfriado assim de repente.
Ainda que preferia assim, ora, não tanto assim porque me in-
trigava.
Comprei! Comprei! Não disse a vocês que compraria?
Visitei uma corretora e com uma pequena entrada e o restante
a prazo, ficamos proprietários de um quarto e sala prontinho para en-
trar e morar!
E QUEREM SABER ONDE? Em que rua ou praça?
Coincidência! Na ainda ajardinada e aprazível Praça Marechal
Deodoro. Na praça florida voltamos a morar em fevereiro. A ex-proprie-
tária (a própria corretora) deixara ligada uma linha telefônica, se pa-
gando a conta podíamos ir usando-a.
Sempre às 23 horas o amoroso pai mandava pelo fio um boa
noite à sua filha, que a essa hora já estava em casa de volta do colégio.
Morando assim perto do cinema, o gerente fazia boa caminha-
da indo a pé para seu trabalho.
Mas nem por isso, por morar perto, à noite ele retornava mais
cedo. Sempre meia-noite, em alguns dias já duas da madrugada. Ma-
landro, entrava pisando de leve no carpete, mas meu sono era leve, já
acordava só com o girar da maçaneta e perguntava:
– Por que está chegando tão tarde?
– Foi um erro no borderô – mentia – demoramos eu e Lima (um
lanterninha) a descobrir onde era esse erro.

78 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 79


Burra, ignorante eu julgava que esse tal de borderô, fosse um – O quê? Não brinca com coisa séria, você está fazendo 1º Abril
bicho de 7 cabeças, ou um computador, uma máquina igual àquelas comigo, respondeu o porteiro.
que eu via de relance nos escritórios da contabilidade do Mappin.
– Não acredito, pois se ainda ontem fomos à noite juntos tomar
Porém, descobri. O bicho de 7 cabeças tinha um nome: era uma cervejinha no bar. Deixei-o às 11h, confessou Lima, entrou me
Rosa, a dona da bomboniere. Uma coroa feiosa proprietária e mora- adiantando, relatando o acontecimento já no meio.
dora de um apartamento pertinho. O malandro dava suas passadas à
Foto do Batizado do Filho de Rute
noite antes de ir para o nosso apartamento.
Também essa Rosa agradava demais a Jack (sempre às tardes
no cinema) com seus bombons e até presentes.
O que sobrou pra mim, no meu novo lar foi mais trabalho. Eu
chegava cansada das vendas e ainda tinha que preparar lanches, lavar
louças, roupa, etc.
Depois caía na cama e lá ficava eu a cismar na desaforada ami-
zade entre o gerente e a dona da bomboniere.
Vinha-me à lembrança o caso do mexicano e a minha prometi-
da jura de vingança.
Queria cumpri-la e tinha já arquitetado um plano; ir àquela
hora (22h era uma boa) ficar de tocaia atrás de uma árvore que havia
defronte ao cinema e quando eles saíssem (ou ele) para ir ao aparta-
mento dela; segui-los e dar-lhes um flagrante. Contudo o mais difícil
no plano era tirar meu corpo cansado da cama gostosa para enfrentar
ônibus, escuridão, esperas...
Adiava o tão desejado flagrante para a noite seguinte e na se-
guinte para a outra e na outra...
Também, pensem bem, ficar escondida às tantas da noite atrás
de árvores na Praça da República seria caso de louca. Ia sempre adian-
do e pensando:
– Deixa estar, deixa eles que qualquer noite vai me dar mesmo
a louca, vou lá e os pego...

Pega na Mentira e Adeus


1º de Abril – Um belo domingo de sol e calor. Foi esse dia de Retomemos ao começo: dia 28 de março, uma quarta-feira sen-
pregar mentiras. do seu dia de folga o gerente foi cedo a Santo André em companhia
de um amigo (Leo, que estava desempregado) em visita à casa da Rute
Na segunda-feira cedo, no Cine República, uma brincadeira de (lembraram-se dela?)
bobos. Isso seus funcionários julgaram ser ao receberem a notícia.
Casara-se em 1959, fomos padrinhos no seu casamento e bati-

80 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 81


zamos Wille, seu primeiro filho. Eu já desconfiando quem seria tal intrometida, indaguei à co-
madre.
A intenção dessa visita era pedir ao compadre ajuda num em-
prego para o amigo. O compadre não foi encontrado e sendo já mais – Você não lembra se disseram o nome dela?
de meio-dia os dois, Ami e Leo, na casa da Rute almoçaram. Ami con-
– Disseram sim, mas não lembro espere, era um nome curto,
tou-me quando à noite em casa chegou.
vou lembrar. Rute pensou, pensou... arrisquei.
Dois dias depois, Rute, que nem pão quente apareceu na mi-
– Rosa?
nha seção, porém sendo lufa-lufa de liquidação, não dando para con-
versar, convidei-a almoçar no apartamento no domingo (1º de abril). Na cama ao lado o menino quase acordou com o grito satisfei-
to que sua mãe deu.
1º de Abril – Rute e Wille bateram à porta do apartamento às
10 horas. – Isso, é esse, é Rosa.
– Vim cedo, quero preparar o almoço como nos bons tempos – Mas que abusado...
de São Vicente, disse sorrindo assim que lhe abrimos a porta. Notem que além de abusado era um burro, pois não mudou o
A manhã transcorreu agradável, a comadre assando a carne, nome da flor.
temperando a maionese, eu auxiliando-a com as batatas. Jack distrain- Para despistar deveria ter dito margarida.
do o menino, Ami indo ao bar comprar bebidas, refrigerantes e prepa-
rando no capricho uma cuba-libre (rum, coca-cola e limão) para mim. – Ela é a dona da bomboniere do cinema, e amante do seu
compadre, agora tenho certeza.
Ah! Eu lembro bem de sua cara marota, fingindo-se de bonzi-
nho, com seus agrados a mim e à Rute. Se eu não fosse a tola que era – Maria!! Eu bem que desconfiei que era isso, porque à mesa os
teria desconfiado. Ele com seus agradinhos pretendia essa chantagem dois sentaram-se lado a lado e ela dengosa tentava disfarçar, mas por
à comadre para que ela não me contasse uns detalhes havidos na sua vezes pendia a cabeça no ombro dele.
visita da quarta-feira. – Safada, ordinária. Que petulância, irem juntos à sua casa, es-
Porém Rute era minha amiga, amiga pra valer, e sua ida à mi- tão indo longe demais com o descaramento deles! Mas ele vai me pa-
nha seção na sexta-feira era com o intuito de tudo me contar. gar, ora se vai.
Às duas horas pai e filha saíram juntos para a Praça da Repúbli- Como, mesmo na minha raiva, eu percebi estar me enervando
ca. Ele para trabalhar e Jack para assistir ao filme e encontrar-se com demais perante à Rute, procurei desviar o assunto.
amiguinhas. Terminando a louça do almoço fomos eu e a comadre para – Deixa pra lá, Rute, depois acerto contas com ele. Agora conte-
o quarto. Ela colocou Wille na cama da Jack e ele adormeceu. Na cama -me como vai o compadre?
nos recostamos e a fofocar ficamos. Iguais a duas boas comadres.
Pobre Rute, o seu era outro sem vergonha igual ou pior que o
Evidente, que Rute não iria mais refrear a sua língua... meu.
– Maria... uma coisa está me encafifando, diga-me aquela mu- Já o domingo ensolarado escurecia, quando acompanhei a co-
lher que esteve em casa com eles é mesmo irmã do Leo? madre e o afilhado ao ponto do ônibus para Santo André. De volta, no
Caiu-me o queixo tal foi o espanto. apartamento tentei me acalmar dando uma ordem nos uniformes meu
e da Jack. Não deu, o sangue subia, fervia, eu iria acertar contas depois?
– Rute! O que você está me dizendo? Não estou sabendo que Arriscar-me a que essa afronta passasse em branco? E o caso do mexi-
tenha ido mulher alguma. cano, eu não prometera vingança? Pois aí estava a hora, e era uma hora
– Mas foi. E o compadre apresentou-a a mim como sendo irmã mais que boa, era propícia.
do amigo. Não recordo se troquei a roupa, nem mesmo se passei um pen-

