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Direito Criminal I ( 2014) Apontamentos não revistos para uso exclusive dos estudantes da FDUEM

Elysa Vieira

II. FUNÇÃO DO DIREITO CRIMINAL

A. FINALIDADES DA PENA CRIMINAL

1. Modalidades dos fins das penas

O sentido último ou a legitimidade do direito criminal pode igualmente ser


determinado através do estudo das funções/fins das penas (reacções à culpabilidade
do delinquente pelo mal do crime).
Por fins das penas entendem-se os objectivos que o Estado pretende alcançar
através da sua criação, aplicação e execução. Isto porque a pena afecta o cidadão quer
no momento em que é criada pelo legislador, quer no momento em que é
concretamente aplicada pelo juiz, como no momento em que é executada pelo
carcerário.
Quando se fala dos fins das penas o que está em causa é saber se as penas
devem ter fim retributivo ou preventivo e, neste caso, se a prevenção deve ser geral ou
especial.
Diz-se que o fim é retributivo (ou compensatório), se, com a aplicação da pena,
se pretende que o infractor pague à sociedade, que retribua o mal praticado (que expie
a culpa através de um mal como reacção a outro mal – o mal da pena, por um lado e o
mal do crime, por outro); diz-se que é preventivo se, com a aplicação das penas se
pretende, para o futuro, evitar a prática de crimes.
A prevenção é geral se pretende evitar que a generalidade das pessoas cometa
crimes; é especial se se pretende evitar a prática de crimes por aquela pessoa à qual é
aplicada uma pena. Neste caso o fim é reeducativo, se visa a ressocialização do
infractor.
Na prevenção geral é costume distinguir entre prevenção geral positiva, ou de
reintegração, e a prevenção geral negativa, ou de intimidação.
No momento da sua criação, a pena visa o fim de prevenção geral negativa:
atemorizar a comunidade através da ameaça ou da intimidação.
No momento da sua aplicação, ela visa, simultaneamente, a prevenção geral
integrativa, a retribuição (punição do delinquente) e a prevenção especial reintegrativa
ou de socialização.
No momento da sua execução, a pena visa a retribuição e a prevenção especial
positiva (correcção, re-educação e reintegração).
Esta conclusão a que chegamos é contrária às teses monistas segundo as quais,
a pena só pode ter uma função.

Há diversas teorias sobre os fins das penas. As teorias segundo as quais a


essência da pena se esgota com a retribuição, reparação ou compensação pelo mal
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causado são teorias absolutas; aquelas segundo as quais a finalidade das penas é a
prevenção ou profilaxia criminal, que visam evitar a prática de novas infracções, são
teorias relativas. Dizem-se teorias mistas, aquelas em que entram as ideias de prevenção,
de retribuição e de reeducação. Visam recuperar o infractor.

2. Finalidades da pena no direito positivo


No direito positivo moçambicano encontramos algumas normas que nos
poderão ajudar a perceber se o legislador moçambicano tomou ou não posição sobre
os fins das penas.
Nos termos do art. 27.° CP “A responsabilidade criminal consiste na obrigação de
reparar o dano causado na ordem (...) da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na lei (...)”.
Preconiza o fim da retribuição assente no postulado do dano e da culpa. Porém, “Na
execução das penas privativas de liberdade ter-se-á em vista, sem prejuízo da sua natureza repressiva,
a regeneração dos condenados e a sua readaptação social”, “ o trabalho será organizado de maneira a
promover a regeneração e readaptação social dos delinquentes, e a permitir-lhes a aprendizagem ou o
aperfeiçoamento dum (...) ofício (...) reforçar a consciência dos deveres (...), familiares e sociais dos
condenados, e a facilitar a sua readaptação à vida em liberdade, após o cumprimento da pena” (arts.
art. 58.° e 59.°, ambos do CP). Na execução da pena visa-se alcançar o fim de
prevenção especial positiva.
É ainda relevante a possibilidade de prorrogação da pena para os delinquentes
perigosos (art. 67.° CP): “As penas (...) poderão ser prorrogadas (...) quando se mantenha o
estado de perigosidade, verificando-se que o condenado não tem idoneidade para seguir vida honesta”.
A prorrogabilidade da pena 1 preconiza o fim de prevenção especial. Da análise
conjugada deste artigo com os artigos 68.° e 69.°, todos do CP parece ser legítima a
conclusão de não se tratar de uma prevenção especial negativa, a qual visa a defesa da
sociedade através da segregação do infractor. A limitação temporal da possibilidade de
prorrogação sem qualquer referência à possibilidade de aplicação de medida de
segurança caso a perigosidade se mantenha para além da prorrogação parece revelar
que este não é excluído, indefinidamente, do convívio social. Cumprida a pena
extraordinariamente agravada nos termos do art. 93.° CP, acrescida da prorrogação do
art. 67.° CP, o infractor deve ser posto em liberdade.
Já em matéria de aplicação da pena há a considerar o art. 84.° CP que
estabelece critérios para a determinação da medida da pena: “A aplicação das penas, (...),
depende da culpabilidade do delinquente, (...)”.