82 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 83


te nos cabelos. Lembro que desci pelo elevador, atravessei os canteiros de ficar passando trote?
da praça na Rua das Palmeiras tomei um ônibus e momentos depois
À 1 hora, o telefone trim-trim, atendo, era o Mario o primo. Por
estava adentrando furiosa no saguão do cinema. O gerente sentado
ele perguntara a voz, eu nem me tocara e o primo em voz consternada
em um dos cantos do sofá bordô. Passei por ele e fui direto à sua saleta;
me avisava que Ami estava muito mal no PS do Hospital Santa Lúcia
ao ver-me levantou-se, seguiu-me e sentou-se à sua escrivaninha.
na Av. Brigadeiro Luís Antônio. Esta era uma meia mentira piedosa do
De pé frente a ele fiquei, de feios nomes eu xinguei, a ele cabis- Mario. Ami encontrava-se de fato no Santa Lúcia, mas não no PS e sim
baixo, ameacei: no necrotério, morto.
– No apartamento você não vai entrar mais. Hipócrita, menti- O enfarte desta vez o pegara bem de jeito. O velório foi não
roso, falso. digo animado, mas concorrido. Lá estavam parentes meus, colegas do
Mappin, os dele do cinema, Sr. Moacir, Miguel o filho de Ami com sua
Jack descendo por uma escada que do balcão dava direto a sa-
mãe Celina. Alba, Zeca, os 4 sobrinhos, a penca de primos e primas, Ire-
leta assustada indagou:
ne, Marcia, Lena e o tal Leo. Rute não possuía telefone, não teve como
– Por que estão discutindo que lá de cima (no balcão) se ouve? avisá-la.
Seu pai fazendo cara murcha de pobre coitado, balbuciou. Está faltando alguém, alguma amiga? Ah! Sim a Rosa. Se ela
– É sua mãe que está inventado histórias... compareceu ao velório? Não. Pelo menos à beira do caixão onde eu
com remorsos chorava, não a vi.
Essa foi demais.
O enterro foi dia 2 de abril no Cemitério do Centro Grande, pra
– Cínico, eu é que estou inventando as suas patifarias, masca- lá de Santo Amaro. Gente, não fui!
rado.
Passada a missa de mês, Mario contou-me isto (antes disseram-
E para Jack, contei: -me que Ami falecera, debruçado na escrivaninha), mentira, a morte se
– Sabe o que esse Don Juan de araque aprontou? Levou a feio- deu no interior do apartamento da Rosa. Nervosa claro, ela pediu ao
sa da Rosa para almoçarem juntos na casa da Rute. Não é sacanagem porteiro que ligasse para Mario (enganou-se ao dar o número, por isso
demais? E voltando a ele... a ligação perguntando por Mário). Por fim avisado, o primo encarre-
gou-se de retirar o corpo como se fora de um doente. Disse-me Mário
– Isso é invenção minha, diga, é mentira? que estes cambalachos armados e executados por ele foram para es-
– Chega, mãe, chega, vamos embora. Jack pegando-me pelo capar da burocracia exigida pelo IML em acontecimentos como esse.
braço puxava-me para a porta da saída.
Às 23 horas, no apartamento o telefone trim-trim, Jack atendeu Os Tostões da Pensão
era o seu boa noite. Pela olhada que ela me deu, e resposta a ele, dedu-
zi que o fingido queria saber se eu estava mais calma. Isso ia mostrar- Os cifrões da pensão Viuvez que passei a receber não alcança-
-lhe apossei-me do fone e no bocal gritei: vam 1 salário mínimo vigente ao ano 1962 (em torno de CR$ 13.000,00
– Aqui você não vai entrar, vou trocar a fechadura, cínico, mais – treze mil cruzeiros)45.
aí ele já desligara. Mensalidade, imposto, condomínio e outros fizeram-me desis-
Meia-noite, o telefone trim-trim, Jack dormia eu insone atendo. tir do apartamento da praça florida. Troquei por outro em fim de cons-
–Alô... 45 Em 1962, a inflação anual atingiu 51,4%, recorde histórico desde 1901. O Salário Mínimo va-
lia em torno de 13.000 cruzeiros. O dólar valeu em média 400 cruzeiros no mesmo ano. Corrigido
– O Mario está? Perguntou uma voz de homem. pela inflação americana, um dólar de 1962 corresponde a 8,80 dólares de 2016. No dinheiro de
– Aqui não tem nenhum Mario. Por que não vai dormir ao invés hoje o salário mínimo de 1962 não passava do equivalente a R$ 300,00.

84 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 85


trução no Itaim Bibi. Ainda corri à Secretaria da
Educação a pedir uma revisão de
Voltamos eu e Jack a morar na casa de Irene (mudara-se ela
provas, mas havia esgotado o prazo
para casa própria na rua Texas, no bairro Hípica Paulista).
havia dois dias. Foi passar as férias
Quase todas noites, da casa da hípica, saíam Lena e Márcia avi- na casa da avó em São Vicente, lá
sando à Irene: ficou morando e os estudos termi-
nou no Martim Afonso, outro colé-
– Mãe nós vamos buscar a Jack no colégio, assim ela não volta
gio estadual.
sozinha.
Eu agradecia, preocupava-me o trecho escuro da Texas que
Jack teria que percorrer ao descer do ônibus na Avenida Santo Amaro. Em fim de 1966 recebeu o
diploma do ginásio em bonita fes-
O ano terminou e Jack foi reprovada.
ta de gala no Clube Tumiaru. Linda,
vestindo um tubinho em chamalo-
te gelo, bordado por mim com lan-
A NORMALISTA LINDA tejoulas nacaradas.

1963 – A Gazeteira No mesmo Martim Afonso


seguiu fazendo o curso normal, ou-
tra festa de gala, nos salões do Clu-
Agosto – Tudo continuava o mesmo na casa da Hípica: as duas be Atlético Santista em fim de 1969.
amiguinhas que não trabalhavam tampouco estudavam, continuavam
a buscar a coleguinha no portão do Colégio da Av. Paulista.
O vestido azul cobalto com
Certa noite na casa de Irene esteve à minha procura uma fun- 6 carreiras de strass foi copiado do
cionária da secretaria do colégio para avisar-me que Jack estava faltan- usado por Julieta na cena do baile
do às últimas aulas e mais: que isso vinha acontecendo desde 1962. de máscaras do filme sucesso de
Não foi difícil descobrir o porquê desta gazeta46. A aluna cabu- 1968 Romeu e Julieta.
lava as aulas para poder ela mais a Lena e Marcia passearem às noites
no calçadão da Av. Paulista.
Sendo dezembro sua for-
Tentando livrá-la de outro fim de ano repetente mudamos para matura, seu aniversário e também
uma pensão para moças na Rua Maria Antônia onde Jack, tardes intei- Natal, Jack quis um presente que
ras, ficava com rosto enfiado nos livros. valesse por três.
Ainda assim nos exames ficou ela para 2ª época em duas maté-
rias: Francês e Ciências.
Para esta 2ª época Jack tomou aulas particulares com 2 profes- Vestido usado na formatura
sores. Inútil. Em ciências necessitando de nota 6 deram-lhe 5,5. Incrível!
Por 0,5 ponto, reprovada novamente.
46 Deixar de comparecer a (aulas, escola, trabalho) para ir passear, para vadiar; fazer gazeta, ga-
zear. Cabular ou bolar aula.

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Vestido usado por Julieta no filme Romeu e Julieta (1968) 1964 – Pensão para Moças

Deixemo-la pensando em qual seria esse presente e voltemos


a 1964 na pensão da Maria Antônia.
Lá continuei até que sua dona e cozinheira foi ao médico e sou-
be estar anêmica. Com isso seus hóspedes viram-se obrigados a seguir
sua dieta fortalecedora.
Caso não fosse no almoço, certo era no jantar, todo dia à mesa
era servido bife de fígado, quase cru e mal temperado. E dá-lhe salada
de beterraba.
Como quem estava ficando anêmica era eu (sem mentira) pe-
guei minha mala e fui morar noutro pensionato na Praça Roosevelt.
Neste, era às noites, quase já madrugada, que eu acordava com
um bate-bate no assoalho do quarto. Era a companheira de quarto so-
frendo ataques epiléticos.
Como esse era um barulho fora de hora, mudei-me para um
sobradão desses construídos rente à calçada na rua Augusta.
O meu quarto ficava de frente para a rua onde passava o bonde
camarão com suas rodas de ferro a estalar nos trilhos e sua campainha
a fazer “den-den”. Quem dormia com um barulho desses? Eu não!
Mudei-me para a Rua Frei Caneca, o quarto tinha o forro em pa-
pelão grosso, então em noites de chuvarada parecia chover mais den-
tro que fora do quarto. Mudei-me para Rua Cesário Mota, neste eram
os ratos rec, rec, rec, debaixo do assoalho. Coloquei ratoeira, veneno,
mas não adiantava, desisti. Os ratos venceram porque mudei-me para
a Rua Frederico Abranches, em companhia de um Senhor, em 1966.
Não era um senhor muito distinto, pois foi combinado que ele
pagaria o aluguel e eu providenciaria o lanche da noite.
No começo era pontual depois foi rareando, mês pagava, mês
não, e era eu que acabava pagando, claro. Deu de sumir e reaparecer,
até que por fim, em 1968, sumiu de vez.
As boas comissões prosseguiram, com as boas vendas. Entre
1965 e 1967 na TV acontecia o programa de auditório da Jovem Guarda
transmitido pela Record para todo Brasil. Roberto Carlos, Erasmo, Wan-
derleia, Martinha e tantos outros. A música Calhambeque cantada por
Roberto liderava semanas seguidas a parada de sucessos.

88 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 89


Programa Jovem Guarda Saia de Crochê anos 60/70

Na estreia desse sucesso foi criada a moda Calhambeque em


roupas iguais as usadas pelos astros no programa de TV (blusões, cal-
ças jeans, camisas, chapéus) em veludo, couro, napa, brim, etc.
O melhor disso tudo era que tais roupas tinham exclusividade
em vendas no Mappin, precisamente na seção dos meninos, a “minha”
seção. Foram correrias cansativas, mas que a mim renderam bons co-
bres, deu para comprar uma quitinete, que aluguei assim como aluga-
da estava a do Itaim.

Disco Compacto Duplo “O Calhambeque” – Roberto Carlos


No verão 1968-69, a coqueluche47 da moda foram as saias de
crochê em linha. Eu estava no manejo das agulhas e passei fins de
48

semana inteiros na casa da minha mãe vendo TV e fazendo crochê.


Atendia a encomendas de minhas colegas, elas pagavam al-
gum que não era muito, mas ajudava.
Encontros, passeios, cinema, difícil era que me prendessem
um fim de semana na Capital. Com ansiedade aguardava o sábado (13
horas) para poder tomar o ônibus que descia para a baixada e assim
poder matar as saudades da mãe e filha e também de outros parentes.
Chegando em frente ao portão da casa da João Ramalho, eu
ainda na calçada gritava:
47 Objeto da preferência e/ou do entusiasmo momentâneo.
48 Nos anos 60, ter no guarda-roupa, uma peça em tricô ou crochê, era um item obrigatório. As
mais comportadas optavam pelo tricô e as ousadas usavam peças de crochê que sempre revela-
vam algo mais (Blog Nostalgiarama)

90 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 91


– Jack, Jack.... eu levei a sério. Por intermédio do Banco Mercantil, comprei um Fusca
ano 1965 – vermelho cerâmica e teto solar.
Lá do fundo vinha Jack correndo braços abertos a me encon-
trar.
Na cozinha era mamãe que me esperava com o caldeirão no A Taça do Mundo é Nossa!
fogo com uma gostosa sopa de ervilha e entrecosto49, pois ela sabia o
quanto eu gostava; e do forno saindo um pãozinho quente feito por 1970 – Como se fosse um passe de mágica (para mim) Jack
ela. orgulhosa pelas ruas seguia dirigindo seu Fusca em direção à Av. Ana
Eram fins de semana bons e que passavam depressa, quando Costa onde frequentava um cursinho preparatório para o vestibular de
eu percebia era já domingo à tarde, hora de ir tomar o ônibus para o Medicina.
regresso a São Paulo. Na sala da casa da João Ramalho a turma do cursinho; Jack,
Luiz, Vera, Olga, Lucia, reuniam-se para estudar em equipe.

O Presente de Jack
Fusca 65 – vermelho cerâmica com teto solar

Cá estamos de volta a dezembro 1969, vamos saber que pre-


sente Jack escolheu. Meninas, brincadeira! Um carro! Brincadeira que
49 Carne bovina de primeira categoria situada entre as costelas da vaca, junto ao espinhaço.

92 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 93


Não havia folga nem sábado, nem domingo cedo. 1971 – Mais um domingo, mais uma carreata de alegria no Fus-
quinha mágico, pelas ruas vicentinas e santistas.
21 de junho: Naquele domingo foi dia de carreatas de alegria,
não só na Baixada, mas em todo o Brasil. A sorte ajudou, Jack, Luiz e também Vera conseguiram entrar
na Faculdade de Mogi das Cruzes.
No Fusca mágico, Jack no volante, Luiz no carona, na traseira
com cabeças fora do teto solar iam Olga, Vera, Lúcia, dando vivas ao Zira acompanhou-os guiando seu fusca vermelho cerâmica,
Brasil. Essa euforia, porque no México, o Brasil vencera no futebol a Itá- onde íamos eu e mamãe.
lia e ficara sendo o Tricampeão da copa.
Na cidade Mogiana Jack foi morar em uma república, subia às
O Fusca estivera, nesse tempo de cursinho, um pouco esqueci- segundas e descia às sextas.
do pela sua dona.
Estas viagens eram feitas nos ônibus da viação Viação Santa
Em alguns sábados ou domingos eu aproveitava para praticar Maria por serem mais seguras.
direção, dirigindo-o para o bairro do Jockey onde morava minha amiga
Além do que o motor 1.200 do fusca vermelho cerâmica não
Zélia e nas suas ruas calmas eu dava umas voltinhas, com a amiga no
era lá muito potente para vencer as inclinadas rampas das subidas da
banco carona.
Via Anchieta.
Março – Eu me via já a fazer contas a ver se meu ganho nas ven-
Vestibular das daria para pagar carros caros, mensalidade, república, condução.
Me valiam as boas vendas nos balcões do Mappin.
Outubro – Os 5 estudantes continuavam mais afinados. Vara- Na seção eu ouvia os comentários irônicos das colegas:
vam a madrugada estudando para enfrentar com mais chances de su-
cessos as provas dos vestibulares que se aproximavam. – Vocês viram, como a Maria tem uma vida de rica? Dizia uma.

Minha mãe, Maria Rúbia, a quem Jack carinhosamente chama- – É, tem carro! Respondia outra.
va de vovó Conceição, antes de ir dormir coava um café e o servia à – Apartamentos alugados.
turma animando-os:
– Filha na faculdade de Medicina.
– Trouxe um cafezinho pra vocês, pra espantar o sono.
Elas só não percebiam o evidente. Eu tinha porque economiza-
No total em 5 faculdades foram feitas inscrições para os vesti- va. Enquanto elas desfilavam bonitas roupas, sapatos altos até para ir
bulares: São Paulo (2) – Santos – Mogi das Cruzes – Jundiaí. ao trabalho, eu ia de uniforme e sapato Chispa50. Elas renovavam o pen-
Contávamos que, se a sorte ajudasse, em pelo menos uma Jack teado toda a semana, eu mesma picotava meu cabelo. Elas jantavam
conseguiria ingressar. frango assado, eu comia um pastel. Elas moravam em apartamentos,
eu me apertava em uma casa de cômodos.
Nesse fim de 1970, dei início a uns passeios mais distantes de
São Vicente, pelo litoral Sul, Mongaguá, Itanhaém, etc.
Lógico, meninas, que eu barbeira não iria me expor aos perigos A Partida de Mamãe
de dirigir na movimentada rodovia praiana dos fins de semana. Quem
ia ao volante do Fusca teto solar era um motorista profissional que diri- Maio – Aquela mãe tão querida que tanto fizera por mim sem
gia os ônibus da linha São Vicente e São Paulo. nada pedir em troca, a não ser carinho, adoeceu.
Miro tinha a cara amassada tal como se diz: um maracujá de ga- Uma doença que mais parecia uma gripe, febre, mal-estar.
veta. Era um cara intransigente, irreverente, mas eu gostava desse cara. No entanto, exames feitos revelaram ser doença mais grave:
50 Modelo de sapato barato.