1Discute-se se esta prorrogação ainda corresponde a uma pena ou se já é uma medida de segurança. Cfr. a
propósito Cavaleiro de Ferreira que a define como uma pena de segurança, Direito Penal Português, Parte
Geral II, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1982, pág. 359. Cfr. tb Maia Gonçalves, Código Penal Português, 2.ª
edição, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 51, para quem a “prorrogação é pena, aplicada fundamentalmente por
culpa na não formação adequada da personalidade e, por via dela, realiza-se a prevenção quanto ao
delinquente.”
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Prevê-se ainda a possibilidade de substituição da prisão por multa (art. 86.° CP): “A pena
de prisão aplicada em medida não superior a seis meses poderá ser sempre substituída
por multa correspondente”. Não obstante a substituição, só em caso de aplicação de penas
curtas de prisão, o juiz dá necessariamente uma advertência solene ao infractor. Preconiza-se o fim da
prevenção especial positiva.
Ainda nesta tendência, veja-se o art. 88.° CP ao estabelecer que “Em caso de
condenação a pena de prisão, ou de multa ou de prisão e multa, o juiz, tendo ponderado o grau de
culpabilidade e comportamento (...) do delinquente e as circunstâncias da infracção, poderá declarar
suspensa a execução da pena, se o réu não tiver ainda sofrido condenação em pena de prisão.” A
suspensão só é admissível em caso de condenação efectiva em pena de prisão
correccional ou de multa e desde que se trate de agente primário.
E aqueles que forem efectivamente “condenados a penas privativas de liberdade de
duração superior a seis meses poderão ser postos em liberdade condicional pelo tempo que restar para o
cumprimento da pena, quando tiverem cumprido metade desta e mostrarem capacidade e vontade de se
adaptar à vida honesta” (art. 120.° CP). Admite-se a interrupção do cumprimento da
pena com base na presunção da readaptação social do agente. Também esta norma se
enquadra nas políticas de prevenção e choca com os princípios retributivos.
Constituem ainda manifestações da consagração do fim da readaptação social
do infractor, a circunstância de se estabelecer um regime de imputabilidade diminuída
no qual aos menores de 18 anos e de 21 anos não podem ser aplicadas penas
superiores às presvistas nos arts. 108.° CP e 107.° CP, respectivamente.
O Direito Penitenciário é actualmente objecto de uma nova política criminal
que exige um tratamento humanista do condenado e a possibilidade de este corrigir a
sua personalidade deficiente através do trabalho (art. 59.° CP). Neste âmbito, são
fixadas regras mais adequadas para recuperar o criminoso tornando-o socialmente útil
(v.g., as cadeias devem ser encaradas como escolas – dando cursos de formação – ao
invés de campos de repressão).

B. LIMITES À INTERVENÇÃO CRIMINAL DO ESTADO


Atendendo à natureza dos valores que são protegidos, o direito criminal é
direito público mas com pórtico constitucional. Numa óptica formal, a Constituição é
fonte legitimadora do ordenamento infra-constitucional que o direito criminal
representa. No entanto, há quem defenda que o direito criminal é materialmente
constitucional. Consequentemente, os textos da Lei Fundamental não legitimam o
direito criminal. Antes limitam o âmbito do penalmente relevante e circunscrevem as
margens da punibilidade.2

2COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ediçã, reimpressão, Coimbra Editora, 2010,
pág. 71.
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Essa limitação do iuspuniendi é absolutamente necessária porque todo o poder


tende a expandir-se e a tornar-se absoluto. E os mecanismos socialmente relevantes
que legitimamente se oponham a esta expansão do direito de punir são os
procedimentos constitucionalmente legitimados nos Estados de direito democrático.
Ou seja, o conjunto de regras e princípios que uma determinada comunidade, em certa
época histórica, condensa em um texto constitucional.