94 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 95


leucopenia (redução global do número dos glóbulos brancos). Zira le- torista de cara amassada.
vou-a a se internar na Santa Casa de Santos.
Na casa ele só estava para retirar o Fusca vermelho cerâmica do
Triste domingo foi aquele, dia das mães passado junto ao leito abrigo para a ida nossa aos passeios.
da mãe enferma.
Zira nesse momento sumia. Ela não queria nem ver o cara de
Mais triste ainda foi dois dias depois quando ela faleceu. maracujá.
Então quem ficou doente fui eu. Uma das causas da minha ansiedade eram as contas da facul-
dade.
Angústia, depressão. Uma licença médica de 2 meses que ter-
minou comigo voltando ao trabalho e constatando que eu nada havia Mesmo que a importância paga pela previdência fosse basea-
melhorado. da em meses de boas vendas, e que Zira colaborasse, ainda assim eu
já me preocupava com anos vindouros, minha falta e outras reservas.
Digam-me, como exibir a mercadoria ao freguês com lágrimas
boiando nos olhos?
Jarbas Passarinho – Ministro da Educação de 1969 a 1974
Meninas, como fazer contas, extrair notas fiscais se os números
Foi aí que decidi escrever, fa-
me fugiam da memória?
zer um pedido ao Ministro da
Licença mais longa foi-me concedida e foi renovando-se a cada Educação, na época, Jarbas
perícia médica. Passarinho. Na carta me iden-
Mudei-me de vez para a casa da João Ramalho, onde a nova tifiquei como viúva pobre,
dona era Zira. Ela se desfizera de seu apartamento no Embaré e daque- moradora da Baixada Santista
la casa que estava à deriva foi tomar o leme. que possuía filha estudando
na faculdade de Medicina de
Mogi das Cruzes, o que me
acarretava despesas extras
Uma Carta ao Ministro com república e condução. Se
a filha estudasse na Faculdade
Zira, eu também a via triste e apática, eram problemas com os em Santos, tais despesas não
cachorros (Pequenina, a cachorrinha de mais estimação da mamãe, existiriam.
morreu 2 meses após sua dona, sem doença aparente).
Pedi ao Ministro se ele, com sua influência, conseguiria para a
Problemas também com o mano Toninho que bebia demais. Ti- estudante essa transferência.
nha ele bom emprego, mas na sexta à noite era dia da sua ida ao bar do
Teixeira de onde retornava madrugada bêbado, amparado até o portão A carta finalizei anotando (para a resposta) nome da estudante,
de casa. Dali seguia cambaleando até seu quarto. No sábado era tudo endereço e tudo o mais e na ilusão de ser atendida. Ao final da carta
de novo. Até que foi internado umas três vezes na Casa Anchieta51. Para agradeci antecipadamente.
adiantar a história, faleceu vítima das beberanças em 1977. A resposta voltou logo, lacônica e negativa. Não do ocupado
Os passeios no litoral sul seguiam ainda na companhia do Miro Ministro e sim de um de seus assessores.
e sempre ele guiando o Fusca, aliás, minto, eu ainda insistia em dar as Problemas iguais ao meu existiam por este imenso Brasil.
voltinhas nas ruas do Jockey, mas só com a Zélia.
Sentia muito o Ministro nada poder fazer.
Zira não se agradava de ver minha amizade colorida com o mo-
51 A Casa Anchieta era uma Clínica para “malucos”. Especialmente para pessoas que bebiam
demais, porque faziam muitas “loucuras”.

96 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria de Toledo Bonugli 97


O Fim do Romance
Dezembro – A mim, diretamente, Zira nada criticava, porém eu
ficava bem ao par pelo leva e traz aos meus ouvidos que Ivete, a empre- PARTE 3 – MARIA KLOMFASS
gada de Zira, fazia dos seus comentários contra mim. Estou falando do
contra à minha relação amorosa com o Miro. Um Novo Amor – 1972
Era mais por isso que eu pensava em, para o ano novo, mudar- Precisando ir a São Paulo, certa manhã dirigi-me à agência do
-me para uma pensão ou quarto. Queria voltar a morar independente, Rápido Brasil.
sem ter que dar contas da minha vida a parente nenhum.
O Ano 1971 terminou comigo levando um baita fora do
Miro. Mandou recado pela Zélia, entre nós dois estava tudo termina- Ônibus da Viação Rápido Brasil – Década de 1970
do.

Após dar-me o troco da passagem, o agenciador, bonito tipo,


da raça ariana, foi sentar-se ao meu lado em um dos bancos da sala
de espera. Conversa vai, conversa vem e ao chegar o “meu” ônibus já
tínhamos marcado um encontro; ao qual compareci dirigindo o fusqui-
nha de teto solar. Ele pediu logo o volante, contando-me que sempre
tivera carro, mas que no momento estava sem.
Hertz, 44 anos, policial em licença médica (a agência era um
bico) proprietário e morador do sobrado no centro de São Vicente. Pai
de 3 adolescentes e viúvo.
Em tão boa companhia retornamos, eu e o fusquinha mágico,

98 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 99


aos passeios pelo litoral Sul. bondos eram os três adolescentes. A laranja madura era o Hertz. Laran-
ja que outra antes de mim tentara colher, mas fugira apavorada com a
Hertz adorava dirigir. Quando ele punha as mãos no volante
investida do marimbondo mais velho (Gina). A laranja madura (Hertz)
transformava-se de sisudo, carrancudo em eufórico e falante. Percebi,
não tinha a boa saúde que sua bonita aparência demonstrava. Em 1969
ele ficou logo apaixonado, mas pelo Fusca teto solar.
ele fora submetido a uma cirurgia cardíaca (limpeza da válvula mitral)
Do sobrado dele fui logo tomar conta, algumas noites lá eu daí a sua licença médica.
dormia.
Os três adolescentes quando a mim foram apresentados me
pareceram tão simpáticos... Fábio 13, Liza 15, Gina 17. O Casamento
Pretendendo angariar mais simpatias, quando o pai deles es- Bem, nosso caso amoroso caminhava para um final feliz, ele ti-
tava na agência, lotava o Fusca com os três e ia dirigindo para a Rua nha sua casa organizada, seus anseios satisfeitos, minha relação com
Bernardino para dar lições ao volante para Gina. seus filhos amistosa. Assim, aconteceu que em um dos retornos de Ita-
O sobrado, desde a morte da sua ex-dona (morrera havia um nhaém o Fusca rodando pela Manoel da Nóbrega, Hertz com as mãos
ano por problemas coronários), não sentia o esfregar de uma vassoura, no seu volante, em um daqueles seus momentos de euforia sorrindo
estava mesmo precisando de uma esfregadinha. Na sua limpeza, a ami- me perguntou:
ga Zélia, a troco de algum foi dar-me uma ajuda. – Mari, você quer casar comigo?
Nos guarda-roupas as roupas estavam que eram um embo- Era mesmo um Fusquinha Mágico. Claro que eu queria!
lorado só. Nas gavetas das cômodas papéis velhos, trastes inúteis. Na
cozinha, pia ensebada e entupida, panelas pretas cascorentas de gor-
dura queimada. Para clareá-las foi preciso raspar, palha de aço, muito
muque meu, de Zélia e, acreditem, até ácido muriático52. Foto do Casamento com Hertz

Coloquei cortinas, forrei sofás, serviços estes, quando ele esta-


va na agência, porque nas suas folgas e folguinhas fazíamos os pas-
seios no Fusca vermelho cerâmica para o Litoral Sul.
Zira, ao notar a beleza do meu novo amigo, ao saber da sua es-
tável situação financeira e disponibilidade para casamento quedou-se
incrédula.
Ironizando a situação, vivia a cantarolar pela casa antiga a co-
nhecida canção:
Laranja madura, na beira da estrada,
Tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé. (ATAULFO ALVES)
Vejam vocês que Zira tinha uma certa razão porque os marim-
52 O ácido clorídrico (HCℓ) é uma solução aquosa, ácida e queimante, devendo ser manuseado
apenas com as devidas precauções. Ele é normalmente utilizado como reagente químico, e é um
dos ácidos que se ioniza completamente em solução aquosa. Em sua forma de baixa pureza e com
concentração não informada, é conhecido como ácido muriático (muriático significa pertencente
a salmoura ou a sal), sendo vendido sob essa designação para a remoção de manchas resultantes
da umidade em pisos e paredes de pedras, azulejos, tijolos e outros. O ácido muriático, quando
aquecido, libera vapores tóxicos e irritantes.

100 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 101
O Fusquinha!!! Que era um bem material, isso eu entendia, mas
Combinamos o casamento só no civil na manhã do dia 17 de ao vê-lo arrebentado, amassado... não pude evitar um sentimento de
junho de 1972 e não haveria nenhuma espécie de recepção. tristeza. Me custara tanto pagá-lo... não estava no seguro...
– Ah! Não! Vou servir um bom almoço aos parentes e podem Do local da batida foi levado por um guincho a uma oficina, de
convidar alguns amigos. onde saiu dois meses depois irreconhecível. Hertz pagou tudo e tam-
Meninas! Vejam quem estava falando! Zira. Era ela quem assim bém o conserto do Opala parado. Perdera o teto solar e sua cor não era
determinava, não parece a vocês a cena de casamento em 1949? mais vermelho cerâmica e sim branco como um pombo da paz.

Gordini Em 1973 Hertz trocou-o por um barulhento Fuscão verde mus-


Não se preocupem que go, no que muito a contragosto eu concordei.
neste os noivos casa-
ram direitinho no dia
e hora marcados e o Os Enteados
almoço transcorreu na
mais perfeita harmonia. Julho de 1972 – Mais do que eu havia esperado e desejado era,
o marido, atencioso e caseiro.
Os noivos, após sabo-
rearem a sobremesa Ele entendia de tudo, carpintaria, eletricidade, encanamento.
(um gostoso pavê de Na sua oficina de quintal, havia desde pequena chave de fenda
amendoim, obra prima a morsa, esmeril, maçarico e ainda me dava total apoio na minha lida
da anfitriã) alegres se com os enteados.
despediram e partiram para curta lua-de-mel em Peruíbe, em um Gor-
dini emprestado. Ah! Os enteados! Estes deram-me o que fazer. No princípio ele
teve a ilusão de torná-los contadores, professores, quem sabe até dou-
– Gordini emprestado, vó? E o Fusquinha mágico? O que acon- tores. Foi mesmo pura ilusão!
teceu?
Os três possuíam iguais interesses: rua, praia, casa dos colegas.
Coitadinho, nem vos conto. Um marimbondo rebelde quase
acabou com ele. Um medaço do braço forte do pai eles tinham, mas nem por
isso estudar eles queriam.
Vejam no que resultou a minha ideia em dar lições ao volante
para enteada. Conto aqui uma história escolar de cada um em 1973, a come-
çar por Fábio.
Dia 14, faltando três dias para o casamento, eu em São Pau-
lo, Hertz na agência, à tarde Fusquinha estacionado na rua à porta da
frente do sobrado, suas chaves no Buffet53. Nelas Gina passou a mão O Menino Maluquinho
e saiu dirigindo (com ela Fábio e 3 coleguinhas suas) para o lado do
Gonzaguinha onde o Fusca cerâmico trombou com um Opala parado.
Menino matreiro como ele, só mesmo ele. Acordá-lo pela ma-
De São Paulo cheguei bem a tempo de encontrar Hertz muito nhã para que fosse à escola era de tirar a paciência de um santo.
nervoso. Juntos fomos ao local da batida.
Uma manhã, eu naquele chama que chama Fabinho e Fabinho
Gina machucara o braço e fora levada ao P.S. por uma prima, os nada de acordar.
outros 4 nada sofreram a não ser o susto.
O pai, em casa, irritou-se foi ao quartinho do filho.
53 Buffet era um armário de cozinha com portas e gavetas muito em moda nos anos 70. – Levanta, malandro, não está ouvindo a Mari chamar?

102 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 103
Nada, Fabinho nem se mexeu. O pai danou-se e meteu-lhe um Eu sou rebelde porque
chute. O chute acertou em cheio, mas foi a longarina da cama.
o mundo quis assim
Resultado, Hertz viu-se obrigado a usar uma bota de gesso por
40 dias. Gina, a marimbondona rebelde, há muito havia abandonado
os bancos escolares.
Lobo em pele de cordeiro Convencida por mim foi estudar datilografia.
Retornava reclamando.
Liza, a mais minha amiga.
– Ah! Mari, aqueles banquinhos sem encosto me dão uma dor
Ela, toda boca da noite, pela porta da frente, vestida com jaleco nas costas...
branco, livros e cadernos debaixo do braço, saía...
O pai ao pagar direto na escola o que seria o 4º mês pelo pró-
– Tchau, estou indo para a escola. prio diretor foi avisado:
Nisto era o que eu e seu pai acreditávamos. O colégio ficava na – Não é justo que eu receba o seu dinheiro se sua filha quase
mesma rua do sobrado. não compareceu às aulas.
Certa tarde de setembro lá ao colégio me dirigi à sala da secre- Em casa chegando ele tentou dar as suas taponas na Gina, mas
taria para tomar informações sobre as notas. ela escudou-se em mim e escapou ilesa. Também conseguiu um em-
Foi-me exibido o livro das chamadas. Faltas desde o início de 73 prego em uma financiadora e lá conseguiu também um noivo.
e a cada mês maior era o número das faltas.
Retornei à casa, na sala encontrei Hertz sentado na sua cadeira Sobrou pra mim
do papai, lendo seus livrinhos de bang-bang. Contei-lhe.
Nossa, para que fui fazer isso? 1974 – Sobrou tapona pra mim porque o que eu temia acon-
teceu.
Deu um pulo levantou-se da cadeira, em dois pulos subiu a es-
cada que levava ao quarto da Liza, que estava lá nessa hora. Pelo portão da rua, pela porta da sala, vindo da agência, entrou
Hertz aos berros.
Subi atrás. Mas já o encontrei dando cada tapona no rosto da
Liza. Gritei. – Onde está você, sua “p...” de motorista.
– Pare, pare... Contaram-lhe meu caso com o cara de maracujá.
Nos dias seguintes é que Liza (rosto inchado) não poderia ir as Um seu colega fora o alcaguete.
aulas. Não fazia diferença pois ela não foi essa semana, esse mês e nem – Cadê você, sua “p...” gritava já na cozinha.
no ano seguinte.
No tanque, eu e a Liza torcíamos a calça jeans dela.
Ficou em casa, ajudando em algum serviço leve, até que em
1974 foi trabalhar no comércio vicentino. Eu a segurando pelo cós, pela cintura, nos quedamos a olhá-lo
boquiabertas.
A Liza ainda...
– Não grita pai, olha os vizinhos.
Ele fez de conta que não ouviu.