1. Princípio da culpabilidade – princípio que faz a responsabilidade criminal


depender da culpa: não há pena sem culpa (culpa como pressuposto da pena) e
a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (culpa como limite da pena). A
culpa é um termo usado em diferentes sentidos. Para o que agora interessa é no
sentido de imputação dos factos ao agente. É o juízo de reprovação jurídica ou
censurabilidade ao agente por ter praticado o facto ilícito tendo consciência e
vontade de o praticar. A consciência e a vontade livre pressupõem que o
homem tenha razão e liberdade (ou autonomia). Assim, não pode haver
responsabilidade criminal para quem não tiver liberdade de entendimento e de
decisão (art. 26 CP).Este princípio é igualmente designado por princípio da
responsabilidade subjectiva na medida em que, em DC não existe
responsabilidade objectiva ou pelo risco.

2. Princípio da intervenção mínima3 – princípio segundo o qual só se justifica a


criminalização de uma conduta quando tal for absolutamente necessária à
protecção de um bem jurídico fundamental, como “ultima ratio” e na medida em
que for capaz de ter eficácia. Dado o seu carácter aflitivo4, o direito criminal só
deve ser usado como medida extrema. Só deve intervir quando for, por um
lado, necessário e, por outro, eficaz. Trata-se do princípio da necessidade e da eficácia da
intervençãopenal, o qual encontra consagração constitucional no artigo 56.

3. Princípio da subsidiariedade – princípio segundo o qual a intervenção do


Direito Criminal só se justifica quando fracassam as demais formas protectoras
do bem jurídico previstas em outros ramos do Direito. Ou seja, quando
medidas sancionatórias do direito administrativo, direito cível, da política social,
entre outros, não se mostrarem suficientes. Este princípio limita a intervenção
do DC às situações em que seja o único meio eficaz de reacção contra a
violação da norma. Assim, seoutras medidas forem suficientes ou se a

3 Também é designado por princípio da necessidade – princípio de política legislativa segundo o qual a lei
deve dispor para o que é necessário, enquanto for necessário.
4SILVA, Germano Marques da. ob.cit., pág. 16.
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incriminação for ineficaz para alcançar os fins pretendidos, o direito criminal


deve abster-se de intervir (e assumir uma posição subsidiária).5

4. Princípio da fragmentaridade– princípio segundo apenas as agressões


socialmente intoleráveis contra interesses jurídicos indispensáveis para a
harmoniosa coexistência socialdevem ser dignos de tutela penal. Apenas alguns
bens (os essenciais) devem ser penalmente tutelados e apenas contra algumas
formas de agressão (exigência de intervenção mínima).

5. Princípio da proibição do excesso – princípio segundo o qual, na


consecução de um fim, deve-se utilizar o meio estritamente adequado,
evitando-se todo o excesso.

6. Princípio da proporcionalidade – princípio segundo o qual, na consecução


de um fim, deve-se utilizar o meio que seja ao mesmo tempo estritamente mais
adequado, mais vantajoso e menos agressivo. Trata-se de alcançar o justo
equilíbrio entre a gravidade do facto praticado e a sanção imposta.

7. Princípio da insignificância – princípio segundo o qual foge ao interesse


público a apreciação, pela autoridade, de questões de ínfima importância (“de
minimis non curatpraetor”). É igualmente designado princípio da bagatela.6

8. Princípio da tolerância e humanidade da pena – princípio segundo o qual


as penas (e medidas de segurança) devem ter um carácter humano e social.
Num Estado de Direito democrático, veda-se a criação, a aplicação ou a
execução de pena que atente contra a dignidade humana.

9. Princípio da pessoalidade da pena – princípio segundo o qual a


responsabilidade criminal é individual e é intransmissível: a pena apenas deve
atingir o próprio criminoso, singularmente considerado, não se estendendo a
terceiros (art. 28 CP).

5BELEZA, Teresa. ob. cit. pág. 33 referindo-se à desnecessidade da pena na incriminação do adultério e de
furtos de valor mínimo e à ineficácia da incriminação do aborto.
6 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Dicionário Compacto de Direito, Editora Saraiva, 9ª edição, 2010.

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