104 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 105
Liza na sua ingenuidade insistiu: ramos no sobrado.
– Isso são invenções desses seus colegas invejosos. No quintal ficaram chopp, refrigerantes e salgadinhos.
Novamente foi como se o pai não a tivesse escutado. Na sala em mesa enfeitada, o bolo da noiva e os docinhos. Gina
foi morar no apartamento da sogra perto da Biquinha.
Liza desistiu, a briga não era com ela e resolveu se mandar pra
rua.
Do quintal fui pra sala e ele atrás xingando. Estilo Bucólico
Machista, como se ele não tivesse tido o seu caso antes de me
conhecer. O sobrado, quando conheci seu dono, era desbotado, necessi-
tando de pelo menos uma demão de tinta. Quem o visse passado mais
Cansei. Colocando as mãos nos ouvidos, gritei. de um ano não o reconheceria. O dinheiro da venda da minha quitine-
– Pare, chega, chega... te em São Paulo foi gasto em uma reforma.
Ele avançou a mão erguida. Pensei é agora a vez das minhas Novos pisos, novas portas e janelas. Na frente parte alta foi
taponas. acrescentada, uma sacada em estilo colonial e nela colocamos rede,
pilão, cadeira de balanço, samambaias.
Mas o que ele fez foi apertar-me a boca como a querer que me
calasse e tanto apertou, tanta força que me travou a mandíbula. Na entrada da rua um caramanchão55 florido servia de abrigo
para o Fusca.
A seguir deixou a sala subiu para o quarto, mas já no pé da es-
cada, virou-se para mim e apontou o dedo: Amigos entendidos elogiavam.
– Fique sabendo que amanhã vou falar com ele, quero tirar essa – Hertz sua casa ficou bonita, está assim em estilo bucólico56.
história a limpo. Sendo nossa união com separação de bens, Hertz, ao firmar a
E foi. Mas, claro, Miro negou tudo, que de tolo ele nada tinha, escritura, deu-me 50% em direitos sobre o sobrado.
muito pelo contrário e deve ter-lhe contado mentira bem convincente Os motivos do porquê Jack não ter ido morar no sobrado foram
porque voltou de tal conversa jururu. vários, ela estar bem na casa dos tios, não ter acomodações a seu gosto,
No quartão dos fundos eu arrumava uma colcha de retalhos. e para evitar o inevitável ciúme entre enteadas.
Para lá ele foi, sentou-se e, ora vejam, chorou. Contudo, aos sábados, domingos, dia santo de guarda, férias,
Lágrimas de Crocodilo54. Se pensam vocês que me comoveram feriados, em que não houvesse aula na faculdade ela aparecia em de-
suas lágrimas enganam-se. Estava mais preocupada com minha man- moradas visitas à casa de sua mãe e já acontecia o inevitável ciúme.
díbula travada. Hertz que com os filhos era severo e durão, com a enteada
Só podia tomar líquidos, sarei com terapias feitas no Hospital mostrou-se justamente o contrário: era amável, proseador.
São Lucas. Eu já via olhares de esguelha, pisar duro, negação de cumpri-
Os preparativos para o casamento da Gina acalmaram os âni- mento.
mos exaltados do marido enfezadinho. Jack deu início a um namoro com Jardel, um rapaz dos cabelos
Ele elegante em terno azul claro, conduziu a noiva até o altar da crespos muito parecido com Rivelino um jogador bonito da Copa.
igreja Matriz de São Vicente. 55 Estrutura leve construída em parques ou jardins, geralmente de madeira, que se pode cobrir
de vegetação e usar para descanso ou recreação.
Gina estava muito bonita. A recepção aos convidados a prepa- 56 Bucólico significa campestre, rural, gracioso. Refere-se à natureza e às belas paisagens do
54 Choro hipócrita, lágrimas fingidas. campo. Significa também ingênuo, simples ou puro.

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Jardel bem simpático, foi outro a cair nas boas graças do dono Chega a primeira neta
do sobrado.
26 de Julho de 1976 – Dias dos Avós e dia de Santa Ana. Dia
bem sugestivo para se ganhar a 1ª neta.
O Rompimento
Na noite desse dia, na Santa Casa nasceu a filha de Jack e Jardel,
Junho – Gina, já mãe de uma nenê, andava às turras com a so- uma menina com cabelos crespos e olhinhos pretinhos que pareciam
gra e o marido. Pretendia separar-se e voltar a morar no sobrado. até ter sido pintados a nanquim.

Certa noite isso ela pediu ao pai tendo como resposta um curto Na manhã do dia 27, já na cama da enfermaria, Jack feliz acon-
e grosso não. chegava sua nenê, Jardel não arredava o pé da beira da cama, amigos,
parentes entravam e saiam em visitas e comentários se ouviam:
Reagiu malcriada atirando pedras no Fusca, se pegando aos ta-
pas com Jack. – É uma gracinha!

O pai acabou por lhe dar uns bofetões. Só assim ela se foi e – Uma carinha redonda.
nunca mais voltou ao sobrado e nem mais falou com o pai. – Rechonchuda...
Eu e a vó Linda desde cedo ali corujamos nossa 1ª netinha. Em
certa hora Dr. Ary apareceu em visita à sua colega e olhando para o
Jack Vai Casar lado, onde estávamos eu e Linda, ele fez este comentário:
Janeiro de 1976 – Linda, irradiando felicidade e vestindo um ro- – Ela se parece com a senhora!
mântico vestido em renda branca, Jack na igreja da Pompeia casou-se A vó Linda sorriu orgulhosa, pois era com ela que o Doutor di-
com Jardel. zia a nenê se parecer.
Ele também bonito trajava um Smoking da cor de leite. O nome, Jack preferia Aline, Francine, mas o pai, que estava ir-
Até o altar a noiva foi pelo braço do tio Zezé. redutível em Juliana, venceu.
A recepção foi realizada em um elegante Buffet, onde gar-
çons uniformizados passavam pra lá e pra cá, servindo apetitosos sal-
gadinhos fritos na hora, coquetéis variados, meia de seda, aperitivos, Aguenta Coração
Whisky, cerveja, etc.
Novembro – A vida do Hertz teve recomeço neste quase fim
Nesta festa extrapolei, pois tantos salgadinhos fritos na hora de 1976, no Hospital Beneficência Portuguesa (SP), às custas do antigo
comi, coquetéis e meias de seda tomei que além de enjoada fiquei bê- INAMPS (atual INSS) em cirurgia cardíaca realizada pela equipe chefia-
bada. E foi tanto, que Hertz viu-se obrigado a levar-me da festa. da por Dr. San Juan, foi retirada a válvula mitral doente do peito de
Em casa entrei de colo carregada por ele. Hertz e em seu lugar implantada uma artificial. Entre preparo, opera-
ção, U.T.I. repouso, foram mais de 20 dias.
Foi assim que perdi o melhor da festa, o estourar do champa-
nhe, a fatia do bolo da noiva e a partida barulhenta do carro dos noivos O que sobrou para mim foi carregar sacolas pesadas com pija-
para a lua-de-mel em Ubatuba. mas, refrigerantes, frutas, livros de bang-bang por ônibus, metrô, ladei-
ras, viadutos, corredores, até chegar à cama do doente.
Jack e Jardel, ao regressarem da lua-de-mel foram morar em
um apartamento no bairro Gonzaga. Hertz teve alta bem a tempo de poder comparecer a uma es-
plendorosa festa de Gala no Anhembi, a festa da Formatura dos alunos

108 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 109
da Faculdade de Medicina de Mogi das Cruzes. Três dias depois, com o aval do pai, Fábio e Liza mudaram-se
para o centro, em uma quitinete minha e que por coincidência encon-
Entre estes alunos estava a Dra. Jaqueline.
trava-se vaga a espera de inquilino.
Maio de 1977 – Lembro bem do dia 29 e até da hora, 1 da ma-
drugada, Jack chorando batendo à porta do sobrado.
– Não quero mais saber dele... Consultório
Brigas com Jardel. Mais reformas no sobrado: o quarto dos fundos com entrada
Em um quartinho (antiga copa) onde mal cabiam uma cômo- independente foi ampliado e transformado em consultório médico,
da, um guarda-roupa e cama de solteiro, ali acomodei as duas. com sala de espera e de consulta, banheiro, cozinha, área de serviço,
prateleiras para remédios. Hertz construiu maca, reformou escrivani-
Dias mais tarde, apertando mais um pouco, ainda coube um nha, estendeu fio telefônico.
berço.
Retirando alvará, conseguimos convênios os Banespa, Cosipa
A vó Linda aparecia algumas noites a pedir à nora que retornas- e Unimed.
se ao seu apartamento e ao marido. Pediu em vão, Jack jamais voltou
para nenhum dos dois. Na frente foi pendurada uma placa com o nome da pediatra
Jaqueline.
E os clientes foram aparecendo.
Então é Natal
Seria uma noite feliz, pois foi para isso que eu e Hertz nos es- Aposentadoria
meramos tanto. Ele estirando o cordão de luzes coloridas na sacada,
temperando pernil, estocando a geladeira, eu enfeitando a mesa com Fim de 1978 – Hertz aposentou-se do serviço da agência. Assim
sinos e festões, sobre ela já postas as castanhas, avelãs, nozes, paneto- foi que saímos em excursões e longas viagens no Fusca Bege Ipanema
nes, vermutes. para a cidade de Santa Catarina, terra dele; e para o distrito de Bauni-
O presépio e a árvore de natal eu já armara havia dias. lha, estado do Espírito Santo, minha terra natal.
Portanto seria uma noite de paz, não fosse ter havido uma ba- Nas viagens a dois, como se fossem férias conjugais, nos sentía-
te-boca entre Liza e Jack. mos muito bem. Porém retornamos à rotina caseira diária.
No calor da discussão, Jack agarrou pelo gargalo o litro de ver-
mute e brandindo-o no ar avançou para Liza, o litro escorregou-lhe da Outra Válvula
mão e espatifou-se no piso da sala. Sobrou para mim a limpeza.
Hertz considerando esta atitude da enteada um tanto agressi- 1979 – Era uma 2ª feira, Hertz com internação já marcada para
va para ele, e não querendo interferir, escapou para os lados da praia. 4ª feira, na Beneficência Portuguesa, mais uma troca da válvula, talvez
Eu, que nem notara que Fabinho também sumira, só me dei esta a causa do seu nervosismo, nessa 2ª à tardinha.
conta quando o vi apontando no portão da rua com a viatura da polí- Para o lanche da noite eu pedia-lhe que fosse comprar o pão na
cia, que fazia ronda na Praça Barão do Rio Branco ali perto. padaria B. Ele (na cadeira do papai), turrão teimava que iria na Padaria
E a noite natalina foi passada, boa parte dela, com as duas bri- C. E nesse vai, não vou terminei mandando-o:
guentas prestando contas ao Delegado de plantão. – Então vá pra P... que o p...

110 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 111
Danou-se e veio pra cima de mim (eu no sofá deu-me com o Um Novo Amor para Jack e
punho fechado) umas socadas no meu cocuruto.
a Segunda Neta
Jack estava ausente, na casa da amiga Vanda, mas retornou
bem a tempo de ir comigo dar queixa da agressão na delegacia. Ain- 1981 – Silas, conhecido comerciante em São Vicente era o novo
da não existia a delegacia da mulher, mas na comum mesmo fui bem amor de Jack.
atendida.
Poucos meses depois de o conhecer, foi com ele morar no meu
Ao voltar para casa não mais o encontramos, soube depois que apartamento com vista para o mar da praia do Itararé e levou com ela
foi chorar as pitangas na casa da sua irmã. Decerto falar mal de mim. E a Juliana.
só retornou na 3ª à noite. Na 4ª cedo acordei e percebi que ele colocara
o necessário na sua maleta, para a internação. Todas as tardes em que houvesse consulta marcada, aparecia
para atender seus clientes e trazia a Ju.
Eu, indo ao banheiro, ao olhar-me no espelho, vi não uma, mas
sim duas olheiras negras, causadas pelas socadas. Que ódio. 1982 – Pelo ultrassom, os de casa e os amigos já sabiam que o
bebê na barriga da Jack era uma menina – Jennifer.
Do banheiro dirigi-me à sacada e lá fiquei aguardando sua saí-
da. Depois fui para o hospital de ônibus. Dia 12 de Março, no hospital dos Estivadores, na sala de cirurgia
Jack se submetia a uma cesariana. Ela tinha ao seu lado a amiga Vanda
Quando ele, portando sua maleta, cruzou o portão da rua, às (funcionaria do Hospital) dando-lhe um apoio nessa hora difícil, embo-
suas costas gritei bem alto: ra feliz.
– Tomara que você morra! Próximo dali na sala de espera eu mais Silas, aguardávamos.
Putz, que boca a minha. Ele nervoso, sentava levantava, andava, fumava e para mim
Essa 2ª troca da válvula mitral, também às custas da Previdên- nem olhava, muito menos sorria.
cia, foi realizada pela equipe do Dr. Jatene e transcorreu normalmente. Passado um tempo, que para o nervoso pai deve ter parecido
Zangada, não carreguei as sacolas. um tempão, apareceu Vanda e trazia novidades.
Logo após a cirurgia, na UTI, ele contraiu uma brava infecção, a – Uma menina tão bonitinha, engraçadinha, ela é uma graci-
endocardite bacteriana. nha... Vanda eufórica só falava da nenê, mas eu era uma mãe preocu-
Aos nossos telefonemas, a cada saída do boletim médico (três pada...
vezes por dia) a resposta era sempre grave, isto por 5 dias. – Mas Vanda, e a Jack? Ela está bem?
Mas antes quero contar que no 3º dia do grave, a delegacia Claro mãe boboca que estava bem, se não Vanda não estaria
mandou intimação. Queriam saber se eu iria continuar ou iria desistir tão alegre...
da queixa. Como continuar se o marido nem morrera e eu já me consu-
mia em remorsos? Desisti. – Mas, venham, venham – dizia Vanda – que a maca com as
duas já vai para a enfermaria e vai passar aqui no corredor.
No 6º dia da UTI ele melhorou e mandaram-no para enfermaria.
Fomos. A maca de fato já vinha e parou bem junto a mim e a
E lá voltei eu com as sacolas por ônibus, metrô, ladeira. Porque Silas. Na maca, deitada, Jack feliz e a seu lado a sua nenê.
ele, que era forte como galho de goiabeira, vergava, mas não quebrava
e venceu a endocardite. Tinha razão Vanda, uma gracinha, os olhinhos pretinhos, pare-
ciam duas jabuticabas, a boquinha, os cabelos enroladinhos, o narizi-
nho... ai não resisti e falei:
– Silas, ela se parece com você!!!

112 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 113
Só aí, então, Silas me olhou e sorriu um largo sorriso de satis- para a Beneficência de São Paulo, onde foram realizadas as três trocas
fação. da válvula mitral, sendo que a última há pouco mais de um ano. Jack
fretou uma ambulância equipada com oxigênio, enfermeira e até um
O nome da nenê gerou pequena rusga, pois Jack queria o
cardiologista. Jack e eu fomos na boleia ao lado do motorista.
nome Jennifer, mas Silas preferia Tiana.
Com a sirene ligada, a ambulância subiu a Imigrantes e, che-
E pela paz conjugal ficou o nome da nenê Jennifer Tiana.
gando à recepção do Hospital Paulistano, foi o paciente direto para o
leito da UTI.
Mais uma internação Passados 4 dias melhorou da dispneia, sendo então transferido
para a enfermaria.
Entre três cirurgias para troca da válvula mitral, aconteceram Porém não se passaram 5 horas e foi obrigado a retornar à UTI.
também várias internações do Hertz na Santa Casa de Santos onde
Jack era uma das plantonistas, quando só assim Hertz era aliviado das Havia contraído a brava endocardite.
crises da dispneia. Recomeçaram as indagações telefônicas a cada saída do bo-
Liza trabalhando, casada e com uma filha, mesmo assim era a letim médico. E igual a vez anterior a resposta era grave, grave. Não
que mais comparecia frente ao leito do pai na enfermaria. podíamos entrar na UTI (só Jack como médica).
Fábio bem pouco e Gina desde a briga de 1975, nunca mais. Liza, no domingo dia 6 de maio, lá estava a saber notícias do
pai. Revezamos nestas idas.
Dezembro 1982 – A 3ª troca da válvula mitral, como as 2 ante-
riores foi realizada no Hospital Beneficência Portuguesa (SP), também De lá, na tarde do dia 6, Liza ligou-me: O médico analisava que
as custas do INAMPS (INSS) e a equipe responsável foi a chefiada pelo seu pai piorara bastante, que poderiam esperar o pior, era bom que eu
Dr. Macruz. subisse.
Essa nova válvula era em metal cirúrgico e a operação transcor- Fomos Jack, eu e ela. Na subida da Imigrantes o Passat encren-
reu sem complicação, normal, e como as outras, por 20 dias carreguei cou, pifou, obrigando-nos a acenar para o ônibus. Passavam todos lo-
sacolas com livros, pijamas, frutas, de ônibus, metrô, ladeiras, etc. tados, pois era domingo à tarde. Custou, demorou até que um parasse
para levar-nos até o metrô Jabaquara.
No dia de Natal, Hertz já se recuperando no quarto da enferma-
ria, levei uma sacola especial com pernil, farofa, castanhas, maionese e E entre metrô, viaduto, ladeiras chegamos já bem noite à frente
até uma garrafa de champanhe. E nesse dia feliz, juntos almoçamos e da porta fechada da UTI e aí já encontramos sentados em um dos ban-
até tomamos a champanhe. cos os meus 3 enteados. Até Gina, que em vida não visitava mais o pai,
“agora” na hora da morte ali estava.
O dia de Ano Novo, Hertz já o recebeu comigo e a turma de
casa, entre os fogos da praia do Itararé. E que caras! Certo que o momento não era para sorrisos. Até a
Liza que senti sendo policiada pelos dois irmãos.
Seria inevitável ciúme? Seria porque só Jack como médica en-
2ª Viuvez – Cena Do Velório trava na UTI?
Após meia-noite os 4 cochilaram nos bancos, não eu.
Abril 1984 – Uma persistente dispneia obrigou Hertz a inter-
nar-se na Santa Casa de Santos. Dias se passaram e seu estado não me- As horas passavam e lentamente veio a madrugada, eu ainda
lhorava. com a esperança de ver aquela porta fechada se abrir e por ele sair um
médico da equipe a nos dizer que, como da vez anterior, Hertz vencera
O cardiologista orientou sua colega Dra. Jaqueline que o me- a endocardite.
lhor a fazer seria que ela providenciasse a remoção do seu padrasto

114 Uma Vida pra Contar: Simplesmente Maria Maria Klomfass 115
Meus olhos estavam secos, minha cabeça tinindo, jamais es- Bem, chega de prosa e verso e retornemos à cena do velório,
quecerei, foi uma noite de cão. que quase virou cena de pugilato.
Amanheceu, manhã do dia 7 às 9h30 enfim a porta foi aberta À pergunta desaforada do enteado respondi como exigia a
para dar passagem ao médico em pessoa: ocasião, fazendo drama.
– Quem é a esposa do Hertz? – Não me interessa o que vocês pensam, o que importa é o que
sinto no meu coração.
Levantei-me.
Jack, mais atrás, abriu caminho adiantou-se e xingou Fábio.
– Fizemos todo o possível, mas essa endocardite veio muito
forte. Sinto muito, o Hertz acaba de falecer. E mais Jack não fez porque foi segura por Silas:
Caixão, traslados e outras burocracias, Jack mais lúcida provi- – Não se meta que não é com você.
denciou.
– Mas é com a minha mãe, esbravejou Jack.
Sala para velório, cemitério, enterro, Linda em São Vicente, cui-
Nisso, Liza, esquecida talvez das taponas, colocou as duas mãos
dou.
na cabeça e chorando pediu.
A noite do velório foi para mim estressante eu já com a véspera
– Por favor respeitem-no ao menos depois de morto.
sem dormir.
Calou-me, calaram-se.
Dia 07 às 10 horas – hora marcada para o enterro, acerquei-me
da cabeceira do caixão para a despedida. Também porque os homens da funerária, com a tampa do cai-
xão nas mãos, resolveram que era bem hora de fechar o caixão para
Por entre as lágrimas notei que enfiado num terno azul, Hertz,
saída para o cemitério.
podia-se dizer, era um morto bonito. Também os amigos e parentes es-
tavam ali solidários com minha dor. Meus olhos bateram de frente com O enterro saiu e Hertz foi levado à sua última morada e sem
os olhares de ódio com que me fitavam Fabinho e a cunhada. mais discussão foi sepultado no tumulo 28 – Quadra – 6 do Cemitério
da Areia Branca.
Da boca de Fábio ouvi palavras de ironia:
– Você agora deve estar bem satisfeita, não?
Ora, vejam vocês, que culpa tinha eu?
Se quando conheci Hertz, ali deitado a minha frente, em seu
leito derradeiro, não tinha ele já se submetido a uma operação cardía-
ca?
Baseado em que me acusava o enteado? Nas brigas rotineiras
entre marido e mulher? Isso até poderia ser. Mas só eu? E o morto?
Porque morrera virara um Santo? Fábio por certo esquecera o chute na
longarina da cama.
Não o culpo. Também eu não estava ali chorosa, esquecida da
mandíbula travada.
O enteado, isso sim, deveria era me agradecer os 12 anos que
ao meu lado seu pai sobreviveu. As tantas sacolas que por metrô e la-
deiras carreguei.

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dade do Rio de Janeiro as levei e foram muitas vezes.
A vida assim transcorria calma e serena e eu me sentia livre,
PARTE 4 – SIMPLESMENTE MARIA leve e solta.
Passou-se o tempo e os manuscritos desta minha história per-
EPÍLOGO maneciam guardados com carinho em uma gaveta, confesso que por
estar em um período de calmaria não tive vontade de acrescentar algo
Viagens mais, até que em 2014 minha neta Jennifer casou-se com Thomas Ar-
raes e passou a assinar Jennifer Tiana Bonugli Alves Arraes. Da união
Depois da morte de Hertz, de- dos dois Deus me deu o privilégio de ser bisavó duas vezes: Sophia e
cidi que viajaria Brasil afora. Bernardo57. Nasceram lindos e saudáveis.
A Juliana optou por ser uma mulher livre e independente e por
De malas enquanto não pensa em casar-se.
nas mãos visitei
muitos lugares Minha filha Jaqueline continua sendo minha grande compa-
nos anos 1980, nheira.
1990 e 2000. Fui Ah! Todos vivemos em São Vicente!
d o Rio Grande do Sul
ao Amazo- nas: Manaus – AM,
Belém – PA, Ilha do Marajó – PA, For- A Família Reunida
taleza – CE, Natal – RN, Maceió – AL, Belo
Horizonte – MG, Vila Rica – MG, Diamantina –
MG, São João Del Rei – MG, Araxá – MG, Vitória
– ES, Baunilha – ES, Serra – ES, Vila Velha – ES,
João Pessoa – PB , Re- cife – PE, Olinda – PE, Garanhuns
– PE, Salvador – BA, Caldas Novas – MG, Rio de Janeiro
– RJ, Petrópolis – RJ, Campos – RJ, Niterói – RJ, Paraty –
RJ, Curitiba, Guaíra – PR, Porto Alegre – RS, Pantanal – MT, Pal-
mas – TO, Foz do Iguaçu – PR.

No Estado de São Paulo viajei para Bertioga – várias vezes com


as minhas netas e minha amiga Iraídes – São Sebastião, Caraguatatuba,
Ilhabela, Ubatuba, Serra Negra, Águas de Lindoia, Socorro, Campos do
Jordão, Americana, Campinas, Ribeirão Preto (onde fiz cirurgia porque
quebrei o braço em uma queda e não contei para ninguém).

Fora do Brasil estive no Paraguai com minhas netas e Argentina


– de navio – para nunca mais de tanto que passei mal (enjoos).

Quando estava em casa, me dedicava integralmente às minhas


netas Juliana e Jennifer, pois são elas a razão do meu viver. 57 Na foto, da esquerda para a direita, Juliana Bonugli Lopes, Jaqueline de Toledo Bonugli com
Sophia Arraes no colo, eu, Jennifer Tiana Bonugli Arraes com Bernardo Arraes no colo e Thomas
Levava à escola, fazíamos passeios e até no Xou da Xuxa na ci- Arraes.

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